CRIADORES E OUTROS POEMAS ANTOLÓGICOS
POEMAS ANTOLÓGICOS
Francisco Miguel de Moura*
CRIADORES
1
A poesia está na entranha
entre prisões de pedras
duras magras frágeis
como um veio d’água
sem margem.
A fonte submersa
a força que tresmalha
a sintaxe que se aperta
- desafios do poeta
na ponta da noite
que ascende
e apaga.
O poema se in/completa
vida no ver/so anverso
úmida do que nasce
rastro que se nega.
Eis seu mistério: estua
no átimo em que renasce
em flor de luz renovo
antítese explosão palavra/verbo...
Sorve/douro.
2
Sobre os cria/dores
de discursos e "afetos"
mora um deserto.
(Leiam: palavras fofas,
exercícios ocos...
Pontes de artifício).
As perguntas que lhes fazemos
ficam
fora do seu eixo-limite.
Poucos se inquietam com questões
ou respostas malditas
como se escrever fosse escalar o céu...
Ganha-se o inferno
ao descer
ao (deles) inverno
frio corte
de corações supostamente aflitos
de almas sem suporte.
Poeta, escreve, apaga, escreve...
Ainda morto, teu verso é um grito.
3
Sejamos descrentes
e discretos.
Nada responder aos que ignoram
os sofredores sem lamentos, ais;
e aos que calam e consentem
a compulsão atávica.
Que nossos ouvidos não ouçam
os que abrem a boca em festa
para consumir palmas.
Sobre os construtores de edifícios
(lá de cima vêem o chão longe
e o céu perto),
caiam-lhes perguntas sobre
o pesado ferro, o levitado e o leve.
Que deixem tudo escrito
longe dos ventos e das traças
placas, nomes, números
não são respostas
são decretos.
ESPERO-TE ENCONTRAR
Espero-te encontrar difer-
ente/mente no futuro
da avenida
de minha próxima vida
sem marcas
nem patentes
teu sorriso em flor
vermelho e branco
descer de um corpo divino
sobre o meu medo de menino
TEMOS SÓ UM LIVRO...
temos só um livro de lembranças
puras
brancas
declinadas
amanhã seremos estranhos
e os nossos passos na estrada
solitários
nem um elo
fora destes versos
dispersos
entre dois mortos
e duas linhas apagadas.
VIDA FUNDIDA
Voltar a si, fundir-se
à imagem que se quer
de amada, mãe, mulher.
Mas como voltar ao veio
de onde veio e nada viu e nada vê?
Pintar-lhe a face ou deixar nua:
um sorrateiro riso, um olhar dúbio,
pêlos sobre os ombros em cascata,
caindo pelos seios pino a pino,
ora em trança até os pés,
correndo de uma face a outra face...
Descerram-se as cortinas,
de joelhos beijar a oculta face
onde os odores da carne sexual.
Mijo e odor de fezes
de jovem que se ferve
de amor, na alma de prece.
Para entrar e sumir...
Como nasceu... morrer
do outro lado,
sem janela.
NÓS E AS NUVENS
Nuvens somos
como somos cromosssomos:
no parecer iguais: seu volúvel
de volumes e volutas
ou reentrâncias.
Mal nascemos, somos sonho,
mal subtraímos já somamos.
Mal andados, já tropeços.
A vida chega cheia
de veias, consciente.
E já desaparece na noite,
à moita das águas subterrâneas
dos crânios ocos:
- Mal cheirosa, sulfurosa,
semi-séria, cemitéria...
As nuvens quando
em bando
se distraem
e se misturam com carbono
e com iodo, com matéria de cometa...
Nuvens já não somos.
MINHA PÁTRIA ESPERANÇA
(Homenagem a Lêdo Ivo)
Sou órfão,
não tenho pátria aqui nem no distante,
perdi-a ao nascer.
O ventre de minha mãe
foi minha pátria.
O ventre de meu amor
foi minha pátria.
O ventre de minha esperança
espera por mim.
Não tenho pátria
e não tenho língua.
A morte não fala,
a morte não tem língua,
a vida é só esperança de não morrer.
Na morte perde-se a esperança
de língua, de pátria, de amor.
ENTRE O SIM E O NÃO
Que dizer ao morto
quando vive seu funeral?
E aos vivos que morrem
na noite funérea?
E aos corpos que pingam, ao copo
de pinga, aos pires que derramam café?
Abrir a boca ou calar em respeito
ao morto que está?
Com dor nos olhos fazer a força
do ar de mistério?
