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Poesias-->Olhos de guri -- 12/07/2006 - 15:24 (JOÃO FELINTO NETO)
Prefácio Através da observação de pequenos atos de seu filho e espelhando-se em recordações de si mesmo na infância, o autor consegue enxergar a sensibilidade da ingênua alma infantil. Com o discreto dom de persuadir a criança ao interesse pela poesia, o poeta norte-riograndense, João Felinto Neto, supera a expectativa ao conseguir, mesmo em alto nível de compreensão, a captação do engenhoso espírito da inocência. Olhos de guri ambienta versos que fazem o leitor, adulto ou criança, reviver passos ou começar a andar sobre ladrilhos de um mundo de fantasia. A idade não é uma barreira quanto a Olhos de guri, é apenas um batente a transpor na escadaria do pensamento ingênuo e doce do poeta, a subir ou a descer. O poeta consegue desanuviar a visão que tem do mundo, por ser um adulto, e com isso fala o que vê com seus olhos de guri. Anita Hélida Olhos de Guri Olhos de guri são dias que não passam. Vez em quando, na lembrança, nos abraçam. São passos que na distância nos alcançam. Não se cansam de nos perseguir. É bom notar os olhos da infância. São olhos que estiveram sempre aqui, curiosos como olhos de guri. No escuro Quando estava na calçada, precisava de alguém para entrar dentro de casa. Nunca se sentia bem. Era medo de fantasma ou talvez da noite escura. Quando a lâmpada apagava, ele corria pra rua. O guri queria o dia, pois a noite o assombrava. Seu sorriso de alegria, o escuro silenciava. Ele enfim não percebia que a noite era o dia com as luzes apagadas. O preto Meu cachorro Preto é branco, com manchas da cor de areia. Seus olhos à luz espelha como as pedras no leito do rio. Quando assovio eu chamo, chamo o meu cachorro bravio. Fiuuu... Se eu fosse Eu queria ser pequenino como o colibri no jardim e voar para o seu ninho com suas asas em mim. Ver de dentro do aquário, tudo que vive aqui fora. Pra trocar o meu cenário seria um peixe, agora. Se eu fosse um macaco, pelas árvores saltaria. Nos cipós, de galho em galho, o tempo não passaria. Numa viagem ao passado Eu queria com certeza ser um grande dinossauro que apavora sua presa. Ser um pequeno inseto ou o maior dos animais, isso é tudo que eu peço pra brincar cada vez mais. A mão Eis minha mão: No mínimo tenho um vizinho anelar, sou médio indicador, posso indicar meu polegar num sinal de positivo. A ilha Uma voz baixinha, difícil de escutar, numa brisa que vinha do mar. Como a entoar por entre lábios, uma canção de ninar. Era a voz da ilha que à praia via sem poder voltar. Sem pé e sem cabeça Eis a minha história, sem pé e sem cabeça. É uma velha história, mas nova ainda. Nunca foi lembrada. E não se esqueça, para ser contada tem que haver começo, como não há meio, a história finda. Vogais A, de ar que vamos respirar. E, de ei, maneira de chamar. I, de ir, sair pra caminhar. O, de Óz, a terra pra sonhar. U, de um, começando a contar. O balanço Olha o balanço. Olha o balanço. O balanço vem e vai. Quem balança é a minha mãe. Quem balança é o meu pai. Balança para frente. Balança para trás. No balanço não me canso. Quem se cansa são meus pais. Cavalo-de-pau O meu corcel é um cavalo perneta. Sua cabeça é um talo cortado. O seu galope é a minha carreira. A sua cauda é a ponta do talo. Cavalo irreal, de corpo tão magro, cavalo-de-pau. A barata Vasculhou sua vida inteira, os papeis que ali, eu guardava. A barata de tudo cuidava. Descuidada, não viu que eu abria. A barata perdeu sua vida dentro de minha gaveta. A barata não lia uma letra do que eu escrevia. Hoje, marca em um velho poema, por ter sido nele esmagada. A barata tão pouco sabia que sua morte fora prenunciada neste dito poema: "A barata". O trem Eu tenho um trem, bordado em minha toalha. Um trem colorido, soltando fumaça. Não ouço o apito. Não vejo a estação. O trem só caminha na minha imaginação. Colorido O que faço com essas cores? Cores vivas, quem são? De azul pintei o céu. De marrom pintei o chão. Com amarelo fiz o sol. Com verde a plantação. Branco, a folha de papel que meus dedos coloridos mapearam ilusão. O brinquedo Não importa o brinquedo que me deram. Se é inteiro ou apenas um pedaço. Meu brinquedo é aquilo