Enquanto o Zacarias, no afã de carregar rapidamente o carro, removia os troncos da rima e os ia colocando ordenadamente por volume no estrado entre os fueiros, função que praticava protegido por luvas de lã meio esburacadas, que cuidadosamente ocultava quando em presença de pessoas por saber que por aquelas bandas se dizia que “trabalhador de luvas é madraço”, o António Ferraguda descia a serra na velocidade que lhe era possível, sempre atento ao travessão de madeira sulcado pelo uso, que servia de travão às rodas chapeadas da carroça, accionando-o através dum manípulo lateral por si engenhosamente inventado.
Apesar de serem muitos os anos de labuta naquele mister sempre receava a descida da serra, porque seria inevitável o atropelo dos animais se deixasse ao sabor da acentuada inclinação a velocidade desenfreada.
Neste trajecto à aldeia, tendo apenas por companhia a junta do gado e o uivar constante do vento por entre as folhagens das árvores, que as cuspia a léguas, por vezes com os próprios ramos, começou a magicar sobre o comportamento do novo funcionário: “O rapaz não tem mãos de trabalhos duros e a sua conversa é fina de mais… Aquelas mãos de menina da cidade…Será que pregou alguma e anda fugido? E esta de não trazer documentos?! Alguma coisa se passa e eu tenho de descobrir. Por agora desde que trabalhe, tudo bem”.
Havia que dar-lhe o benefício da dúvida e já no regresso veria como se desenvencilhara do trabalho de que ficara incumbido. Apesar das poucas horas de convívio gostara da maneira desassombrada como conversava e da educação e humildade que demonstrara possuir. “Às vezes é melhor não saber das coisas” – continuava no seu solilóquio – “desde que não seja nada que me possa comprometer. Essa dos documentos é que não encaixa. Hei-de apanhá-lo nalguma coisa…Ao Tone Ferraguda ainda estará para nascer quem lhe comerá as papas na cabeça”.
O certo é que ficaria muito aborrecido se tivesse acontecido algo de especial ao rapaz. Não tanto por precisar dele neste momento para substituir o criado doente, mas acima de tudo porque lhe dispensara desde logo forte amizade. Foi pessoa que lhe caiu no goto, como se costuma dizer.
Com o cérebro ocupado nestas reflexões nem deu pela corrida do tempo e quando fixou novamente as ideias verificou com espanto que já se encontrava às portas do lugar. Nem se apercebera que as alimárias se arrastavam penosamente. Logo voltou o manípulo do travão e foi colocar-se à frente do jugo, incitando-as com o aguilhão colocado na extremidade do varapau que segurava na concha da mão e prolongava por cima do ombro direito.
− Eh “Bonita”, eh “Marela”, em frente para a taberna – gritava para as vacas, que, aliás, conheciam bem os diversos trajectos para os clientes, e compreendiam as ordens dadas pelo dono.
A taberna, para onde o Ferraguda se dirigia a fim de descarregar a lenha, era pomposamente chamada de “restaurant”, isso mesmo, à francesa, pela sua proprietária, a dona Lola, mas que muito apreciava também o tratamento de “madame”, não passava de uma pequena tasca com uma sala interior para refeições, e um pequeno botequim, sinónimo que o povo se habituara a aplicar ao café, por em tempos remotos ter existido na aldeia estabelecimento semelhante, muitas décadas antes da Lola o ter inventado. “Café” era para os da cidade, diziam. O café estava implantado com a porta virada para a rua principal da aldeia e a sala era-lhe contígua, embora dispusesse de outra entrada num caminho lateral, que dava também acesso ao armazém, onde dispunha de alguns artigos de primeira necessidade, para suporte do seu estabelecimento e algumas mercearias correntes que vendia à população, a cujo recanto designava por “marché”. O primeiro andar era ocupado para sua residência, mas desfrutava de uma pequena sala de jantar que cedia aos clientes mais sofisticados, principalmente os de fora, que por vezes lhe encomendavam um prato muito especial, o “pica no chão”, de que era verdadeira especialista.
