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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->Rio romance e violência -- 03/10/2001 - 15:33 (João Barcellos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

R I O

AMOR E VIOLÊNCIA NA CIDADE








João Barcellos



















A vida é um acontecimento e tudo o que a rodeia,
depois que a respiro de surpresa em surpresa,
deixou de me intimidar.
Fala-se muito de esperança mas vive-se em isolamento - e parece
até que a nível nacional (seja lá onde for) deixou de haver unidade, se é
que alguma vez ela existíu para além do efêmero poder - por isso,
viver é um agradável acontecimento.
De tudo o que rodeia este acontecimento eu me defendo,
calmamente.
Até um dia, o dia em que eu me deixar intimidar e da ponta da caneta não brote mais
o romance, a poesia e o amor. O dia em que eu não possa mais enxergar
a surpresa e aquilo que rodeia a vida me sufoque subitamente.




Ficção e realidade andam juntas. Quando iniciei o rascunho deste
RIO / AMOR E VIOLÊNCIA NA CIDADE
a fantasia das coisas e os personagens tomaram-me
por completo. E eu deixei-me ir nessa ficção desbloqueando
preconceitos até que consegui um painel daquilo
que sempre chamo de ritual surrealista do nosso viver.
RIO / AMOR E VIOLÊNCIA NA CIDADE
é isso: a brutal ficção do Eu entre os Outros
na globalidade do Estar.
Isto é uma ficção.
Isto é o fantástico enredo do Cosmo
que fez da Terra o berço humano.

Do Autor























I PARTE

Um Homem Diferente


1



E sempre que o pai expressava a preocupação que o assaltava pela hora tardia a que ela chegava em casa era a mãe quem punha um pouco d água na fervura...

Todos os dias Sueli, de há cinco meses a esta parte, sobe a favela por volta de uma hora da madrugada.

No seu pensar, agora, a imagem dos pais que a rodearam de muitos mimos, esforçaram-se uma vida inteira para a verem fora do ciclo de analfabetos ao qual eles pertenciam. Por isso, ela cursou o Segundo Grau; e, através deles, que tinham boa reputação junto da administracção do grande supermercado em que trabalhavam, foi empregada aí logo que terminou o curso. O local de trabalho fica longe de casa, no norte do Rio de Janeiro, no velho boulevard carioca. Sorri, mas não consegue disfarçar a tristeza espantando seus olhos negros que brilham sob a fraca iluminação pública da favela. Deles, seus pais, Sueli tem tudo de bom para recordar: ahn.., eles vieram lá do Amazonas, agricultores muito pobres, sem terra. Ahn... ela abanando a cabeça, ainda triste, e chegaram ao Rio para ganharem dinheiro e casar, o que só conseguiram dez anos depois de trabalhos forçados pulando de empresa em empresa; nesse tempo, o pai se meteu no Jogo do Bicho; ai, pobre pai, mas foi aí que ele conseguíu a grana para deixar a barraca e alugar a casa na zona nobre da favela, sim, depois compraram a casa. Para eles, que não sabiam nem ler nem escrever, o mais importante era criar as condições para o desenvolvimento da filha - eu, Sueli, que a mãe carregava então na barriga. Meus queridos pais, ahn..., repete Sueli quase em surdina um pouco do seu depoimento concedido a um jornalista de São Paulo logo após a morte súbita e criminosa dos pais, em agosto de 1987. Era um casal bom e cheio d amor..., deixa ela no ar fresco da madrugada que se anuncia.

Oi gatinha!, atira um moço negro de entre um grupo bem animado por tóxicos e cachaça. Ela logo o reconhece. É um dos aviões que gosta de curtir a noite alta ali junto da Via Ápia. Olhem o sambar da crioula bonitinha..., observa outro negro, de olhos inchados e mais retorcidos pelo caminhar leve e balanceado da jovem. Ela continua o seu caminho enquanto eles riem. Oh turma de nojentos!, resmunga ela quase em casa, os cabelos bailando na brisa.

Há três anos que ela está trabalhando e sempre chega com o anúncio da madrugada; por isso, sempre ouvíu dos pais para nunca virar a cara bruscamente diante de um grupo de negros e brancos boémios, é sorrir e continuar a caminhar para evitar o estupro.

Ao alcançar a porta de casa ela sabe que ainda tem os olhos vagabundos do grupo no seu traseiro. Não é segredo para ninguém que vive sozinha e isso é uma tentação na favela. Uma doce tentação. Respira fundo enquanto fecha a porta atrás de si e se volta para introduzir o fecho da segurança na ranhura. Mas no momento em que faz isso é invadida pela imagem daquelo negro - o avião. E assusta-se. Já topara com ele na loja de discos, lá no Boiadeiro, e também na boca-de-fumo lá na entrada da favela; sente o corpo tremer e deixa-se cair na cadeira de baloiço onde o pai costumava repreendê-la quando chegava mais tarde em casa; o pranto inunda-lhe o rosto moreno. É um ser na encruzilhada de uma vida que começa a conhecer sem o amparo dos pais, uma luta que sabe, em parte, igual à de muitas jovens que, na adolescência, enfrentam a solidão e a vida.

Adormece ali mesmo. Deu conta disso quando o seu pi-pi de quartzo atacou às seis horas: dá um salto, a cadeira a baloiçar na guinada súbita.

Sob a água quente do chuveiro Sueli sente-se meio atordoada. Mas é uma mulher de determinação, os fantasmas do mal que a rodeiam e pululam pelos morros do Rio não a desmoralizam. Sai do banho com este pensamento. Meu pai tinha razão, parece querer dizer ao pôr no pescoço o fino cordão de ouro que segura uma medalha em forma de coração - um coração que guarda, com muito amor, duas pequeninas fotos dos pais.

Nunca se preocupou muito com a sua imagem. Veste rapidamente as calças de tecido leve e uma blusa do mesmo tipo; os cabelos caem lisos pelos ombros como cachoeira de negras rutilâncias; e, nos pés, aquilo que desde os seus quinze anos é uma obsessão conhecida de todo o mundo: uns sapatos de salto médio. Gosta de caminhar assim, levemente. Sem nunca se ter dado conta, é isso que a torna mais atraente. Como dizem as amigas. Deixa no ar uma gargalhada meio abafada enquanto arruma pequenas coisas na bolsa de mão e toma iogurte com mistura de frutas.







2


Ei Sueli!, vamos..., grita alguém em meio ao ronco de uma moto.

Lá vou eu pra vida, pensa ela. Sorri.

É um primo que, quando pode, antes das sete horas, passa ali a buscá-la. Fazem o trajeto até à Estação de S. Cristovão e daí ela segue para a Vila Isabel.

Bom dia, Ambotá!

Os dois riem do jeito dela tomar o café da manhã. Sempre correndo com o iogurte na mão. O cafezinho eu tomo lá no serviço, diz.

Sueli chama ele de Ambotá em homenagem aos seus grandes bigodes. Um dia, pouco antes de ele comprar a barraca, ela leu algumas frases e palavras do vocabulário Guarani num jornal e anotou que a palavra Ambotá significa Bigodes. Gostou da palavra e aplicou-a na hora, com êxito.

