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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->Jonas Dark -- 14/04/2001 - 03:01 (Josiel Vieira de Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Embaixo dos seus pés havia um silencioso mundo feito de luz branca e ventos que balançavam furiosamente seus cabelos. Olhos fechados como os de um recém-nascido. Braços cruzados sobre o peito. Duas pequenas esferas o ladeiam, pequenas luas. A da direita está minguante e é vermelha. A da esquerda, azul, está crescente. Confusamente os cabelos negros são agitados pelo vento vindo do silêncio até que se transformam no café da xícara. Em silêncio vê o seu rosto sem expressão refletido nele; uma janela obscura para o nada. O movimento das pessoas do bar é percebido de uma maneira amortizada, assim como o barulho dos carros do lado de fora. Parece que uma armadura de óleo envolve seus sentidos; não devia ter bebido tanto. Agora o café não adiantava muito. Algo passa na velha televisão do bar; é Blade Runner.
A porta se abriu.
A mulher de óculos que entrou sentou-se.
— As pessoas já estão apavoradas. A cidade está enfrentado uma epidemia de vírus. Sua tarefa, doutor, é eliminar o surto antes que o medo se espalhe, pois ele pode ser pior do que a contaminação em si. Uma população em pânico é imprevisível.
— Ok.
Havia uma névoa no ar.
— Na verdade, doutor, tenho de confessar que estou preocupada. Muito preocupada. Ouvi falar em infestações parecidas em cidades vizinhas. Algo está escapando do controle.
Uma palavra indecifrável em néon aparecia no vidro embaçado da janela.
— Não – o doutor falou e deu um gole no café sem muita
convicção – está tudo sob controle.
A mulher de óculos ficou calada por uns instantes, tentando ler a palavra em néon.
— Bom... boa sorte, doutor Jonas Dark.
A mulher saiu. Jonas bebeu mais um gole de café. Sorte?
..................................................

Não existia no universo nada mais negro do que aquele conglomerado urbano. A obscura crosta de fuligem que encobria tudo era sinal de que as indústrias de química pesada estavam funcionando a todo vapor, para orgulho da economia metropolitana. E todo o vapor do mundo saía das chaminés, criando um nevoeiro permanente de onde nunca se sabia ao certo quando era dia ou noite - e esse deserto cinza só era quebrado pelos jorros alaranjados de fogo puro que brotavam de várias torres escuras, e pelas luzes vermelhas colocadas nas cúpulas mais altas. Por toda parte complexos industriais misturados a prédios residenciais poluídos. Cilindros gigantescos de armazenagem de produtos tóxicos ao lado de bares e escolas. Enquanto passeava lentamente com seus automóvel, Jonas Dark ia observando. Operários que não acabavam mais nas calçadas, com seus monótonos uniformes monocromáticos. Arranha-céus monstruosos. Barulhos de tráfego intenso. De algum lugar vem o cheiro nauseante de rio poluído, como se não bastasse o insuportável fedor de enxofre ou algo parecido que as fábricas tossem. A cidade está enfrentando uma epidemia.
..................................................

— Rápido, doutor Dark, tem uma infestação acontecendo lá na frente!!
O velho automóvel de Jonas saiu cantando pneu. Atrás dele seguiram três outros furgões da sua equipe de descontaminação.
— Sorte estarmos com nosso equipamento...
O comboio ia a mais de cem, cortando sinais. O caos ia se espalhando; carros batiam e pessoas fugiam apavoradas. Clarões brotavam no meio dos edifícios escuros, iluminando a carroceria dos furgões onde se lia NOTION ANTIVIRUS.
— Peguem o equipamento e me sigam!
Jonas Dark saiu e começou a correr sobre os carros batidos no meio da avenida e seu exemplo foi seguido por sua equipe.
— Lá estão eles! Preparem o equipamento!
No fim da avenida havia um grupo de jovens se divertindo; à distância que estavam eram pouco discerníveis, porém era notório o quanto suas roupas e cabelos eram coloridos. Enquanto pulava sobre os capôs dos carros Jonas Dark foi tirando seu estranho “equipamento” debaixo do seu sobretudo: uma pistola automática.
— Fogo!
Ao pipoco ininterrupto das armas os jovens começaram a se movimentar de maneira acrobática, saltando de um lado para outro.
— Continuem atirando!
A saraivada de fogo continuava. Os jovens saíram correndo, com incrível velocidade.
— Fogo!
