Minha mãe era uma santa. Meu pai era um homem bom.
Todo mundo acha que sua mãe é uma santa, mas a minha, tendo falecido com 22 anos, não teve tempo de cometer pecados sociais e ficou purificada pelos atos, pelo comportamento, pelos exemplos e a essas qualidades todas não apareceu nenhuma contestação, portanto, ela foi uma santa. Meu pai, um homem bom. Princípios rígidos de honestidade, incapaz de mentir até no jogo de truco, com coragem de manter sua palavra com a honra de um fio da barba. Respeitava a todos, tratando-os com carinho. Bem humorado, trabalhava sempre brincando, conseguindo trazer todos os empregados a um clima de amizade e cortesia, na realização de todas as tarefas do dia a dia.
Conseguiu transmitir a mim um senso de responsabilidade que era dirigido por seu olhar. Um minúsculo gesto me fazia perceber o que era certo e o que era errado. Sempre me deu apoio e responsabilidade.
Na adolescência passei a conviver com discussões políticas, passando a perceber uma possibilidade de paz, onde não houvesse a exploração do homem pelo homem. Passei a acreditar numa sociedade igualitária e isso me parecia ser honesto e inevitável a ponto de que, não lutar por esse objetivo, seria covardia, acomodação, insensibilidade, tudo incompatível com aquilo que eu havia incorporado dos princípios de meu pai e de minha mãe.
Mas o mundo era cruel. Pensar assim era ser comunista, e isso era colocado como coisa ruim, clandestina, subversiva, maldosa.
Minha família era religiosa e o comunismo ateu. Isso provocou conflitos, pois eu via virtudes em ambas as condições, não entendendo o porquê dessa discórdia. Não conseguia entender por que um mundo guerreava com outro se ambos tinham propostas interessantes. Se somassem as intenções positivas, a sociedade seria muito melhor. Eu não via sentido em se guerrear com a posição contrária e achava que só haveria alegria com a junção das qualidades.
Mais tarde comecei a perceber que cada verdade política ou filosófica era calcada em teorias científicas e que esses conflitos eram inevitáveis. Aquela utopia, visando o entendimento, não persistiria, pois, em caminhos antagônicos, os opositores passariam a defender suas teses até a morte, acreditando estarem resguardando suas verdades, “até com a própria vida, se preciso fosse”.
Os apelos da consciência e o entusiasmo da juventude me encaminharam para a tendência à igualdade e, quando percebi, estava rotulado como “de esquerda”.
Fervilhava o movimento estudantil. O mundo se dividia, radicalizando posições, sendo impossível a alienação em alguém que fora criado com princípios. Tinha a visão perfeita de que, com minha participação, seria feito alguma coisa que ajudasse a acabar o sofrimento da humanidade. E via sofrimento em muitas situações, tanto social como política. Via povos da África passando fome e via povos ricos esbanjando farturas. Via homens serem explorados, sem nenhuma perspectiva de melhora. Via oligarquias mandando em tudo, sendo cruéis com o povo sofrido. E via posições políticas claramente capazes de mudar o rumo dessa história. Era bem claro, em minha mente que eu fazia parte de uma geração que era obrigada a lutar pela igualdade e pela justiça.
Participei de tudo. Tive meus ídolos e meus líderes. Vivi intensamente meus anos de juventude, sendo ativo, participante, consciente, convicto de que cumpriria meu destino, se cumprisse meu ideal.
Por ter menos informações, por consequência de minhas origens, nunca liderei. Segui meus guias e fui fazendo aquilo que eram palavras de ordem.
Aprendi muito! Como cresci! Como consegui com esse comportamento estabelecer rumos para minha vida! Como agradeço por ter lutado!
As lembranças dos ensinamentos de meus pais nunca me permitiram cometer desatinos. Assim, todos os momentos de minha participação eram sinceros, objetivando algo melhor, com pureza franciscana, embora já nessa época não houvesse mais religiosidade em minha consciência. Visava o ser humano, a sociedade, a paz, a harmonia entre os homens, a ausência de exploração e sofrimento.
O ciclo de minha vida estudantil coincidia com a radicalização dos embates, com as forças dominantes mais poderosas e agressivas. Com a formatura, sem o manto protetor de uma Faculdade, não tendo mais reconhecida aquela condição de jovem idealista, o momento se apresentava muito mais difícil. Muitos companheiros optavam por confronto armado. Hoje sabemos que nesse campo perderíamos, pois éramos insignificantes diante do poder opositor. Muitos, levados pela ideologia, mais enraizados na luta, não tiveram essa percepção e escolheram morrer como heróis, diante da impossibilidade de vitória.
Aqueles princípios, lá da infância, trazidos de meus pais, me auxiliaram nas decisões e conclui que haveria outras formas de participação, além dessa radicalização. Muitas vezes fui torturado pela idéia de estaria me acovardando e que se realmente acreditava naquilo, deveria também “morrer, se preciso fosse”.
Lembro-me de que num momento de meditação veio-me a idéia de que “não deveria perder a ternura, jamais”.
Nos momentos desses conflitos fiquei sabendo que um de meus ídolos estava preso na Fortaleza de Santa Cruz, Presídio do Exército. Havia informações de torturas e a idéia de ver Darcy Ribeiro torturado acendeu em mim uma luz, dizendo-me que poderia trabalhar, anonimamente, sendo útil à cidadania, cuidando daqueles presos, tentando impedir que sofressem.
Foi uma idéia brilhante e apresentei-me ao exército como aspirante médico.
Nos cursos preparatórios consegui média para escolha de locais mais desejados por todos, mas, sob a alegação de que gostaria de ficar num lugar mais interessante, escolhi o Presídio do Exército.
Apresentação no Forte Copacabana
Depois das apresentações burocráticas, no Ministério de Exercito, na Avenida Presidente Vargas, fomos encaminhados ao Forte Copacabana para as orientações militares, como disciplina, hierarquia, comando, sem que faltassem orientações sobre armamentos, como se alguém daquele grupo estivesse querendo aprender algo sobre isso.
O Forte Copacabana era considerado de elite, onde os militares recebiam os melhores tratamentos em todo o Exército, razão por que fomos lá muito bem recebidos. O grupo de uns trinta colegas, todos recém formados, se portava como qualquer grupo de jovens que se vê numa arena de brinquedos. Muitas coisas infantis, brincadeiras de criança que serviam para dar muita alegria e descontração a todos. Menos para mim que me sentia observado. Parecia que, a qualquer momento, eu seria enquadrado pelos superiores. Pura paranóia, pois nada havia que pudesse me comprometer, a não ser meu segredo de estar ali por uma causa pessoal e não para servir ao Exército, como os demais. Talvez por isso eu procurasse ser o mais comportado e objetivo, cumprindo todas as ordens com o maior respeito e eficiência. Não participava da brincadeira dos demais que, irreverentemente, faziam alardes, no restaurante, com barulhos, como se fossem se levantar o que era obrigação ao chegar um oficial mais graduado. Aquilo fazia com que todo mundo se alertasse e, na verdade, não chegava oficial algum. Eu ficava temeroso de que houvesse alguma punição. Acho que o comando soube entender aqueles jovens engraçadinhos, não querendo arranjar problemas.
Passamos um mês e meio nessa tarefa. Foi muito agradável. Boa comida, muita ginástica, lições fáceis de serem assimiladas e um início promissor.
Não houve como não exercer o senso crítico, o que fiz baixinho, embora visse algum colega dar boas risadas do fato.
O Forte Copacabana tinha por objetivo defender a Costa do país contra a invasão do inimigo. E, para isso, preparava a turma, o ano inteiro, para um tiro de canhão que seria dado num alvo preparado para passar pelo canal de entrada da Baia, num determinado dia, quando suspenderiam a navegação de qualquer barco no local. O alvo seria puxado por um barquinho, com toda a segurança. Pois bem, tudo preparado, o General perfilado e o tiro não saiu. De dentro do buraco sai um soldado todo chamuscado, sujo de pólvora. Esse soldado era o Rodrigues Neto, jogador do Flamengo que servia ao exército, naquele quartel. O tiro ficou para a semana seguinte e novamente não saiu. Os soldados ficaram frustrados, pois passaram um ano inteiro se preparando para defender a costa do país e, se houvesse um inimigo, todos estariam fritos. Eu fiquei imaginado que se no Forte Copacabana que era considerado a elite do Exército brasileiro isso acontecia, imaginem nos quartéis dos recantos mais longínquos. Sem pensar também na ineficiência do projeto, pois uma bombinha qualquer, vinda de muito longe, poderia explodir o forte inteiro em poucos segundos. Mas, aquilo era o objetivo das tropas do Forte Copacabana, e pronto.