Ou abraçar a viúva com seu suor,
seu preto noite, seu almíscar,
seu olhar tão sério?
E a desesperança orquestrada
pelo zumbido ido
de uma mosca, quase esgar?
E o cochicho de um mortal por entre grades
de um sorriso de espasmo?
E o choro rompendo a eternidade?
Ignorar a sisudez do morto
e seu silêncio fatal, quem há de?
NO ANALISTA
Desde os meus quinze arremesso
poemas: palavras de fogo
contra o frio.
Água contra a fúria.
Palavras se inscrevem no vento
caem no templo, computa/dor
E EU MELHOR SUPORTO
AS COISAS GASTAS
AS PALAVRAS VELHAS
AS AÇÕES... - NENHUMA!
Eis as luzes que se abrem
cá fora aos sonâmbulos e sábios.
Bom que se fazem poemas!
Idéias morrem, o mundo morre
e nada se faz.
Assim, do nada eu vivo e me alegro:
tinta no papel, coração e coragem.
Um dia quem gostou de meus poemas
falará por mim.
O EU, O NÃO E O NÓS
No tato, o ato e a densidade do chão.
O contr/ato é possível mas inútil,
o argentum isola, desconhece
veias
estômagos
vazios
brinquedo e paixão.
O desengano não é ledo, chora
o outro - segredo
de não-eu, de alienação,
o tudo que não é verme,
o mundo que sem ganhar se
perde.
Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma ro...
Uma rocha, é uma pedra,
uma pedra é uma
uma perda
una.
Maria e João nunca se amam nem se casam,
e, ralando, e rolando, se amassam e se massam...
Enganam-se.
Mas o tato é possível por Deus,
enquanto o Demo se esfrega
enquanto os dois não coçam o olho e o ânus.
Quem finalmente terá compaixão?
Que cem vezes cem se repitam
o ato, o tato, o contrato e o costume do nós.
O RETRATO
Pássaro empalhado
na sala de visitas,
seca a luz
no humus da face,
mostra um tempo descarnado
e sem mãos.
Empanou-se-lhe o brilho dos olhos
e a eletricidade dos fios
de cabelo, da pele, dos lábios.
Mesmo com um riso bucal,
falta lhe sal, sal, sal...
Sente fome
de tudo, sente sede,
e se consome,
vira mito - o retrato, na parede,
morto
e a morrer.
A ÚLTIMA VIAGEM
Quando eu me for embora
não voltarei à terra.
Não deixarei saudades.
Os amores todos morrem
quando a gente se enterra.
Não vou errar o caminho
que dá no grande infinito.
Se alguém quiser seguir-me
basta um sussuro
em vez de grito.
Talvez o último, talvez,
pois lá o silêncio é voz
e a natureza é o nada.
E Deus estará em nós
a derradeira vez.
TRES/PASSADO
Não lhe contarei minha história,
a da vaquinha morta,
e não me deu o leite da vida:
urubus pastaram seus olhos.
E pastarão sobre mim.
Nem a história de mamãe-titia,
de meu pai-pequeno-e-feio,
de meu nascer Chico
por simples fuxico.
Não houve melhor jeito.
Depois, morremos de comer, de beber:
- o sono inanição era todo nosso.
E o medo do outro (e de nós)?
E os desejos menos preciosos
que morriam?
O mundo antes de mim,
do alto do descaso,
jogou-me na grande roleta.
E bicho permaneço.
Não me deram nem carne nem osso,
nem cabeça - mundo deus, mundo diabo.
Deram-me tripa
muita tripa
e coração.
Assim subvivi para este mundo
entre as aves de rapina
e frutos escassos,
cactos, espinhos, trapos,
despetalando a vida
que
não
quis.
EU SEI QUE VOU FICANDO
Aos cinquenta bebidos me apeteço
porque a vida floresce-me de espinhos,
flores poucas, encantos mitigados.
E em todo passo a busca de sentidos.
Feliz por ser fidel no que me arrimo:
- São secretas conquistas muito humanas.
Sorrio ao que me passa e vai no vento:
- Eu sou vagar, sou tempo e não me canso.
Meu corpo alcança o corpo mais cansado,
minha alma inflama a irmã insubmissa,
sem barulhar a paz que me guerreia.
Semeio amor. Na dúvida campeio
O que me arma de força e decisão.
E vou seguindo. E sei que vou ficando...
_________________________________
*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, autor de 32 livros individualmente e cerca de outros tantos em participação com outros autores, inclusive fora do Brasil: Estados Unidos, França, Espanha, Portugal e Itália. |