Jonas viu quando três deles caíram no chão. Os outros se dispersaram, entrando cada qual numa rua escura. Depois de uns vinte segundos correndo por escombros a equipe chegou até os três que estavam caídos numa imensa poça de sangue.
— Um deles ainda está se mexendo, fogo!
Enquanto via a equipe descarregar seus “equipamentos” sobre o moribundo, Jonas Dark , completamente sem fôlego, se escorou num poste e limpou o suor da testa com as costas da mão que
empunhava a arma, depois falou ao seu telefone celular:
— Infestação parcialmente controlada, senhora. Pegamos três, mas infelizmente alguns “vírus” conseguiram escapar e já estão fora de alcance.
— Mas não irão muito longe – disse um membro da equipe ao olhar com interesse para o visual dos vírus – e esses aqui não mais contaminarão nossa cidade com seu maldito... a sua maldita... quero dizer...
— A sua maldita notion, você quer dizer. Mas se não houvessem notions, opiniões que ameaçassem o Sistema, também não haveria a Notion Antivirus, e por conseguinte o nossos empregos – Jonas se aproximou dos mortos e pegou uma revista em quadrinhos que um segurava - Portanto cale sua boca e agradeça a proliferação desses marginais esquisitos de roupas estranhas e cabelos coloridos a quem chamamos de vírus.
Com o cigarro preso entre os dentes e as mãos nos bolsos do sobretudo ele ficou olhando desinteressadamente para os vírus na semi-escuridão, e a fumaça que saía das suas narinas era tão perturbadora quanto a que uma chaminé duma fábrica ali por perto soltava escondendo a Lua, que assim encoberta era como um Sol Negro.

..................................................

Uma bela caçada para uma noite, Jonas Dark resmungou amargo se dirigindo para o velho bar de sempre. Ao menos a noite com suas luzes artificiais conseguia ser mais viva que o dia. Encher a cara pode ser uma solução para uma situação. E que situação, a sua! Havia se transformado no doutor Dark, especializado na eliminação de vírus que querem anarquizar o Sistema. No começo até que ele e sua equipe de descontaminação lograram conseguir resultados mais eficazes; porém, nos últimos tempos, quem estava levando a melhor eram os vírus, que sabiam driblar todas as medidas de segurança e estavam conseguindo infectar o Sistema às vezes de maneira arrasadora com suas maneiras arrasadoras, seus costumes debochados e irritantes. Como lidar com essa batalha perdida? Com a lógica ao qual estão acostumados e inseridos sendo tão facilmente reformatada por esses vírus coloridos, os trabalhadores do Sistema se vêem num imenso mal-estar, que pode ser traduzido pela seguinte pergunta: por que não ser como os vírus? Era também o que o doutor Jonas Dark se perguntava enquanto tomava uma dose. Mas sabia que não era só isso. Sentia que havia algo mais, mas não sabia como abrir essa barra de ferramentas oculta na tela abstrata da sua cabeça e esse fato provocava nele tanta aflição quanto ouvir as músicas da década passada que estavam tocando no salão, sempre a mesma porra de música da década passada que tocou até furar o disco. Por falar nisso, todas as pessoas dali tinham mais ou menos a mesma idade que ele, trinta e poucos. Todos de roupas escuras e dançando na desesperada tentativa de resgatarem algo há muito perdido e morto. Com uma garrafa de uísque na mão Jonas se aproximou de uma mulher que dançava ao som do Joy Division.
— Ei, alguém já lhe disse que você é pálida como a Branca de Neve?
Ela lhe tomou a garrafa; bebeu tudo de uma vez e continuou dançando, indiferente à pergunta feita. Ele insistiu na conversa (já estava mesmo alterado depois de várias doses):
— Onde estão seus anões?
Ao que ela parou de dançar e falou com ódio:
— Meus anões, cara, meus malditos anões são duendes negros, demônios, que usam meu crânio como caverna para se esconder . Quer saber de quem? De mim, de você que nem sei quem é, do tempo que não pára de transformar essa Branca de Neve aqui na Madrasta velha e feia, executiva de carreira que justamente odeia a Branca de Neve, a menina despreocupada que eu estou deixando de ser.
Sem olhar mais para ele, ela perguntou dançando:
— Como se chama?
— Jonas Dark.
— Jonas, heim? Cuidado, meu amor. Jonas era um profeta que foi engolido por uma baleia. Talvez você já esteja na barriga escura do monstro e ainda não tenha se dado conta disso. Mas não fique bravo comigo. Ao invés disso me agradeça por esse conselho: Dê uma olhada no que tem consigo mesmo; terá uma resposta parcial ao que procura. É assim que as coisas funcionam algumas vezes.