Esse período foi importante para que nós nos conhecêssemos. Eu vivia grudado num dos maiores amigos que tenho até hoje, médico em Cruzeiro, em São Paulo, o Luiz Carlos Pereira. Já éramos amigos na Faculdade e, mais ainda, pude perceber o grande homem e grande caráter que ele tinha. Não me lembro dos outros, só me lembrando de um fato ocorrido com um deles que ao ser advertido por um oficial, disse-lhe que um dia se encontrariam, pois ele era psiquiatra e considerava o oficial um louco. E o fato aconteceu. O Oficial descompensou e foi atendido por esse colega, tempos depois.
Fora o fato de ter que andar, eventualmente fardado, nos ônibus que me levavam ao quartel, num calor intenso, nada mais me desagradou nos tempos do Forte Copacabana.
Escola de Saúde
Pouco tempo e sem muitas novidades, na Escola de Saúde. Aprendemos alguma coisa sobre atendimento em campanha, torcendo para que essa campanha jamais acontecesse.
Só me lembro de um tenente chamado Ten Pinho que vivia gritando como um louco, causando risadas na turma que passou a imitá-lo depois do expediente.
Após esse estágio foram feitas as provas para a seleção dos colegas e a destinação de cada um à sua unidade.
Lembro-me de que era dado incentivo àqueles que quisessem fazer carreira no exército, mostrando-lhes que na Escola de Saúde passariam pelo curso de onde sairiam Primeiros-Tenentes.
Eu não queria, embora tivesse o estímulo muito forte de meu sogro que era militar da ativa e dos mais “Caxias” existentes. Hoje imagino que um ou outro daquele grupo que tenha feito carreira militar não se arrependeu. Hoje seria Coronel da Reserva, com todos os méritos e teria prestado grandes serviços ao país. Mas entendo que, para isso, haveria a necessidade de ter vocação, coisa que não me chamava naquele momento.
Presídio do Exército
A Fortaleza de Santa Cruz fora construída num ponto estratégico, num braço avançado do mar, estreitando a entrada da baia de Guanabara, tendo do outro lado o Forte São João, na Urca, e no meio da baia o Forte de Lages como uma enorme pedra encravada no mar. Fica no Bairro de Jurujuba, em Niterói. É belíssima. Com a estrutura de uma fortaleza, com todos os pormenores exigidos para defesa da nossa costa. Construída na pedra, com muros imensos, perfurados por buracos onde se localizavam os canhões, com corredores de comunicação onde muitos filmes publicitários foram feitos. Espaços para alojamentos, restaurantes, enfermarias, oficinas, todos com a visão maravilhosa da cidade do Rio de Janeiro, lá ao longe. Em pé, sobre a murada, com o vento soprando brando em nossos corpos, passávamos longas horas admirando aquela natureza privilegiada. Lá de cima os pescadores jogavam suas linhas e frequentemente se satisfaziam com pescas bem sucedidas. Eu não concordava com um tipo de pesca predatória que faziam, jogando as garateias pontudas, matando mais peixes que pescando. E isso dentro de um quartel do exército. Os pescadores eram pobres e faziam aquilo para ganhar a vida. Isso me consolava, embora eu me esforçasse para não ser conivente.
Uma estrada estreita e tortuosa, beirando as pedras, levava, desde Jurujuba até uma guarita onde soldados davam guarda. Dali em diante já era território militar. Logo na entrada havia um relógio de sol, muito interessante, sendo eficiente na marcação das horas pela sombra que fazia numa pedra numerada. Logo em frente um pátio com a quadra de futebol de salão, a entrada do restaurante dos oficiais, a sala do comando, algumas oficinas e os caminhos para o local dos canhões. Do outro lado, uma ruela inclinada para onde estavam os presos. Seguindo nessa direção, descendo pela rampa suave se chegava num outro pátio tendo, à direita, casas assobradadas, com construções bem antigas, mostrando suas vidraças e decorações típicas da colonização portuguesa. Do lado esquerdo havia uma murada com uma visão muito bonita do mar, de onde se via a Praça Quinze e a praia de Icaraí, em Niterói. Um lugar muito calmo, próprio para meditações e, como verão em seguida, muito usado para esse fim. À esquerda havia uma rampa, no final da qual havia um portão de ferro bem forte que era a entrada de duas ou três cavernas feitas na pedra e usadas com prisão para aqueles presos que não eram oficiais ou não tinham nível universitário. Os oficiais e aqueles de nível universitário ficavam naquelas casas assobradadas. No final desse pátio havia um portão grande por onde entravam os visitantes, parentes ou amigos dos presos.
Nas casas assobradas os presos ficavam em quartos, com camas comuns, com banheiros coletivos, salas e até podiam usar o fogão para aquecer alimentos. O General Linhares era o único que tinha o privilégio de morar sozinho em uma das casas.
Nas acomodações das cavernas os presos ficavam agrupados, com cada cama em um canto, sem divisórias. Por um tempo havia uma atividade que me intrigava, pois todos eles se ocupavam de colar folhas de jornal e criarem uma armadura de arame ou bambu. Só mais tarde deu para perceber que construíam umas pequenas barracas em volta de suas camas para terem a privacidade com suas esposas, nos dias de visita. Havia um respeito muito grande, embora todos se conhecessem, pois ou eram militares de carreira, ou companheiros da mesma facção política.
Estar na Fortaleza de Santa Cruz era muito agradável. Um vento permanente, uma visão maravilhosa da natureza, boas conversas, ambiente de saúde, com muita ginástica, comida bem feita e bom tratamento.
Posso dizer que até para os presos não havia muito a reclamar. Percebi que não havia maus tratos, havendo um respeito muito grande entre toda aquela comunidade. Não eram só políticos. Muitos membros do exército iam para lá, pagar suas penas: como General Linhares, Capitão Bandeira, sargento Campos, sargento Lanceiro e muitos outros. Havia perfeita harmonia no convívio entre presos políticos e os outros, membros do exército. Talvez somente o Gal Linhares não se entrosasse mais amigavelmente com os outros. Mais pelo seu próprio temperamento e por não concordar em estar preso numa unidade comandada por um major. Dizia-me sempre que isso contrariava o regimento do exército. Tive boas e prolongadas conversas com esse general. Nunca perguntei o porquê de sua prisão por saber que eram sempre por problemas administrativos e eu na queria criar constrangimento. Era já idoso e muito ranzinza. Talvez conversasse mais comigo que com outros oficiais por ver em mim um tipo diferente, sem as manias dos soldados de carreira. Ele parecia confiar em mim e eu o respeitava muito. Havia um soldado preso por ter cometido um homicídio. Quase sempre os motivos eram de ordem civil.
Alguns presos prestavam grandes serviços ao quartel, tendo, por isso bons privilégios. Era o que acontecia com o Sargento Lanceiro, que viva livre dentro da unidade, podendo circular por onde quisesse, pois era encarregado de providenciar a manutenção de tudo aquilo que quebrasse por lá, desde geladeira, chuveiro, cano entupido e até reboques em paredes. Havia quem pensasse que o Lanceiro não era preso. Um outro soldado, um nordestino com cara amarrada, de pouca conversa, parecendo muito valente, se incumbia das tarefas mais pesadas, carregando coisas de um lado para outro. Só à noite e nas horas de refeição esses dois iam para a caverna. Durante todo o dia circulavam pelo presídio, à vontade.
Tenente Ivo, vindo de quadro auxiliar era o responsável pelos presos. Tenente Ivo era divertido, cheio de boas conversas, procurando contornar pequenos arranhões sem muita exigência. Acabava sendo benquisto por todos, presos ou não.
No exército parece haver certo preconceito por oficiais de quadro auxiliar. Aqueles da AMAN são mais empertigados um pouco e olham para os outros com certo desdém. Talvez por isso o Ten Ivo se desse tão bem com os sargentos presos, sendo políticos ou não.