Montando uma moto de grande cilindrada ele aguarda que Sueli feche a porta de casa. Depois de a beijar no rosto passa-lhe o capacete.

Ambotá chegou ao Rio há três anos montado numa velhinha moto BMW que, depois de limpa e pintada, ainda lhe rendeu bom dinheiro. Era uma relíquia desejada por muita gente. Com parte desse dinheiro comprou a barraca que habita sózinho e, com a ajuda dos pais de Sueli, seus tios, conseguíu emprego numa fábrica perto da Quinta da Boa Vista onde ganha dois salários mínimos como segurança interno. Ambotá, aliás Manoel Três Bocas, ex-fusileiro naval, é um tipo alto não muito forte mas de presença marcante, autoritário. Gosta de dirigir a sua Honda e sempre usando o capacete integral contra o mau hábito dos motoqueiros cariocas que levam capacete enfiado no braço. É-lhe gratificante ter conquistado a amizade da prima que o tem forçado, sem conseguir, a aceitar viver na casa da Via Ápia. Isso será muito mal interpretado no morro, pensou. Sabe da inveja que tem causado nas turmas de jovens da favela mas também não faz nada contra a aproximação de alguém que goste de Sueli; para ele, Sueli é como irmã. E só. Numa onda de protecção após a morte dos pais dela ele tem avisado as turmas contra qualquer abuso. E vem daí o à-vontade que ela desfruta na favela.

Vamos, minha linda!, diz ao sentir os braços dela na sua cintura. A moto ronca favela abaixo. Hoje eu posso levar tu lá na Vila, víu!, diz ele quase berrando. Que bom!, diz ela com um riso feliz.

Sente-se bem na companhia do primo. Às vezes, quando o horário lho permite, ele vai buscá-la no supermercado, outras, passa por lá para um chopinho agradável.

Ele disse-lhe que iria ser monitor de judo num ginásio perto do Morro do Macaco, foi num fim de tarde lá no serviço, e quando ele a deixou ela quase sufocou: o morro é aqui ao lado...Ele vai pra lá, me quer proteger, é isso..., pensou. Decidíu-se então a falar com ele no dia seguinte, de manhã. Aí ele confessou que sim, que ía para aquele ginásio para estar junto dela. Choraram os dois, abraçados. No entanto, ela conseguíu tirar aquela idéia da cabeça dele. Não sabe porquê mas recorda-se agora desse episódio engraçado e muito humano. Que bom!, repete ela.

Embora não se tenha tornado ainda um hábito, Sueli vai algumas vezes até ao bar que fica no Morro do Macaco e onde se reunem vários sambistas.

Reduto maior da comunidade negra que milita na Escola de Samba de Vila Isabel, o morro é uma bandeira. A jovem não teve dificuldade em se inserir na turma e fazer amizades.

A crioula bonitinha foi ali parar pela mão de uma companheira de serviço - a Marta, que há dez anos desfila pela Vila Isabel. Fé em Deus e Samba, eis o seu lema. Sueli foi àquele bar pela primeira vez em outubro de 1987, com ela. Depois de beberem cerveja ela assistíu a alguns passos do Samba de Partido Alto, uma umbigada cultivada por minorias negras; dança considerada de grande dignidade pela tradição, e que a exuberante Marta resolveu mostrar para ela na companhia de um velho de muitos desfiles na passarela do samba carioca. Ele, esquelético mas habilidoso, trajando somente samba-canção, deu um espetáculo à parte no terreiro do bar. Ela, negra bonita e sensual, despertou toda uma magia interior logo nos primeiros passos; e logo os seus filhos gémeos surgiram com o mesmo ritmo no pé. Sueli ficou tonta com aquela beleza, aquela doçura. Contagiada. Vem qu eu te ensino..., sugeríu Marta na terceira vez que levou Sueli ao bar. Eu!?... assustou-se ela. Mas foi. Negra esperta, Marta reparara na beleza da companheira de trabalho: mais tarde ou mais cedo alguém leva ela pra uma escola, pô!, com este corpinho... Sabia que Sueli nunca havia desfilado. Nem sei o que é uma escola de samba, ouvíu-a confessar. Inclusive, seus pais e o próprio Ambotá não íam muito em Samba apesar de formarem uma turma alegre. Assustou-se. Marta puxou-a e ela teve a sua iniciação de sambista naquele reduto onde o ritmo tem alma e raça africanas.

Nessa noite, depois da cerveja e da dança, às vezes sob a risada dos moleques, ela foi para casa com os desejos esquentando, a cabeça entre mil ventos. Mirou-se no espelho grande do armário, ensaiou alguns passos, o corpo nú no som de um velho samba que o toca-discos debitava. Oh meu Deus, será que vai dar certo?, questionava-se com os olhos no Cristo de madeira que Ambotá fizera para ela. Mas se a Marta pode eu também posso, pô!, decidíu-se. Não dormíu direito, nos seus lábios havia aquele sorriso de aventuras, de vitórias talvez.

As idas ao Morro do Macaco transformaram a pacata Sueli numa jovem crioula transbordando de alegrias e sensualidade.



3


Passa das quatro da tarde.

Manoel Três Bocas lê um diário da cidade. Bah, têm de ser fusilados!, resmunga ao término da leitura de uma local sobre o estupro de duas garotas e uma quarentona alemã, em Copacabana.

Pela instalação sonora ouve o seu nome, chamam-no à Directoria pelo Departamento de Pessoal. Que será?, questiona-se. Ele não tem explicação para este chamado. Ora, promoção é só pra branco..., nega ele qualquer chance a si próprio. Se calhar têm pessoal de segurança a mais na fábrica, murmura.. Atira com o jornal para cima da tampa metálica da mesa e dirige-se ao seu chefe, um dos proprietários da empresa. É o próprio proprietário quem chefia este departamento depois que o antigo chefe da segurança se aposentou. Cheio de curiosidade, Manoel Três Bocas vai de passo apressado.

Este homem que veio lá do Amazonas, nascido num lugarejo chamado Três Bocas, tem uma particularidade: é tão calmo que chega a assustar quem com ele trabalha. Mas foi isso que o fez ser fusileiro naval.

Antes de entrar no gabinete compõe os seus bigodes que mantém em corte aristocrático. Entre, senhor Manoel Três Bocas!, diz alguém que o vê aproximar da porta meio envidraçada. Chamaram eu pelo som, ó doutor..., diz em jeito de cumprimento. No gabinete há uma mulher e dois homens, um deles idoso. Que o olha bem de frente e lhe diz que em virtude do velho chefe da segurança estar aposentado e não querer mais nada com o serviço, venho ocupando isto temporariamente, mas, meu jovem, eu e o resto da Diretoria temos bons motivos para o convidar...senhor Manoel Três Bocas - há no falar do idoso o jeito de ser português e no olhar um sorriso de conquista recente - para o exercício deste cargo importante e de muita confiança. O senhor, meu jovem, nos deu boas provas de confiança, tem uma folha de serviços óptima; aliás, tão exemplar como a sua folha de serviço militar..., e deixa, assim, o antigo fusileiro naval sem fala, mole. Na moleza mesmo. Não sabe o que dizer nem o que pensar, um nó na garganta impede-o de articular qualquer palavra. Pois diga-me, meu jovem: está interessado?