Malditas mulheres encontradas ao acaso. Algumas delas tinham o dom de fazê-lo se sentir em carne viva, como se houvesse sido queimado vivo numa fogueira da Inquisição; fumaça e fogo brotavam do seu corpo. Um cavaleiro terrivelmente sensível ao que lhe acontecia ao redor, mas ainda assim cavaleiro a serviço do Sistema. Entretanto resolveu seguir o conselho dela e prestar atenção no que trazia consigo mesmo: a revista em quadrinhos confiscada do vírus morto. Parecia uma antiga edição do Batman. Estranho. O Batman aparecia com um sobretudo parecido ao que ele, Jonas Dark, estava usando. E o Cavaleiro das Trevas corria atrás de um colorido Coringa, sem contudo alcançá-lo.
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— A desordem está se espalhando em progressão geométrica e tudo o que conseguimos saber sobre a cultura dos vírus é que eles gostam de gibis!...
— Não é tão simples assim.
— O que disse? Em nome de Deus Todo poderoso!
A mulher de óculos levantou-se de uma das cabeceiras da longa mesa retangular e foi até a janela abrir as persianas. Do andar em que estavam um cenário de devastação surgiu: prédios poluídos, rios arruinados, espessas colunas de fumaça negra e gordurosa expelidas por fábricas decadentes. Tudo embalado pelo brilho metálico de um Sol entre nuvens.
— E quer que o Sistema seja simples?
— Um momento – disse em voz alta Jonas Dark – estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance.
— Então qual é o problema?
Na cabeceira oposta Jonas cruzou os braços (e atrás dele havia duas lâmpadas):
— O problema é que talvez estejamos numa encruzilhada e não sabemos ainda qual caminho escolher.
— Como assim?
— Os vírus estão ficando muito mais difíceis de deter. Isso mostra que a maneira como estamos lidando com o problema está equivocado. Mas a mim ainda não está muito claro onde esteja o equívoco. Entretanto, a falha existe.
— Quero resultados práticos para a segurança do Sistema, e não embates teóricos sobre aquilo que nem ao menos sabemos direito o que é. O nosso Sistema está sofrendo uma ameaça sem precedentes que está destruindo tudo aquilo em que acreditamos e no qual depositamos as nossas mais elevadas esperanças. O ambiente de trabalho em que uma toda uma geração de cidadãos respeitáveis depositou suas esperanças e seu labor está sendo contaminado como se fosse um paciente terminal por esses verdadeiros “cavalos de Tróia”, que se infiltram entre nós como quem não quer nada, e quando menos se espera eles abrem seu interior e soltam sua carga nociva contra o mundo, que está se alterando alucinadamente como se tivesse bebendo latas e latas dessas novas bebidas energéticas!
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Ultimamente um desespero ia tomando conta de Jonas Dark. Algumas coisas as quais ele dava pouca ou nenhuma importância agora iam e vinham em seu cérebro como tubarões presos num aquário; e talvez já estivesse dentro da barriga de um desses monstros enquanto tinha a ilusão de que eles é que estavam presos em sua cabeça.
Era hora de almoço, e ele foi comer um cachorro-quente e tomar uma garrafa de vinho ao lado da pequena caverna no Parque do Sol Negro. De repente, de dentro da ravina sai uma freira. Por um momento ele ficou com vontade de dizer alguma imbecilidade do tipo “lugar estranho para uma freira, heim?” Mas se conteve. Deu mais um gole no vinho e chamou a freira.
— Posso ser útil em alguma coisa, meu filho?
Só podia ser efeito de sua semi-embriaguez, mas o rosto da freira era muito estranho. Às vezes era o de uma velha de mais de noventa anos e às vezes era de uma jovem de dezesseis. Os dois rostos sobrepostos.
— Sim, irmã, eu preciso de ajuda.
— Pode falar.
Jonas escorou os braços na pequena mureta de madeira e olhou o nada.
— Eu não sei mais o que está acontecendo com o mundo!
A voz dele era a própria angústia.
A freira também escorou os braços na mureta:
— Não sabe o que está acontecendo com o mundo... ou não sabe o que está acontecendo com você?
Jonas Dark:
— O que quer dizer?
