O vento gélido e cortante era notoriamente mais arrepiante no alto da serra e o Zacarias, também menos habituado às intempéries invernais transmontanas, logo que terminou o carregamento da lenha, acendeu uma fogueira. Tiritava por todo o corpo e nem a tentativa de uma marcha acelerada dentro do armazém o recompôs. Acontece que o vento de rajadas fortíssimas não lhe possibilitara tal benesse e dentro do depósito da lenha estava-lhe absolutamente proibido fazê-lo. Assim, para não ficar por ali a morrer de frio à espera do patrão e porque este demoraria ainda umas boas duas horas a chegar, resolveu aventurar-se pelos terrenos limítrofes da serração e verificar in loco o verdadeiro local onde se encontrava, buscando solução para a incógnita em que o deixara o Ferraguda com a história de noutros tempos terem existido ainda mais lá para o alto bons terrenos de cultivo. Desconhecia o tempo que demoraria tal inspecção, todavia o seu subconsciente impunha-lhe tal diligência. Se não conseguisse neste primeira tentativa outras se seguiriam, pois pelo método de trabalho de que se apercebera deveria ficar muitas vezes sozinho na serra. Não se capacitava de que não existissem outros acessos pelo lado oposto, a ser verdadeira a retórica do patrão.
Lá pôs os pés a caminho por entre a copiosa mata, com o vento a fustigar-lhe a cara e o silvedo a escoriar-lhe os membros. Valia-lhe, embora pouco para remover os galhos e as giestas, as esburacadas luvas com que protegia as mãos. Mas a sua intenção acabou por lhe sair gorada. Com tais condições climatéricas era impossível a qualquer ser humano, mesmo habituado ao rigor do Inverno da serra, aventurar-se por tais veredas, sempre imprevisíveis pelo mato denso que aqui e ali escondem verdadeiras armadilhas mortais.
Na procura de iludir o espírito com algo que confundisse a hipotermia que o vitimava passou em revista os acontecimentos que protagonizara desde o abandono da sua terra até à data em que chegara àquele pequeno povoado escondido numa serra transmontana, e em que nada se assemelhava à história inventada para conseguir um meio de subsistência transitório.
Analisando ao pormenor as razões de tal decisão e não obstante já ter ultrapassado o espaço de uma quinzena de dias verificou com agrado que não estava arrependido, apesar de saber bem das consequências que daí adviriam. Era a primeira vez que tinha obtido um pouco de tempo para meditar sobre o assunto. Até ali fora uma verdadeira odisseia o que passara. Aventuras que nunca julgara vir a experimentar. Sem se socorrer de qualquer meio de transporte, evitando as estradas de movimento e sempre com a história bem delineada de que procurava trabalho, dormiu em celeiros, currais e quejandos até ali chegar, ponto que esperava constituir a sua última etapa em terra de aflições. A fronteira estava perto, havia, contudo, que granjear a confiança das pessoas, a fim de que lhe proporcionassem algum trabalho e com ele adquirir mais uns tostões para a grande escalada, que não poderia demorar. Ainda tinha um saldo de cerca de dois meses e só a partir daí é que as grandes complicações surgiriam; disso estava certo, mas também com a férrea vontade de as evitar. Por isso impunha-se continuar atento ao desenrolar dos acontecimentos como o havia feito até àquele momento.
O trabalho de lenhador não era difícil; pior seria o de agricultor, que exige um mínimo de conhecimentos técnicos, mas as perguntas com cheirinho a insídia, ou estaria enganado?...do Ferraguda, alertavam-no para a obrigatoriedade de não dar nas vistas com palavras desajustadas ao nível cultural dos aldeões.
Assim ia divagando consigo próprio quando num relance notou algo diferente no solo que pisava. A caminhada lenta que era possível em tais circunstâncias permitiu-lhe observar num lapso de segundo que o terreno começava a ceder e recuar a perna direita que avançava para um abismo. Fê-lo por mero instinto, como que compelido por uma força superior alheia ao seu próprio discernimento.
