O bairro da Luz, um dos distritos do Bom Retiro, que hoje faz parte do Centro Velho de São Paulo, foi um dos locais mais chiques da cidade, não só por sua vizinhança com os Campos Elíseos, mas também pelas suas origens e fatos históricos e corriqueiros.
O nome Luz deve-se ao fato de que, entre 1888 e 1892, foi construída a primeira usina elétrica da cidade, que funcionava com baterias recarregáveis. Demolida em 1985 para a duplicação da rua João Teodoro, sua torre foi preservada, embora tenha sido bombardeada na Revolução Tenentista de 1924.
Vilas, cortiços, prédios abandonados são os atuais fantasmas daquela belle époque.
Talvez a vila mais antiga seja a Vila Inglesa, na rua Mauá, projetada para abrigar os engenheiros da São Paulo Railway Company, Estrada de Ferro Santos – Jundiaí, que vieram construir a Estação da Luz, aberta ao público em 1901. Em 1924, as 28 casas que compõem o conjunto habitacional, construídas em estilo eclético que combinava a arquitetura regional européia com elementos do colonial brasileiro, foram ocupadas por moradores de classe média da região, cujas casas foram destruídas durante a Revolução Tenentista, em 1924. Em 1989 as residências foram tombadas pelo Condephaat.
Um dos moradores da Vila Inglesa depois da Revolução foi o pequeno Nicola, de apenas um ano, filho de um imigrante italiano ferroviário. Quando cresceu seguiu a profissão do pai e foi trabalhar em serviços gerais na São Paulo Railway Company.
Em 1967, com 43 anos, Nicola sofreu um trágico acidente ao engatar dois vagões de carga. Depois de meses hospitalizado, teve as duas pernas amputadas.
Moço ainda, solteiro e alegre, passou a se interessar pela história do bairro e adjacências.
Além de lembrar as histórias que seus falecidos pais contavam, colecionava recortes de jornais e fotografias da região.
Em 1975, teve de sair da Vila e passou a morar em um cortiço da rua São Caetano, com sua irmã mais moça, Mafalda, que o tratava como filho.
Porém, em meados de 2005, Mafalda faleceu, deixando Nicola ao Deus dará.
Mas Deus não abandona os seus filhos!
Em suas andanças pelo bairro, em cadeira de rodas motorizada, doada pelo Sindicado, Nicola conheceu o nordestino Cícero, camelô organizado que tinha barraca na avenida Tiradentes.
Sabendo das dificuldades de Nicola, Cícero propôs que morassem juntos, assim ele poderia cuidar do ancião aleijado, que estava com 81 anos.
Formaram então uma dupla perfeita.
Cícero levantava cedo, cuidava das necessidades e do banho de Nicola, deixava a alimentação preparada, pronta para esquentar, e saía para a sua luta diária.
Nicola, que não cabia em si de contentamento, e aproveitando o interesse de Cícero por São Paulo, resolveu contar a ele histórias do lugar onde moravam.
Numa manhã ensolarada, logo após a mudança de Cícero para o cortiço, Nicola foi se encontrar com o amigo na Tiradentes, e começou:
– Olha, Cícero. Estamos entre as ruas São Caetano e João Teodoro. Aqui, um pouco para lá da metade do século XIX, era um cemitério.
– Cemitério!? Exclamou o nordestino.
– Sim. Fique sabendo que, nessa época, os católicos eram enterrados dentro e do lado de fora das Igrejas. Os poucos protestantes, principalmente os alemães que morriam, não tinham lugar para ser enterrados. Assim, a colônia alemã conseguiu construir por aqui, segundo contava o meu pai, o Cemitério Alemão, que hoje faz parte do Cemitério da Consolação.
– Puxa vida! Quer dizer que estou no meio das almas do outro mundo?
Nicola riu e continuou:
– Naquele tempo, o Jardim da Luz chamava-se Largo Botânico e Campos da Luz. Tudo isso antes de existir a estação.
– E você sabe que o bairro chama-se Luz devido à velha chaminé? Informou Nicola, apontando para a chaminé, ao lado da ROTA.