— Dê uma boa olhada em si mesmo! Veja o seu cabelo: usa costeletas e um topete certamente inspirados no do Morrissey do tempo dos Smiths. Sua barba malfeita e seu sobretudo com certeza foram tirados do personagem John Constantine, que também já tem um bom tempo de estrada. Bebe vinho na garrafa, um gesto em memória dos bons e velhos tempos em que saía com sua turma da escola para se divertir. Vocês saíam pela noite felizes e, num mundo corrompido pela Guerra Fria e pela negra ausência de esperança, conseguiam ser os Cavaleiros naquelas Trevas, demolindo todo o edifício de normas criadas por seus pais. Se lembra daquele tempo de punks e góticos? Se lembra daquele tempo em que aquela menininha com cara de vampira “pagava um pau” para você? Dos fanzines rodados em mimeógrafos? Você e seus amigos eram os reis do mundo!!
Jonas Dark olhava espantado para freira de cara mutante.
— Mas então o impensável aconteceu: vocês cresceram!! Vocês viraram adultos!! De repente, Jonas Dark, o seu mundo ficou para trás e a sua contracultura envelheceu e já não serve para o mundo que ora desponta. E o que você e seus amigos fazem? Ao invés de tentarem se reciclar, afinal, não é o mundo que tem de se adaptar a vocês e sim o contrário, vocês acabaram cedendo ao veneno fácil de ficar falando: “Esses moleques de hoje só gostam de bosta; no meu tempo é que a música era boa; tudo hoje é comercial”. Resumindo: vocês se transformaram nos velhos que criaram o mundo da Guerra Fria, da poluição e do Sistema! Vocês, que um dia tiveram a coragem de estar na vanguarda das coisas, hoje dão uma de fodidões em suas cadeiras de rodas da preguiça mental e refutam o novo, preferindo viver num passado que não voltará jamais, pois nesse passado vocês sabiam quem eram e o que queriam, e hoje, apesar de já serem adultos e muitas vezes já terem filhos, vocês já não sabem quem são e muito menos o que querem. Mas eu sei o que vocês são. Vocês são ultrapassados! Vocês são o Sistema!
Dito isso, a freira voltou para dentro da caverna do parque do Sol Negro. Uma menina que passeava com sua avó perguntou: ”Vó, a Bela Adormecida passou cem anos sonhando com o quê?”
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A manhã poluída no centro urbano é uma correria. Só que aquela era diferente.
— Esse não me escapa...
Jonas Dark perseguia em alta velocidade um vírus. Carros batiam, pessoas fugiam, a anarquia ia se alastrando pela rua estreita.
— Saiam da frente!
Totalmente sem fôlego ele tentava fazer mira, mas a multidão atrapalhava e enquanto isso o vírus ia ganhando terreno, se movendo com uma leveza e precisão inacreditáveis. O Vírus praticamente voava
sobre as coisas. Jonas Dark subiu num contêiner de lixo. Parou. Segurou sua arma com as duas mãos. Fez mira com um olho só. Cerrou os dentes. E disparou.
— Acertei!
O vulto voador caiu pesadamente sobre umas caixas de papelão de um beco sem saída. Mais do que depressa ele pulou do contêiner e correu até lá. Vapores sujos saíam dos esgotos. Poças de água imunda e alguns ratos gigantes se esgueirando. Respirando descompassadamente e segurando seu “equipamento de descontaminação” ele procurou nas caixas de papelão. Nada. Tomou então um susto: onde o maldito estava? Virou-se rapidamente e mirou a esmo em torno de si. A cada segundo sentia mais medo. Um rato passou correndo e acabou levando um tiro por engano.
— Calma, calma – repetiu para si mesmo ao ver os pedaços do infeliz roedor – afinal o maldito não pôde sair voando...
Ao dizer isso, se lembrou de olhar para cima. E assim o fez.
Tudo foi muito rápido. A última coisa que sentiu foi quando levou um golpe na cara; daí as coisas escureceram por uns cinco segundos. Ao abrir os olhos novamente viu um vulto colorido com o pé sobre seu peito, segurando sua arma.
— E agora, homenzinho?
Apesar de ter dito isso, ela tinha quase a metade da estatura de Jonas que, sentindo o sangue escorrer pelo canto da boca, foi seguindo com os olhos as linhas da sua inimiga. A roupa colorida com motivos pós-psicodélicos se colava ao corpo, realçando contornos femininos no auge da juventude. O rosto de menina não revelava preocupação nenhuma. Coisa que o cabelo verde e o batom vermelhíssimo só realçavam.
— Pensa que é fácil deter a Verdade?
