
Eros e Psique
Num domingo de outono,
o povo, sem apetite,
como num profundo sono,
não foi até Afrodite,
cultuar sua beleza,
nascida das mãos de Zeus,
da espuma Esperteza,
adorada como deus.
Com santuário vazio,
a deusa foi preterida,
Psiquê, então no cio,
tornou-se a preferida.
Afrontada, Afrodite
afobou-se e, aflita,
convocou seu uranite,
Cupido, para vindita.
Sendo Eros, que horror,
a divindade que queima
com as setas do amor,
recebeu sua jurema:
A Psiquê deveria
da mãe veio a sentença
enamorar-se, que fria,
de monstro de malquerença.
São encantadas as flechas,
e Eros, sem querer, fura,
faz na pele duas brechas,
vira outra criatura.
Por Psique se derrete,
ferido pelo amor,
e ainda lhe compete
casá-la com o horror.
Sua mãe ele tapeia
e despista quanto pode,
diz que ela ficou feia,
parecida com um bode.
Psique, enquanto isso,
vê suas duas irmãs
firmarem o compromisso
de himeneu com titãs;
e, por homens adorada,
cobiçada por um deus,
não pode fazer mais nada,
só crer na força de Zeus.
Ao vê-la, pois, encalhada,
seus pais vão ao deus Apolo,
fazem reza bem orada,
com um carneiro no colo.
Querem ver o himeneu
da bela filha com quem
é vivo, ou não morreu,
até humano também.
Mas Eros já combinou
com o deus Apolo tudo,
já, então, determinou
que o pai ficasse mudo,
e que Psique levasse
para cima da colina;
se a serpente gostasse,
casava com a menina.
Na colina foi deixada,
lá ela adormeceu,
até que uma rajada
de vento lhe arremeteu.
De Zéfiro, deus do vento
do Ocidente, aragem
que completa do intento
de Eros a paisagem.
Zéfiro a encaminha
para um bosque florido,
lago de água clarinha,
com castelo escondido.
Psique, ao acordar,
se vê bem empoeirada,
quer logo banho tomar
e comer, mas não tem nada.
Mas o deusinho finório
não falha no planejado,
em bom tom declamatório,
invisível, disfarçado,
lhe convida pra entrar
no castelo arrumado
pra ela banho tomar
e, depois, a sós jantar.
E, além da sobremesa,
há música de primeira,
o que lhe dá mais certeza
de noite alvissareira.
Realmente, Eros veio
pela noite protegido,
fez o seu borboleteio,
recitando escondido.
Uma voz apaixonada
e mil carências ardentes
Psique sente do nada,
cada noite mais frequentes.
Mesmo sem ver o Cupido,
Psique mais amarrada
fica com o seu querido,
ao passar cada noitada.
Numa de suas visitas,
Eros lhe faz advertência:
as irmãs anafroditas
manter longe, com prudência.
Elas iam à colina
chorar Psique querida,
tão linda e tão menina,
que de lá ficou sumida.
Também, pra não ter desgraça,
Psique não tentaria
ver seu rosto, sua graça,
apesar da alegria.
A bela, obediente,
prometeu-lhe que faria
tudo isso bem contente,
nada lhe exigiria.
Mas foi ficando saudosa
das manas que não revia,
com promessa tão culposa
mais e mais entristecia.
E tanto delas lembrou
que Eros a atendeu,
pra visitas liberou
o castelo todo seu.
Mas seu rosto não deixou
ser motivo de desvelo,
mais uma vez renovou
a promessa de não vê-lo.
E o vento Ocidente
as irmãs então levou
a palácio, de repente,
com a força que soprou.
Foi um reencontro belo,
abraços, beijos e carinhos,
um churrasco de vitelo
a música e bons vinhos.
Mas, a cada perguntinha
das irmãs em polvorosa
pra conhecer a carinha
do marido tão honrosa,
Psiquê as distraía
mostrando-lhes belas naves,
e também a prataria
que bem guardava sob chaves.
Antes, as irmãs choravam
pela má sorte da mana,
pois jamais a encontravam,
até aquela semana.