...?!

Diante da expressão de profunda surpresa do funcionário, ele solta uma risada: sabe, meu jovem, português é liberal mas não é burro.

Ah, terá salário de quarenta mil cruzados e ajudas para alimentação e vestuário, pois terá de acompanhar os membros da Directoria nas reuniões importantes, e de supervisionar o funcionamento de tudo o que se liga à empresa-mãe, aqui do Rio. Terá toda a liberdade de acção e me entregará um relatório semanal, pois estará sob a minha direcção. Certo?... Aí, ao ouvir as últimas palavras, ele cai das nuvens. Homem de cor não pode ter tudo, só branco. Esfrega as mãos suadas nos bolsos traseiros das calças de ganga. E tosse. Gotas de suor invadem-lhe a fronte. Sorridente, na sua frente, o patrão: esta empresa, meu jovem, precisa de profissionais mais moços, gente dinâmica como você! O que deixa Manoel Três Bocas na moleza total. Raras vezes ouvíu o patrão elogiar algo ou alguém, apesar de ser uma pessoa afável com todo o mundo. E continua suando, suando como nunca suou. Apetece-lhe gritar. Não sabe como mas num jeito que lhe é caro estende a mão ao idoso que logo a aperta. Muito bem, meu jovem, a partir de hoje é o novo Chefe da Segurança.

Felicidades. E agora, pode ir mais cedo para casa.

Rapidamente, sem dizer palavra, deixa o gabinete que amanhã terá também uma mesa e armário para ele. Ele, Manoel Três Bocas que veio lá do Amazonas. A alegria domina-o. Chefe da Segurança, o seu novo cargo, é um lugar de peso; tem carro próprio para circular nas horas de expediente entre as outras unidades da empresa, licença de porte de arma de fogo, e muitos convites sociais. A felicidade veste Manoel Três Bocas.

Nem pensa duas vezes. Monta na Honda e sai dali como cavalo alado.


*
Olha, oh Ambotá!, exclama Marta, surpresa. Aquele homem de trinta e sete anos, moreno de olhar profundamente negro, não a ouve. E continua perscrutando o interior do supermercado. Ambotá!, grita ela novamente, os braços no ar, quase desesperando. Até que ele, meio aparvalhado, topa com ela. Oi Marta, onde está ela?, questiona. Ela ri, encantadora. Se não soubesse da amizade fraterna que o une à prima juraria que ali havia caso. Hum..., suspira. Ai moço, deixa que mim procura pra tu... Ergue a mão na direcção de uma companheira e pede que ela dê o recado a Sueli. E logo se fixa no homem. Acha-o estranho mas feliz. Alguma coisa gostosa aconteceu com ele, tenta adivinhar. Não sabe definir aquele ar de homem perdido na multidão que só ele vê, e um capacete de motoqueiro louco debaixo do braço. Amável, puxa-o para o bar: vem, conta pra mim Ambotá.

*


Sueli acaba de receber das companheiras os pareceres referentes à folha de férias; encarregada de processar o assunto para a Directoria ela quis saber as disponibilidades de todas e assim elaborar uma folha com distribuição justa de tempos. Comporta-se como alguém esclarecido em relacção ao sistema de trabalho mesmo que, como no seu caso, estando longe das tramas sindicais e políticas; faz por melhorar o sistema de uma forma razoavelmente moderada. Politica no trabalho é pra quem tem as costas bem guardadas!, dizia-lhe a mãe: a gente pobre não leva nada de ninguém e quando um sindicalista ou um político levam alguma coisa de gente, que nem voto, sobem nas nossas costas tão logo chegam ao poder... Uma licção de vivência social que ela tem bem presente. E não esquece o pai que, para conseguir uma casinha de tijolos, teve de aceitar trabalhar no Bicho em condições, para ela, esquisitas. Tudo ele investíu em mim, lembra. Está neste pensamento penoso quando uma moça lhe toca no ombro: meu bem, teu primo está no bar. Fica agradavelmente surpresa, agradece à moça com o polegar da mão direita esticado. Demora um pouco mais ordenando os papeis e rubrica cada um deles para os guardar numa pasta plástica.

Quando se aproxima do bar vê que Marta e Ambotá estão numa conversa alegre.

Só no boteco do Morro do Macaco é que ela soube da viuvez de Marta. Por isso aquele apego aos filhotes, pensou. Ao contrário de muitas de suas companheiras, Marta não desgruda nunca dos seus pequenos gémeos, e quando tem de se afastar deixa-os com a avó. Eh, não só de Samba se faz a vida..., opinou Sueli sobre o assunto, depois de mais uma aula de samba no terreiro. E com muita ternura. Agora, vê a amiga feliz. Será que Ambotá e Marta..., mas fica a meio do pensamento.

Vem ver o marajá, meu bem!

Marta pôe a amiga ao corrente da novidade. Os olhos de Ambotá brilham no meio das duas. Sueli abraça-o e beija-o nas faces. Que bom, Ambotá..., diz. Os seus olhos não escondem a alegria: as lágrimas brotam com alegria. Marta convida-os a festejar o acontecimento em sua casa, mas logo Ambotá levanta a mão opondo-se; ele prefere que Marta vá com os dois filhos para casa de Sueli. Uma festa de camaradas, diz.

Bem que ele gostaria de ter ali os pais de Sueli para lhes dar a boa nova. Víu-os partir do Amazonas há muito tempo e quando os reencontrou, no Rio, recebeu deles o maior carinho; desde então sonhou com um prémio assim para os velhos - um prémio fruto do seu trabalho. Sempre quis mostrar aos velhos uma posição social ganha sem corrupção! Oh, que felizes eles devem estar lá em cima, meus deuses..., desabafa com os seus botões. Vai agora montado na sua moto seguindo o táxi que transporta Sueli, Marta e seus filhos.

Esteve para desistir do emprego na fábrica. Um banqueiro do Jogo do Bicho propôs-lhe há tempos um lugar de importância junto das bancas e uma óptima percentagem. Recusou. Como já recusára um convite para ingressar na Polícia Federal dada a sua extrordinária vocação militar no aspecto de estratégia e de logística.