O vento soprava cada vez com maior intensidade, as rajadas sucediam-se a velocidades inimagináveis, a chuva caía em catadupas, e o tempo ia passando. Já tinha encetado o caminho de regresso ao galpão da lenha havia mais de uma hora e os pontos estrategicamente identificáveis que deixara no trajecto da subida não mais os vira. Urgia chegar. Agora outros pensamentos mais macabros o absorviam. “E se não estivesse no seu posto de trabalho quando o Ferraguda chegasse”? Não tinha a menor dúvida de que seria dispensado imediatamente e isso equivaleria ao fim mais triste da sua aventura. Seria como um náufrago a morrer na praia depois de luta feroz contra um tenebroso mar. Sozinho, em plena serra desconhecida com aquele temporal letífero, ser-lhe-ia impossível sobreviver. Chegara à triste conclusão de que estava irremediavelmente perdido.
Quando resolvera regressar tomou um caminho errado e ter-se-á afastado ainda mais. “Zacarias”, disse para consigo, “tem calma. Se entras em pânico só pioras a já terrível situação em que te encontras. Tem fé, pois a esperança é a última a morrer”. Veio-lhe à mente este provérbio popular e ao pronunciar mentalmente o último vocábulo juntou às tremuras do frio que o assolavam um outro arrepio mais intenso, se tal é possível, que lhe gelou a espinal-medula.
Dum galho de pinheiro fez um tosco varapau. Preparou-se para o espetar no local e à segunda tentativa viu-o ser engolido para o subsolo. A preocupação que o dominava não era consentânea com um discernimento capaz, todavia ainda procurou fugazmente marcar aquele sítio, sem pensar bem com que objectivo, pois naquele momento apenas queria sair dali com vida e se possível a tempo de não ser notada a sua ausência.
Estimou o tempo decorrido desde a saída do Ferraguda para a aldeia e o que lhe faltaria até ao ponto de origem e verificou com algum alívio de que disporia de cerca de uma hora. De ânimo um pouco mais sereno tentou orientar-se rebuscando mentalmente os seus conhecimentos de geografia. Virando-se para Norte verificou estupefacto que se tinha afastado para Leste, quando na verdade deveria ter regressado em direcção oposta. Convicto do engano urgia solucioná-lo e pôr-se prestes a caminho na esperança de chegar ao armazém antes do regresso do António Ferraguda.
VIII
A segunda ida à serra estava a ser bem mais penosa para o lenhador. Com o vento de frente e a chuva ininterrupta que caía as alimárias sentiam muita dificuldade em puxar a carroça vazia, facto que obrigava o Ferraguda a auxiliá-las à frente puxando o jugo com esforço.
Apesar de notoriamente cansado espraiou novamente o seu pensamento para o Zacarias. Começava a ficar inquieto com o rapaz, acontecimento que não lhe era consentâneo à normalidade da maneira de agir. Uma imensidão de conjecturas assumia-lhe ao espírito. “Será que o rapaz fez por aí alguma e anda fugido?” – cogitava com os seus botões.
Embora crente de que nunca se enganava nos julgamentos primários, encetava desta vez um desfilar de dúvidas sobre a própria autoconfiança. “Vamos tratar de despachá-lo antes que haja sarilhos” – continuava consigo próprio. – “É uma boa altura de deixá-lo ir para a francesa. Se o outro não puder vir logo se vê”. Entretanto lá se ia arrastando, e à carroça, conforme podia. Deixando vaguear o pensamento, agora para além Atlântico porque era também uma forma de amenizar o sacrifício do momento, pensou nas dificuldades da sua adaptação à terra dos Pampas. A labuta diária para conseguir pequeno pé-de-meia e poder regressar a solo pátrio com o mínimo da dignidade que a si próprio impôs quando decidira emigrar. E não obstante as décadas passadas ainda franzia com relevo acentuado o sobrolho, já de si recalcado por fortes e profundas rugas. A vida não lhe fora nada facilitada, mas sentia um certo e justificado orgulho ao pensar que mercê do árduo trabalho a que se votara desde sempre, desfrutava agora de relativo bem estar para si e para a família, mesmo com a necessidade de ter de continuar um labor, sempre com o firme propósito de aumentar o pecúlio destinado à tranquilidade económica do clã.