Mas choravam mais agora
por invejar sua sorte:
livre de tanta caipora,
Psique livre da morte.
Viram a felicidade
que Psiquê ostentava,
mas viram que a beldade
do marido não falava.
As invejosas voltaram
para seus lares aflitas,
e entre si recordaram
que inda eram bonitas,
que sabiam das feições
dos seus maridos matreiros,
e que os seus corações
eram meio feiticeiros.
Psique, por sua vez...
Psiquê não lhes dizia
sobre Eros, sua tez,
das feições nada sabia.
Possível bastante era
que o oráculo tinha
lhe mandado a Quimera
para não ficar sozinha,
ou um monstruoso deus
que a cara escondia,
por ter outros himeneus
a celebrar cada dia.
E se era tão bonito,
tão jovem e carinhoso,
por quê ficar no maldito
breu da noite vergonhoso?
Ao castelo, então, vieram
suas duas invejosas
irmãs e impuseram
suas dicas duvidosas.
Psique nas bases tremeu,
pois aquele carrapicho
abalou seu himeneu,
e nasceu-lhe um capricho.
As irmãs a convenceram
a preparar lamparina,
uma faca lhe cederam,
armaram a heroina.
À lâmpada se atraca
pra ver de Eros o rosto;
se monstro for usa faca
e finda com seu desgosto.
À noite, Eros retorna
ardente, apaixonado,
com as mãos tudo contorna,
mas mantém-se bem velado.
Psique está gozando
e esquece o seu medo,
sua dúvida, ficando
na mente o seu segredo.
Mas eis que Eros cochila,
depois de tanto cafuné,
e ela tira da mochila
o que preparou até.
Ilumina o cenário
e vê o belo varão,
lourinho como canário,
o sumo da sedução.
Com ele extasiada,
treme tanto sua mão
que a lâmpada tombada
ferve óleo no machão.
Eros então se desperta,
percebe o machucado,
de tristeza se deserta,
sai dali bem apressado.
Psiquê segui-lo arrisca,
mas a noite não permite,
ele pra ela nem pisca,
só pensa em Afrodite.
E, por último, lhe diz
que amor jamais suporta
quem lhe foi adulatriz,
ou de confiança torta.
E volta pra Afrodite
lhe curar seu ferimento;
esta pede que lhe cite
a causa de tal evento.
Ao contar o que sabia,
Eros nela despertou
o que no fundo sentia,
vingança nela brotou.
Deseja ardentemente
encontrar sua rival,
e não sai de sua mente
como vai lhe fazer mal.
Sozinha, em desespero,
Psique põe-se a buscar,
em completo destempero
quer pra seu amor voltar.
A todos os templos vai,
pede ajuda, perdão,
ela de joelhos cai,
reza, jura submissão.
E nenhum deus lhe acode,
de sacrifícios se cansa,
ao último deu um bode,
e lá se foi a esperança.
Só lhe restou Afrodite,
que de Eros saberia,
ainda que lhe evite
e lhe faça zombaria.
E mais provas humilhantes
Psique enfrentaria,
as provas mais espumantes
que Afrodite daria.
De cara, ela faria
de grãos a separação,
no prazo de um só dia,
mil espécies, um montão.
O impossível, nem deus?
A Natureza disfarça
todos os criados seus
quando enfrenta a farsa.
De folga, um formigueiro
fez pra Psiquê o serviço,
tudo, no dia inteiro,
compaixão e compromisso.
Afrodite virou fera,
ficou irada demais,
mas não ficou na espera,
preparou-lhe outros ais.
Pra ganhar maior rudeza,
Psique só dormiria
no chão, e a impureza
nela acumularia.
Só comeria pães secos
e água já babujada,
andaria só por becos,
pra não ser mais bajulada.
E nova tarefa veio:
ir a um vale cortado
por um regato bem feio
tosquiar bem tosquiado
cada carneiro do sol,
cujas lãs eram de ouro;
e mesmo sem ter terçol
levava chifrada do touro.