Depois de ter aprendido a ler e a escrever com um missionário lá no Amazonas ele leu algumas coisas sobre temas militares portugueses e chineses, além dos escritos de muitos guerreiros e guerrilheiros que estudou com afinco já durante a sua carreira de fusileiro naval; sendo, também por isso, um exímio atirador e um óptimo estratega de guerrilha e contra-guerrilha. Antes de terminar o serviço militar, Manoel Três Bocas aproveitou para obter os diplomas de monitor em judo e natação. Das polícias e dos militares de carreira ouvíu muitas histórias de corrupção e de extorsão e não quis se aliar a isso. Como monitor de judo e natação algumas portas lhe foram abertas ainda no Amazonas, mas preferíu deixar tudo e mostrar que poderia ser um-alguém vencedor no Rio de Janeiro. Foi quando montou na sua velha BMW e se fez à estrada com a obsessão de ser diferente dos nortenhos que arribam à cidade grande e maravilhosa do Cristo-Rei. É do meu trabalho que vou viver, gente!, deixou ele o recado. Por isso deixou de lado o Bicho e o Narcotráfico para ser um homem livre. De coração aberto ao potencial humano e divino que cada um carrega nesta vida, como lhe dissera um dos amigos de infância: Zé Floresta. Com ele aprendeu que somos todos obra de um Grande Arquitecto e que cada passo da Vida é um Mistério que desvendamos. E ele, Manoel Três Bocas, sabendo que Zé Floresta era quase analfabeto, nunca entendeu muito bem aquela Sabedoria... Não vai há muito tempo, um dos poderosos do narcotráfico carioca e paulista lhe falou de mansinho, uma cantada daquelas de fazer conter a respiração: não é que o dito cujo queria colocar Manoel Três Bocas como seu braço direito? Iria ser o capataz de uma fazenda, bem lá no Amazonas, e tratar da maconha que lá é plantada. E recusou. Mas o cara tentou outra alternativa para engajá-lo na sua mafiosa teia: Não quero nada com isso de contravenção, meu tio!, foi a resposta dele ao convite endereçado via seu tio. Uma recusa encorajada por Sueli. Mas sentíu a tristeza da tia que não deixava de dizer: ser pequeno é difícil, e temos de saber fazer alianças com os poderosos... Não adiantou. Ele saíu da encrenca armada e continuou na fábrica da Quinta da Boa Vista. Mas não deixou de refletir sobre os seus tios que poderiam ter sido forçados a obrigá-lo a aceitar a proposta do poderoso, já que os velhos eram unha com carne em relação a esse chefão do submundo e os protegia.

Deixa para trás esses pensamentos tristes e presta mais atenção na estrada. O táxista recusa parar o carro perto da entrada da favela. Pô, aí na boca não. Tá falado, pô!, e deixa todo o mundo a mais de cem metros do local. As mulheres e os pequenos seguem atrás da moto subindo até à Via Ápia. No supermercado, Marta comprára uma garrafa de Champagne e Sueli já havia dito que iria fazer ums bolinhos de bacalhau: é pra juntar ao feijão preto que o Ambotá não dispensa apesar de não ser carioca! Marta não gostou da atitude do taxista mas acalmou logo por causa dos filhos. Na chegada à Via Ápia já está com outra cara. Mim não gostar de levar desaforo pra casa, pô...






4



Depois da guerra entre os traficantes de tóxicos e os bicheiros no Morro Dona Marta, onde os policiais dificilmente entram, vários corpos foram encontrados sem que as autoridades pudessem fazer uma ligação lógica com o caso. Mas, em algumas áreas aumentou o número de roubos menores e de estupros. E ao contrário daquilo que seria de supor, a guerra entre as gentes do submundo aumentou a venda de entorpecentes que das favelas irradia por todo o Estado carioca. A maior dificuldade das autoridades está dentro dos sistemas policial e militar: tem ex-policial e ex-militar, e mesmo elementos da activa, orientando ou participando directamente de assaltos e sequestros, extorsões e assassinatos violentos. Mas, também, na esfera da chamada alta autoridade e entre os políticos existe quem segure e distribua e enriqueça com o narcotráfico e o crime organizado.

A cidade do Cristo-Rei está mergulhada em muitas trevas. Por vezes, quando surge uma luzinha no túnel das investigações ela logo desaparece sob o nariz das autoridades. São as trevas impostas ao Poder pela contravenção generalizada e que cobrem o crime-de-facto.

Essa coisa monstruosa que Manoel Três Bocas descobríu topando a articulação subreptícia onde a fruição dos pequenos detalhes levam à alta criminalidade. O valente do Amazonas ficou assustado. Puxa... E como ele, grande parte dos cariocas é gente assustada e impotente face a esta fruição da contravenção que galga a vida dos outros sem pedir licença.

É fácil dizer que os favelados e toda a gente que habita os morros cariocas e paulistas são um mundo da pior espécie. Condenar é fácil. Mas, onde a autoridade se não existe a reforma social e política que transforme a situação corruptiva? Isto ele ouvíu da boca do amigo Zé Floresta. Mas também de um outro nortista que agora é policial. Conheceu-o nas fileiras militares, era também fusileiro naval e deixara-se convencer por outros entrando para a Polícia Federal. Um jovem procurando o elixir que pode mudar a face humana. Mais um... Mais um poeta como o Zé Floresta!, desabafou Manoel Três Bocas.

O amazonense era dado a leituras esporádicas de poesia por influência do sempre misterioso e sábio Zé Floresta.

Um dia, em casa da prima, ficou a noite lendo O Guardador de Rebanhos. Após ter lido e relido a poética heteronímica pessoana, com algumas idas ao diccionário, deixou escapar: Eh, se todo o mundo tivesse a força de vontade pra não ser guardador de rebanhos haveria, ai s haveria..., mais liberdade e menos tolices políticas! E ela, pasma, ouvindo. Pelo que sei desse tal de Floresta, que ocê tanto fala, acho que acabei de o ouvir nas tuas palavras, primo. Manoel Três Bocas dá-se conta, então, da importância que tiveram as longas conversas com o amigo de infância. E ele que nunca saíu lá do Amazonas, não vai há muito, ó prima, me dizia que o narcodolar é a moeda inflaccionária que o mundo dos ricos está pagando pelas atropelias que fez e faz aqui no Terceiro Mundo, e que é uma...bah!, como é mesmo?, ah, e que isto distorce a realidade política e cultural mas que os povos, como nós, brasileiros, engolem com facilidade entre um jogo de futebol e um bailarico de arrasta-pé...

Aprendi na escola, com um professor meio poeta, que precisamos ser palhaços de nós mesmos - aprender a chorar e com as lágrimas fazer a poesia da sobrevivência!, diz Sueli.



5

O antigo camarada de Manoel Três Bocas procurou-o quando soube que ele vivia na Rocinha, a favela maior do Brasil.

Quis um bate-papo dos antigos. Pelo meio das futilidades o homem da Polícia Federal foi questionando sobre a infraestrutura dos tóxicos na favela, mas, quando se apercebeu que o amigo pertencia àquele pequeno grupo dos favelados que vivem à margem dessa realidade quotidiana, arrepiou caminho e virou a conversa.

O homem do Amazonas, mesmo assim, mostrou que conhecia aquele submundo e deixou no ar algumas pistas sobre uma refinaria, ou coisa parecida, que funcionaria perto da Avenida Perimetral e com ligações a grupos da Bolívia e da Colômbia. O policial ficou de boca aberta, sem fala. Manoel Três Bocas não tinha provas do que havia dito, ouvira falar - no morro se fala de tudo, nê - quando o tal todo-poderoso o convidou para entrar e ser seu braço direito. E você pode ser um impecilho pra eles agora!, observou o policial temendo pela segurança do amigo. Não, desde que não vejam a minha pessoa com gente da PF, meu!, logo ele recordou, esperto. O policial compreendeu que nada mais tinha a fazer por ali, mas não se deu por vencido. Ah, vai lá nas Larajeiras pra tomar um gole em minha casa. Convidou. E o outro achou o convite agradável. Hum, e depois damos um pulo na Bartolomeu Mitre, no Leblon!, adiantou o policial. Conhecia a preferência musical do antigo camarada. Uma das razões que o trouxe pro Rio foi isso: a Bossa-Nova, concluíu para si mesmo.

