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Capítulo I
“Amor despedaçado”
O jato fretado pelo município de Vila dos Princípios retorna da capital paulista às 10 horas. Formada por dois empresários do ramo cultural, o prefeito e quatro vereadores, a comitiva segue para a prefeitura, trazendo ótimas notícias ao lugarejo.
Após rodadas de negociações, o Governador resolveu conceder à cidade, em regime parcelado, quantia necessária para a construção de um Centro de Saúde, na periferia. Indiretamente, este suposto presente projetaria a eleição do respeitável vereador, George Dumont, ao cargo máximo do município, o de prefeito. Além, é claro, de favorecer os milhares de famintos - munícipes da região.
Ao chegarem à prefeitura, George sente a foice da morte oscular sua alma, levando-o a uma súbita vertigem.
_Estranho! - Diz ele ao prefeito, Tanaka Santuku, seu melhor amigo, após sentar-se no braço de um sofá.
_O que foi George?- pergunta o mandatário.
_Não sei!...Está acontecendo alguma coisa! Está sim! E terrível... Parece aumentar a cada passo que dou. Premonição revel! O que será isto? O quê? Alguma coisa está apertando meu coração, de tal modo que o ar falta aos meus pulmões.
_Acalme-se!- pede ressabiado o prefeito. Deve ser cansaço... Você trabalhou muito nesses dias, foram longos períodos de negociações com o governador. Deve ser estafa. É, deve ser! Precisa beber algo, quer um vinho, uma vodka, um...? Precisa limpar a goela! É como eu sempre digo: falar com político é uma coisa cansativa... Aff! Ô gente ordinária! Não há como não se estressar...
_ Tanaka... – entrecorta-o o vereador.
_ Fale, meu filho! – diz, levando uma taça cheia de vinho à boca.
_ Você também é um político!
_ É mes-mo! – responde-lhe o prefeito, engasgando-se com o próprio “veneno”. Sempre me esqueço disso!
Duas horas se vão...
George chega a sua casa, uma mansão em estilo romântico, situada à região oeste da cidade. Ao entrar, pressente a solidão que assombra cada corredor e cômodo daquele palacete. Intrigado, procura pela esposa. Mas não a encontra! Cada vez mais angustiado, grita pela empregada.
_Onde está Catharine? Disse aonde iria? Diga-me!
_O senhor realmente não sabe?- ironiza a criada.
_Claro que não, caso contrário, não estaria aqui, postado diante de uma qualquer como você, perdendo meu precioso tempo... Hum! Ande, fale criatura, onde está Catharine? Fale!
_Enterrando o corpo de sua filha, ou não sabia?
_ Co-como? – questiona, com os olhos verdes a saltar da face. O que disse?
_ Ela tentou falar com o senhor o dia todo, mas seu celular estava na caixa postal. Ligou até para o palácio do Governador; de nada adiantou, o senhor não ouviu o seu pedido de socorro.
_Mas... pensei que fosse uma bobagem...Catharine sempre me liga para dizer coisas que podem ser proteladas...Eu...pensei...
_Pensou errado! – sentencia a empregada.
_ Que petulância é essa? Com quem pensa estar falando? – repreende o político. Saia daqui... Fora!!! Antes que minha ira se converta em violência.
_Não!- desafia a mucama. O senhor tem que ouvir umas verdades. Como pode deixar sua esposa com a filha à beira da morte? O senhor é um monstro! Sua ganância ainda o levará à destruição... – lágrimas contornam o rosto da mulher.
_Era o que faltava. Político assíduo com os compromissos nacionalistas, defensor nato da Constituição Federal como eu, ser afrontado verbalmente por uma filha da ralé, uma... uma insignificante peça da falha humana. Hum! Era o que me faltava! Só não a despeço agora porque...
_...porque eu jamais permitiria! – completa-lhe Catharine, entrando na sala.
_Catharine???!!!! – surpreende-se o defensor da lei.
O rancor é o elo que envolve estas duas pessoas neste momento. Com a face úmida, ela aproxima-se do vereador, olha-o profundamente e permanece em silêncio. Intimidado com a coragem da esposa, George também opta pelo silêncio. Cabe à mucama rompê-lo:
_Como está, Dona Catharine?
_Queria estar melhor, Ernestina! Quero agora me recolher à sombra de minha dor... Nada mais me importa nesta vida! – cai em prantos, sendo consolada pela criada.
Emudecido, George assiste àquela cena como se não fizesse parte da família. Sua face mesclava incompreensão e alguma compaixão. Uma compaixão tão finita que era quase impossível reconhecê-la.
_ Catharine... – arrisca-se. Como... você está?
_MORTA! – declara a mulher. Sem rumo, perdida dentro de mim. Você nos abandonou quando mais precisávamos George. Alana morreu pedindo sua presença.
_Sinto muito! Mas o povo precisava de mim, não me podia furtar ao direito de representá-lo ante ao Governador. Para isso fui eleito! Para representar o povo!