Agora ele sentia o leve peso de Verdade sobre seu coração, que batia acelerado enquanto ele olhava aquela menininha bonita. Mas mesmo assim ainda quis dar uma de valente:
— Vamos, acabe logo com isso. Atire.
Verdade começou a observar a arma distraída.
— Eu sou um vírus e você um antivírus. Somos inimigos. O meu destino é invadir o Sistema e provocar o caos. É subverter a ordem. O seu destino é impedir que isso aconteça. É. Eu devia mesmo matá-lo.
Em menos de umas fração de segundo ela mirou e disparou. Jonas fechou os olhos só a tempo de ouvir a bala ricochetear a pouca distância de sua cabeça . Ficou com os olhos fechados por uns instantes, esperando um outro disparo, dessa vez certeiro. Depois abriu só um olho.
Verdade riu e sentou-se sobre o peito ofegante dele. Depois alisou-lhe os cabelos e beijou sua boca ferida. Deixou a arma perto da cabeça dele e saiu correndo e pulando de maneira acrobática, sumindo.
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Já tinha perdido a noção das horas sentado na sacada do apartamento onde morava . Lá embaixo o trânsito pesado se arrastava e o barulho era intenso, mas inacreditavelmente só havia o silêncio ao redor dos pensamentos de Jonas Dark. Ao seu lado uma montanha de guimbas de cigarro. Estendeu a mão para pegar a garrafa de cerveja escura; ela veio com algo colado em sua base; aquela revista em quadrinhos. Notou como o ar ia ficando com cheiro de chuva e desgrudou a revista da garrafa, mas não a tempo de impedir que a capa ficasse borrada com um círculo. Ele ajeitou-se no chão da pequena sacada e ficou olhando para aquele borrão que ganhava forma entre as figuras do Batman e a do Coringa. E a forma foi ganhando forma, foi ganhando forma, foi ganhando... e ganhou a forma de um homem nu de braços cruzados e olhos fechados entre os dois arquiinimigos. Os primeiros pingos começaram a cair rasgando o ar urbano e ele abriu a revista:

Batman persegue o Coringa pela ruas de Gotham City. Tudo está tão escuro quanto uma noite da década passada que não voltará mais. Quanto um beijo esquecido daquela garotinha com cara de vampira que pagava um pau para você. O homem-morcego se devora em ódio, pois parece que o Coringa sabe disso e disso sorri. Maldito! – pensa o Cavaleiro das Trevas. Afinal, foi esse marginal o responsável pelas mortes dos meus pais. E depois fica se achando superior a mim só porque ouve música tecno e vai a raves se encontrar com a galera. Esses moleques de hoje só gostam de bosta; no meu tempo é que a música era boa; tudo hoje é comercial. O colorido palhaço pula de um lado para o outro, que nem um acrobata malabarista que tivesse ingerido todo o ecstasy do mundo, impossível detê-lo. Como impossível é deter o destino. Após pensar isso, Batman senta na calçada e começa a fumar um cigarro; o Coringa que se foda. O palhaço, ao sentir que não era mais perseguido, para de fazer suas traquinagens e começa a se aproximar do homem-morcego. “Ei, morcegão, já cansou de brincar?” Ao que o outro responde: “Me deixe em paz. Só gostaria de saber por que diabos você matou meus pais”. O Coringa se senta ao lado dele: ”Relaxa, Morceguinho. Alguma vez você já parou para pensar o que teria acontecido se seus pais não tivessem morrido?” Batman começa a imaginar então como teria sido sua vida com os pais vivos; restrições sobre restrições. Colégio militar ou internatos embolorados. Normas indiscutíveis e inquebráveis de etiqueta, ao mesmo tempo em que seu pai começaria a iniciá-lo no capitalismo selvagem onde a ética é uma piada e a aniquilação de tudo o que estiver fora do próprio umbigo a única lei a ser seguida. O amor pelo que é simples, como por exemplo passar uma tarde de primavera com uma namorada no parque, seria ridicularizado, ao mesmo tempo em que seriam cultivadas máscaras de puritanismo que esconderiam perversões nojentas como por exemplo surubas snuff, o esplendor decadente da babilônica Ghotam City ofuscando os olhos do homem-morcego, cegando-o, até que ele sai do transe e vai até um beco que está atrás de um cinema onde um casal de burgueses está passando com o filho pequeno. Batman simula um assalto e mata o casal na frente do menino Bruce Wayne. Depois sai pulando, feliz da vida, e vai para uma rave encontrar a galera.

