O sertanista no trem levava os teréns que podia levar: uma rede, um facão e uma pá. Ajudava a sapar alguma trincheira que fosse cavar.
E, no meio da noite, na mata Mafrense, muitas léguas distantes da civilização, a lenha acabou, e o trem parou, porque a caldeira não tinha pressão.
Ribeiro desceu sem sol, nem luar. Deixou logo o trilho e pegou uma senda sem luz e sem brilho sem nada enxergar, sobre os olhos a venda da noite escura e por sobre abrolhos começa a pisar.
É aqui o lugar; vou cavar uma fossa. Preciso abrigar-me e esperar a aurora que não tarda a chegar. Sem temer o perigo de bicho selvagem, o bom sertanejo, com muita coragem, fez ali seu abrigo para descansar.
E, assim, na trincheira por ele cavada, a noite inteira ficou a pensar... Até que um raio solar a incidir sobre os olhos da fossa gelada o fez levantar.
O dia amanhece no topo da serra, e o trem parece querer galopar como corcel arisco nas rédeas do trilho. Mas aquele filho mineiro não pode escutar senão o clangor, naquela manhã do triste acauã, solitário a cantar.
Veloz sobre os trilhos, na curva dos montes mais claros que via, a semana inteira o trem desafia o tempo e o espaço, quão rápido se sente e, a cada dormente que vê passar, apita e fumega mandando avisar: cumpri a missão; é o ponto final, a última estação.
Mas, em longo percurso, ninguém se dá conta de que o companheiro do norte mineiro abandonara o trem e seus passageiros além, muito além. E, por outro caminho andando sozinho, Ribeiro está.
Na sombra da mata, sem sol poder ver, não podia saber, nem onde estava e rompia a trilha que convergia para as fendas do outeiro. Era o fim da senda em que longe via guerreiros tenazes, nativos da terra, bem no pé da serra, a tribo Aroazes.
Mas o sertanista sequer teve medo daquele arvoredo, que tanto queria guardar o segredo da tribo que, um dia, em suas entranhas, a mata escondia. Seu corpo cansado de tanto andar por horas a fio, de sede aflito procurava um rio para a sede acicatar. E, por sorte, águas Aroazes do rio Sambito o salvaram da morte!
E, quando recobrou o vigor e a força, viu no espelho das águas uma sombra de moça. Doze anos, talvez não mais, curtida de sol, pele tenaz, cabelos negros, seios róseos como romã, corpo esculpido pelo vento da cor do pecado de Tizo e cheiro de maçã do paraíso.
Cabelos negros, mamilos rosados, ralos pêlos pubianos no regaço, nudez de corpo e alma cunhatã tinha. Ribeiro desejou tê-la em seus braços, mas subir frondosa árvore não podia. Na copa mais alta do jequitibá, jovem índia aroazes se escondia.
Então resolveu, da mente inventar, uma língua possível que pudesse levar alguma mensagem qualquer àquela mais linda selvagem, tão perfeita e bela, mais linda e bela que a índia Alencar.
- Jequiriti, jequitá!
Gritou Ribeiro em seu linguajar e, como por encanto, tomado de espanto e palpitação, viu cunhatã descer do mais alto galho do frondoso jequitibá, porque, ao nascer, pajé lhe dissera: Tu és a deusa Jequiriti-Jequitá, palmeira frondosa, trepada no galho. Quisera o espírito bom te mandar cento e quarenta e quatro luas e um deus de longe, vem pra perto teu nome chamar.
- Jequiriti-Jequitá.
Sem nada falar, Jequiriti-Jequitá acenou para o deus que há doze anos esperava. Precisava fazer o que pajé lhe ensinava. E, pelo aceno, Ribeiro sabia, naquele momento: Jequitá queria instrumento de branco para o chão escavar.
E ela, num salto felino, numa mão tomou a pá; na outra, o facão. Passou a cortar a rala caatinga e, depois, a cavar; desenterrou a cuiapitinga.
Cuiapitinga bem guardada, há tanto tempo enterrada no tronco do jequitibá. Que cunhatã virou sobre si derramando o líquido precioso, escuro e cheiroso, daquela cuité que pelo corpo a escorrer fazia nascer a deusa-mulher.
E logo que seu corpo nu se viu embebido pela porção mágica do pajé, atrelou-se em insaciável libido ao sertanista em longo abraço e entregou-se todinha ao deus que ela tinha por tanto tempo esperado. E, em gozo medonho, caíram no sono pós-coito, abraçados dormiram.
Longas horas se passaram e, quando acordaram, valentes guerreiros dançavam e aos deuses cantavam, sem nenhuma maldade, a poderosa dança da fertilidade enquanto mulheres jogavam, nos corpos despidos, após os gemidos, e para consagrá-los aos deuses Aroazes, límpidas águas lançavam sobre os corpos vorazes de amor saciados dos deuses Jequitibá e Jequiriti-Jequitá.
O sol já pendia quando o valente cacique Cuiarana, na rede deitado, mandou chamar o pajé para invocar os espíritos sobre marido e mulher: os deuses Jequitibá e Jequiriti-Jequitá.
Feita a pajelança, em silêncio ficaram, esperando a voz da selva falar cuiú-cuiú a cantar. Anuncia, por fim, a vinda da criança. O tempo será nove luas para curumim chegar.
Mas, enquanto dormia, Ribeiro a sonhar intrigado ficou, porque parecia ouvir carimbamba cantar: “Amanhã eu vou” “Amanhã eu vou”
Sem demorar veio a noite de um novo dia... Cuiarana e toda tribo bebia aluá de milho e fumava diamba. A carimbamba calou-se; Ribeiro aproveitou-se da alucinação da tribo para empreender sua fuga antes que nascesse o herdeiro do cacique, seu filho, o deus Cuiarana Jequiriti-Jequitibá.
Precisava fugir, porque curumim, uma vez nascido, o pai seria oferecido com a deusa Jequiriti em sacrifício a tupã, na primeira aurora da manhã, E só havia um jeito de salvar da morte a deusa Jequiriti: se o espírito de Jequitá levasse em suas asas o deus Jequitibá.
No centro da ocara, frondosa palmeira o vento torcia, enquanto por ela Ribeiro subia e, por sorte, soprou vento forte feito tufão, derribando ocas, levando ao chão quase toda taba. E, na copa altaneira da grande palmeira, Ribeiro cortou uma enorme palha. E, como uma gralha, Ribeiro voou...
Passada a tormenta, Cuiarana juntara o que sobrara de seu pra reconstruir a ocara como presente do deus, no alto da palmeira. A vinte metros do chão, Ribeiro deixara o grande facão.
Cravado na palmeira, o presente do deus que trouxe a sorte livrando da morte Jequiriti-Jequitá. Agora sozinha podia esperar nascer curumim, sem ter que morrer com Jequitibá.
Meninos! Não minto; eu canto o que sinto. Meninos, eu vi o corpo nu por inteiro bonito e faceiro de Jequiritii-Jequitá Eu vi Ribeiro abraçar e depois desmaiar. Eu vi Jequiriti trepada no Jequitibá. Meninos, eu vi Ribeiro por lá. *** NA
A este poema, em comentário no Recanto das Letras, a amiga Celina Figueiredo chamou de o novo Gonçalves Diias. Adalberto Lima. Imagem: Internet |