Passei quinze anos nesta casa e agora que estou partindo não sei o que quero levar, sequer sei se quero levar algo. Tudo que tenho me lembra as pessoas desta cidade e suas mesquinhas frustrações. Tudo aqui é falso.; da alma à cor dos cabelos. Nenhum abraço é sincero e todo ato esconde um interesse pessoal – isso me enoja. Não quero viver o que ainda me resta de vida negando Caetano e fascinando-me com “Transa” – eu quero muito mais. Talvez leve comigo somente alguns discos, os que ganhei e mais dois ou três. Deixo os livros em uma caixa em um canto qualquer do quarto como um presente anônimo para o próximo morador ou invasor e incinerarei o restante: revistas.; cadernos e fotografias amareladas de pessoas com sorrisos amarelos e poses programadas (Entre tantas desbotando encontrei uma sua.; o jeito esnobe, o olhar tímido, o enquadramento equivocado. Você foi o melhor de mim e isso, por incrível que pareça, não é um elogio). Certamente, jamais me entregarei amiúde a alguém que esboça felicidade e arte-finaliza melancolia.
Anotações. Contas pagas. Agendas. Um poema inacabado sobre fantasmas, poderia guarda-lo, mas o tema não reflete o instante – cesto. Quase uma centena de cartas recebidas no decorrer de três relacionamentos, em comum todas terminavam com um “para sempre” ou “eternamente” e ironicamente todas se foram cedo demais.
Os excessos me constrangeram. As omissões me amarguraram. As quimeras ruíram-se com o tempo, podadas cotidianamente com cada aceno de despedida, com cada beijo de obrigação, com cada música de Arnaldo Antunes. Tudo foi morrendo e apodrecendo dentro de mim, nem mesmo o vazio ficou.
Ouvindo samba.
***
Da janela do carro vejo apenas imagens repetidas. Como num filme de Humphrey Bogart a paisagem parece não mudar. E realmente, nada mudou.
***
Ouvindo Sting.
(Álvaro Neto)
CANSAÇO
Cansei dos olhos
do brilho falso dos olhos
dos cabelos tingidos dos olhos
cansei.
A vida e a morte não me querem
resta apenas caminhar sem sentido
tentando dar sentido ao meu caminho
tentando me inclinar aos bons caminhos.
Cansei do olhar
do desvio do olhar
do branco vestido do olhar
do meu cansar.
Os olhos se perdem de mim
enquanto caminho a esmo,
meu caminho se perde em mim
enquanto os olhos ficam cinza.
O olhar não basta.
(Álvaro Neto)
COMO SOU AGORA
Eu nunca fui tão “As Quatro Estações”
como sou agora
eu nunca fui feliz, eu sei, mas não chorei
nem me entreguei às coisas sem sentido lógico.
Eu nunca fui real, talvez mentira,
nunca fui sombra ou pegadas,
não me considero um fardo,
sou leve e sigo na minha canção.
Eu nunca fui tão Bob Dylan
como sou agora
eu nunca amei, eu sei, mas não temi a solidão
nem fui atroz com os meus sentimentos.
Eu nunca fui Raquel, talvez Dionísio,
nunca me vi nos olhos de alguém
nem estive pronto para o amor.
(Álvaro Neto)
PLACEBO
Estive indiferente ao que pudesse filtrar as mágoas
que retalham minha face toda manhã,
estive predisposto a alguma utopia – cinzas da melancolia.
Sou como flores mortas despetalando em vasos,
sou como pétalas ao redor do vaso.
Doses homeopáticas de sarcasmo
(doce beijo seco)
doses de qualquer coisa doce e forte
madrugada, adeus e nada mais,
madrugada e nem sequer adeus.
Lágrimas caem como pétalas secas
são flores que morrem na sala
são perfumes que não deixam meu corpo.
(Álvaro Neto)
REFLEXOS
No escuro o frio me acalanta
anjos pousam na minha varanda
o vento apaga o incenso e o seu cheiro em mim fica.
Asas mortas adornam o meu corpo
o passado tateia o meu rosto
o outono levou minha flor-de-lis pérfida.
No espelho partido não sou dois
no espelho partido sou um ao meio
no espelho partido não sou dois
com você em mim sou quase meio.
Sou um caso perdido, um lapso,
estou no vácuo juntando os pedaços
do que restou de você
no meu mausoléu de papel.
(Álvaro Neto)
CAIXA-POSTAL
O meu amor é uma carta que voltou,
mas o meu ódio tem endereço certo.
(Álvaro Neto)
UM DELÍRIO
Se o amor é o que importa
(e as rosas morrem rápido como um beijo no inverno)