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Poesias-->SÃO FERNANDO BEIRA-MAR -- 09/11/2004 - 15:05 (ANTONIO MIRANDA) |
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SÃO FERNANDO BEIRA-MAR
(Cantiga de escárnio e maldizer)
Antonio Miranda
I
O ruído fervilhoso de mil celulares
como bocas cariadas blasfemando,
orelhas aguçadas, sirenes soando,
chamadas alucinadas no âmago
da noite interrompida, aquelas vozes
todas, aqueles anúncios espalhafatosos,
imagens tortuosas nos painéis
eletrônicos, carros passando distraídos
com senhores circunspectos, calados,
sinos de igrejas invisíveis, queixosos,
parafusos obstinados, pregos, vozes
indignadas anunciando o fim dos tempos.
Crianças com armas na mão.
Abandonados por Deus! Dilacerados,
pensamentos errantes, incredulidades.
Terroristas tramam seqüestros
de celebridades, para o regozijo
do homem da mídia enquanto
traficantes violam containers
e médicos amputam sepultos,
padres rezam missas solenes,
lêem homilias dominicais,
saem bugigangas chinesas de caixas,
voltam a crucificar Jesus, serram-no
ao meio, exibido na TV, para servir
de exemplo e admiração.
Iras, arrependimentos, imprecações.
Assaltos, rezas, sobressaltos,
ruas desertas, ferrolhos, grades,
trancas, alarmes, circuitos
monitorados, escutas telefônicas.
II
Aquela bala perdida tinha um sentido.;
aqueles mortos calcinados riam de nós.;
policiais encapuzados sitiam quarteirões
abandonados, desovam cadáveres,
torturam, atiram em qualquer direção.
Parece que é um vídeo-clip ou um game,
coisa pelo estilo. Ninguém sabe ao certo.
O ministro da justiça elabora plano
para a polícia federal – se possível –
atingir o nível das organizações
criminosas e pede outras providências:
armas tão poderosas quanto as
que ostentam os contrabandistas.
Plano mirabolante mas verossímil,
Hiperrealismo alucinante: fantasia
sangrenta, fútil, absurda, violenta,
bela e terrível como no cinema.
Dá-se então o toque de recolher.
Um bandido é morto
outro é empossado.
Fecha-se o comércio
metralha-se um posto policial
abre-se um túnel mas
o preso sai pela porta da frente.
III
Oh náusea, oh nojo!
Sangue mais que sangue,
vômito mais que vômito.
O senhor delegado reclama a sua parte.
Fezes mais que fezes!
O senhor deputado rende a sua homenagem.
As covas revelam os seus segredos
os lixos desbordam e as fossas abertas
mostram os seus mortos putrefactos.
O senhor vigário
o líder comunitário
o dirigente sindical.
As nuvens seguem indiferentes
as chuvas caem ácidas
os valões transbordam águas estagnadas
os pântanos poluídos pestilentes.
Anjos raivosos estupram monjas
e drag-queens eufóricos comemoram
o carnaval fora de época.
Reivindicam-se terras públicas
enquanto deputados retóricos
aumentam os impostos e
os próprios salários.
Estandartes exibem São Fernando
de camiseta e bermuda
na procissão dos deserdados.
Por isso é feriado, dia santo.
IV
Há luzes e gritos e algazarra
na cela dos condenados.
Chegam pizzas on delivery
Maconha on demand
mulheres, mulheres, mulheres
a escória em festa celebra.
Tem a lei vigente
mas que não cola
tem a lei do cão
que predomina
leis que derrogam leis
e leis que se auto-defenestram.
São Fernando Beira-Mar
também dita suas leis,
com força de lei.
O bandido obedece
o comerciante obedece
o policial obedece
parece que o ministro
quer usar o modelo
numa medida-provisória.
O ministro quer saber
se a lei emana do povo
ou de alguma divindade.
V
Desce do céu, vem da selva, sobe o morro
uma saraivada de balas, fogos de artifício
anuncia sua chegada.
Urubus velando vítimas anônimas
cadáveres insepultos
moleques aprendizes correm desenfreados
olheiros
meninas de seios rijos
celebram desejos no strip do baile funk
(quadris exultantes, febris).
Que coreografia!
Como é belo o pavor dos inimigos!
São Fernando aparece entre batedores festivos
rajadas de metralhadoras
barba de guerrilheiro, ícone vivo, poderoso
sem limites
desafiando a morte, justiceiro, vingador.
Viril.
Preso, é maior ainda o seu poder.
Celas sem paredes
celulares, advogados
além das grades, dos muros, das leis.
Onipotente.
Um cérebro público, exposto, radiante
um gênio além do bem e do mal.
Um sorriso de triunfo, de escárnio.
Fé inútil na justiça
religiões subservientes
juizes de aluguel.
Preso, está em toda parte.
A Organização é o paradigma do novo ministro.
São Fernando abre caminhos a fogo
seqüestra, mata, vinga enquanto arrecada
e distribui riquezas.
Um herói, um santo
um ídolo.
Os jornalistas elegeram-no
os policiais o protegem
os políticos servem-no.
Há um São Fernando em cada igreja
Um Fernandinho em cada beco.
Na mais remota prisão de segurança máxima
está um sósia, um clone.
O ministro tem-no como assessor
especial
quer equiparar a polícia
à organização dele
equiparar seus efetivos (?!)
aos dele.
A isso chamamos joint-venture,
parceria.
VI
É a gosma ulcerante, a saliva viscosa,
é o escarro ácido, o catarro curtido.
O ministro compra novas viaturas
e há suspeita de super-faturamento.
É o caminho viciado, a norma paralisante,
é a lei invocada para deter a própria lei.
O ministro forma um grupo de trabalho
para discutir matéria já decidida.
É o subterfúgio, o sub-reptício, o simulacro,
é a procrastinação, o ato falho, arrepio da lei.
Comissões de inquérito, auditorias surdas
e mudas, grupos-tarefa, consultorias.
O ministro pode ser substituído
está com prazo de validade vencido.
VII
O ministro tem uma cauda de pavão,
o santo tem um falo grandiloqüente.
Na audiência pública
o ministro manifestou indignação
chorou sobre os corpos de policiais mortos
beijou as viúvas com certo asco e enfado
e declarou medidas para
quer dizer, garantiu que
depois de asseverar
de ouvir os
de citar alíneas e verbetes de dicionário.
Garantiu uma trégua com os bandidos
para os dias de carnaval.
A greve do sistema judiciário
não afeta o
muito menos o
a menos que.
Falta verba mas há vontade política.
Espírito de corpo
espírito de quê?
O ministro posou nu para o noticiário
e garantiu transparência nas investigações.
No mais, apenas confabulações.
Ele continua ministro
e há estatísticas que provam
que os seqüestros diminuíram
mas aumentaram a produtividade.
O sistema bancário saiu fortalecido
incorporando seguradoras
e sistemas de segurança.
Fernando está desaparecido do noticiário
está na masmorra, ou está em Miami
está dirigindo seus negócios na favela
na selva colombiana, pagando propinas
coletando contribuições para as eleições.
(Um juiz escondeu as fitas daquele inquérito
e ameaça os figurões do governo).
Fernando perdeu a fé na democracia.
Eu perdi o respeito pela poesia.
ANTONIO MIRANDA
cmiranda@unb.br
www.antoniomiranda.com.br
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