Programa: Brava Gente (roteiro adaptado do conto de Rubem Braga)
Autor: Daniela Dias Abelha Fabrin de Barros
SETS: Escritório de Álvaro
Avião
EXTERNAS: Cena de abertura
Táxis 1 e 2
Aeroporto
Cafeteria (no aeroporto)
PERSONAGENS: Álvaro
Mulher (Sílvia)
Eduardo
Dona Marlene
Aeromoça
Comandante
Taxista 1 e 2
ABERTURA: Sexta feira, duas horas da tarde, dia quente e ensolarado no Rio de Janeiro. Muito trânsito. Pessoas andam apressadas de um lado pra outro, camelôs tentam chamar a atenção para que comprem suas mercadorias, homens de paletó, no ponto de ônibus, afrouxam o colarinho da camisa, mulheres com crianças no colo, enquanto aguardam a condução. Cena de um enorme prédio de escritórios, pessoas bem vestidas entram e saem.
SEQÜÊNCIA 01.
Álvaro, um homem no auge de seus 40 anos, olhos castanhos, cabelos grisalhos, é advogado e dono de uma empresa de advocacia; situada em um dos maiores prédios de escritórios do Rio de Janeiro. Terminava de assinar, já meio irritado, uma grande quantidade de processos que pareciam brotar em sua mesa, quando toca o telefone.
ÁLVARO – O que é dessa vez, dona Marlene? Já não mandei a senhora não me interromper enquanto eu não acabasse de assinar esses malditos processos?
DONA MARLENE – Desculpe Dr. Álvaro... Mas é que a sua Ex-mulher...
ÁLVARO – Ah, só pode ser brincadeira... Então a senhora me interrompe, pela décima vez e agora por causa da Janete? Ainda não está acostumada com os exageros dela? Ela quer é me encher a paciência com alguma futilidade e pelo visto, a senhora resolveu cooperar também, não é?!
DONA MARLENE – Pelo amor de Deus, Dr. Álvaro, não fale uma coisa dessas, eu só acho que dessa vez é importante. A dona Janete disse que hoje tem reunião de pais na escola do Álvaro Júnior e...
ÁLVARO – Tá, tá, passa logo essa ligação! Já vi que não adianta nada falar com a senhora... Ô meu Deus, é hoje! É hoje! Alô? Fala Janete, qual é o drama dessa vez? Como não falo assim com você? Você me liga no meio do expediente, tô cheio de coisa pra fazer... Por causa de uma reunião de pais na escola do Juninho? Mas porque você não pode ir sozinha, minha “querida”?! Porque a reunião é de “pais”?! Janete, “pais”, não quer dizer que tem que ser só o pai pode ser a mãe também, é... Ah, você não sabia?... Mas é bem feito pra mim! Isso é que dá casar com dondoquinha de sociedade... Quê? Não, não estava falando de você, imagina... Janete... Janete! Quer parar de falar um minuto?! Se for só esse o “grande problema”, tenho que desligar, tá? Dá um beijo no Júnior e diz pra ele que neste final de semana não vou poder visitá-lo. É, vou no próximo e levo aquele carrinho com controle remoto que ele me pediu; tchau! (fala olhando pro telefone) É mole?! Bom, acho que agora eu consigo terminar. Só faltam mais, deixa ver... Trinta? Trinta processos?! E ainda tem o julgamento em São Paulo... Sem falar que com esse trânsito, vou demorar uma eternidade pra chegar no aeroporto! Mas se eu recomeçar agora, sem ninguém me interromper, acho que...
O telefone toca novamente, ele fica furioso.
ÁLVARO – Ah não! Pra mim chega!
Ele se levanta, pega a maleta e o paletó, deixa o telefone tocando e sai da sala.
DONA MARLENE – Dr. Álvaro! Estava chamando o senhor...
ÁLVARO – Eu percebi, dona Marlene. Mas agora não! Estou indo pra São Paulo, tenho um julgamento lá.
DONA MARLENE – Eu sei, Dr., mas não está um pouco cedo? E os processos, o senhor já terminou de assinar?
ÁLVARO – E a senhora me deixou terminar? Além do mais não posso chegar lá em cima da hora. Também vou aproveitar que estarei longe da senhora e da minha ex-mulher, pra relaxar um pouco. E não adianta me olhar com essa cara de quem não tem culpa no cartório, não, porque tem! Não sei qual das duas me deixa mais louco... De qualquer maneira, cuide de tudo e até a semana que vem.