Um dia, quarta-feira, já noite, Manoel Três Bocas deixou a favela e dirigíu-se para as Laranjeiras. Um bairro por onde ele gostava de passar. Bairro bonito, sempre dizia a quem o acompanhava.

Quarto piso, apartamento dois.

Conheceu a esposa e o filho do amigo. Bebeu ‘pinga ianque’ e depois foi com ele ouvir Bossa-Nova no bar. Ficou encantado com a simplicidade do casal. Ele a conheceu na Ilha do Governador quando ela estava de folga do trabalho: professora de História na Universidade Federal. Estavam na porta do bar, ainda. Com uma montanha de papeis para pôr em ordem ela preferíu ficar em casa com o filho. Um homem de sorte este Marcão, pensou Manoel Três Bocas. Deu sorte. Mais um do Amazonas com sucesso.

Por que você não acreditou naquilo que eu lhe disse?, quis saber Ambotá. Ficára com essa impressão após a conversa durante o reencontro na barraca. Uma velha estratégia, meu velho, disse o outro, você esqueceu o que aprendeu com os fusileiros? Ora, se eu tivesse agido logo em cima das informações que estava ouvindo você não viria em minha casa. E eu queria que você viesse em casa pra conhecer a minha família. Afinal, meu velho, estivemos juntos dez anos... Um desarme e tanto. Ambotá sentíu-se pequeno.

Pelas ruas e vitrines das lojas do Rio viam-se muitas alusões ao Natal. Nessa noite, antes de saírem do apartamento, Marcão ofereceu ao amigo um video-cassete com uma gravação da musa da Bossa-Nova. Habituado a ver policiais e militares corruptos e confrontado com o alto índice de gente desse quilate, Ambotá assustou-se. Foi idéia de minha mulher!, tranquilizou o amigo.

Depois do bar no Leblon e daquele ritmo que os americanos dizem de Jazz, talvez por considerarem que sendo o Brasil quase uma colônia sua, também a Bossa-Nova é ritmo seu, retornaram para o apartamento.

Ainda no elevador, fixado em Marcão, ele questionou: que sabe você, amigo, acerca de Efigênio Três Bocas e sua mulher Teresa? Deixou no ar toda uma ansiedade, profunda ansiedade. Mas, que resposta aguardava ele do policial? Até ele mesmo se perguntava... E as indicações que temos, dizia o outro, ou aquilo que a gente sabe depois que os corpos foram encontrados na Baixada Fluminense, é que trabalhavam pra turma de um cara perigoso e muito forte. Bem, a gente acha que os velhos deram um banho e pagaram caro por isso...mas, isto é a opinião de poucos. O fato é que é assim que essa turma trata dos seus negócios quando são roubados!, terminou ele, calmo e saboreando as expressões do amigo. E vendo que ele franzia o sobrolho ao ouvir deram um banho, explicou que isso significa receber mercadoria (tóxicos, nê), receber grana da venda e ficar com ela. Topou?

...?!, esta expressão de Manoel Três Bocas também alertou o homem da PF, mas não quis perguntar as razões que mexeram tanto com o amigo. Era coisa séria, sim.

Ambotá soube, então, o significado da indignação da tia Teresa quando ele se negou a servir o todo-poderoso do narcotráfico. Uma coisa é o Jogo do Bicho e outra coisa é a Droga, pensou, e só a Droga justifica a boa vida que os velhos levavam ultimamente...

Entendi muito bem a morte dos velhos!, quase resmungou diante do meio sorriso de Marcão, que dá uma gargalhada. Já estava a desconfiar que fosse outra coisa, pô!, rematou com outra gargalhada. E não estou rindo da morte, estou rindo da vida, meu velho.

Com a resposta de Marcão sentíu-se mais esclarecido, sim. Tomara que Sueli não venha nunca a saber disto!, orou ele a seus deuses ancestrais. Olha, continuou Marcão, Teresa passava as drogas no supermarcado mas nunca envolveu a filha na turma. Se é isso que está incomodando... E era mesmo. Aliviou a pressão do amigo que estava já em ponto de raiva. Manoel Três Bocas sorríu de orelha a orelha enquanto passava um braço no ombro de Marcão. Apesar das notícias más ainda havia espaço para as boas: a bela Sueli está longe das merdas da favela!, suspirou. E continuou: ela é como a minha pessoa, sabe Marcão, incorruptível. Outra coisa: eu e você somos gente diferente, somos do Amazonas, filhos do Sol e da Floresta, gente que os Deuses abençoam como filhos naturais... Ai, corta Marcão, tá me parecendo o Zé Floresta. Lembra do Zé Floresta? Depois que eu falei tudo sobre ele para a minha mulher ela disse: esse moço é maçon e jamais vai sair do meio da floresta...Hum, e ela disse isso?, tornou ele, pois tem razão Marcão: o Zé Floresta nasceu e vai morrer nas quebradas da Amazônia. E isso de maçon é quê? Ah, esquece... o que interessa agora é que Sueli está fora daquelas coisas. É minha prima... Ôba!, e Marcão deixa no ar outra gargalhada.

Se a Cidade Maravilhosa chafurdava na mesquinhice política e na corrupção social, que tinha ele a ver com isso? Se uns matavam outros num processo de tubarão engolindo peixinhos indefesos (porque desunidos e sem esperança), que tinha ele a ver com isso? Trabalhava, ganhava o seu com suor e nada devia aos outros: construía a sua liberdade. Quando deixou o Amazonas nunca pensou viver o mal. No meu sangue só há bondade, dizia. Como continua dizendo Manoel Três Bocas, quase um analfabeto que foi um bom militar e que da política nunca víu a cor. E o Rio de Janeiro, em seu entender, assemelha-se a um gigantesco morro feito de muita besteira contra a natureza. Um sítio se faz após levantada a infraestrutura pra ele!, ouvíu muita vez na voz de Zé Floresta. Ai, e esta cidade é um buraco onde caem todas as águas, tudo o que não é natural cai neste Rio... Ai, um dia...

Pode parar de pensar que essa cabeça vai virar fumaça, disse Marcão.

Empurrou a porta do elevador e ambos saíram para um corredor estreito e quente.

Entre mais uns goles de caipirinha, falando baixo porque o resto da família já dormia, disseram da vida, da pobreza, dos dias de treino militar e da temporada que ambos viveram nas ruas do Rio aprendendo as mil peripécias da luta anti-guerrilha urbana, e muitas anedotas picantes em que Marcão era sabido.

Tudo bem para os dois.





6


Após o Natal, puxado por Marta, sempre ela, Ambotá passa a acompanhar Sueli nos ensaios da Escola de Samba. A um mês e pouco do desfile na Marquês de Sapucaí ele não consegue ainda a leveza do corpo de passista que a prima já exibe.

Passa mais tempo no bar bebendo cachaça ou cerveja.