Quem fazia os trabalhos no quartel eram os sargentos. Eles comandavam as ordens dos oficiais, realizando tudo aquilo que fosse necessário. Na hierarquia havia um entendimento muito grande entre os sargentos e os subtenentes. Todo sargento queria um dia ser um subtenente. Sargento Brasil e Sargento Campos eram os mais velhos da unidade e um deles subiu a subtenente naquele ano. Sargento Mendes, era da saúde e meu grande auxiliar. Era ele que dava as ordens de comando nos meus dias de serviço. Ele só tirava serviço no meu dia e isso era aceito por todos, sabendo que eu não poderia ser um bom comandante por não ter preparo para isso. Como nosso relacionamento, na enfermaria era muito bom, isso era facilitado pelos encarregados da escalas. Lembro-me do sargento Maurílio, um jovem bem magro e alto, bom goleiro no futebol de salão e que era muito meu amigo. Com os sargentos Barbosa e Ayrto eu conversava muito. Eles eram os responsáveis pelos documentos do quartel, sabendo das notícias com respeito aos movimentos políticos e gostavam de conversar comigo, me achando bem informado. Contavam-me tudo, até o que não deveriam. Eu mantinha uma postura ética, não usando as informações para nenhum fim.
Meu relacionamento com os soldados era perfeito. Na verdade eu era como um soldado, novo no exército, sem saber muita coisa, preferindo me divertir com eles nos jogos de bilhar ou na quadra de futebol.
Carlos, Roboredo, Joaquim, Queiroga, Celso, João, Gerson e tantos outros, permanecem como velhos companheiros, em minha memória.
Carlos era um rapaz simplório, gorduchinho, com pouca mobilidade, sendo desatento em tudo o que fazia. Um dia caiu de um muro, quando dava serviço na guarita da entrada do quartel, quebrando ossos, ficando com limitações para andar. Diziam que seria reformado como terceiro sargento e que seu futuro estaria garantido.
Roboredo era um baixinho muito risonho que vivia com brincadeiras. Era responsável pelo serviço de telefonia que não funcionava, sendo dificílimo conseguir uma linha para se comunicar com alguém. Vivia grudado num radinho de pilha que me ajudaria muito, como relatarei adiante.
Joaquim era um mineirinho, ruivo e invocado. Discutia muito, argumentava sobre todos os assuntos e era corajoso. Um dia, quando dois presos tentaram uma manifestação mais imprudente, o Joaquim que estava de guarda não titubeou, dando um tiro de alerta, na direção da caverna, criando o maior movimento no quartel. Houve inquérito e o Joaquim sempre seguro, dizendo que atiraria outra vez se a situação se repetisse. Acabaram lhe dando razão.
Queiroga parecia mais diferenciado. Tinha certa liderança no grupo, impondo respeito. Era estudante no colegial, enquanto a maioria não se preocupava com nada.
Celso era o soldado do cassino dos oficiais. Era meu amigo e, nos meus dias de serviço, me oferecia bons quitutes.
João era o soldado mais azarado. Um negro forte, um pouco ignorante, vítima de todas as trapalhadas que aconteciam no quartel. Se houvesse um culpado, seria o pobre do João. Um dia comeram goiaba nas goiabeiras que existiam perto do quartel, fato sem a menor importância, mas chamou a atenção do Major comandante. Esse, num gesto de poder, colocou o João no meio do pátio, exibindo-o como um troféu, ameaçando puni-lo com prisão numa cela onde se prendiam os escravos, no tempo da escravidão. Foi meu primeiro dia de apuro, pois eu estava disposto a não aceitar esse gesto por ser desumano. Estava pronto a intervir, alegando problemas de saúde em quem ficasse tanto tempo sem poder mudar a posição do corpo. Felizmente o major agiu de bom senso e o João só pegou prisão no próprio quartel, sem poder sair no fim de semana, o que, para ele não era novidade. O João de nada reclamava, parecendo receber tudo com a maior resignação. Pobre coitado.
Gerson era o soldado enfermeiro. Era negro, bem tranqüilo, dizendo sempre que esperava que o mundo acabasse em barranco, para morrer encostado. Embora preguiçoso, era um bom rapaz e muito me ajudou.
Outro negro que me ajudou foi o cabo Luiz. Era também enfermeiro e gostava de botar autoridade no soldado Gerson, obrigando-o a fazer tarefas, mesmo sem necessidade, só para aborrecer o companheiro.
Quando cheguei ao quartel, quem mais ficou satisfeito foi o capitão Souza que era dentista, pois, na ausência de médico, ele seria responsável em orientar os casos de saúde. Era antigo sargento e, após se formar em Odontologia, fez curso na escola de saúde, virando oficial. Também não era muito engolido pelos oficiais da AMAN, com aquele preconceito visível e palpável.
Havia um tenente, o Ramalho, que era do CPOR. Seria outro a ser discriminado, não o sendo por ser o melhor jogador de futebol do quartel, atuando tanto no gol, como na linha, sendo a estrela do time, sem o qual esse time não conseguiria ganhar os jogos com as outras unidades, nos campeonatos ou mesmo nos jogos amistosos. O Ramalho já estava no quartel há dois anos e dizia que ficaria enquanto lhe permitissem, sendo prazo limite de cinco anos para estágio do CPOR. Era muito querido, principalmente pelos soldados, pois atuava também com eles, nos jogos do quartel.
Mais tarde chegou outro estagiário do CPOR, o tenente Gil, sendo bem mais atrapalhado, talvez por ser muito “vibrador”, querendo aparecer mais que o necessário, provocando risos dos oficiais.
A unidade era pequena, tendo um oficial comandante, um subcomandante, alguns tenentes e alguns capitães.
Major Adejanir era o comandante; Capitão Paulo, o subcomandante. Tenente Décio, tenente Leon, Tem Loan. Mais tarde chegaram o Capitão Morrisson e outro tenente que me criou problemas, se recusando a dar serviço, por ser Intendente. Se eu, médico, também não desse, ele não daria. Geralmente em quartel de tropa, só dão serviço os oficiais de tropa. Para resolver o problema o major comandante obrigou-me a dar serviço, o que foi outro fato marcante que será relatado na seqüência.
Major Adejanir era um homem pacato, parecendo estar satisfeito em ser major, não demonstrando ambições maiores no exército. Sua esposa, Dona Leda e seus dois filhos estavam sempre comigo, pois eu pegava carona em sua condução, quando iam à escola.
Capitão Paulo, talvez seja o primeiro amigo que eu consegui no quartel. Era calmo, tratando a todos com o maior carinho e respeito, bondoso na execução de suas obrigações.
Tenente Décio foi logo transferido para outro quartel, não dando para ter um convívio maior. Só me lembro de um caso interessante, quando foram visitar o quartel as candidatas à Miss Brasil, dentre a quais uma de Santa Catarina, muito alta e elegante. O Ten Décio tentou uma gozação comigo, dizendo que eu não conseguiria nada com ela, devido ao meu tamanho. Eu, irreverentemente disse-lhe, para risada dos demais, na hora do almoço, que, por ser médico, a altura não seria empecilho, pois eu lhe pediria que se deitasse e ela obedeceria, sem problemas.
Tenente Leon era de pouca conversa. Um dia chutou o dedo do sargento Maurílio, durante um jogo de futebol e não deu a menor satisfação, deixando-me aborrecido pelo gesto autoritário e desumano.
Quando eu cheguei ao quartel o Tem Loan estava de férias e, por ser o oficial de comunicação, causou-me enorme apreensão, pois seria ele o responsável por todos os problemas políticos naquela unidade. Ao chegar foi logo me cumprimentando e ficamos amigos. Foi o único que passou por minha cidade, numa oportunidade, para visitar-me. Tive com Loan a maior amizade durante meu tempo no exército.
O Capitão Paulo foi substituído pelo Capitão Herval, também muito gentil e competente.
Depois chegou outro Capitão, o Morrisson, folgado, sem muitas ações, cumprindo com vagar suas atribuições.
Esse quartel, onde fiquei por nove meses, sempre preocupado, apreensivo e temeroso, me proporciona hoje ótimas lembranças. Não foi terror nenhum estar lá, cumprindo meu objetivo. Consegui relacionar-me muito bem com todos. Não houve necessidade de nenhuma ação mais significativa na defesa dos presos, pois não havia nenhuma intenção de sacrificá-los, sendo o cumprimento da missão, simplesmente vigiá-los, sem nenhuma medida violenta.