Curiosamente um prato tipicamente minhoto e que ali fora parar através dos seus conhecimentos em Paris, onde estivera emigrada. É um cozinhado simples que em qualquer lugar do país é designado por “arroz de cabidela”. Ela, porém, soube do “pica no chão” por uma amiga de Braga que consigo trabalhara aquando da sua situação de emigrante, e assim ficou identificado, fazendo parte da ementa do seu respeitável “restaurant”, cujo título fora igualmente importado. Se levarmos em linha de conta que vivera com o marido em Paris mais de uma década, onde aprendera o francês de marinheiro, isto é, só de ouvido, até que podemos admitir a ousadia, pelos ares de importância que ela achava dar à sua modesta tasca. Sozinha, viúva, sem filhos, resolvera regressar à aldeia, após morte inesperada do marido, e enveredar pela modesta restauração, por ter adquirido naquele país boas noções de cozinha em trabalho de mulher-a-dias em casas de famílias.
Chegado à porta da taberna orientou as vacas para um pequeno caminho lateral e ali as desatrelou. Inclinou o carro segurando-o na extremidade oposta às rodas com uma forquilha de ferro e chamou pela dona Lola. Esta, expedita, surgiu do outro lado da ruela, com grande chave na mão e disposta a uma cavaqueira com o Ferraguda. Este, contudo, com a pressa que lhe exigia o regresso à serra, limitou-se a saudá-la com um breve “Deus nos dê os bons dias”, recolhendo em simultâneo a chave que ela lhe entregava.
- Olá “monsieur” António! – Um bom dia também para si – ripostou com um sorriso aberto, continuando:
- Mas que tempo “horrible”. Ainda bem que hoje está mais escorrido. Tanta chuva, “mon Dieu”! E as trovoadas… Só de pensar nelas e na ventania medonha desta noite fico apavorada. Para o “monsieur” também não está nada bom. Subir a serra com este tempo…
- Alguém terá de o fazer – replicou o Ferraguda. – Ainda tenho de voltar lá hoje para nova carrada, por isso, se me permite, tenho de ser lesto. Onde quer que coloque estes paus mais finos?
- No sítio do costume, ali do lado esquerdo – voltou a taberneira. – Têm de estar sempre à mão para acender a lareira. Os toros vão para o fundo do armazém. Este ano ainda tenho muita lenha seca, por isso não os misture.
E por ali ficou na companhia do carreteiro. Queria saber novidades, mas o lenhador não estava para muitas conversas. Embora atento ao trabalho não deixava de pensar no novo jornaleiro. E foi neste estado de espírito que ouviu uma pergunta da dona Lola, que o deixou furioso:
- Ouvi dizer que tem um empregado novo, que não é da aldeia. Como o arranjou?
Se até ali já não estava com vontade de dialogar esta pergunta fez exteriorizar a sua desaprovação à pertinácia da mulher, indagando em modos nada amistosos.
- Olhe madame – e realçou bem o vocábulo – eu não vim aqui para conversas, mas para trabalhar. Se a senhora não quiser a lenha levo-a para outro freguês. Não vou responder à sua pergunta, porque ninguém tem a nada a ver com a minha vida. Maldita terra que só vive de cochichos.
- Calma aí, homem – replicou a interlocutora. – Eu não quero saber da sua vida para nada, mas como preciso de alguém que me ajude nas tarefas do campo, pensei…
O senhor António, por norma um homem muito educado, ficou perplexo com a atitude que tivera para com a senhora, apressando-se a tentar remediar a insólita situação por si criada, desculpando-se:
- Perdoe-me, D. Lola. A senhora perguntou pelo tal criado no momento em que eu cogitava nele, e isso deixou-me irritado, coisa que nunca me aconteceu.
- Sabe, “monsieur”, a idade vai passando e com a minha irmã quase acamada, falta-me tempo para tratar das hortas. Por vezes – continuou a Lola – tenho arrependimento de não ter ficado em França depois da morte do meu marido.
Na verdade a Lola já estava a atingir as sete décadas de vida. Regressara à aldeia perto dos sessenta e chamara para viver consigo uma irmã bastante mais velha, mas que ainda tratava como ninguém dos pequenos lameiros em volta da aldeia. As terras de pão, que eram pertença das duas e mais as que vinham do casal e da herança do falecido marido estavam entregues a caseiros e algumas até de velho, isto é, sem cultivo, por falta de braços. A juventude masculina não queria nada com a lavoura e a maioria ou estava em África a combater ou havia fugido para a estranja à procura de melhores condições de vida, sendo os campos tratados pela classe mais idosa.