Até a prima entra bem no chopinho...

De há uns tempos a esta parte brilha uma incógnita no seu pensar. E ela, a prima, está estranhando a atitude meio oculta dele. Para ela, Ambotá parece mais agressivo, e às vezes só a presença de Marta o tira do isolamento. Será que estão puxando o meu primo pró narcotráfico?, questiona-se ela em conversa com Marta, mas sempre se responde com um riso francamente aberto por não ver em Ambotá esse jeito criminoso de ser e de estar. Há nele um eu - ah, lá vem o poeta amigo do Pessoa..., recorda ela a poética que leu de Mário de Sá-Carneiro -, um eu de verdade, ele é senhor de si mesmo. Criminosos são outra gente, e eu conheço essa gente, ora, e ele, Ambotá, tem de se cuidar pra não cair na rede deles. Ambotá jamais vai subir na vida com a ajuda do crime, eu sei!

Marta, quando se fala dele é outra mulher. Sueli já lho disse, rindo. Bem que eu gostaria de ter ele nos meus braços. Hum, gato..., foi o desabafo de Marta a puxar para a gargalhada.

É ela quem o vai buscar agora dentro do bar. Vamos gato, diz, a escola precisa de gente pra levar a mensagem da raça negra pró Sambódromo.

Sueli vê-o dançar.

Junta-se à turma com a alegria que seu corpo lindo exala cada vez mais sincopado no ritmo que desperta o Samba.

Antes de retornarem ao bar, alegres e suados, em um dos intervalos do ensaio, Marta e Ambotá viram uma cópia do esboço de um carro alegórico alusivo à figura da escrava Anastácia que a Estação Mangueira vai pôr na avenida; e foi ele quem se mostrou mais interessado nas questões da Abolição. Foi o seu tutor religioso que o iniciou nas literaturas sobre a Escravatura e a Abolição, o Poder dos brancos, a Lei Áurea e o Zumbi, embora a revelação das circunstâncias históricas tivesse sido obra das muitas conversas com Zé Floresta. Muitas vidas sangraram pra termos agora a ilusão da liberdade, disse Ambotá, e depois, ele não se atirou de penhasco, ele foi morto e a cabeça separada do corpo. Tiram da gente a verdade da História como tiraram de nós a Cultura dos nossos antepassados, víu... Marta sorri. Mas ele - o Zumbi, é o nosso ídolo, a imagem da resistência. Contra essa imagem o branco nada pode!, disse ela.

Chegados ao bar, Sueli repara em parte de um envelope sobressaindo no bolso de trás das calças de Ambotá enquanto ele puxava uma cadeira para Marta. Parece-lhe o mesmo envelope que vira dias antes. Que será?, ela julga que a carta tem algo a ver com o ar um tanto desolado que Ambotá apresenta.

Enquanto os corpos estão no agito do Samba de Partido Alto, as palmas, o violão, as percursões de negros urbanizados mas sempre perto das raizes africanas, ela dispara: Ambotá, aconteceu coisa que mim não pode saber? E logo vê que o primo franze ainda mais o sobrolho. Que não quer falar, realmente. Talvez seja mesmo um assunto desagradável, coisa ruim lá do Amazonas mesmo. Se você quer assim podemos ir pra casa e lá falamos, no só!, insiste ela. Pressente que o primo está sofrendo. Sem deixar de articular o corpo no som, sua característica, ele puxa o envelope e o estende para Sueli, enquanto Marta brinca com os filhos. Ela senta-se, meio perturbada, entre os dois.

No envelope há dois papeis com uma letra bonita e redonda.

A carta inicia com os cumprimentos habituais e é datada de "7 de janeiro de 1988, Juruena, Mato-Grosso". Sueli lê com avidez e a certo passo da primeira folha fica tensa: "...assim o José foi baleado com um 38 depois da manifestação no garimpo. Antes de ser morto houve taca com guaxebas de um traficante que você conhece aí, creio". Ela observa, apesar de tensa, que Ambotá a olha em meio à atenção que presta para Marta. Está tentando sacar a minha impressão, pensa. Marta rodeia-o com uma umbigada parecida com a dança do ventre, exuberante como só ela, e ele deixa-se ir naquela magia que é mais alma que corpo. Sueli sorri e mergulha novamente na leitura da carta. "Não quero que você fique espantado com o que acontece neste novo eldorado que os ianques não souberam explorar. Ainda ontem estive falando com um dos chefes do garimpeiro e ele me disse que sob os meus pés (o barro vermelho e lamacento que eu pisava) só havia ouro! Eles lavam e filtram o barro que dá muitos quilos de ouro em pó por semana; o que o José já tinha dito a nós um dia. Recorda? Bem, aconteceu que o José descobríu que o amarelo compra o branco, que o ouro é desviado pela turma da cocaína, o pó branco da morte. E toda a maconha. Ele andava muito metido com o pó branco nos últimos tempos, mandou até carta: queria falar comigo, urgente. Fiquei assustado filho, muito assustado. Por causa dos pós ele foi morto. E vai morrer muita gente por aqui, que os guaxebas são como os caçadores de homens do oeste americano, ou como os bandeirantes não menos caçadores do que aqueles. A vida vale pouco desde que estes pós circulam nas mãos dos homens, meu filho. E não esquece as tuas coisas, filho, que estão em minha casa", continua a carta.

Sueli está magnetizada pela violência do queixume e do facto que rodeou a morte de José.

Ambotá e Marta aproximam-se da mesa onde se encontra Sueli. Ele coloca uma mão sobre o ombro dela e explica que "taca" é uma briga violenta e que "guaxeba" é jagunço. Logo percebera que algumas coisas não haviam ficado nítidas para ela.

E que José era um menino, veja bem Sueli, que aprendeu a escrever e a ler nas aulas de Francisco. Mas sempre arredio, é verdade. Uma árvore dizia mais que mil livros pra ele. Muitas e muitas conversas eu tive com o José, que eu chamava de Zé Floresta... Ah!, esse..., exclama Sueli. Pois, esse mesmo prima. Era o Zé Floresta que também andou nas aulas do padre Francisco, o que me chama de "meu filho". Sueli levanta uma mão e acaricia a dele, sobre o ombro. E esse traficante?, quer saber com os olhos agora fixos nos dele. Ambotá estremece. Como no dia em que recebeu a carta e soube da morte do amigo - meu irmão de vida, como dizia. Treme. Marta sente-lhe a tremura e enfia uma mão no braço dele, que estremece de modo diferente ao sentir aquele corpo quente de mulher. É um cara poderoso do tráfico que pra apurar a cocaína que recebe dos maoístas colombianos passa muito éter e acetona lá por Juruena, e isso mesmo nas barbas da autoridade. Você sabe, prima, é o mesmo que me queria contratar..., explica quase sublinhando a última palavra.

Há um suspiro de alívio em Sueli.

Ele sabe que ela o apoia fortemente na decisão de nunca recorrer à contravenção ou ao crime organizado para sobreviver na cidade grande.