A adaptação ao quartel
No dia marcado estava eu em Niterói, pegando um ônibus que nos levaria ao quartel. Muito cedo, ainda escuro e todos prontos para a ação, como dizia o Ten Loan-“para ficar mais tempo sem fazer nada”.
A primeira gafe foi sentar-me num banco da frente, lugar reservado aos oficiais mais graduados. Gentilmente advertido por Tem Ivo, fui ao fundo do ônibus ajeitar-me convenientemente.
Tinha embaixo do braço um jornal “Última Hora”, considerado de oposição aos militares. Fiquei temeroso, mas achei que seria muita covardia não assumir que gostava de ler esse jornal. Dizia que era pela sessão de esporte e pelas crônicas do Estanislaw Ponte Preta. Procurava emprestar o jornal aos colegas para que todos lessem, diminuindo minha culpa. Hoje sou ciente de que ninguém estava preocupado comigo, um insignificante Aspirante a Oficial do Exército Brasileiro.
Ten Ivo tinha seu jeito um tanto ingênuo, procurando agradar a todos e muito me agradou, como se eu estivesse precisando de apoio, o que era verdade. Ele procurava servir a todos, provavelmente porque tinha sido sargento e guardava aquele estilo de subordinado. Isso o tornava o homem mais solícito do quartel. As nossas funções se confundiam, pois tínhamos que tomar conta de gente e, por isso, nosso entrosamento foi tão grande. As rotinas, como quando fazer continência, quando ir à formatura, quando cantar os hinos apresentados me eram ensinados pelo Ten Ivo e pelo Sargento Mendes, o enfermeiro.
O médico faz meio expediente, então, ao meio dia estava eu pronto para ir embora e era olhado com certo ciúme pelos outros. Embora constrangido, não poderia abrir mão desse privilégio, pois teria que cumprir meu estágio no hospital São Francisco, complementando minha formação. Sempre que podia o Ten Ivo me arranjava uma condução até Jurujuba, facilitando meu deslocamento por aquela estrada quente construída na pedra. Na maioria das vezes eu pegava carona no carro dos filhos do major.
Essas coisas eram facilmente assimiláveis, jamais havendo problemas. Só houve algumas complicações quando, por exigência do Tem Intendente, eu passei a dar serviço, ou seja, permanecer no quartel e ser responsável por tudo o que ali acontecesse. Falei ao Cap Herval que ele estaria sendo absolutamente irresponsável dando-me aquela atribuição. Ele ria, dizendo que eu era capaz e que saberia o que fazer. Riu muito quando ao mostrar-me o quarto do Oficial de dia onde havia um baú contendo granadas, armas e outros apetrechos e eu lhe disse que se houvesse um tumulto no quartel e eu desaparecesse, poderia me procurar que eu estaria dentro daquele baú. Essa minha conversa era para mostrar fragilidade. Na realidade eu não temia, nem um pouco, estar ali, cuidando dos presos. Essa era a minha missão e eu me sentia muito bem junto aos presos. Além do que, estava sempre com o Sargento Mendes por perto. Jogava bilhar com os soldados, comia bem e ainda desfrutava do encanto da visão que aquele lugar me proporcionava.
Não usava armas. Um dia o Cap Herval chamou-me, perguntando quem era o oficial de dia.
— Sou eu, Capitão.
— Não, você não é o oficial de dia.
— Muito obrigado, então vou-me embora.
— Não, não é isso. É que você está sem a arma e oficial de dia tem que estar armado.
— Capitão, o senhor tem coragem de dar-me uma arma? Eu não sei atirar!
No outro dia estava no boletim da ordem do dia-“Instrução de tiro ao Ten Pereira”
Lá fomos, eu, o Tem Loan e um sargento, ao stand de tiro. Por qualquer sorte, o tiro mais preciso foi o meu, dando-me o direito de chegar ao cassino, na hora do almoço e esnobar com o Cap Herval, dizendo que me achasse instrutores mais competentes. Mesmo assim nunca usei armas. Dizia que era muito baixo e que se pendurasse uma arma ela bateria no chão. O subcomandante não se aborreceu por isso, tolerando minha condição de Ten médico, sem competência para usar armas.
Nessa época eu já estava perfeitamente adaptado àquela condição de um soldado, cumprindo uma missão, não havendo mais nada que me preocupasse.
O contacto com os presos
A maior ansiedade ao chegar ao quartel era ver Darcy Ribeiro. Como seria esse encontro? O que falar com ele? Como me aproximar?
Pedi ao Ten Ivo que me levasse ao local onde ele se encontrava, para tomar conhecimento da situação. Logo de manhã, após o café dirigimo-nos ao local tão esperado. Quando descíamos vimos a figura impoluta do Professor, com o pé apoiado na mureta, fumando, olhando, absorto, para a baia. Havia aquele respeito pelo Professor. Ten Ivo me mostrou, falando baixo e dizendo:
— Esse é o Professor Darcy Ribeiro, um comunista.
Eu me mostrei admirado, não demonstrando maior interesse. Outros estavam sentados, jogando damas, Cap Bandeira, Sargento Campos e outros dois. Fui apresentado e demonstrei cordialidade. Precisava da amizade dos presos não políticos para conseguir chegar aos outros sem despertar desconfiança. Darcy Ribeiro não ficava junto aos demais, acho que por recomendação da direção. Ficava isolado, bem ao fundo daquela ruela, muitas vezes em horários diferentes.
Quando descíamos para o portão das cavernas, Ten Ivo me dizia que ali estavam os presos perigosos de Caparaó. Eram soldados do exército que se aventuraram numa guerrilha na serra de Caparaó, em Minas Gerais. Estavam todos presos, demonstrando o absoluto fracasso na empreitada na qual se envolveram. Sub-Tem Itamar, sargento Araken, sargento Amadeu, um civil, Humberto Trigueiro Lima e outros. Esse levante fora idealizado por Darcy Ribeiro e pelo Professor Bayard Demaria Boiteaux, também presos, na parte de cima, em companhia do Capitão Juarez, o oficial graduado do movimento. Diziam que o mentor desse levante era Leonel Brizola. Brizola, Darcy Ribeiro e Professor Bayard eram muito amigos, podendo ser verdadeira essa afirmativa. Em outra caverna, mais ao fundo, estavam os irmãos Manes, Paulo Roberto e Sérgio Ubiratan. A história desses dois é contraditória e eu relatarei mais à frente. Soldados e sargentos do exército, cumprindo suas penas, conviviam com os políticos, nesse lugar.
O lugar era interessante. Uma enorme caverna, formando uma espécie de barracão, tendo à frente o mar e com a única saída fechada pelo portão de ferro. Ninguém se aventuraria a sair pelo mar, pela altura da pedra que teria que pular. Isso não era pensado. E não havia naquele povo nenhuma intenção de fuga. Um dia ouvi uma conversa do Sub-Ten Itamar dizendo que se lhe mandassem à cidade de Niterói, sozinho, para uma consulta médica, ele voltaria, sem nenhuma dúvida, pois isso significava a segurança de sua família que continuava recebendo os seus honorários, regularmente. Se fugisse, perderia essa condição. Parecia ser verdade, embora tivesse havido fuga. Itamar parecia ser o líder desse grupo, embora Humberto Trigueiro Lima fosse o mentor intelectual. Humberto era irmão do cineasta Walter Lima Junior, casado com Anecy Rocha, irmã do Glauber Rocha e atriz de sucesso. Era muito engraçado eu estar na entrada do presídio com se estivesse fiscalizando as bolsas das pessoas e ver a cara de revolta da Anecy Rocha, me abominando. Depois que conversei com ela e com seu marido, Walter Lima Júnior, ela ficou mais cordial. Na verdade eu os abordei porque gostava deles, queria me aproximar, não podendo deixar de ser ali, naquele momento, um militar que cumpria sua missão. Com o Walter acabei falando até sobre cinema, quando ele demonstrou interesse em conversar comigo a respeito. Eu ficava sempre atento, querendo ver a carinha bonita da Anecy, miudinha, sardenta, com nariz arrebitado, demonstrando uma força moral muito grande. Depois de minha saída do quartel, Humberto foi libertado após um seqüestro do embaixador da Alemanha, sendo levado ao Chile. Hoje sei que ele é funcionário da Fiocruz, no Rio de Janeiro, vivendo bem. Walter Lima Junior continua fazendo filmes e Anecy faleceu precocemente, logo depois daqueles dias.