- Mas, como tudo na vida – dizia a Lola ao referir-se à Lucrécia, sua irmã – há sempre um fim. E o termo laborioso dela atingira a esperada etapa. Efectivamente já a ultrapassar os oitenta o primeiro sinal chegou. O reumatismo acamara-a e a sua lucidez começava a periclitar. De quando em vez lá dizia umas palavras sem nexo, facto que deixava a irmã meio perturbada e davam azo também a alguma chacota. Falava-lhe num grande tesouro escondido e guardado por um zangão gigante que não deixava aproximar-se ninguém, em subterrâneos com castelos, em fantasmas nas corriças, enfim, num determinado número de fantasias que, não fosse o sintoma indeclinável de mordaz enfermidade, a faziam recrear-se como se estivesse em frente a uma peça teatral, o que, aliás, só conhecia por ouvir dizer às patroas com quem trabalhou, pois nunca se vira sentada em salas de espectáculos ou assistido a qualquer filme, não obstante os anos passados em França.
- A madame – disse o António Ferraguda, agora em tom conciliador – precisa mesmo de quem a ajude. Tem uma casa grande para cuidar, umas boas terras para amanhar, já não falando no negócio. Eu não lhe posso prometer nada, mas espere mais uns dias até o meu criado antigo voltar. Se puder dispensar-lhe o novo, falaremos mais tarde.
Pondo um ponto final na conversa atirou-se ao trabalho com sofreguidão. Meia hora era passada e já se via a parede a desaparecer por detrás da pilha das canhotas que manápulas calejadas e obedientes arremessavam com determinação e pontaria.
Terminada a primeira entrega do dia o lenhador dirigiu-se para o estreito caminho, onde as duas vacas se entretinham a roçar pequenos arbustos que pendiam dos muros. Tocou-as para o carro e logo as cangou, levando-as caminho acima até à porta da sua residência, deixando-as atreladas. Não gostava muito de estacionar os animais com a canga quando era desnecessário, mas a sua demora seria curta. Subiu seis degraus de pedra granítica e de imediato se sentou para comer uma frugal refeição, que a Almerinda já havia colocado sobre a tosca mesa de madeira junto ao escano da lareira. Aconchegou as mãos no lume que ardia ténue, cortou duas fatias de presunto e colocou uma alheira no meio das brasas.
Enquanto se alimentava não deixou de pensar novamente no Zacarias, denotando certa preocupação, que, aliás, quis compartilhar com a mulher, à qual indagou:
- Ouve lá, Almerina, por acaso não ouviste nada no povo sobre o novo criado? – e coçando os poucos cabelos remanescentes da sua outrora farta cabeleira, entre dentes, mas suficientemente audível, numa espécie de desabafo: “Não queira ter sido obra do demónio e não de Deus o achado do Noé”.
A mulher, que até ali apenas pensara na grande dádiva de terem conseguido quem ajudasse o marido nos seus afazeres na serra, cuja falta era a principal fonte das desavenças domésticas, replicou sobressaltada:
- Oh homem! Que diabo é que eu haveria de ouvir?... Mas porquê? O rapaz não é trabalhador?
- Que sei eu – volveu o marido. – Lá em cima, enquanto eu estive com ele, trabalhou bem, mas não sei… tem mãos de caneta e esta coisa de não trazer documentos… Olha! Manda recado ao Jerónimo a dizer-lhe para vir falar comigo com a máxima urgência. Isto tem de ser resolvido em definitivo. O Noé não pode ajudar e também não faz um esforço para poder. O Jerónimo tem de me dizer quando pode vir trabalhar. Com estas minhocas na cabeça é que eu não quero ficar. Não conhecemos este tal “de Zacarias” de lado nenhum. Parece mais um menino da cidade, apesar de não discutir o trabalho, e como a francesa me falou de que precisa de um para a lavoura remediava-se tudo sem melindrar ninguém. Este ia para lá, que o trabalho também é mais fácil, eu acabava por lhe fazer um favor e deixava de pensar em coisas que me vão incomodar mesmo. Não gosto de ter ninguém ao meu lado em quem não possa ter confiança e em começando a cismar é mesmo o cabo dos trabalhos. Por agora ponto final. Vamos ao trabalho, que se faz tarde.
Em dez minutos engoliu a merenda que lhe estava reservada. Num ápice estava novamente junto das vacas que guiou a caminho da serra.
