ADEUS À INOCÊNCIA - CAP. 33
CLIQUE [AQUI] PARA LER O CAPÍTULO ANTERIOR
33
Sentamos para comer o pouco que restava de frutas. A pouca quantidade não saciaria nossa fome; no entanto, abrandaria aquela sensação desagradável no estômago e nos permitiria dormir. Aliás, procurei comer o mínimo possível para que sobrasse mais para as meninas. Pareciam mais famintas do que eu.
-- Aquele peixe estava gostoso – comentou Marcela.
-- Estava mesmo – concordou Luciana, compenetrada numa goiaba meio verde, meio madura.
-- Amanhã vou tentar pegar outro – falei. Estava agachado ao lado da fogueira observando-as com discrição. Luciana e Ana Paula pareciam acostumadas com a falta da parte superior do biquíni. Quanto a Marcela, seus seios ainda permaneciam cobertos, mas via-se um rasgo no lado esquerdo, deixando visível uma minúscula parte do branco seio. Era nesse ponto que olhava nesse instante. -- Espero que seja mais fácil.
-- Vai ser sim – incentivou minha prima, lambendo os dedos.
Por um momento desviei os olhos e mirei Luciana. Parecia mais interessada na goiaba do que no que passava a sua volta. Por isso voltei a desviar os olhos para Marcela. Afinal era por ela que meu coração batia. Reparei em suas coxas. Nisso, os pensamentos me empurraram para longe dali, para o momento em que nos beijamos durante a busca de gravetos para a fogueira. Imaginei-a no lugar da Luciana me possuindo. “Por que não ela, ao invés daquela safada da Luciana? Agora vai ficar tudo mais difícil. A Luciana não vai me deixar ficar as sós com a Marcela”, pensei. Isso me entristeceu. Não era uma conclusão escapada ao acaso. Era a mais pura verdade. Nas ameaças que me fizera minutos antes estava intrínseco a ordem para esquecer aquele amor. Minhas esperanças agora residiam na saída daquela ilha. Na volta para casa, cessaria todo aquele poder que Luciana exercia sobre mim e então ela não poderia mais me controlar.
De repente tornei a olhar para Luciana. Agora seus olhos jaziam plantados em mim. Embora a claridade não fosse suficiente naquela noite sem lua, pude ver em seus olhos o tom ameaçador e um quê de ciúmes. Nisso, um calafrio percorreu-me a espinha duma extremidade a outra. “Meu deus! Será que ela teria coragem de fazer alguma coisa com a Marcela?”, pensei. Mas no mesmo instante tive vergonha de tal pensamento; e então procurei afastá-lo.
-- Já anoiteceu – exclamou Ana Paula, interrompendo o silêncio.
-- Tá na hora da gente deitar – falei, pondo-me de pé. -- Amanhã temos que dar uma melhorada nessa cabana.
-- Também acho – concordou Marcela. -- Tá horrível dormir sobre essas folhas.
-- É uma boa idéia – concordou Ana Paula.
-- Mas como? -- perguntei.
-- A gente finca quatro pedaços de pau, amarra quatro madeiras em volta deles, cobre com madeira mais fina e depois procura alguma coisa macia para pôr por cima. Aí vira uma cama – Explicou Marcela. Luciana permanecia em silêncio, observando como se aquela troca de opiniões não lhe dissesse respeito.
-- Só espero que fique melhor. Não agüento mais ficar dormindo em cima dessas folhas. Elas pinicam, dá coceira... – disse Marcela.
-- Ah, vai ficar – declarei.
De fato aquilo nem poderia ser chamado de cama, mas era o que consegui fazer até então. O capim e as folhas de bananeira precisavam realmente por algo melhor. A questão era encontrar alguma coisa para forrá-la e deixá-la macia. Ninguém se lembrava de ter visto algum arbusto capaz de servir a essa finalidade. E como ninguém havia pensando nisso, talvez o tal do arbusto até existisse e só passara despercebido nas nossas andanças pela ilha.
Fomos deitar e Marcela ficou tomando conta da fogueira.
Diferentemente das outras noites, nessa eu me sentia cansado, com uma falta de energia. Na região da barriga uma sensação desagradável me deixava ainda mais indisposto. Por isso, virei para o lado e procurei aproveitar o pouco tempo de sono antes de ser despertado pela Marcela para vigiar a fogueira. Adormeci em poucos minutos.