DONA MARLENE – Boa viagem Dr. Álvaro...
Álvaro vai embora e Marlene fica com cara de quem “foi atropelada”, mas logo cai em si.
DONA MARLENE – Quer saber? Eu também tô precisando relaxar!
Marlene vai até a sala do patrão, arruma a mesa dele, depois dá uma última arrumada na sua, põe o telefone na secretária, pega suas coisas, fecha o escritório todo, dá uma olhadinha no corredor (não vê ninguém), tranca a porta e vai andando feliz da vida até o elevador.
*COMERCIAIS*
SEQÜÊNCIA 02.
Álvaro sai apressado do prédio e pega o primeiro táxi que aparece rumo ao aeroporto.
TAXISTA – Boa tarde! O doutor vai pra onde?
ÁLVARO – Pro aeroporto. Mas, por favor, pegue o caminho mais rápido, por que estou com pressa!
TAXISTA – É pra já! Mas que sexta feira brava essa, né, doutor? O calor tá de matar... (fala secando com um lenço o suor que escorre no rosto)
ÁLVARO – Nem fale... (ele afrouxa um pouco o nó da gravata)
TAXISTA – Se o senhor quiser, eu abro a sua janela pra entrar um ventinho.
ÁLVARO – Obrigado, pode abrir.
O taxista apertou um botão que abriu um pouco a janela ao lado de Álvaro e ele começou a sentir o vento bater de leve em seu rosto, proporcionando uma prazerosa sensação de alívio.
Mas enquanto o taxista insistia em puxar assunto falando sobre quem venceu o jogo de futebol do sábado passado; Álvaro só conseguia pensar em acomodar-se confortavelmente na poltrona do avião, enquanto uma bela e “muda” comissária de bordo lhe oferecia um Martini puro, sem gelo. Sim, uma comissária totalmente muda! Que maravilha, uma mulher linda e sem voz! Tem coisa melhor? Não que ele, um homem moderno, entrando no século XXI, ainda pensasse como um machista: que as mulheres só falam besteiras e futilidades. Afinal, em seu próprio meio profissional existiam algumas inteligentíssimas que deixavam muitos homens no chinelo... Mas mesmo assim uma coisa ele admitia que não havia mudado e nem mudaria tão cedo: elas, as mulheres, continuavam falando demais!
TAXISTA – Prontinho doutor, chegamos.
ÁLVARO – Hã? Ah, sim... Quanto te devo?
TAXISTA – Olha, a corrida ficou em trinta reais, mas como o doutor é um homem de visão, assim que nem eu, vou fazer por vinte e cinco!
ÁLVARO – Puxa, muito obrigado pelo desconto, (disse tirando o dinheiro da carteira) Mas... Como assim um homem de visão?!
TAXISTA – O futebol, dotô! O senhor é fluminense que nem eu. Até concordou que aquele juiz safado roubou no jogo de sábado!
ÁLVARO – Tudo bem, mas eu não...
TAXISTA – Deixa disso doutor, se o senhor não aceitar, vou me sentir ofendido! Vá com Deus e boa viagem.
O taxista dá partida no carro e vai embora, enquanto Álvaro com uma certa “pena” do homem, vai se dirigindo ao guichê da empresa de aviação.
RECEPCIONISTA – Muito bem, doutor Álvaro, o senhor vai ficar na poltrona 2C, na ala de “não fumantes”. Muito obrigada e boa viagem. A Sky Line agradece a preferência.
Com as passagens na mão e tudo resolvido, Álvaro já começava a sentir aquela sensação de paz que tanto precisava. Enquanto aguardava a hora do embarque, ele escolheu uma das inúmeras cafeterias do aeroporto, acomodou-se em uma mesa, pediu um caputino, uma porção de pães de queijo e em seguida abriu sua agenda pra programar suas atividades. Nem parecia que estava viajando a trabalho, tamanha era a sua animação. Era só o fato de se afastar um pouco do movimentado escritório e dos “grandes problemas” diários de sua ex-mulher, que ele parecia estar no paraíso!
Então, uma hora depois, começaram a chamar os passageiros do vôo 407, era o dele, precisava se apressar! Arrumou suas coisas e foi caminhando até o local indicado. De longe já podia avistar a fila de passageiros que iriam no mesmo vôo, se formando para o embarque. Mas enquanto aguardava sua vez, Álvaro ouve uma voz de mulher, bem atrás dele, reclamar da demora.