VI
Ao abeirar-se da viatura o Noé intimidou-se ao verificar que era ocupada por dois indivíduos estranhos. Um, o mais velho, a rondar a casa dos quarenta anos, envergava um fato azul-marinho, impecável, e uma camisa branca de colarinho engomado donde sobressaía uma gravata preta tricotada a fios de seda. Não era costume aparecer na aldeia pessoas desconhecidas e muito menos tão distintamente vestidas, principalmente em época de invernia. Uma vez por outra surgiam da cidade para uns petiscos na taberna da Lola, mas esses eram facilmente identificáveis na sua discreta maneira de vestir, genuinamente transmontana, com grossos capotes sobre espessas camisolas de lã. Efectivamente o Noé nem reparara, tão confuso ficou, nas mangas do fato do cavalheiro, que junto aos punhos ostentava três galões dourados, mas logo se apercebeu quando o motorista, um soldado da guarda republicana, o tratou por “senhor primeiro-tenente”.
O coração do Noé, como soe dizer-se, caiu-lhe aos pés. Uma forte arritmia se apoderou do seu frágil corpo. Sentia o coração a bater-lhe como um camartelo nos ouvidos. A boca sequiosa deixou de articular palavras entedíveis, e apenas indecifráveis sons guturais lhe era possível articular. A sua mente toldou-se, uma nuvem escura, tenebrosa, cerrou-lhe por completo o sentido da visão. Em estado de letargia deixou de sentir o mundo e apenas ficara no subconsciente aquela inesperada expressão proferida pelo motorista militar.
Um desfilar de imagens diáfanas espelhavam agora na sua alma, que observava em flutuação de lugar desconhecido, movido por força superior a contrariar a atracção do campo gravitacional da Terra, e lhe davam pleno conhecimento de medonha acção bélica, algures em terreno inóspito, onde o arfar desmesuradamente audível de legiões de soldados se misturava com o troar de armas esquisitas e sofisticadas de que nunca ouvira falar. Na sua posição deveras invulgar, mas privilegiada, podia analisar ao pormenor a terrífica batalha: De um lado umas centenas de indivíduos de raça negra, protegidos pelo denso arvoredo que se seguia, aguardavam a investida de tropas brancas a avançarem cautelosamente, após terem ultrapassado as primeiras barreiras humanas, que se misturavam com abatises de grosso porte, e haviam dado origem ao primeiro muito sangrento combate. Os mortos já se contavam às dezenas de ambos os lados. O vivo vermelho do sangue misturado com o pó acastanhado da fina terra no clarão do meio da floresta e o salpicado nos troncos das gigantescas árvores constituíam espectáculo dantesco e desolador. Lancinantes gritos de desespero confundiam-se com o estrépito enlouquecedor das mortíferas armas.
De repente encontra-se também na situação de interveniente na mortífera contenda, objectivando pôr-lhe fim através de discurso convincente e razoável, procurando fazer-se ouvir em missão pacificadora, anti belicista, único sentimento identificável com a sua maneira de sentir. As armas, porém, no seu poder diabólico, continuam a ser disparadas e a despojar da vida aqueles jovens, na maioria imberbes, empurrados para a guerra que não pediram.
Continua incólume. Os projécteis atravessam-no sem mossa. Num instante paira sobre os que jazem inertes acantonados na retaguarda, onde aguardam o helicóptero que os transferirá para o Hospital Militar ou, na maioria, para as casas mortuárias dos respectivos aquartelamentos. São os heróis da guerra. Os condecorados a título póstumo, para sua desgraça. Sem lágrimas, lânguido, mas num torpor sereno, quase com alegria, reconhece o corpo do irmão. Está morto! Na velocidade do pensamento, é levado à sua pequena aldeia, ao cemitério onde com honras militares será sepultado. São duas dezenas de campas rasas. Conterrâneos que ele conheceu e vê agora distintamente. É um cemitério vivo, onde tantas vezes se deslocara. Vai à parede do fundo e ler um soneto que alguém um dia ali deixou, alguém que se inspirou certamente na realidade da própria vida:
O CEMITÉRIO
Viajamos pelos campos da ilusão,
Calcorreamos um mundo pouco puro,
Paramos! Em nossa frente um portão,
Entramos! É um destino certo e duro.
Aqui jaz quem já viveu de ilusões,
Sofrimentos, mágoas e até prazer…
E nós, mesmo em Terra de aflições,
Desejamo-los! Temos medo de morrer.
Ouvindo o cuco em manhã de primavera,
Num local de nostalgia e sensação,
É a magia da natura, amante e bela,
É o amor que nos dita o coração,
É a voz dos sentidos sempre alerta,
É a aldeia no poder da mansidão.