que eu quero. De uma arma, um violão eu faço. O microfone é a mão-de-pilão que pertence ao armário da cozinha. A casinha que fica no oitão é um castelo que não tem rainha. Não importa o que escrevem no jornal, que dobrado é o barco que navega. Na pia em que lavo minhas mãos, minha boca, num sopro move a vela. Quando quero, o meu cavalo-de-pau cria asas e assim posso voar. O brinquedo que me deram é tão legal, toma a forma que eu imaginar. Esconde-esconde Brincar de esconde–esconde. Ouvi chamar meu nome. Sem ter me encontrado, por ter ela inventado, me descobriu aqui. Mamãe! Não vou dormir, pois é cedo ainda. A brincadeira finda e ninguém vai me encontrar. Quando alguém chamar, eu não vou responder. Se você não me vê, não pode me achar. Quem é que vai contar? Já quero me esconder. Ciranda Enquanto ali, de mãos dadas, rodava em uma ciranda, de meus brinquedos, afastava minhas lembranças. Com um sorriso encantava, irradiava esperança. Crescia em mim, o carinho pela menina de tranças. Meia-volta no caminho que me levava à escola, para voltar à ciranda e vê-la brincar de roda. Volta e meia sou criança. Ouço a inocência cantar. Desmancha, o vento, as tranças. Os olhos põem-se a chorar. O passarinho Voa meu passarinho. Foge da minha mão. Guia-me nesse caminho, mostrando a direção. Brilha, o sol, distante. Soa, meu assovio. Voltar à minha mão, eis seu maior desafio. De volta à estrada A casinha lá no morro, hoje de porta fechada. Na lembrança, ainda corro pela beira da estrada. Eu criava um cachorro que sempre me acompanhava. Ele morto. Eu seguindo a mesma estrada. O mundo embaixo da pia Brincando de fazer guerra no mundo embaixo da pia, o garoto move a terra, o planeta que ele gira. Eis um manipulador na maquete sem estrela. Um arco-íris sem cor. Uma chuva de mangueira. Os brinquedos de plástico não sangram. Nem tão pouco, os soldados sentem dor. O garoto imagina um mundo em miniatura, onde cada criatura tem pra ele, seu valor. Inquieto Guri, saia daí, de cima dessa mesa. Então se vê tristeza nos olhos do guri. Mamãe. Venha aqui! No quarto apronta outra. Estava ele ali, dentro do guarda-roupa. Um balde emborcado. De pé sobre a pia. Perigo redobrado. No rosto simpatia. Dá vontade de rir com suas artimanhas. Desça já daí! Guri, você apanha. Não sei o que fazer. Só vendo para crer. Diante dos seis anos, em tudo quer subir. Órfão Procuro pelo meu pai, por minha mãe. Onde estão meus irmãos, minhas irmãs. Preciso de uma família pra resumir toda a tristeza que a vida me faz sentir. Preciso de um carinho pra iluminar o escuro e ermo caminho que leva a um lar. A chupeta Só repousa sob a almofada, quando a minha boca está cansada. Quando a perco é uma loucura, por toda a casa, mamãe procura. Papai rabisca com uma caneta uma poesia sobre a chupeta. A noite chega. - Já para a cama. - Deixa de choro. - Você apanha. Eu não preciso de cara feia. Só de silêncio e da chupeta. A bicicleta Um pedido realizado. Uma bela bicicleta. Duas rodinhas de apoio vão me segurar na certa. Já me achando um atleta corro e atravesso a rua. Monto em minha bicicleta e a corrida continua. Eu pedalo, desatento, entre os bancos de uma praça. Quando caio, me arrebento. Meus amigos acham graça. Choro e quero ir para casa. Meu consolo é o meu lar. Um cuida do ferimento, o outro tenta consolar. O João-Teimoso Sou menino mal ouvido, sou arteiro e buliçoso. Por isso meu apelido é simplesmente João-Teimoso. João-Teimoso é um boneco que sempre fica de pé. Por mais que a gente tente, ele só faz o que quer. Quando empurra para trás, ele volta para a frente. Dizem que eu teimo demais. Não sou boneco, sou gente. Meu barquinho Eu vou levar meu barquinho pra navegar lá no rio. Meu barquinho tem as cores da bandeira do Brasil. Verde como aquela árvore que fica perto da ladeira. Pra construir meu barquinho eu lhe tirei a madeira. Amarelo como o sol que ilumina o meu caminho e que deixa uma sombra de um menino e um barquinho. Branco como a nuvem lá no céu, é o tecido das velas. Meu barquinho quase voa quando o vento sopra elas. Azul como o céu que se espelha na agitada água do rio. Para mim, uma brincadeira. Pro barquinho, um desafio. O nome Sou um feio personagem de apelido engraçado. Minha graça é