– Também não!
– Lá foi construída a primeira usina para gerar luz elétrica para São Paulo.
– Virgem Maria! Exclamou Cícero. Num mesmo dia estou apreendendo tantas coisas que vou escrever para os meus irmãos, na Paraíba, contanto tudo.
– Então conte também que essa chaminé foi duramente bombardeada pelos canhões legalistas, durante a Revolução de 1924, que atiravam lá, dos lados da Penha. Em volta dela os principais quartéis da Força Pública, hoje Polícia Militar, além das estações da Luz e Sorocabana, estavam nas mãos dos revoltosos.
– Puxa! Até guerra teve em São Paulo, e aqui na Luz! Considerou, assustado, o nordestino.
– Espere, replicou Nicola. Aqui tem muita coisa ainda para você ver. Você conhece a Estação da Luz?
– Sim, conheço. Já tive barraca na rua Mauá, bem em frente da estação. E já fui visitar o Museu da Língua Portuguesa.
– Ora, pois! Disse Nicola, segurando a mão do amigo. Então, domingo que vem vou levá-lo para conhecer a Pinacoteca.
– Essa eu não conheço. Quero ir, sim. Mas antes vou à missa, lá na Igreja do Frei Galvão.
– Eu não sou muito de ir a missas, mas irei com você.
O domingo amanheceu claro e radiante, encorajando ainda mais Nicola a ir à missa com o amigo.
No caminho, Nicola foi explicando:
– Cícero, a igreja que você sempre vai chama-se Convento da Imaculada Conceição da Luz e Igreja Nossa Senhora da Luz. As primeiras referências à capela datam do final do século XVI. No século XVIII, a irmã Helena Maria do Sacramento e o frei Antonio Sant’Ana Galvão reiniciaram as reformas da capela com a construção do Recolhimento da Luz, inaugurado em 1774, com o nome de Convento de Nossa Senhora da Luz da Divina Providência.
Hoje o convento pertence à Ordem das Irmãs Concepcionistas, que vivem em regime de clausura. Frei Galvão é o único santo brasileiro enterrado lá.
Cícero olhava para Nicola com os olhos arregalados e a boca aberta. Finalmente, falou:
– Nossa, quanta gente morta está perto de nós. Mas vamos rezar por eles.
Assistiram a missa e, conversando, rumaram para a Pinacoteca.
Nicola confessou ao amigo:
– Gosto de ir à Pinacoteca para ficar admirando todos aqueles quadros e esculturas. E você?
– Sei lá! Resmungou o nordestino. Hoje é que eu vou ver se gosto ou não gosto!
– Você conhece o Liceu de Artes e Ofícios, lá perto de casa?
– Conheço, sim, mas nunca entrei lá.
– Quando eu terminei o grupo escolar, meu pai me colocou lá para aprender o ofício de marceneiro. O Liceu foi fundado em 1873, ainda na época de D. Pedro II, e foi a primeira escola profissionalizante do Brasil. Hoje ainda é escola técnica, marcenaria industrial e centro cultural. Sou marceneiro formado, trabalhei nas oficinas da Estrada de Ferro, mas, para ganhar um pouco mais, pedi minha transferência para as manobras noturnas. Foi quando aconteceu o acidente. Eu não tinha muita prática desse serviço.
– Estamos chegando. Vamos falar de coisas bonitas e alegres. Argumentou Cícero.
O terreno junto ao Jardim da Luz foi doado pelo governo do Estado em 1897, ano em que teve início a construção de um edifício para abrigar o Liceu de Artes e Ofícios. O Liceu ficou lá até começo dos anos de 1940. Em 1946, passou a abrigar a Pinacoteca e a Escola de Belas Artes.
– Este prédio majestoso é mais uma obra de Ramos de Azevedo, disse Nicola.
– Como você sabe tudo isso?
– Lendo, meu querido amigo. Tudo que cai em minhas mãos eu leio. Até bula de remédio.
Entraram.
Cícero ficou impressionado com as obras-de-arte que via pela primeira vez.