As pessoas de Caparaó eram dignas. Pessoas sérias, respeitáveis, sinceras. Com Humberto, Itamar e Amadeu, na parte baixa e com Prof Bayard, Cap Juarez e Darcy Ribeiro, na parte de cima, havia um diálogo inteligente, sendo prazerosa a conversa que eu tinha com eles.
Somente três pessoas ficaram sabendo que eu estava ali para protegê-los: Prof Bayard, Amadeu e Humberto. Havia um compromisso de não se divulgar esse fato a ninguém, para proteção de todo mundo. Não sei até que ponto essa intenção foi cumprida, mas acho que o bom relacionamento que eu consegui com eles foi mesmo por conta do convívio, não sendo dependente de minha condição.
A vida de presidiário era, naturalmente ruim, pelo fato de haver uma limitação de liberdade, mas eles conseguiam torná-la agradável com as inúmeras atividades que desenvolviam. O Prof Darcy Ribeiro me disse que conseguia sentir-se bem, lendo e que lia quatorze horas por dia. Nossa primeira conversa foi muito rápida. Eu cheguei até uma distância de uns dez metros de onde ele estava, sempre com o pé na mureta ou caminhando lentamente. Fiquei na mesma posição que ele e arrisquei um bom dia. Ele respondeu sorridente e ficou quieto.
— Tudo bem Professor?
— Tudo bem, como vai você?
Perguntou-me se eu era o novo médico do quartel e foi logo dizendo que tinha um problema no ouvido que lhe dava muitos aborrecimentos. Disse que gostaria que eu o examinasse, em um dia qualquer.
Eu conversava com ele falando baixo e olhando para o mar, evitando que as pessoas que estavam ao longe percebessem que conversávamos. Nas outras vezes, ele mesmo já chegava mais perto para me cumprimentar. Não falava de política e não puxava assunto mais longo, limitando-se coisas do tempo, de sua saúde do local. Parecia gostar de conversar, mas tinha receio de prolongar o assunto. Um dia eu lhe falei que o admirava muito. Disse que o vi, pela primeira vez pela televisão, quando era ministro da Educação, com apenas trinta e poucos anos. Ele agradeceu, com um pequeno sorriso. Sempre que havia uma oportunidade eu me aproximava para uma conversinha rápida.
Depois ele passou a me solicitar que o encaminhasse à policlínica para fazer tratamento do ouvido. Eu percebia que era mais para dar uma voltinha pela cidade e não via possibilidade de um homem daquele porte tentar uma fuga que viesse a me comprometer. Muitas saídas eu lhe autorizei, sabendo que lhe fazia um bem.
A presença do Prof Darcy Ribeiro no presídio conferia ao local uma condição especial. Os jornais estavam sempre falando de seu nome. Um dia eu lhe disse que ele fora citado na Última Hora e ele sorridente me disse que era por ser amigo do Samuel Wayner.
Não durou muito esse convívio. Logo ele foi para outro local e, depois foi exilado para a França. Voltou ao país quando descobriu um câncer no pulmão e disse que queria um salvo conduto para ser operado pelo Prof Jesse Teixeira. Os jornais diziam que não havia nenhum câncer e que ele usou essa situação como um cavalo de Tróia para vir ao Brasil. Não era verdade, ele realmente estava doente, mas com uma força descomunal permaneceu muito tempo útil ao país, como Senador e Vice-governador. Lembro-me de que quando não havia mais solução para o seu caso clínico, fugiu do hospital, permanecendo numa cidade do Estado do Rio terminando seu livro “O povo brasileiro”, só se entregando para a morte quando estava tudo concluído.
Darcy Ribeiro foi um dos homens mais importantes deste país, em todos os tempos, um intelectual de altíssimo nível, professor, antropólogo, fundador da Universidade de Brasília, autor de livros fundamentais para nossa história, político exemplar e eu sinto-me extremamente orgulhoso de tê-lo conhecido e de ter feito uma coisinha insignificante a seu favor. Valeu a pena ter me aventurado.
As pessoas presas, naquela época, eram marcantes. Cada um tinha a sua história, seu jeito, sua vida. Havia condições especiais que conferiam a um ou a outro alguma notoriedade. Era o que acontecia com o Prof Bayard. Eu o conhecia participando de algumas passeatas e o admirava por informações de colegas do Pedro II que o admiravam muito pelas suas qualidades de mestre e amigo. Era um intelectual. Já com idade mais avançada, não sendo nenhum atleta, não praticando nenhuma atividade física, com seu corpo branco, mãos finas e pernas sem habilidades esportivas e, mesmo assim, sendo solidário com os amigos, participando com eles no jogo de futebol de salão, sendo o goleiro do time. Não era habilidoso, não praticava as defesas necessárias e, muito menos, brilhantes, mas era de uma dedicação ímpar. Machucava-se todo, arranhando os joelhos e os cotovelos porque se empenhava como ninguém para fazer bom papel, defendendo seu time. Fazer bom papel era como uma obrigação, compensando sua falta de formação atlética. E acabava se tornando um ídolo para os demais, com todos vendo no seu esforço uma prova de seu bom caráter.
O Prof Bayard era um conselheiro para os demais. Todos o ouviam, pois ele procurava transmitir tranqüilidade, parecendo saber que aquilo que estavam vivendo fazia parte de uma luta, de um caminho a percorrer e estar preso naquele momento faria parte de um contexto.
Quando eu lhe disse que podia confiar em mim, considerar-me um amigo, ele lacrimejou. Apertou minha mão com força e pediu-me para não me expor, pois eu seria muito útil a todos se me mantivesse em silêncio. Cada vez que nos cruzávamos nas dependências do quartel, ele me cumprimentava respeitosamente, não deixando transparecer nenhuma intimidade. Recorria aos meus cuidados quando se feria, mais para estamos próximos, por algum tempo e menos pelo curativo, pois ele os tinha em seu quarto.
Nas poucas vezes em que falamos em política ele se mostrava ansioso, temendo comprometer-me.
Quando eu me despedi, ganhei dele um lápis verde, trazido da China. Ele me disse que gostaria de me presentear com algo de valor, mas na situação em que se encontrava isso não era possível. Guardei por muito tempo aquele lápis, como uma lembrança valorosa do querido Professor, até que alguém inadvertidamente o apontou como a um outro qualquer e eu, um tanto triste pelo fato, nuca mais o vi. Também me deu um livro, autografado por ele e por tantos outros, seus companheiro de prisão. Esse livro está comigo e, de vez em quando eu o pego revendo as assinaturas e me recordando de tantas coisas boas que me aconteceram.
Há pouco tempo vi o nome Bayard Demaria Boiteaux citado na coluna de uma jornalista, no Rio de Janeiro. Comuniquei-me com ele, mas o seu Bayard é muito jovem, talvez filho do Professor.
Amadeu foi o preso com quem mais me comuniquei. Contava-me sobre as aventuras em Caparaó, fazendo autocrítica, verificando, então que suas expectativas eram absurdas. Jamais conseguiriam o objetivo de ameaçar o governo com a insignificância dos recursos que possuíam. Viram-se, de repente, numa pequena cidade, sem saber bem o que fazer, sendo observados pelos moradores, tentando inutilmente conseguir algum apoio, mas vendo que seria muito difícil chegar aos objetivos propostos. Eram conformados na prisão, não procurando qualquer tipo de rebeldia. Eu não conseguia perceber nenhum contacto de fora com o pessoal de Caparaó. Humberto Trigueiro tinha contactos, mas ele era estudante, intelectual, irmão de cineasta, sendo um tanto diferente dos demais. Prof Bayard e Darcy Ribeiro eram figuras maiores e, por isso, mais mencionadas. Mesmo o Cap Juarez, oficial do Exécito era pouco reconhecido e pouco citado nos jornais. O movimento de Caparaó teve princípio e fim muito curtos, sem maior repercussão. Amadeu não parecia ser um ideólogo. Falávamos sobre Ovando Cândia na Bolívia, sobre Conn Benditt, na França e muito pouco sobre política no Brasil. Ele e seus companheiros, Itamar, Araken, Cap Juarez, mais pareciam soldados cumprindo ordens. Não teorizavam sobre a situação política da época.