MULHER (falando um pouco alto) – Mas isso é um absurdo! Olha só o tamanho dessa fila! Eu já não gosto muito de andar nessas coisas e ainda tenho que ficar esperando pra embarcar? Não, isso não vai ficar assim!
ÁLVARO (Pensando) – Pronto! Tava muito bom pra ser verdade... Nem vou me dar o trabalho de olhar pra trás e ver a cara dela. Deve ser mais uma daquelas socialites metidas à besta, que acham que o mundo gira em torno delas!
E continuou aguardando impassível. Mas realmente estava demorando e com aquela mulher tagarelando era muito irritante ficar ali parado.
ÁLVARO (pensando) – É... O que é bom dura pouco mesmo! Já tô me sentindo estressado de novo... Mas também essa chata não pára de reclamar! E desse jeito vou acabar perdendo a paciência e...(ele ameaça se virar pra falar com ela, quando a fila começa a andar, ele desiste e começa a caminhar) Ufa! Ainda bem... Tomara que essa mulher sente bem longe de mim!
Álvaro e os outros passageiros embarcam.
*COMERCIAIS*
SEQÜÊNCIA 03.
Já dentro do avião, uma aeromoça linda e parcialmente “muda” indica a poltrona a Álvaro e enquanto ele se acomoda, ela guarda sua maleta de mão e seu paletó, no compartimento acima.
AEROMOÇA – O senhor deseja mais alguma coisa?
ÁLVARO – Um Martini puro, sem gelo, por favor.
AEROMOÇA – Pois não, trarei assim que o avião decolar.
Álvaro estava ainda um pouco irritado por causa da demora na fila de embarque e daquela mulher que não parou de reclamar um minuto. Talvez por isso estava sentindo um pouco de sono, vontade de se desligar do mundo e só acordar quando chegasse ao seu destino.
ÁLVARO (pensando) – Vou segurar um pouco o sono até ela trazer meu Martini, aí sim vai ser a glória, o paraíso, enfim meu merecido descanso... (nisso, Álvaro olha para a poltrona vazia ao seu lado) Que ótimo, quase todos já embarcaram e parece que Deus vai colaborar comigo e nem companheiro de viagem eu vou ter. Maravilha!
Álvaro recosta a cabeça e fecha os olhos, um leve sorriso de satisfação vai se formando, quando de repente ele ouve uma “vozinha familiar” mas nada agradável, se aproximando, se aproximando, parou! Parou do seu lado!
MULHER – É aqui?! Ai, até que enfim! Tem certeza que é essa mesmo a minha poltrona? Sim, porque você já me fez mudar de lugar três vezes!
ÁLVARO (de olhos fechados e pensando) – Não, não é possível... Eu devo ter pegado no sono e estou tendo um pesadelo, é isso...
AEROMOÇA (meia desconcertada) – Desculpe-me senhora, mas o número da sua poltrona estava meio apagado e eu pensei que...
MULHER – Pensou?! Você não tem que pensar, você tem que saber onde os passageiros vão sentar, independente do número apagado! Vocês não têm listas? Então, tem que decorar!
AEROMOÇA – Pois não senhora... Deseja mais alguma coisa?
MULHER – Por enquanto não, pode ir (ela parece mais nervosa, com medo, do que irritada e agarra a mão da aeromoça) Mas não vai muito longe! (ela percebe o descontrole e solta a mão desconcertada) Eu posso precisar...
AEROMOÇA (sem entender) – Pois não senhora, se precisar é só chamar. Agora por favor, senhor, senhor... (ela toca suavemente em Álvaro, que abre os olhos, mas não encara sua acompanhante)... Desculpe acordá-lo, mas vamos decolar em breve, por favor, queiram apertar seus cintos de segurança.
A aeromoça se afasta, o comandante dá o aviso de “apertar os cintos” e todos obedecem, inclusive Álvaro.
ÁLVARO (pensando enquanto aperta o cinto) – Enquanto não vem o meu Martini, vou fingir que estou dormindo, tomara que ela fique com sono e durma a viagem inteira!
E é o que ele faz, mas nem bem fecha os olhos, ela...
MULHER – Senhor (ela sacode Álvaro de leve), por favor, acorda...
Álvaro abre os olhos.
MULHER – Desculpe fazer o senhor acordar de novo, mas será que pode me dizer como eu fecho essa coisa? Eu não queria a aeromoça outra vez...