Entre as últimas folhas do gibi, agitadas pelo vento que trazia a forte chuva, Jonas Dark teve uma surpresa; um folheto de show:



SENSACIONAL RAVE
NO CIRCO COMETA REDE!
VOCÊ VAI PULAR
ATÉ NÃO PODER MAIS!
VENHA E TRAGA SUA GALERA!
DIA 18 DE FEVEREIRO, ÀS 10h15
Caminho da Roça, sem número
(esse anúncio dá direito
a uma bebida energética)
..................................................


Jonas Dark pulou do furgão. O ar lunar da noite estrelada vinha misturado com cheiro de mato e com o som distante de música eletrônica. Tudo isso reverberou em seus pulmões como um soco de juventude. Conferiu a entrada para a rave que achou dentro da revista do Batman. Tirou seu sobretudo, e por baixo dele apareceu as cores vibrantes de uma roupa de vírus. Deu uma última olhada no espelho retrovisor; apesar da escuridão seu cabelo estava tão cor de abóbora que chegava a ser fosforescente.
— Se a barra começar a pesar pode deixar que a gente vai correndo ajudar ao senhor, Doutor Dark. Mas esse é o maior download de vírus que se tem notícia; parece que todos resolveram baixar de uma vez!
Jonas começou a caminhar na estreita trilha iluminada pela Lua. A noite estava uma delícia. Sentia-se bem. Os grilos davam seu concerto invisível. Mas o que impressionava mesmo era o som tecno que ecoava pelo céu noturno. Logo o clarão laser no horizonte revelou as lonas de um imenso circo de cores luminosas. Era estranho. Parecia mais um templo, por mais perturbador que isso pudesse parecer para Jonas Dark, que começava a sentir uma enorme ansiedade. Queria fugir, e ao mesmo tempo queria correr em direção àquela festa. Mas se fugisse, teria uma desagradável surpresa: o som da música abafou o barulho do furgão da sua equipe de descontaminação indo embora. Ordens da mulher de óculos: deixem o doutor Jonas entregue à sua própria sorte.
Finalmente chegou; resolveu colocar também os óculos de lentes amarelo-limão e nelas se refletiu o letreiro em néon piscante que anunciava o circo rave Cometa Rede. Lá estavam centenas de vírus na porta do circo com suas roupas psicodélicas (no seu tempo diria que aquelas roupas tinham cor de rodinha de skate). Formavam uma fila na entrada para deixar o folheto e pegar uma bebida energética. Ao entrar na fila, julgou que o pessoal o encarava desconfiado.
— Ei, de onde você vem?
Jonas:
— Eu? Eu... sou... novo por aqui .
— ~!@#$%^&*()_+ ?
Só faltava essa agora, pensou Jonas. Que linguagem da porra era essa? Não entendia essas linguagens novíssimas, não sabia navegar ainda nesses sistemas . O que ele quis dizer com aquilo? O Vírus insistiu: “~!@#$%^&*()_+?” Jonas Dark fez um “Hang Loose” ; o Vírus exclamou: “Ah, sim...” e os amigos dele concordaram. Uma grossa gota de suor escorreu da testa de Jonas. Ainda bem que ninguém mais perguntou nada, já que o som da música fazia tremer o chão. Jonas deixou o folheto na entrada e pegou uma lata prateada de bebida energética chamada Ecstay Viruscan.
Ele se embrenhou no meio da galera e começou a pular. Canhões de luz e raios laser piscavam sobre a multidão luminosa que dançava de forma contagiante. No começo meio sem jeito, mas depois com entusiasmo ao beber o poderoso energético, Jonas Dark entrou no clima. E perdeu a noção do tempo. E do espaço. O mantra eletrônico fundia a todos num só delírio. Só voltou a si quando percebeu que a multidão gritava:
— Verdade! Verdade! Verdade!
Com os canhões de luz piscando de forma estroboscópica em sua direção, uma acrobata apareceu no balanço lá no alto do picadeiro. A acrobata começou a pular rapidamente de um balanço para outro, em sincronia com o pulsar das luzes. Ela por fim saltou na Rede e dela, num pulo sensacional, no chão. Vários cones de luz focalizaram-na. Era a Verdade. Ela abriu os braços e gritou, com sua voz de menina:
— Respeitável público, bem-vindos ao maior espetáculo da Terra!
A galera vibrou.
— Nessa noite maravilhosa teremos mágicos, malabaristas, engolidores de fogo...