estranha e o meu sorriso é macabro. Ninguém quer minha companhia, não mora ninguém ao lado. Quando alguém fita meus olhos, fica logo apavorado. Minha aparência não diz nada do que o meu coração quer. Na solidão da estrada, encontro uma bela mulher. Não se importa com o meu rosto nem mesmo com o que digo. Mas quando cito o meu nome se assombra e dá um grito. Esse estranho pesadelo ficou na minha memória. Não sei se mudo meu nome ou se conto outra estória. A medalha Entre os bravos, eis que no peito brilhava, a medalha de honra ao mérito. Não precisa ser do exército e nem mesmo das forças armadas, a medalha é fruto do esforço. Uma fita ao redor do pescoço a mantém dependurada. Se é de ouro, se é de prata, se é de bronze, se é de lata, não importa o valor da medalha. O que importa é se a mereceu. Lembre sempre da velha história: Com a medalha no peito morreu, mas honrou a vitória. Compromisso Os meus olhos serão submissos aos meus pais. Por aqueles que amo demais, eu assumo qualquer compromisso. Essa estória parece maluca: Lá em casa surgiu uma bruxa e jogou um enorme feitiço. Com a voz rouca e esganiçada, ela disse uma palavra mágica que ainda ecoa em meus ouvidos. Eu achei que não era comigo, pois meus pais, já não mais me chamavam a atenção, se eu ia a escola ou não, se eu fazia bagunça na casa, se subia a velha escada, se brincava de bola na rua, se corria em meio a chuva mesmo estando gripado. Parecia ter tudo mudado e para bem melhor. Foi aí que eu vi minha avó, que a muito havia morrido. Perguntou-me por meus compromissos. Eu fiquei sem nenhuma resposta. Ela então me mostrou uma porta, os meus pais, em pé, numa cova, choravam por mim. Minha avó disse: sim, eis aí quem não tem compromisso com a vida, não encontra saída e acaba assim. Foi então que enfim descobri que o feitiço só a mim atingia. O que agora era só alegria, só tristeza seria no fim. A fita Ponha a fita para eu assistir, o guri pedia antes de dormir. Ponha a fita para eu olhar, o guri pedia ao acordar. Ponha a fita para eu ver, o guri pedia antes e depois de comer. O seu pai dizia que sim, sua mãe dizia que não. Quando a mãe dizia que sim, o seu pai dizia que não. Ele via que era tudo armação. E no fim era sempre assim, para ele não ficar amuado repassava na televisão, o mesmo desenho animado. O misterioso jardim Uma vez, tive que andar sete léguas num jardim. Era extenso e majestoso, havia um rio leitoso e um som de bandolim. Borboletas e beija-flores eram tantos quanto as cores das flores que havia lá. Era tão belo o lugar, que achei ter percorrido o imenso paraíso, sem o chão, meus pés tocar. Uma voz veio falar: - Sete vezes vai vencer, se sete vezes correr por cima do meu capim. Ouvia a voz do jardim que tentava me assustar, mas também me compensar se corresse pra valer. Eu só poderia ver suas belezas, ao andar. Comecei a questionar: - Vale a pena eu correr? Decidi ir caminhando, e o tempo foi passando devagar. Todos a me procurar. Eu estava quase lá. Tantos gritos a chamar que tiraram ele de mim. Fizeram-me acordar antes do sonho acabar e eu não cheguei ao fim. A lista de sapos O guri olhava, em pé na porta de casa, a rua na hora que a chuva caía. Sua mão não doía, apesar do tanto que anotava. Sua boca não cansava de contar uma a uma, cada pessoa que na poça d’água caía. O guri sorria, e com a voz engraçada o guri gritava: - Mais um sapo na lista. Antenas Eu conheço as letras.; até já posso ler, por elas mesmas, os versos de meu pai. E já fiz mais, criei o meu primeiro poema: "Antenas". Um título moderno, num esboço mal-traçado de um desenho, misturado a letras. Transcrevo com a mesma caneta, o poema que fiz: “Sobre os telhados, captam as imagens para a TV. Te ver nas antenas, ave que pousa. Sou apenas uma criança que ousa escrever.” Travesso Galho quebrado. Despenco no meio da lama. Na cajarana, meu pé ficou enganchado. Acabrunhado, sorrio. Porém o galho me machuca e mesmo no meio da chuva chamo o tio que me acompanha com o olhar de não tem culpa. Em meus olhos há desculpa, na natureza, arapulca que me pegou descuidado. Nunca mais Menos passos no mesmo caminho. Os sapatos estão apertados. Já não sou um menino, sou um adulto engraçado. Já não rio com as coisas singelas. Não