ÁLVARO – Tudo bem... É muito simples, a senhora faz assim... (ele fecha o cinto dela, mas sem encará-la)
MULHER – Muito obrigada.
ÁLVARO – Não tem de quê.
Ele volta a fingir que está dormindo. Então o comandante avisa os passageiros que o avião vai decolar. Como é de costume, todos sentem aquele leve tranco. A mulher fica assustada e agarra o braço de Álvaro. Que abre os olhos sem entender nada.
MULHER – Ai desculpa, mas é que eu ainda sinto “um pouco de ansiedade”, quando tenho que viajar de avião...
ÁLVARO – Mas a senhora não tem do que ter medo, essa “sensação na hora de decolar” é a coisa mais normal. Dá uma olhada: ninguém nem nota mais.
MULHER – É mesmo... (diz olhando em volta) Mas peraí, eu não disse que estava com medo! É só uma certa ansiedade...
ÁLVARO – Ah... Então é por causa dessa “leve ansiedade” que a senhora está agarrada no meu braço?!
Ela olha desconcertada, se solta um pouco, mas continua com o braço em volta do dele.
MULHER – Tá bom, eu confesso... Eu tenho mesmo medo de voar, eu... Promete que não vai rir?
ÁLVARO (se segurando pra não rir) – Claro, porque eu faria uma “maldade dessas”?
MULHER – Tá, então eu falo. Todas as vezes que eu subo num avião, tenho a nítida impressão que vai acontecer alguma coisa e ele vai cair, é isso! Eu sei e o senhor também deve estar achando, que é ridículo, uma mulher como eu inteligente e esclarecida, pensar assim, mas o que eu posso fazer? É mais forte do que eu!
ÁLVARO – Olha, primeiro que tudo, vamos parar de nos chamar de senhor e senhora, afinal (ele olha pros braços) já nos conhecemos e estamos conversando há um tempo não é? Meu nome é Álvaro, sou advogado e você?
MULHER – Meu nome é Sílvia e eu sou comerciante, tenho uma loja de roupas num shopping, em São Paulo. Bom, acho melhor eu soltar seu braço e...
ÁLVARO – Não, eu estava esperando você terminar de falar, pra sugerir que continue assim até que se sinta mais segura. Quem sabe dessa maneira você vai perdendo o medo de voar? Não precisa ficar envergonhada, não, isso é normal. Esse negócio de ter medo de avião não é brincadeira! Eu até já vi um homem segurando a mão de outro porque também estava com medo. A pessoa fica tão aflita que se esquece de tudo, quer se agarrar em alguma coisa ou alguém.
SÍLVIA – É mesmo? Assim até me sinto menos ridícula em aceitar a sua “ajuda”. Eu também acho que realmente isso vai me deixar mais segura.
ÁLVARO – Então está certo Sílvia, fique a vontade. Mas, mudando de assunto, eu estou muito cansado, tive um daqueles dias estressantes e se você não se importar vou tentar dormir um pouco.
SÍLVIA – Imagina Álvaro, você já fez muito por mim, pode descansar.
Então assim que fechou os olhos, Álvaro colocou a sua mão em cima da mão dela, que lhe apertava o braço. Esse gesto fez com que Sílvia desse um suspiro aliviado e recostasse a cabeça, tentado também, dormir um pouco.
ÁLVARO (pensando) – Coitada falando desse jeito, nem parece àquela chata reclamona de antes. Mas isso não importa. O que eu quero mesmo é que ela fique quieta e me deixe descansar... Ah! E meu Martini, hein? Eu sabia, linda e quase muda... Era perfeita demais aquela aeromoça, acabou esquecendo meu pedido. Mas agora deixa pra lá, vou tentar dormir...
Algum tempo depois, Álvaro acorda, dá uma leve espreguiçada e percebe que ainda não pousaram.
ÁLVARO – Nossa, (ele olha no relógio), ainda não chegamos?!
Sílvia que não estava dormindo, apenas de olhos fechados, se afoba.
SÍLVIA – Porque? Você acha que tem alguma coisa errada?!
Álvaro – Não é bem isso... (ele olha pela janelinha e depois faz sinal pra Aeromoça), Aeromoça! Por favor...
AEROMOÇA – Pois não, desejam alguma coisa?
ÁLVARO – É que pelo horário já devíamos ter chegado e me parece também que estamos apenas dando voltas... Aconteceu alguma coisa?