_Monstro! – sussurra Ernestina consigo mesma. Que Dona Catharine mande esse canalha para a rua...
_ Tenho pena de você! Porque mente! Mente para mim, para sua filha, para todos que o cercam e, o pior, para si mesmo. Suas palavras são belas, pena não passarem de simples fuga de um homem que abandonou a família durante a perda de um ente querido para viajar à Capital e buscar apoio à sua eleição para prefeito da cidade! O que não faz o homem pelo poder? Mata, rouba, violenta, e no mais, esquece a própria filha no leito em que era invadida pela leucemia... A menina morreu suplicando sua presença e onde estava, esposo meu? Em São Paulo! Conseguiu muito dinheiro para fascinar o povo e conquistar os votos que precisa para elegê-lo “dono da cidade”? Estou estarrecida... ainda ouço Alana gritar seu nome! Por que fez isso com ela... comigo? Por que nos odeia tanto? Por quê? Não se arrepende do que fez?
_Arrependimento??? Oh, Catharine, deixe disso! Não tenho do que me arrepender! Sabíamos que Alana morreria. Era certo! Estava tomada pelo câncer! Eu não poderia fazer mais nada por ela. Nada! O que tinha de fazer, já tinha feito! Você não entende, ela estava entregue aos braços da morte, o que eu poderia fazer para evitar essa fatalidade?
_E onde está sua compaixão, homem? – brada a mulher, pegando-o pelo colarinho do paletó. Ela era sua filha... sua filha!!! Como pode deixá-la quando mais precisava de você? Não estamos falando de uma pessoa estranha, alguém que aparece do nada, que não cultivamos nenhum sentimento. Estamos falando de nossa filha, um ser construído a partir de nosso amor, se é que você saiba o que realmente signifique essa palavra.
_Solte-me! –diz, empurrando-a contra o sofá. Entenda, pela nossa filha eu não poderia mover mais um dedo; pelo povo, ainda posso fazer muito. Veja que bom, logo terão tratamento de primeira no novo Centro de Saúde, com atendimento decente, bem diferente do Hospital Municipal, uma vergonha à cidade. Isso não é bom? Tá, posso ter errado em não ter ficado contigo, auxiliando-a nesta difícil fase de nossas vidas...
_...nossas vidas? Que ironia!
_Nossas vidas, sim! Também estou sofrendo, mas veja pelo lado bom: perdemos uma filha, mas ganharemos novas vidas, que antes estariam condenadas à morte como ela.
_Pare com isso, George! Pare com esse cinismo! Pare!!! Alana não merece isso! Deixe-a descansar em paz! Deixe-a! Você é um... um...monstro!
- chora sem consolo.
_ Cafajeste! – completa a empregada.
_ Você nunca amou ninguém. Nunca! Nem quando nos casamos existia amor; tudo foi pelo interesse, pelo meu dinheiro, este mal que me persegue desde a minha origem. Como pode ser tão frio? Alana não merecia esse desprezo, não merecia... Espero que um dia possa reconhecer seu erro e corrigi-lo da melhor maneira possível, se é que há como reparar um erro dessa magnitude. Desejo apenas que o remorso não o corroa até lá!
_ O povo está acima de qualquer interesse, de qualquer problema familiar!- repete George por duas ou três vezes, como se acreditasse mesmo em cada palavra pronunciada.
_ O poder está acima dos verdadeiros interesses, não o povo. Esta gente simples continuará morrendo mesmo com a inauguração deste Centro de Saúde. Neste país nada muda! Isso é conversa de político, basta ver o que você faz com a Ernestina, nossa empregada. Ela é do povo, por que não a trata com respeito? Por que ainda não chegou o dia da eleição, não é? Vou lhe dar um aviso: “a ambição é um veneno, quando ingerida em altas doses, o efeito pode ser macabro”! Pense nisso! Agora preciso me deitar, estou cansada. A você, infelizmente, todo o meu desprezo!
_Com quem pensa estar falando, sua... cretina? – o vereador deixa de lado a elegância e comprimi o pescoço dela contra a parede. Sou seu marido e exijo respeito! – vocifera, tomado por uma expressão doentia em cuja face se notam as primeiras gotículas de suor.
_DEIXE-A! – exige a criada, tentando separá-los. DEIXE-A, VERME DOS INFERNOS!
_Deixe-a, doutor! Pense nas consequências. O senhor é um homem público! O que não dirá a imprensa? – implora Joaquim, o motorista, que adentra a sala após ouvir de seu quartinho toda a gritaria. Senhor... a imprensa...
As palavras do chofer são como bombas, George solta a mulher, que cai ao chão com o sangue preso à face. Afasta-se bem devagar, fixando-se nos olhos atordoados de Catharine. Um lampejo de realidade lhe corre à vista, é quando decide subir para o quarto, reservando à Caixa de Pandora toda a insanidade de há pouco.
Apoiada à parede, Catharine percebe não ter mais forças para lutar contra as intempéries do destino e desfalece.