Fui despertado com as sacudidelas e o som da voz de Marcela pedindo-me para levantar. Foi então que me dei conta de que sonhava. Sonhava com algum momento do passado. Não me recordo dos detalhes. Sei, entretanto, tratar-se de um domingo qualquer na casa de meus pais. Estava dormindo e minha mãe vinha até o quarto me acordar. Sua voz meiga e suave me penetrava nos ouvidos e eu despertava com a luz do sol entrando pelas frestas. Mas quando acordei na realidade, não era a minha mãe quem me chamava e sim a Marcela.
Levantei de má vontade. Mas era meu dever assumir o seu lugar. Era uma das poucas regras decidida em comum acordo entre nós quatro. Nenhum de nós deveria quebrá-la, por mais que isso nos desagradasse. E enquanto não encontrássemos uma forma de mantê-la acesa sem ter de abastecê-la amiúdo, haveríamos de nos sacrificar. Mais valia algum sacrifício do que permanecer presos eternamente naquela ilha.
Marcela ocupou o meu lugar entre a Luciana e minha prima e eu, sem ter o que fazer, deixei o infinito penetrar-me na alma, absorver aquele vazio provocado pela saudade dos meus entes queridos. Pensei na minha mãe, no quanto ela deveria estar sofrendo sem notícias; pensei no meu pai, nele consolando minha mãe, pois nessas horas os homens são mais fortes e sabem melhor ocultar a dor. E por um bom tempo me perdi nessas divagações. As lágrimas é quem foram aliviar minha dor. Dir-se-ia escorrerem dos recantos mais profundos do coração, de onde toda aquela dor provinha.
As lágrimas secaram e a dor também. Partiram quase ao mesmo tempo. E então os pensamentos tomaram outro rumo. As preocupações com o nosso dia-a-dia se tornaram inevitáveis. Era preciso encontrar um meio de não deixar que as coisas fugissem ao controle. Sentia que as coisas não andavam bem. A inimizade entre Ana Paula e Luciana era um dos sinais mais claros de uma deterioração rápida da nossa convivência naquela ilha. O tom ameaçador de Luciana dirigido a mim no final da tarde só me fazia mais pessimista. Aonde poderíamos chegar se não saíssemos logo daquela ilha? Essa foi a pergunta que me fiz.
Quanto à resposta, esta me causou arrepios. Vi-nos transformando num bando de selvagens, uns lutando contra os outros, sem saber ao certo o motivo. Vi aquela ilha se transformando numa arena de combates mortais, feito aquelas onde os romanos se divertiam à custa dos escravos que lutavam pela vida. Talvez os deuses acabassem por se divertir, rir até se estatelar com nossos combates por motivos fúteis, por egoísmo, ciúme, inveja e tudo de ruim no ser humano. E então vi Ana Paula toda machucada, vitima da brutalidade de Luciana. Essa imagem aliás acabou me levando a outra, onde Marcela também era brutalmente agredida por Luciana, motivado por um ciúme descontrolado. “Será que ela teria coragem de fazer uma coisa dessas?”, pensei.
Nisso, lembrei da fogueira. O fogo havia abrandado e caso demorasse meia hora a abastecê-la, talvez se teria apagado. Acrescentei alguns galhos e então o fogo voltou a crescer, a iluminar o interior da cabana. Olhei para as meninas que dormiam tranquilamente, indiferente ao som das ondas. Ana Paula dormia de lado, em posição fetal, virada para o lado oposto à fogueira; Marcela, deitada no centro, jazia de bruços, com o rosto virado para minha prima. Olhei para suas nádegas e senti um diabinho a me cutucar, a dizendo-me para me aproximar e olha-la de perto. Sacudi a cabeça para afastar esses pensamentos como que a sacode para espantar um mosquito. Assim, desviei os olhos para o lado e estes foram dar em Luciana, que dormia de costas, com o rosto virado para o lado da fogueira.
A posição me fez lembrar da manhã anterior, de nós dois deitados na areia. Olhei para seus seios e a imagem deles, rijos, entre meus dedos, dos meus lábios a acariciá-los me fizeram cair em completo estado de absorção. Dir-se-ia ter-me transportado por uma máquina do tempo para o passado, mais exatamente para aquela manhã. E, numa sensação quase real, como se os pensamentos se materializassem e me confundisse, eu me vi enroscado em seu corpo. Seus olhos pareciam desesperados, suplicando para que dessa vez não parasse no meio do caminho.