Antes que a aeromoça pudesse responder o comandante faz um comunicado pelos auto falantes do avião.
COMANDANTE – Atenção senhores passageiros, aqui fala o comandante: como devem ter notado, estamos sobrevoando São Paulo, porque há um forte e denso nevoeiro que nos impede de pousar. Peço a compreensão de todos, para que possamos terminar nossa viagem assim que for possível. Enquanto aguardamos, será exibido um filme ainda inédito no Brasil, aproveitem e relaxem.
ÁLVARO – Tudo bem, já entendi o recado.
AEROMOÇA – O senhor deseja alguma coisa enquanto isso? E a senhora?
ÁLVARO – Bom, acho que agora aquele Martini, que eu pedi quando embarquei cairia bem.
AEROMOÇA – O senhor tem toda razão, desculpe minha falha, isso não irá mais se repetir.
SÍLVIA – Eu não quero nada, obrigada.
A aeromoça se afasta e logo volta com o Martini.
ÁLVARO (pegando o drink) – Obrigado.
SÍLVIA – Ai, Álvaro, será que está tudo bem mesmo? Não sei, tenho a impressão de que esse comandante não foi totalmente sincero! (ela se encolhe ainda agarrada em seu braço)
ÁLVARO - Que isso Sílvia, fique tranqüila, está tudo bem. Tome um gole disso, você vai se acalmar.
Ela aceita, mas Álvaro não estava totalmente seguro. O avião continuava a rondar a cidade.
ÁLVARO – É... Não sei, não... Isso está muito estranho. E se ela estiver certa? Bom, pra falar a verdade não estou assim tão preocupado, afinal o que eu tenho a perder? Meu filho... Acho que é a única coisa, que me faria ficar triste, caso eu não pudesse mais vê-lo... Engraçado (ele olha pra janela e vê a asa do avião tremer um pouco no meio de uma nuvem bem carregada), dizem que na hora da morte a vida da gente passa todinha na nossa frente, como se fosse um filme, uma espécie de sessão nostalgia. Mas nesse momento não estou me lembrando de nada, é como se esse nevoeiro tivesse engolido o mundo... Ou será porque só lembramos de tudo na hora da morte, quando sabemos que vamos morrer e não queremos ir? É... Acho que a verdade é que se eu morresse agora ficaria tudo bem, porque talvez seja isso mesmo que eu quero...
De repente, o ronco do avião se altera, todos se assustam, principalmente Sílvia, que no sobressalto estende o outro braço, segurando o encosto da frente. Naquele instante o mundo parou pra Álvaro: ele só conseguia ver aquele lindo e torneado braço, esticado, totalmente desnudo na sua frente.
ÁLVARO (pensando) – Mas que belo braço tem essa mulher! É forte, rijo e ao mesmo tempo tão harmonioso... E não é só o braço, olha só o ombro: torneado com curvas tão suaves, que dá vontade de deslizar até as mãos. E que mãos! Dedos longos... Unhas bem feitas... Isso me faz lembrar da Terra, da beleza humana... Pra quê morrer, afinal? Porque um homem, inteligente e bonitão como eu, iria querer ficar eternamente sem tocar a delicadeza, o calor e a força macia de um braço ou uma coxa... A suave irradiação da pele de um corpo de mulher...
Nesse instante ele ouve uma “vozinha familiar”, que parecia estar bem longe, chamando por ele.
SÍLVIA – Álvaro, Álvaro! Ai meu Deus, a culpa foi minha! Eu estava tão nervosa, que devo ter passado isso pra ele e na hora que o avião fez aquele barulhão, ele surtou! Só pode ter sido isso...
Álvaro está catatônico, com olhos abertos e expressão de bobo.
AEROMOÇA – Dr. Álvaro, por favor, fale conosco, Dr. Álvaro... Não adianta comandante, (ela se vira pra falar com o comandante) ele não responde, está assim desde...
COMANDANTE – Espere aeromoça, acho que ele está voltando a si. Dr. Álvaro está me ouvindo?
ÁLVARO – Hã? Ah... Sim, estou ouvindo, aconteceu alguma... Mas onde estão os outros passageiros e porque o senhor está falando comigo? Não estou entendendo nada...
SÍLVIA – Ai Álvaro, graças a Deus! Que susto você deu na gente... O avião já pousou, todos já desembarcaram e nós estamos a 15 minutos tentando te “acordar”!