Afrodite da lã queria
uma boa quantidade,
pois mais bela ficaria,
apesar dessa maldade.
O impossível, nem deus?
A Natureza disfarça
todos os criados seus
quando enfrenta a farsa.
Psique caminhou demais,
e, a conselho de vozes,
parou de buscar os tais
carneiros maus e ferozes;
esperou bater a sede
pra que saíssem do mato,
das touceiras espinhentas,
em direção ao regato;
e, assim, não precisou
de tosquiar os carneiros,
pois o rebanho deixou
a lã nos tais espinheiros.
Assim que a lã pegou,
rendeu graças ao Senhor,
pra Afrodite levou
e por Eros perguntou.
E Afrodite, de novo,
mais um afazer lhe deu:
subir, diante do povo,
a cascata onde nasceu
o Estige, velho rio,
que o inferno circunda,
e trazer de lá, bem frio,
frasco de água imunda.
Pra chegar na tal cascata
Psiquê iria ver,
qualquer um ali se mata,
água não pode colher,
pois a lage escorrega
e é alta pra chuchu,
a água forte sofrega
e faz som de caxambu.
Psique ia desistir,
pois jamais aguentaria
na tal cascata subir,
e não era fantasia.
O impossível, nem deus?
A Natureza disfarça
todos os criados seus
quando enfrenta a farsa.
A bela águia surgiu
tirou o frasco da mão
de Psique, que nem sentiu,
e fez a tal infusão.
Mas a sede da sogrinha
não era para matar
com água tão ribeirinha,
a vingança vai voltar.
Psique, diz Afrodite,
precisa lhe compensar,
pois seu filho com bursite
está sempre a tratar.
Deveria convencer,
Perséfone no inferno,
a uma caixa encher
com beleza, dom eterno.
O caminho das profundas
Psique foi procurar,
andou, fez curvas rotundas
e não conseguiu achar.
O impossível, nem deus?
A Natureza disfarça
todos os criados seus
quando enfrenta a farsa.
Uma torre no caminho,
tremendo de compaixão,
deu-lhe o rumo certinho,
e fez recomendação:
pelo caminho viriam
muitos pedindo ajuda,
mas de nada serviriam
com seus galhos de arruda.
E ela, então, consegue
a Perséfone chegar,
e logo lhe é entregue
a caixa para levar.
E quanta solicitude,
Perséfone caprichou,
embrulhou inda pôs grude
na caixa que arrumou.
E voltar bem instruída
sobre a rota de volta
é de ser agradecida,
não precisa de escolta.
Penoso, porém, chegar
sem ainda ter sucesso,
seu amor recuperar
carece de mais progresso.
E por sua vaidade
nessa volta triunfal,
Psique faz uma maldade,
temendo um maior mal.
Não querendo ficar feia,
abre a caixa da bela
pra usar o que anseia
poder usar na lapela.
Nada tendo encontrado,
por um sono foi tomada,
sono beleza, pesado,
qual pela morte banhada.
Enquanto isso, Cupido,
curado do ferimento,
sai da mansão mais corrido,
e vagueia ao relento,
pra sua amada ver,
até que a encontrou
com o sono de morrer,
o qual logo lhe tirou
e pra caixa recolheu.
Despertou-a docilmente
com a flecha, prometeu
acordá-la bem repente,
mas de leve censurou-a
pela curiosidade,
logo depois que beijou-a
refez a caixa beldade.
Psique a entregou
em mãos à Afrodite,
que muito feliz ficou,
pois já tinha celulite.
Eros até Zeus correu
pra proteger a amada,
pediu-lhe um himeneu
com a Psique adorada.
Zeus exigiu de Psiquê
dom da imortalidade,
Hermes iria prover
e levá-la à deidade.
O próprio Zeus lhe benzeu,
ministrou-lhe ambrosia,
em imortal converteu
a humana alegria.
Em seguida, declarou-a
esposa oficial
de Eros, que abraçou-a
no ofício nupcial.
Dessa união nasceu
grande prazer dos sentidos,
a Volúpia só cresceu
desde os tais anos idos.