Em poucas horas conheceu diversos artistas brasileiros: Almeida Júnior, Pedro Américo, Benedito Calixto, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, entre outros – um panorama da arte brasileira desde o século XIX até os dias atuais.
Quando Nicola reclamou que estava com fome, pois já eram quase duas horas da tarde, Cícero sugeriu:
– Vamos ficar mais um pouquinho!
Ficaram até as três quando, então, resolveram comer um sanduíche na lanchonete da Estação da Luz.
Enquanto almoçavam, Nicola falava da importância daquela estrada, que liga o interior paulista ao porto de Santos, principalmente na época áurea do café.
– Hoje, infelizmente, não temos mais trens de passageiros. Você precisava ver que viagem maravilhosa é a descida e a subida da serra. Paisagens para nunca mais se esquecer.
Na rua, Nicola convidou Cícero para mais um passeio.
– Quero mostrar a você uma parte do Bom Retiro, aqui perto, que pertenceu a boemia e a prostituição.
E se dirigiram à rua José Paulino.Cícero estava meio encabulado com o convite do amigo.
Desceram e, ao chegar à primeira esquina, à direita, entraram e deram com o muro da Estrada de Ferro Sorocabana.
Antes do muro, duas travessas. Uma ainda tinha o nome Aimorés.
– A outra, disse Nicola, era a rua Itaboca, mas parece que mudaram de nome.
– Essas duas pequenas ruas eram destinadas ao meretrício. Havia posto médico, policiamento e as mulheres eram cadastradas para freqüentar ou morar no local.
Pelos arredores havia outras casas de prazer, mas não eram controladas.
Foi o governador Lucas Nogueira Garcez, em 1953, que decretou o fim da zona do meretrício em São Paulo.
Quando eu tinha meus vinte, trinta anos, sempre vinha aqui. Depois arrumei uma namorada e nunca mais voltei. Hoje, a grande maioria das pessoas, principalmente mulheres, que vem fazer compras nessas lojas não imagina onde está pisando.
– É bom saber desses detalhes, comentou Cícero. E continuou:
– Quando cheguei em São Paulo, em 1965, com 30 anos, fui trabalhar como auxiliar de pedreiro, num prédio que estava sendo construído na rua Aurora, quase esquina com a Rio Branco. O que havia de putinhas naquelas ruas, dia e noite! Custei para acreditar. Mas depois de alguns meses me acostumei e passei a levar algumas para o meu barraco.
Como a conversa estava animada, resolveram tomar cerveja num bar da rua dos Protestantes.
Já acomodados no boteco, Nicola continuou:
– Cícero, o que você está vendo e aprendendo sobre o bairro da Luz ainda é pouco. Aqui do lado, atual Secretaria da Educação e Cultura, ao lado da Estação da Sorocabana, ficava o prédio do antigo Dops.
— O Dops, Departamento de Ordem Política e Social, foi um dos órgãos mais ativos e violentos do Regime Militar. Hoje as antigas celas estão abertas para visitação pública, junto a um pequeno museu.
– Temos outros museus, como o da Arte Sacra, da Polícia Militar e da Língua Portuguesa, que você conhece. Há também a igreja de São Cristóvão, que já foi seminário. O bairro da Luz era um glamour, mas hoje está uma decadência sem limites.
Disse isso e apontou para diversas crianças sentadas na calçada do bar, fumando tranquilamente seus cachimbos com crack.
Estamos em pleno reino do mal – a cracolândia. Vamos embora antes que a gente seja assaltada. Eu, aleijado, e você, com essa idade, somos presas fáceis para esses menores abandonados, não só pelos pais, mais também pela sociedade.
Enquanto pagavam a conta, uma menina, com seus 12 anos, ofereceu-se para um programa. Só para poder comprar drogas.
Nicola chorou.
Foram embora sob uma enorme lua cheia, comentando os prazeres e as tristezas daquele domingo inesquecível na Luz, bairro de uma paulicéia ainda desvairada!
Roberto Stavale
São Paulo, Julho de 2009.
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