Às vezes ele me passava alguma preocupação, conversávamos a respeito e, dentro do possível, eu procurava resolver. Isso aconteceu, uma manhã, quando iniciou o expediente e, quando eu me aproximei, notei que ele queria me comunicar alguma coisa. Distanciamo-nos do Tem Ivo e ele me disse que dois presos estavam na solitária. Fui saber e eram dois militares presos na véspera que tinham se rebelado, desobedecendo as ordens e colocados na solitária pelo Oficial de Dia, daquela noite. A preocupação do Amadeu era pelo fato inusitado. Nunca aquele cubículo úmido havia servido para punir nenhum preso.
Procurei o Tem Ivo e coloquei a ele minha preocupação:- Ten, estão de olho em nós, lá fora. Nessa cela úmida tem ratos. Se um rato morde um cara desses, transmite Leptospirose e só nós dois seremos os responsáveis, eu por ser o médico e o senhor por ser o chefe do presido. Já imaginou o tamanho do problema?
Tem Ivo pensou, coçou o bigode e me deu razão. Imediatamente saiu falando alto que iria tirar os presos daquela cela, que a pena já tinha sido cumprida, mas que não tornassem em outra.
No pouco tempo que os dois militares permaneceram lá, fizeram poucas amizades. O Amadeu me dizia que não eram de confiança, sendo presos por malandragens que fizeram.
Fiquei sabendo que o Amadeu foi para Londrina, no Paraná, tendo se aposentado como funcionário da Câmara Municipal. Tentei contacto com ele, mas não consegui.
O Araken era um sujeito diferente. Pouca conversa, um tanto arredio, mas, segundo o Amadeu, boa pessoa. Fazia muita ginástica, mantendo-se bem magrinho, em boa forma física. Talvez isso tudo já estivesse programado, pois um dia, ao ser levado à Policlínica do Rio de Janeiro, para exame médico, desapareceu. Era escoltado pelo sargento Costa que contou a história de que, chegando à Praça Quinze o Araken lhe solicitou permissão para ir ao banheiro e ele sem perceber como, quando deu por conta, o preso já não mais estava por ali. No dia seguinte os jornais noticiaram. Sargento Costa ficou detido. Lá de cima, na janela de seu quarto, ficava vendo o movimento do quartel, parecendo não se importar muito com o acontecido. Às vezes até sorria. Na época as teses levantadas eram de que, ou ele era um lerdo ou facilitou a fuga. Não havia qualquer indício de que o Sargento Costa tivesse alguma vinculação política. Araken nunca mais foi visto. Para Amadeu e os outros colegas a fuga foi comemorada como um sucesso.
Os irmãos Manes estavam presos na condição de políticos. O velho Manes se envolveu num problema, em São Paulo, com o Gal Amaury Kruel e Adhemar de Barros, de quem se dizia amigo.. O comportamento de ambos estava longe de significar um envolvimento político. Não demonstravam nenhuma ideologia e não explicavam direito qual a motivação de seus atos. Eram rebeldes, constantemente criando problemas ao Tem Ivo. Um dia, pela madrugada, arranjaram uma confusão e levaram um tiro do soldado Joaquim que estava de guarda e não titubeou. Afirmava, dando risadas que com ele era assim: — Bobeou, leva chumbo. Mas, o tiro foi dado na parede, não havendo intenção de ferir ninguém.
Não percebi por parte dos presos políticos nenhuma solidariedade aos irmãos Manes, demonstrando não serem eles parceiros dos demais. Amadeu chegou a me dizer que eles eram muito imaturos, garotões irresponsáveis e que eu me cuidasse com eles.
Na verdade eles eram constantes nas minhas conversas. Nunca houve qualquer animosidade, mesmo depois do tiro, quando eu procurei adverti-los de que poderiam criar problemas maiores.
Nunca mais soube dos irmãos Manes.
Outro preso com o qual me relacionei muito bem foi o Navega. Era um jovem, morador em Niterói, ativista político. Muito inteligente, bem informado, deveria ser membro de algum grupo mais organizado. Às vezes se rebelava, reivindicando alguma coisa. Parecia um tanto irado, inconformado por estar preso. Falava-me sobre o Prof Darcy Ribeiro e sobre o Prof Bayard Boiteaux, afirmando sempre que os admirava muito sendo, no seu ponto de vista, figuras importantes da luta política daquela época.
Quando foi solto eu o encontrei, um dia, atravessando de barca, lendo um jornal e me aproximei. Ele ficou muito alegre, me abraçando e querendo saber notícias dos amigos do presídio. O Navega era professor e tenho certeza que está hoje vivendo bem, cuidando de sua vida. Nunca mais vi seu nome citado em nenhum jornal.
Um fato curioso aconteceu num dia em que eu estava de serviço e fui acordado, tarde da noite, pois chegaria um preso perigoso. Tem Ivo foi ao quartel e preparou um aparato enorme, com muitos soldados armados, cada um numa posição estratégica para domínio da situação. Chegou um furgão, parando no meio do pátio. Aos gritos, Tem Ivo comandava as ações, como se daquela viatura fosse sair um super-homem. Saiu um homem simples, assustado com aquela situação e foi encaminhado à caverna. Era o Albery, um sargento da Brigada Militar (PM) do Rio Grande do Sul que se envolveu num movimento chefiado pelo Gal Jeferson Cardin, no sul do país.
O Albery logo se aproximou de todos, sendo educado e cordial. Jamais deu qualquer demonstração de ser perigoso. Era mais olhado por ter chegado com fama, mas era absolutamente igual aos demais. Não houve comentários sobre esse movimento chefiado pelo Gal Jeferson Cardin e, talvez por isso, a estada do Albery no presídio não teve maior repercussão.
Anos depois, li uma notícia nos jornais dizendo que um ex-guerrilheiro havia sido morto, levando um tiro pelas costas quando caminhava pacificamente por uma estrada no Paraná. Era o Albery.
Fatos marcantes que merecem ser lembrados.
O primeiro fato marcante me deu algum receio, mas acabou bem sucedido, graças à bondade e compreensão do Cap Paulo, então subcomandante.
Estava sossegado em minha casa, num dia à noite, quando recebo a visita do Dr. Celso Cerqueira Dias, médico em Niterói e meu antigo companheiro de plantão na Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima, em São Gonçalo. Dr. Celso me falou que estava envolvido num grande problema e que só eu poderia resolver. Disse-me que o Lavoura, antigo político de São Gonçalo, prefeito por várias vezes, estava preso e ninguém sabia por quê, havendo a necessidade de um contacto com ele para que pudessem providenciar sua libertação. Lavoura era um político muito benquisto, com seu jeito de roceiro, com fala popular, chapéu na cabeça, terno largo e pele queimada, como os moradores nas fazendas. Era considerado conservador, não havendo a mínima possibilidade de estar preso por problemas políticos. Também era considerado um homem honesto, o que era verdade e era muito respeitado, tanto que hoje a Câmara de Vereadores de São Gonçalo tem o seu nome. Dr. Celso trabalhava na Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima, cujo dono, Armando Sá Couto era secretário de Saúde de Lavoura. Eu fora plantonista nessa maternidade e conhecia todos os meandros da política de São Gonçalo. Conhecia o Lavoura e gostava dele.
Algo precisava ser feito, mas precisávamos de uma boa saída. Dr. Celso, muito esperto, criou um álibi, dizendo que o Lavoura havia sido mordido por um cachorro, na véspera da prisão, necessitando ser vacinado com urgência, sob risco de morrer, por conta desse acidente. Havia um ferimento em sua perna, produzido por uma intercorrência qualquer e providencial para confirmar o álibi. Combinamos que eu seria procurado por ele, na manhã seguinte, como um desconhecido e daríamos início à operação programada. Seria difícil, pois quando alguém era preso, por questões políticas, deveria ficar incomunicável por certo tempo, durante as investigações.