Estalando os dedos, ela fala então de um anti-guardador de rebanhos, que é todo ser que não ajoelha e segue vivo, porque está vivo e ao estar vivo ele carrega Deus e é um sinal bom d Ele. Recorda em Ambotá a leitura das poesias. E ele sorri, percebe a mensagem.

Longe destas questões, Marta deixa cair o rosto no ombro dele, que não sabe o que fazer. Vê nos olhos de Sueli uma grande alegria e não faz gesto algum, deixa-se estar sentindo a respiração da moça. Gosta de Marta, da sua jovialidade e sabe-a atraída para si.

Ueh, vamos em mais um chopinho..., diz ele para sair da pressão que o charme de Marta deixa em seu espírito. Uma pressão doce que lhe deixa a alma leve.







7


naquela pobre barraca
de meia-água
negro velho com mágoa
não enfarta


o homem d Amazonas
está longe mas sua sabedoria é como
música d água




Em mais um dia que se abre gloriosamente, o sol abençoando os mortais.

Que preguiça, santo Deus, dirão os raios de sol que entram pelas fendas das madeiras que fazem a barraca onde um mortal se estica em sua rede. O telhado de zinco inclina-se uns trinta graus para cima a partir do vértice formado pela trave da porta -, uma belíssima meia-água que para muita gente é um luxo disputado por alguns que sabem do locatário uma novidade agradável. Agora ele é chefe, dizem. E em qualquer maré ele se vai do morro, dizem outros. A disputa pela barraca é grande. Em importantes jornais cariocas já surgem anúncios de compra e venda de barracas como se fossem apartamentos. É a acção dos yuppie favelados impondo uma inflacção na bolsa imobiliária da miséria entre as misérias. E às vezes com bons ganhos... O sol encontra Manoel Três Bocas com uma perna de fora da rede, os braços esticados para cada lado. Olha meio confuso a mescla de luz que se infiltra e lhe lista o corpo. Um homem nú na naturalidade de um tempo de mudança. Pula para o chão de terra e afasta os mosquitos com algumas braçadas no ar. Ai, tanto sol e tantas nuvens vai dar chuva forte, resmunga ele espreitando pela pequena janela. Espreguiça-se mais uma vez, demorado, a boca escancarada. E canta uma modinha.

Ai a fome.

Ouve o estômago roer a corda. Hum, minha barrigota há tanta hora sem comidinha... Lava o rosto com a água que tira de uma bacia de plástico.

Olha para todos os cantos e encontra um pacote de farinha de mandioca. Hum, é isso! Vai aquecer o feijão que preparou ontem e cortar a carne seca. A cerveja não está gelada mas serve. À medida que o feijão esquenta na panela sobre o bico do fogão de campanha ele vai engrossando tudo com farinha, lento. E o tutu começa a cheirar bem.

Antes de adormecer, deitado na rede, questionou-se sobre a vida e o conselho do amigo Marcão. Te cuida Manoel!, castigou-se. Sentia-se angustiado, magoado pelo rumo que sua vida tomara; mas, sua alma é um punho de ferro - resiste. Resistir é o seu lema. O meu problema é dar a volta por cima sem bater aqui ou ali, avançar devagarinho como lá na terra o ome caça os bicho. Ueh, os bicho vão dar muito mal com minha pessoa!, raciocina. Sem saber exactamente como, ele sabia onde o seu caminho: em frente, em frente é o meu caminho.

Essa disposição fluía nele como o sol de mil cascatas, como se na beira do rio escutando os ensinamentos do padre, e até os da tropa. Sim. O homem nasce pra crescer e se defender das agressões, fazer a vida e a paz, escrevera no quadro preto da sala de aulas lá no quartel; era já soldado graduado.

E continuo em campanha, lembra.

Com uma colher mexe a comida que está pronta e come diretamente da panela. Ah!, alivia a sua dor interna com uma colherada de negro velho.

Abre a porta da barraca e algumas pessoas que passam saudam-no.




8


É uma manhã calma. Domingo na favela grande, domingo no Rio.

Muitos crianças da Rocinha descem para um mergulho nas águas atlânticas de São Conrado, ou nas do Vidigal. As mais atrasadas, quase sempre pivetes que, de 38 nas unhas, assaltam turistas, aparecem pelas areias depois das onze horas para um merglho diferente: aquele, no meio da multidão.

Ó moço, põe corda nos calcante, vá...!

É Sueli resmungando para um jovem que a aborda ao chegar na praia.

Mas ele não a larga: me pediram pra dar a tu este bilhete. E quero uma nota, moça.

A exigência faz com que ela o olhe de alto a baixo. Não é conto do vigário, pensa. Dá uma nota de cinquenta cruzados ao pivete que logo se afasta com um sorriso de triunfo; e pela cara de malandro deve ter cobrado também alguma nota de quem lhe entregou o bilhete. Seu sorriso enche a praia de São Conrado, caminha devagar e levemente; no corpo somente a samba-canção de flores estampadas. Um pequeno tropical ébrio da aventura na malandragem.

Sueli tira a saia e a blusa e senta-se mais adiante num banco de pedra; ajusta a parte superior do biquini e dispõe-se a ler o bilhete que a criança lhe deixou.

Na rebentação das ondas, jovens surfistas aprendem a arte de dominar o corpo no mar; à sua direita, duas asadelta evolucionam para descerem nas areias perto da biruta que lhes dá a direcção do vento - hoje, uma brisa agradável. Ui, que bom..., murmura Sueli olhando as asadelta. Lembra os dois voos que fez - voo duplo, com monitor; Ambotá quis que ela experimentasse essa fabulosa sensação de liberdade, de leveza. Ai que coisa, meu Deus!, ela respira a aventura na imagem dos dois aparelhos que se aproximam do areal. Desdobra então o papel.






*

Mim dar a ela o bilhete que tu...

Tudo bem, responde o negro da Via Ápia afagando os cabelos encaracolados e fartos da criança. Olha, diz a Jairzinho que venha até eu!

E ele traz 38 pra tu?, quer saber.

Vai moleque, vai! Jairzinho sabe muito bem o que fazer. E tu vai limpar a arma grande. Anda..., ordena o negro que não tem mais de vinte anos. Mas, já com o perfil do bandido experiente.


*





É daquele moço, o Negão.

Sueli fica alerta ao perceber de quem é a missiva. "Tem agito às dez da noite. Tu vem comigo, beleza", diz o bilhete. Quem pensa tu que és, avião sujo?, resmunga ela. De uma sacola de tecido colorido retira a toalha de banho e desce até à beira da rebentação.

Gosta de nadar como Ambotá lhe ensinou.

É domingo mas a praia até que não está cheia. Estende a toalha bem próximo do mar. A maioria das pessoas está aglomerada junto do ponto de descida das asadelta.

Depois que Marta a fez descobrir a plenitude do corpo esbelto ela vem transando no sol e no mar a sua figura gostosa e cobiçada por muitos olhos: deles e delas. Sueli é uma crioula muito bonita que deixa o olhar dos outros em baile constante, desejos incendiados.

Já um pivete a abordou, em finais de 1987, no Vidigal: vais pra cama com eu, neguinha!, disse e ríu. E ela ficou como que mentalmente nua e fugíu para casa. Que atrevimento!, indignou-se. Agora, quando algum pivete a aborda logo o manda àquela parte com garra, e pronto.