COMANDANTE – Acho que o senhor teve alguma espécie de crise, na hora em que o avião soltou o estrondo; mas vejo que foi só um susto. Mesmo assim, prefere que chamemos um médico?
ÁLVARO – Não, não precisa estou me sentindo ótimo!
SÍLVIA – Se você acha que está bem mesmo e não precisa de nada, é melhor desembarcarmos. Vamos?
Eles se levantam e se despedem do comandante e da aeromoça e desembarcam. Vão caminhando em direção do aeroporto, enquanto Sílvia fala uma porção de coisas sobre o incidente, que Álvaro finge escutar, pois a única coisa que o interessava ele ver novamente aquele braço de mulher...
SÍLVIA – Bom foi realmente um prazer te conhecer, Álvaro, acho até que toda essa experiência me fez perder o medo de avião. Agora, antes de mais nada, é melhor você sair daqui direto pro médico! Pode não ter sido nada além de uma crise de stress, mas é melhor não brincar com essas coisas. Se você quiser conheço um ótimo!
ÁLVARO – É com certeza foi uma crisesinha de stress sem importância, mas pode ficar despreocupada que quando voltar pro Rio faço um check-up completo. Sabe como é quando a gente se acostuma com um médico... Mas me fale uma coisa, o que você vai fazer agora? Não quer tomar um cafezinho comigo? Seria bom relaxar depois dessa viagem turbulenta, afinal você quase teve razão: podia mesmo ter acontecido alguma coisa lá em cima.
SÍLVIA – Cafezinho? Mas você é mesmo muito gentil, Álvaro, depois de todo trabalho que eu te dei...
ÁLVARO – Então, (ele estende o braço) vamos?
Nesse momento chega um homem bonito e elegante, todo preocupado, chamando por ela.
EDUARDO – Sílvia! Finalmente te encontrei, meu amor! O que aconteceu? Não vai me dizer que você teve outra crise de medo? (Ela faz cara de quem concorda) Eu sabia! E você (ele fala pra Álvaro) deve ter sido a “vítima”, que aturou pacientemente os pavores da minha mulher.
SÍLVIA – Oi amor... (ela beija o marido, enquanto Álvaro parece que recebeu um “balde de água fria” na cabeça), Bom você me conhece, né? Eu tento, você sabe, mas na hora me dá um pânico... Ah! Deixa eu te apresentar: Esse é o Álvaro, um advogado que me fez companhia e acho que até me ajudou a não ter mais tanto medo de voar. Álvaro esse é o Eduardo, meu marido.
EDUARDO – Tudo bem Álvaro? (eles apertam as mãos) Olha você me desculpa a Sílvia, ela é assim mesmo! Eu já cansei de falar pra ela fazer uma terapia, afinal ela viaja bastante de avião e é muito chato ficar incomodando os outros, concorda?
ÁLVARO – Prazer Eduardo... Mas não se preocupe, a Sílvia foi uma excelente companhia e eu espero que realmente tenha contribuído para que ela perca de vez o medo de voar. Bom, vocês me desculpem, mas está na minha hora...
SÍLVIA – Nossa... É mesmo, como o tempo voa, não? Vai Álvaro não quero te prender mais. E mais uma vez, obrigada por tudo e não esqueça de ir ao médico, hein?
EDUARDO – Até mais! Foi um prazer.
Eles despendem-se e Álvaro fica lá parado, por uns instantes, vendo aquele lindo braço se enroscar em outro, que infelizmente não era o dele. E quando ele se preparava pra sair, Sílvia dá uma rápida olhadinha pra trás sem que o marido veja e sorri levemente pra ele.
ÁLVARO (pensando) – É, a vida tem cada uma... Olha eu aí quase me apaixonando por uma mulher do jeito que eu mais detesto: medrosa, chata, reclamona... Mas mesmo assim, capaz de me fazer desistir de abandonar esse mundo, por um motivo tão simples e ao mesmo tempo tão lindo! Com certeza, nunca mais vou ver a Sílvia, mas o seu belo braço, por um instante, foi pra mim a própria imagem da vida, que com certeza não esquecerei tão depressa...
Acordando novamente de seu “transe”, Álvaro pega a maleta e o paletó e vai a direção do ponto de táxi.
TAXISTA 2 – Boa noite! O doutor vai pra onde?
ÁLVARO – Escuta, por acaso você tem um irmão taxista que trabalha no Rio?
TAXISTA – Tenho sim, mas como é que o doutor sabe?