Politicamente vivia-se em regime de austeridade, a braços com feroz guerra nas colónias, que ele não compreendia, aliás concomitantemente à maioria dos portugueses, dos mais letrados aos menos conhecedores, apesar de aparentemente serem poucos o que o demonstravam na praça pública. E ele que também passara na juventude os maus momentos da ditadura de Peron, a sua queda em 1955 e uma continuidade de regimes militares muito frágeis, na Argentina, sabia o quão perigoso se tornava sequer pensar e muito menos comentar, mesmo à sua maneira, as directivas do governo.
Realmente Portugal vive nesta época um regime nada consentâneo com o resto da Europa, de índole corporativista, espelhado no intervencionismo económico-social e o imperialismo colonial. O Ferraguda, apenas tinha os dois primeiros anos da instrução primária, todavia com a paciência da esposa, que aprendera até ao exame final da quarta classe, lá foi com ela aprendendo a soletrar e não obstante a sua iliteracia, sempre que a oportunidade surgia vasculhava sofregamente o jornal da cidade, do qual se tornara assinante, mas tal como lá, apenas treinava para melhorar o seu vocabulário já que as notícias somente espelhavam o que a censura deixava passar, sendo os noticiários da rádio um emaranhado de mentiras, ele sabia que assim era, onde apenas havia mortes dos “turras” e ocupações de terras pelo lado dos nossos soldados.
─ “Ocupações… Se existem ocupações é porque foram tomadas anteriormente… Esta corja não sabe que mente? Criamos os filhos, sabe Deus com que sacrifícios, para servirem de carne para canhão. E é esta a maravilha que apregoam com a maldita “psico” a convencer os rapazes a oferecerem-se voluntariamente para a guerra na flor da sua juventude, autênticas crianças que a isso são obrigadas logo que perfazem os vinte anos de idade. Espertos são os que fogem para a França, mas a esses está cortada uma vida normal. E agora é o meu Jorge a querer levar também o Noé, com a mania de fazer dele um oficial de carreira. Isto foi tudo muito bonito há anos atrás, quando faltava muito tempo, quando se pensava que essa hora nunca chegaria, mas o que é certo é que ela chegou, estás prestes a acontecer e eu dei o meu voto a favor, tendo agora a desconfiança que ele irá contrariado. O coitado não tem feitio para as armas, lá isso não tem. Conheço-o bem, mas como deu a palavra ao irmão… Se fosse hoje tinha-me oposto com todas as minhas forças. Naquela altura eu também nunca pensava que a guerra durasse tanto tempo. Enfim!...”
Ia nesta análise estapafúrdia, tentando justificar-se a si próprio, mas com remorsos de ter anuído às intenções do filho mais velho, quando sentiu a carroça a guinar e a fugir do seu controle. Falou aos animais com incentivos de coragem e deslocou-se lateralmente para accionar o rudimentar travão. Para mal dos seus pecados nem precisou de fazê-lo. A carroça estava inclinada de ilharga com o eixo partido na roda do lado esquerdo. Como bom transmontano não se deixou aterrorizar. Seguiria com os quadrúpedes para trazer o outro carro, que àquela hora já estaria carregado na serra. Uma vez que o que levava encosta acima seria para ficar não haveria grandes problemas. Era apenas e só uma questão de subir mais cedo no dia seguinte com um novo eixo, que tinha sempre preparado para tais eventualidades.