batuco em panelas. O balanço não presta, minhas pernas cresceram demais. O campinho e a bicicleta, caminhar de cueca, nunca mais. Conversar com o pé de laranja, urinar no pijama, não são coisas normais. Acordar bem cedinho, apressado e com o rosto sisudo, é normal, sou adulto. Dirigir uma vida sem rumo, querer conhecer o mundo, sem conhecer o meu jardim. Fui feliz. hoje sou triste assim. A boneca Onde está a boneca que chora? Sapeca, não sabe quem é. Não tem mãe, não tem pai. Não reclama da hora. Quando em pé, ela cai. Quando cai, ela chora. A pequena Darc A guria não gostava de pia, de casinha ou fogão. Para ela, tudo era opressão. Ela ouvira sua mãe reclamar que a mulher tende a trabalhar só com água e sabão. Por que não brincaria de guerra, de doutora, de terra na mão? A guria, parecia antever que seu mundo seria uma doce ilusão. Sonho de boneca Nos brinquedos esquecidos sobre a velha prateleira que pela infância inteira sua dona não alcançara. Vestia um vestido curto, suspenso por duas alças. Suas meias coloridas dentro de um par de sandálias. Óculos que não tinham lentes, mantinha sempre na frente do empinado nariz. Queria muito ser gente, era seu desejo ardente, para sempre ser feliz. Soneto do abandono O guri entre os carros passava. Sua mão acenava para o carro a [seguir. Em resposta o homem gritava, sua face mostrava que sabia [mentir. Todos passam,ninguém quer [ouvir, mesmo sendo uma simples palavra que engasga e não quer sair, como não quer sair nossa [máscara. Uma cena por vezes passada. Tantas vezes a se repetir que se torna monótono assistir. Uma infância tão abandonada, sem razão e ninguém para agir, pois se torna mais fácil fugir. O beija-flor O guri cheirava a flor, a mais bela do jardim. De repente se espantou quando a flor lhe disse: - Sim, para tantos eu falei, só você me escutou. E o guri se animava, cada vez mais se encantava com o que falava a flor. O guri tudo escutou sem jamais interrompê-la. Novamente se espantou quando viu-se um beija-flor que beijava a natureza. O professor Meu pai dizia: - Guri, a vida não é bem assim. Um dia, coitado de mim, descobri que ele tinha razão. Para mim a mais dura lição, o mundo me fez aprender: Que eu nunca deveria esquecer que os pais pensam com o coração. E quando o meu filho diz não, eu tento fazê-lo entender que a vida é uma dura lição que o mundo nos faz aprender. Primeiro brinquedo Meu primeiro brinquedo eu guardei em segredo e sofria com medo que alguém percebesse que eu havia crescido e mantinha escondido meu primeiro brinquedo. Meu primeiro brinquedo era a eterna lembrança de uma doce infância que eu mantinha comigo. Mas o tempo estendido, o manteve à distância. Meu primeiro brinquedo, hoje está adormecido. A sombra Minha sombra que se perde no escuro, salta o muro quando o sol no céu desponta. Se arrasta no chão duro, se encolhe, se estica, passa rente a dobradiça e se perde pela casa. Mas à noite, minha sombra cria asa, voa quando saio a rua. Pela luz que vem da lua, minha sombra me abraça. Me divirto e acho graça quando atravessa a fogueira. Minha sombra, não sou eu, mas é minha companheira. Princesa Nasceu num dia de festa e todos puderam ver o quanto seria bela mesmo ainda sendo um bebê. Era a mais nova princesa que ao mundo veio encantar. Uma chama tão acesa que ao sol fez apagar. Quando começou andar, aonde seus pés tocavam, nascia flor no lugar. Uma voz acalma o mar. Todos não acreditavam, era a princesa a cantar. O protetor Tenho vontade de ser uma flecha em seu coração.; não que o faça doer, mas que o faça crer na emoção. Tento chamar a atenção, mas você não quer perceber que dinheiro não compra paixão, só a ilusão de se ter. Eu queria o poder de fazer o tempo voltar, de vê-lo de novo um bebê pelo chão a rastejar. Não está conseguindo enxergar que o poder o modificou. Se o seu barco afundar, com certeza estarei lá como sempre eu estou. Se já não houver mais tempo para tirá-lo do mar, eu correrei o risco de também me afogar. O pequeno mundo Um mundo reduzido pro tamanho do guri. Mas ele quer partir para um mundo bem maior. Se perde aqui e ali. Se encontra às vezes só. Chora e também sorri. Diz que não quer partir. Olha com seus olhos de guri o mundo ao seu redor.