Estava em minha sala, atendendo a algum soldado quando sou chamado à recepção. Lá estavam o Dr. Celso e o Cap Paulo e iniciamos a conversa. Dr. Celso, com um aspecto de muito preocupado, falou sobre o acontecido, forçando meu aval para confirmar a gravidade e necessidade de providência urgente. O Cap Paulo foi extremamente gentil, entendendo o nosso problema e autorizou a entrada do Dr. Celso para a aplicação da vacina que era uma ampola de água destilada trazida por ele.
Quando entramos na sala o Lavoura levou um susto.
— O que está acontecendo?
— O Senhor precisa tomar uma injeção e nós estamos aqui para ajudá-lo, disse o Dr. Celso, sem querer discutir o assunto, temendo que o Lavoura desmentisse a mordedura de cachorro, estragando nosso álibi. Houve um desconforto, não havendo maneira mais adequada de se proceder naquele momento, pois o que se queria era conversar com o preso. Parece até que o Cap Paulo deu uma ajuda. Foi saindo, dizendo que ficássemos à vontade, pois ele iria tratar de outro assunto. Dr. Celso achou que ele colaborou deliberadamente. Não acredito. Acho que ele era mesmo de boa índole, não querendo criar aborrecimentos, por isso deixou-nos à vontade.
Tivemos uma conversa muito rápida, com algumas frases sobre o acontecido e pronto. Estava quebrada a incomunicabilidade do Lavoura, fato sem a maior importância, pois logo depois ele foi solto e os motivos da prisão devem estar engavetados até hoje.
Um segundo fato marcante se deu no dia do jogo do Brasil com o Paraguai, quando nos classificamos para a Copa de 70. Um jogo incrível, onde eu só consegui um lugar após ser arrastado, arquibancada a baixo, vendo que se não me segurasse acabaria caindo lá de cima. Agarrei-me a tempo ficando sentado de lado, atrás de um outro assistente que me permitiu ficar ali. Estava exatamente na linha do gol onde o Tostão fez a jogada, lá na direita, mandando a bola para a área para o gol do Pelé. Foi uma festa magnífica e depois desse jogo fomos campeões do mundo, no México. Mas o fato interessante foi na seqüência. Chegando a minha casa, minha esposa me disse que recebera uma visita de um soldado convocando-me para ir ao quartel onde ficaríamos de prontidão. Depois ficamos sabendo do incidente acontecido com o Gal Costa e Silva, então Presidente. Dizem que ele sofrera um Acidente Vascular Cerebral, ficando muito tempo acamado, sem conseguir tomar decisões. João Saldanha, técnico da seleção do Brasil, disse, anos depois num programa Roda Viva, da TV Cultura que o Presidente havia morrido e devidamente embalsamado até que resolvessem quem ocuparia seu lugar no governo. O fato é que algumas fotos foram publicadas, com ângulos especiais, deixando mesmo alguma dúvida sobre a vida ou morte do presidente.
Mas, a ordem era para ir ao quartel.
Foi um momento interessante: todo mundo com uniforme de Campanha, armados, com capacetes, como se, de repente, fosse acontecer uma invasão. Poucos dormiam, numa sensação de grande insegurança. Assim ficamos.
No segundo dia, logo pela manhã, um preso ouvindo um programa da rádio tupi, de muita audiência, na época, recebeu um comunicado de meu sogro de que eu deveria entrar em contato, pois minha esposa grávida estava passando mal. O recado me foi trazido pelo soldado Roboredo, dizendo que se eu quisesse faria todo o possível para conseguir uma ligação, o que era quase impossível, naquela época. Enfim, conseguiu e fiquei sabendo que minha esposa entrara em trabalho de parto e estava sendo levada à maternidade.
O Major Adjanir me permitiu sair, quebrando, mais uma vez as normas do quartel, pois ninguém, estando de prontidão, poderia sair.
Foi o pior momento da minha vida. O parto não foi feliz e acabamos perdendo nosso filhinho Marcílio, que, desde então, descansa no São João Batista. Tenho uma única foto de meu tempo no quartel onde aparecemos, eu e minha esposa, muito tristes.
Essa foto foi tirada por um amigo que me visitou, num domingo, quando eu estava de serviço. Tirou outras fotos e, depois me deu um pânico, achando que ele pudesse se utilizar delas para alguma ação militar, visto ser ele um militante de esquerda. O fato não ocorreu, nem era essa a sua intenção e o pânico acabou.
Um momento que me provocou arrepios ocorreu num dia em que uns visitantes foram ao presídio e, curiosos, quiseram visitar tudo, inclusive as cavernas, onde estavam os presos de Caparaó. Tudo muito em ordem, com muita disciplina e cordialidade, num momento de descontração e alegria. Ficamos, por alguns minutos conversando ao redor das mesas onde os presos construíam suas coisas, como se fosse uma marcenaria. Não havia armas, naturalmente. Algumas facas sem ponta, uns arames e nada que pudesse trazer algum risco ou problema.
O susto ocorreu quando eu, dando uma volta em torna da mesa, resolvi apoiar-me na sua borda, com a palma da mão na parte de cima e com os dedos na parte de baixo, como se estivesse segurando aquela borda. Senti meus dedos tocarem numa serra. Imaginei que se tirasse a mão com rapidez, ela poderia cair e ser vista por todos. Percebi que o Itamar e o Amadeu tremeram. Disfarçaram, ficaram quietos, olharam para outro lado e eu segurando a borda da mesa com meus dedos prendendo uma serra. Tenho a viva impressão de que era uma serra utilizada para os serviços domésticos, no preparo de filetes de madeira para construção dos abrigos que faziam para as visitas íntimas. Mas, como explicar, de repente, que uma serra fora descoberta dentro de uma cela do presídio?
Permaneci longo tempo com a mão prendendo aquele objeto sob a borda da mesa. Cheguei a temer que ela caísse quando eu a soltasse. Mantive a calma, fui soltando o dedo devagarzinho e, sem que ninguém percebesse qualquer alteração, saí do lugar, para alívio de todos, inclusive para mim próprio.
Nunca esse assunto foi comentado por ninguém. Acho que os presos não poderiam comentar, pois seria confessar um delito. Pode ser também que aquela serra não tivesse a menor importância e o melhor mesmo era ser esquecida. Na verdade seria muito difícil com um instrumento tão frágil se conseguir uma fuga. Valeu como um momento de grande tensão.
A viagem de barca, desde a praça XV até o quartel, e vice-versa, era um atalho bem interessante e econômico, nos liberando do transporte pela Barca Rio-Niteroi e, depois do ônibus, até Jurujuba. Quem estava no quartel via a Baia da Guanabara na maior calmaria: mar tranqüilo, brilho do sol, gaivotas voando, ás vezes alguns golfinhos por ali, uma beleza. Assim que iniciávamos a viagem, e nos aproximávamos do centro da Baia, começava o medo. É que, lá no meio, havia uma marola que chegava a isolar a barca do continente, ficando entre duas ondas enormes, sem se ver nada ao redor, a não ser onda. Dava um arrepio, só acalmado pela serenidade do barqueiro que tranquilamente comandava tudo, sem nenhum receio, dando-nos a certeza de que estava tudo em ordem. Mas, em dias de chuva eu arranjava uma desculpa para vir de ônibus, temeroso de enfrentar aquelas ondas gigantescas. A barca era como aquelas dos pescadores, com capacidade para pouca gente, muito leve e, no meu ponto de vista, insegura.
Lembro-me, um dia, onde vi a disciplina militar ser executada com todo seu rigor. A barca saia num horário determinado, com pequenas tolerâncias. Sempre alguém correndo para não perder a condução, com aquela brincadeira de que o fulano iria nadando e coisa e tal. Um dia, alguém nessas condições se atrasava e o Tem Loan, com alguma pressa, ordenou que o barqueiro desse a partida, mesmo vendo que um retardatário estava vindo, atrasado, carregando algumas bolsas, tentando se apressar. O Cap Souza, nosso dentista, vindo a ser oficial por ter feito escola de saúde, sem cursar a Aman, mas não menos poderoso por isso, assumiu o comando, o que não era seu costume e, na condição de oficial mais graduado naquele momento, enquadrou o Tem Loan e fez o barqueiro esperar o atrasado. O clima ficou ruim naquela viagem, mas o cap Souza fez valer seu posto. Claro que a raiva que já tinham do Cap Souza, aumentou desde então.