Estranho, Jonas pensou. O rosto da menina parecia diferente . E familiar. Pertubadoramente familiar.
— ... E a reconstituição da fogueira em que Joana D’Arc foi martirizada. Eu peço agora ao Light Jóquei para iluminar uma pessoa que fará o flamejante papel de Joana D’Arc, e quem melhor para isso senão um penetra de nome parecido? LJ, luz no antivírus Jonas Dark, cortesia da Notion Antivirus!
Seis cones de luz branca focalizaram a atônita figura de Jonas.
— Amarrem esse imbecil no mastro principal!
Completamente surpreso, Jonas Dark foi dominado e levado para o centro do picadeiro, onde foi amarrado num poste. Respirava sofregamente enquanto via seus algozes juntando todos os folhetos da rave aos seus pés e depois jogando gasolina.
— “...now I know Joan of Arc felt / as the flames rose to her roman nose / ande her Walkman started to melt” - Verdade cantarolava alegremente enquanto jogava mais folhetos ao redor de Jonas – Espero que eu não esteja cantando errado essa música do seu tempo, Doutor Dark. Sim, seu tempo, que já passou. O senhor fuma, não? Claro que fuma. Até seus vícios são obsoletos e não estão com nada. Assim, creio não se importar se eu pegar emprestado o seu isqueiro. Bem, aqui está ele; obrigada!
O fogo começou a subir.
— Malditas mulheres encontradas ao acaso, não é, Doutor Dark? Algumas de nós têm o péssimo dom de fazê-lo se sentir em carne viva! Mas o que você não percebeu é que todas as mulheres malditas na verdade são uma só: EU!
Fumaça e fogo brotavam dos quilos de folhetos nos pés de Jonas.
— O que... o que você quer dizer? O que você quer?
— Queremos ver o circo pegar fogo. Não é, galera?
A multidão colorida concordou numa gritaria infernal. O som tecno voltou a rolar.
— Dê uma boa olhada naquela cidade poluída e decadente e sua sociedade estressada, doutor Jonas Dark. Talvez o problema não seja tanto o Sistema, e sim o modo de vida dos cidadãos respeitáveis e caretas que o fazem! Diz um ditado que as pessoas que não conseguem achar tempo para a diversão são obrigadas mais cedo ou mais tarde a achar tempo para a doença. Pois bem, doutor, talvez um rápido diagnóstico seu sirva para confirmar que nós somos a doença do mundo. Para o Sistema somos simples vírus problemáticos. O que todos se esquecem é que foram os pais de família trabalhadores quem nos geraram nas horas de ócio e agora tremem pelo nosso poder! De repente o Criador viu que a Criatura se revelou rebelde e então criou o inferno para castigá-la, porém a Criatura achou o inferno o lugar mais cool do mundo! Galera, vamos pular em homenagem ao inferno!
Os D.J.’s aceleraram o som sampleando o Prodigy, e os vírus voltaram a dançar com todo o gás, sob a luz pulsante de uma teia de lasers vermelhos. Jonas, malgrado sua situação, passou a agitar a cabeça ao ritmo da percussão eletrônica, de olhos fechados e dentes entrecerrados. Verdade, dançando vertiginosamente , se aproximou da fogueira recém-nascida , que iluminou o baralho de tarô que ela tirou de dentro da calcinha:
— Escolha uma .
Com a boca Jonas puxou uma carta.
— Vejam só! Você tirou a carta número seis, Os Enamorados. Um jovem de braços cruzados entre duas garotas, uma sendo o vício e a outra, a virtude. É a carta da escolha: o jovem tem que escolher uma delas, dois caminhos distintos: o caminho novo e o velho. No caso do jovem punk Jonas Dark de mais de uma década atrás, ele sentiu indiferença quando se viu diante de algumas escolhas. E é por isso que merece ser assado agora como um pedaço de toucinho.
A galera riu. As solas dos tênis de Jonas começavam a derreter e isso no seu desespero o lembrou duma música da Siouxsie, embora não fizesse muito o seu gosto; mas, gostasse ou não, talvez os banshees estivessem pulando alegremente por ali ao ritmo da rave e anunciando o seu fim. Os cabelos estavam totalmente encharcados do suor que removia a tinta cor de abóbora deles e, conforme escorria em bicas, ia pintando o rosto de Dark como o de um guerreiro celta. Ele voltou a fechar os olhos por um tempo – como quem faz uma prece. Em seguida os abriu determinado e encarou a sua carrasca:
— Espere! Agora é minha vez de falar. Você acha que eu não fiz nenhuma escolha, mas está equivocada. Todos vocês estão. Sim, vocês que se acham “As exceções”. Toda essa pose, toda essa onda, mas vocês não estão com nada, seus idiotas! Ou se esquecem que as exceções servem para confirmar a regra? Quem mais lucra com a existência de vocês é o Sistema; vejam a Notion Antivirus, vejam os políticos ladrões que se elegem com o velho discurso de segurança pública. O Sistema precisa de inimigos para poder funcionar e graças a vocês ele está funcionando muito bem!