Não obstante, parei. Eram apenas pensamentos e pensamentos moldam as imagens ao gosto da ocasião. Podemos completar uma seqüência interrompida, desviar o curso dos acontecimentos, inserir passagens onde estas não existiam. Essa é a grande vantagem de nossos pensamentos. Aquilo que por um motivo ou outro não pode ser realizado, os pensamentos se encarregam de realizar. Os pensamentos tanto servem para procurar respostas para nossas indagações, para tornar o nosso mundo real suportável quanto para criar um mundo só nosso, com o que há de bom e ruim dentro de nós, um mundo onde tudo é possível, tudo é permitido.
Mas se os pensamentos não podem tudo. Não podem, por exemplo, fazer de conta que um fato ocorrido não aconteceu. Se aconteceu, está acontecido e pronto! As conseqüências deixam marcas inapagáveis por toda a vida. Ou não pensamos no ocorrido, ou convivemos com aquilo, seja ele bom ou ruim.
E como não lembrar daquele barulho vindo do mato, que me fez interromper um ato de intenso deleite? Teria sido um sinal de Deus? “Quem sabe ele fez isso para a gente não ir longe demais”, cogitei. Talvez Deus não tivesse nada com isso e nem com tudo que acontecia no mundo. Talvez Ele tivesse há muito tempo virado as costas para o homem, por sua ingratidão, por termos muitas vezes agidos feito Ele. Talvez Ele estivesse lá, sentado no seu magnífico trono no paraíso, assistindo a grande comédia humana. Todavia, como eu poderia saber das coisas de Deus? Eu era tão somente um garoto, um rapazinho oriundo de uma família de católicos fervorosos. O leitor há de se lembrar disso. E eu não poderia abandonar esse passado de um momento para outro. Embora possa parecer ao leitor mais instruído, mais esclarecido e menos religioso de hoje um absurdo, uma inocência beirando a idiotice, a verdade é que o medo que a religião me impunha não se tratava de um desvario. Era tudo conseqüência natural de minha educação. Fui criado assim, fazer o quê. E até chegar àquela ilha, não me lembrava de sentir o peso da fé.
Por isso tive vergonha dos meus pensamentos, dos meus impulsos que agora vinham à tona sem que eu estivesse preparado para lidar com eles. E a lembrança daquele som horas antes ficou como sendo uma prova material da existência do criador, de como ele nos espreitava o tempo todo. Ele se manifestara para que eu soubesse que estava fazendo coisas erradas. Por isso, antes de acordar a Ana Paula para assumir o meu lugar, prometi a mim mesmo não permitir que Luciana me dominasse e me obrigasse a fazer o que não era correto. Se me deixasse dominar, a desarmonia seria inevitável e as conseqüências imprevisíveis.
LEIA TAMBÉM:
NÃO DEIXE DE SER CRIANÇA – Será publicado num livro didático pela Editora do Brasil de São Paulo.
SER ADOLESCENTE É(1)... - Foi usado num video produzido pela ONG Instituto Mamulengo Social de São José dos Campos - SP que trabalha com adolescentes.
É POR ISSO QUE TE AMO – Parte de texto foi usada numa campanha publicitária em Belo Horizonte.
O DIÁRIO DE ANA CARLA – Como o próprio título diz, é a versão da personagem Ana Carla da história A MENINA DO ÔNIBUS. Recebi um convite da Editora Soler de Belo Horizonte para publicá-lo em livro. A obra completa já está quase pronta. Aliás, estes dois textos me renderam até agora mais de 100 emails elogiosos.
APRENDA COM TEUS ERROS – Usado pela professora Isabela no colégio IPEI em João Pessoa -PB
ELA É MINHA VIDA – Gravada por "POLEIRO" em Portugal.
NÃO DEIXEM MORRER AS FLORES – Selecionado e Lido no prgrama "AGITO GERAL" da RÁDIO GLOBO pelo comunicador DAVID RANGEL
EU NÃO NASCI COM ASAS – Selecionado e Lido no prgrama "AGITO GERAL" da RÁDIO GLOBO pelo comunicador DAVID RANGEL
|