Acho que o momento mais tenso e significativo de minha participação no exército ocorreu quando o Sargento Airto me falou que estava havendo um movimento de rebelião, no presídio. Por conhecer os meandros do local, não dei muita importância, não acreditando na veracidade do comunicado. Mas, um dia, o quartel recebe a visita do General Carlos Alberto, comandante da Região Militar. Toda aquela pompa para recebê-lo, com formaturas e toques especiais, seguidos de uma palestra no cassino dos oficiais. O motivo da vinda do General era comunicar que eles descobriram que havia um plano de fuga e que deveriam preparar a defesa. Naturalmente que aquilo me arrepiou. Alguma coisa eu deveria fazer, pois para a defesa estavam armando todas as casas que ficavam na saída do quartel e assim que houvesse a propalada fuga, haveria uma carnificina.
Saí pensando numa solução. Não poderia falar com ninguém dos presos, pois haveria risco muito grande de estar sendo vigiado. Não poderia criar um alarme, pois se houvesse qualquer vazamento das informações, eu estaria entre os suspeitos.
Acho que fiz a coisa certa. Confiei em um amigo e fui com ele à Praça XV, num dia de visitas, onde, por certo, iria ver alguém conhecido, que estaria indo visitar um parente. Escondi-me atrás de uma pilastra e indiquei a esse amigo, uma pessoa que eu via a toda hora no quartel. O amigo deveria passar a ele essa informação e solicitar absoluto sigilo. Em seguida desapareceria torcendo pra nunca mais ser visto por aquela pessoa.
Não sei se a informação do levante era falsa ou se meu recado chegou. O fato é que não houve qualquer levante e eu fiquei muito feliz por isso. Às vezes fico pensando que aquilo poderia ser verdade e que eu consegui salvar muita gente.
Fui cumprindo o meu tempo e minha missão. No final do período me restava a satisfação de ter feito o que fiz. Minha meta era voltar à minha terra e recomeçar a minha vida profissional.
Um dia o Cap Juarez foi libertado. Foi uma alegria entre os presos. A sensação de liberdade, a idéia de que ele saindo, todos também sairiam, um dia. Eu era o Oficial de Dia. O sargento Lanceiro combinou comigo uma brincadeira envolvendo aquele momento. Eu deveria revistar sua bolsa na hora da saída, o que era um dever, mas não era realizado, por respeito às pessoas com as quais convivíamos há tanto tempo. Mas, assim foi. Fiquei esperando na rampa de saída e lá vinha o Capitão, todo feliz, sorridente, carregando sua bagagem.
Ficou transtornado e decepcionado quando eu lhe pedi, na frente de todos os outros, que abrisse a mochila para ser revistada. Olhou-me com ódio e decepção. Esperou uns segundos, me encarando e depois se abaixou para abrir a mochila. Dentro dela havia uma pedra, colocada pelo sargento Lanceiro que sorrindo, disse ao Capitão que ele estava roubando um bem do quartel e, com isso, teria sua saída suspensa.
Foi uma gargalhada geral. O Capitão entendeu que era tudo brincadeira e me abraçou cordialmente.
Algum tempo depois, passando de ônibus por Engenho de Dentro, avistei o Capitão andando pela calçada.
Nunca mais tive qualquer notícia daquele homem sério, competente e meu amigo.
A chegada do fim do ano e a perspectiva de dar baixa foi me dominando, tornando-me inquieto e meio raivoso. Estava saturado de ir todos os dias ao quartel depois de já ter considerado com a missão cumprida. Embora gostasse dali, algumas coisas me magoavam. Não considerava o major Adjanir de má índole, mas não via nele vontade para o comando. E isso era percebido por todos os oficiais que o criticavam, a todo o momento. Um dia fui ao seu gabinete solicitar que fosse feita manutenção no teto do almoxarifado, pois quando chovia havia infiltração de água, comprometendo os alimentos. Ele deixou-me em pé, na sua frente por longo tempo, certamente uns quinze minutos, sem nada responder e eu entendi aquilo como um castigo ou uma advertência. Tem Loan me confortou dizendo que a coisa era assim mesmo e que quando o major não sabia resolver um problema ele se fazia de estátua. Outra vez fui inspecionar a carne que seria servida aos soldados e a achei muito feia. Era carne congelada, sendo uns filetes grudados nos ossos, de cor escura, com alguns pontos bronzeados. Fui conversar com ele sobre a possibilidade daquela carne estar deteriorada e ele nem me deu atenção, mandando o soldado levá-la para a cozinha, e pronto. Achei aquilo desconsideração e desrespeito. Tem Loan disse que eu era um sonhador pensando que poderia barrar alguma coisa no quartel.
Também me aborrecia ver coisas sem a devida seriedade serem desenvolvidas. Eu era um jovem sério, querendo desenvolver bem meu papel e não me acostumaria com as burocracias do exército. No dia da Bandeira eu fora designado para preparar trecho alusivo à data para ser lido na hora da formatura. Passei um tempo pensando em uma maneia de fazer uma coisa bem feita, pesquisando alguns dados sobre a data, tornando a locução interessante. Procurei o Cap Herval tentando receber alguma orientação a respeito. Ele simplesmente me disse que fosse à biblioteca e que lá eu encontraria o que procurava. Assim fiz. Quando me aproximei da porta de entrada vi um sargento se dirigir à estante de onde trouxe um livro e o abriu numa determinada página. Ele já sabia que era a minha missão preparar aquele texto e já me esperava com tudo pronto. Eu, espantado, o interroguei sobre o que seria aquilo e ele, calmamente me disse que eu deveria copiar o que estava escrito naquela página e apresentar ao Capitão. Achei estranho e tentei argumentar. Ele me disse que aquele texto era próprio para a data e que, em todos os anos era o mesmo a ser lido na formatura. Peguei, muito constrangido e fui mostrar ao Cap Herval que, sorrindo, me disse:
— Tem Pereira, no exército nada se cria, tudo se copia.
Na minha despedida cometi uma imprudência da qual me arrependo e, se um dia me encontrasse com o major, certamente me desculparia. Quando recebi minha ordem de baixa fui ao seu gabinete comunicá-lo de minha saída. Ele pegou o documento, leu detidamente, pensou e me perguntou se eu gostaria de permanecer mais um tempo com eles. Eu respondi:
— Nem como General, major.
Percebi que ele ficou furioso, olhando para a janela, por alguns segundos e sem dizer nada, o assinou. Foi um ato inesperado, de desrespeito e inoportuno.
Mas, estava livre e iria começar minha vida profissional em Taubaté, onde passei todos esses anos, criei meus filhos e hoje me delicio com os netos.
As imagens do Presídio nunca fugiram de minha mente. Guardo todos os diálogos, todos os medos, todos os atos e me lembro muito bem de todas as pessoas, inclusive daquelas, cujos nomes eu me esqueci. Dentre esses está o Tem que criou a situação para que eu passasse a dar serviço e um senhor, muito engraçado, civil que era o responsável pelo cassino dos oficiais. Só falava em futebol, demonstrando não se interessar por mais nada. Lembro-me de uma discussão armada por ele, numa das poucas vezes em que falou de outro assunto, quando bradava irritado dizendo ser mentira que o homem tenha chegado à lua. Segundo suas teorias isso era impossível e aquilo tudo era obra do cinema americano, iludindo a todos. Era um senhor bem mais velho que os outros, antigo funcionário do quartel e muito querido pelos oficiais por ser atencioso na hora de servir as refeições.
Às vezes imagina um sonho de ir lá e encontrar a todos. Fazer lá um almoço, conversar com eles, oficiais, soldados, presos, todos em perfeita harmonia, já que tudo se transformou e hoje não há mais superiores e subordinados nem o posicionamento político existente à época. Hoje poderíamos colocar o Cap Juarez, que deve ser Coronel ao lado do Tem Loan que deve ser general, além dos Manes, do Itamar, do Amadeu, do Sargento Costa. Será que o João progrediu na vida? Será que o Carlos é um sargento da reserva? Será que o Ramalho continuou militar? Será que o Navega é um homem importante?
Quantos já morreram?
Numa mesa bem grande naquele pátio estaríamos todos irmanados, confirmando que na vida tudo tem seus momentos, mas passa, não havendo espaço para rancores. Hoje seriamos todos amigos e nos abraçaríamos comovidos.
Não custa sonhar.