— Não venha com essa conversa cínica, doutor Jonas Dark! Seu salário também vem de quantos de nós consegue apagar na calada da noite! Você já foi como nós, o underground já correu por suas veias, sabe o que se passa num coração rebelde e ávido por diversão. Mas como todos os outros que vão envelhecendo, finge não saber dessa coisas. Você traiu a si mesmo; não tem suficientes reservas morais para nos dizer que estamos errados! Logo o Sistema perceberá que a repressão pura e simples não adiantará mais pois todas as pessoas começarão a se questionar por que deveriam viver a vida toda de um jeito que não gostam e nesse momento voltarão seus olhos para a maneira como vivemos: nos divertindo.
— Pensa que me impressiona com seu discurso, Verdade? Nããão! Você está esquecendo do principal, e que justamente é a escolha que fiz para minha vida. Aquela carta que eu tirei representa a escolha entre dois caminhos, conforme você disse. O velho e o novo, o vício e a virtude, o Sistema e o underground. Mas, diante desses dois caminhos eu optei pelo não-escolher, muito embora para vocês pareça que eu tenha escolhido pelo Sistema e, para as pessoas do Sistema, eu pareça underground demais. E sabe por que eu escolhi o não-escolher? Pelo mesmo motivo que essa carta se chama Os Enamorados. O que é a revolta ou qualquer outra coisa diante do amor? Nada!! Sim, com o tempo eu fiquei amargo e cínico, devo reconhecer. Como também é verdade que não houve um dia sequer, ouviu bem? um dia sequer nessa última década cretina em que eu não tenha pensado “naquela” resposta que eu fiquei de dar outro dia a certa pessoa que acabou fugindo. Pois o dia chegou, já que tornei a encontrar essa pessoa: Vera, menininha com cara de vampira, eu te amo!
Verdade olhou para ele espantada. Ela fechou os olhos, como que sorvendo aquelas palavras há tanto tempo esperadas. Em seguida pôs as mãos no rosto e soltou um pavoroso grito enquanto se transformava na mulher de óculos para quem Jonas trabalhava; o seu grito foi tão forte que rachou as lentes dos óculos e pelos aros vazios saiu um pano escuro que a encobriu transformando-a na freira de cara mutante do parque do Sol Negro; em seguida se jogou no ar, como um enorme corvo e quando caiu no chão havia mudado a cara para a mulher gótica tão pálida quanto a Branca de Neve, por fim a palidez da mulher foi aumentando e se cristalizando até que ela virou uma gigantesca crisálida, que rachou em mil pedaços, de onde saiu uma linda borboleta, cujas asas se dissolveram num pólen de luz e então foi Vera quem surgiu, envolta em vapores, com a mesma camisa branca e o mesmo jeans desbotado com os quais Jonas a viu no shopping center no início da década passada.
— Jonas... eu achei que você nunca viria...
Ela foi até a fogueira , abraçou Jonas e beijou sua boca. O fogo estava tanto fora quanto dentro de seu coração, e a dor e a alegria se fundiram num só. Os cones de luz cegaram-no e em torno dos seus olhos fechados como os de um recém-nascido havia um mundo feito de luz branca e ventos que sacudiam violentamente seus cabelos, onde não havia nem o novo e nem o velho. Diziam que aquele deserto – que em breve iria florescer de novo - era tudo o que restava do Sistema, que finalmente foi quebrado por um hacker e tudo o que ele precisou fazer foi amar a Verdade do mundo, que pelo menos para ele tinha a forma de uma garota com cara de vampira.

F I M




Nota do autor: em duas passagens aparece o termo “Sol Negro". Essa é uma referência à música “Black Sun” do grupo Dead Can Dance e, se Deus ajudar, será a trilha sonora de Jonas Dark quando for transformado em filme...


Josiel Vieira de Araújo


















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