Está calmamente no seu banho de sol, após uma boas braçadas no mar, quando um pivete lhe entrega outro bilhete: espero resposta, moça! diz, altivo. Irritada com as maneiras dele, ela grita: dá corda nos calcante, malandro! Mas ele fica onde está, levanta a camiseta e deixa ver um revolver seguro com corda plástica e meio escondido pelo elástico do calção. Te vai, malandro!, berra ela nada intimidada com a cena; e rasga o bilhete enterrando os pedaços na areia. Ai... Curte mais um pouco de sol. Nota que um gringo está a captar a sua imagem na câmara de vídeo; sem saber a razão, ela sorri para a lente e ele agradece a gentileza com um aceno de mão. Para ele, o Rio continua lindo...

Reflecte sobre o local do agito, se vai ou não vai bailar o Rock n Roll ou rebolar com o Pagode. Talvez que o Ambotá queira dançar, pensa ela com a idéia de o levar para afastar o Negão.

Duas horas da tarde.

O sol queima brutalmente quando deixa a praia e sobe a favela. Os cabelos húmidos caindo graciosamente pelas costas. Mas não pára em casa. Segue na direcção da barraca do primo.

Há um som de velho e bom Bossa-Nova que enche o lugar. A porta está aberta e nem é preciso perguntar por Manoel Três Bocas.

Havia pensado em ir com ele num espectáculo ao vivo e ainda não perdeu a idéia.

Além do som que vem do toca-fitas há um outro, mais vivo. Ao entrar na barraca logo descobre o primo com uma gaita de beiços -, ele acompanha o ritmo da canção que ouve no aparelho. Sueli encosta o ombro na madeira e aguarda que ele termine.

Meu, ó nossa!... Ela nunca soube que o primo tocava instrumento musical. Um músico na família... Muito bem, Ambotá! E bate palmas.

Como vai tu, prima?

Entre surpreso e alegre ele fá-la sentar numa cadeira de vime que confeccionou nas horas livres. Um artista, o homem do Amazonas.

Sueli, diz ele olhando-a com algo divertido que tem no pensamento, quer vir com minha pessoa a uma festa? Mim quer parabenizar um amigo. É lá no Laranjeiras, víu. E ri. O olho grande numa lata de cerveja que tem a seu lado. Bem, é coisa melhor qu esta iguada, nê! e riem. Tá, concorda ela, e na virada vamos no agito aqui do morro.

Um domingo cheio para ambos.

Ela vai mudar de roupa e ele fica.

E agora mim vai embrulhar a coisa pra tu, meu amigo..., determina a si mesmo Ambotá.







9



Como ocê, meu irmão, sou um filho do sol!

Manoel Três Bocas ouve o eco das palavras. Deixa-se transportar para o tempo da sua adolescência no Amazonas.

Ele e Zé Floresta buscam ervas na mata. Zé Floresta não consegue chamar o amigo de Manoel, usa somente o diminutivo Noel.

Eu não sei como ocê aprendeu tudo isso que ocê fala da mata e desse arquitecto. Nem sei o que é isso de ser filho do sol. Sou filho de Deus, isso sim. Vige, ó Zé Floresta, que é isso agora?, quer saber ele sentando-se numa pedra junto do lago pequeno. E ouve a risada do amigo. Um riso aberto. Sabe, Noel, acho que já sabia ler e escrever antes do padre iniciar a gente. Um velho garimpeiro que passa horas manobrando barco no domingo, e às vezes ele me leva, me diz da pesca, dos ouro... eh, dos ouro - o de pedra e o de pó, e me diz que o arquitecto (meu rapaz, diz ele, escreva sempre com letra grande quando escrever Grande Arquitecto!) é Deus, e que Ele chega até nós através do Sol. E diz: você, meu bom rapaz, é um simples obreiro, e pode vir a ser um filho predilecto, sim, um Mestre, quando entender que pra ser alguém nesta Vida terrena tem de ser alguém que usa o Espírito, sim, toda a tua capacidade de fazer Amizade, de ajudar os outros sem pedir nada em troca. É isso, filho do sol, ó Noel, é isso. É ter Deus dentro de nós e saber que os ouro não são nada, o único ouro - ele aponta para a cabeça - é a inteligência e este espírito que carregamos em tudo que fazemos. Naquele barco, Noel, aprendi que tudo que faço ou aprendo é um pequenino traço do compasso da vida que o Grande Arquitecto me dá! Um dia vou escrever pra ocê, Noel, tudo que aprendo com o velho pescador do domingo mas que na semana é garimpeiro.

Que é dele?

Tá por aí. Tentaram meter bala nele quando soube que os ouro compra político em Brasília e que os índio queria era ter televisão, carro e mulherão. Bem, estes índio não são o mesmo que os povos antigos, os filhos do sol. Sabia que os filhos do sol não tocavam nos ouro?

...?!

Ah, ah, ah... pois é, Noel, continua Zé Floresta, encontraram por aí coisas meio feitas, assim como máscara de ouro, e outras inteiras, mas no certo se sabe que os ouro era impureza prós povos antigos. O velho dizia que nós, gente do Brasil, não fomos descobertos pelos portugueses, que nós somo gente de uma ligação... assim troca-troca com a gente da tal Atlântida. Eh... Parece que o Grande Arquitecto (ó!, mesmo falando ocê tem de pensar com letras grande) foi ligando os povos antigos. E nós só podemo ser filhos do sol...

Como ocê, meu irmão, sou um filho do sol!... O eco se repete na mente de Manoel Três Bocas. Espreitando pela pequena janela da barraca ele vê o Cristo-Rei dominando o Rio.

Desde que recebeu a carta do padre amigo comunicando a morte violenta de Zé Floresta ele recorda com mais intensidade as conversas antigas; sempre recordou, mas agora elas retornam na sua mente com vigor. Sim, pensa, só posso ser um filho do sol pra ter o Cristo assim todo pra mim!



10


Manoel!, exclama a mulher de Marcão abrindo a porta do apartamento. Entrem, entrem! Ainda há pouco estavamos falando de você, Manoel...

Estivera conversando com o marido sobre a nova situação profissional de Manoel. Agora que ele ganha bem, amor, acho que ele deve sair lá da favela. Era a opinião dela com a preocupação nos olhos e corroborando a idéia de Marcão. Sabe, amor, gostei do jeito de ser honrado desse moço...

Faz com que se acomodem na sala enquanto ele lhe apresenta a prima Sueli. E no mesmo gesto, também a Marcão que acaba de entrar. Uau, gatinha..., deixa escapar Marcão olhando Sueli de alto a baixo após beijá-la nas faces. Ai, mas mas você não tem jeito mesmo!, diz a mulher com o riso estampado no rosto.

Manoel Três Bocas sempre soube que Marcão era e é, ao que lhe parece, um tipo muito ligado ao estudo aprofundado das coisas da Humanidade. Mas, ao saber que a mulher dele é arqueóloga, e ainda professora de História, teve uma idéia: este é o jeito de minha pessoa parabenizar ocês pelo aniversário do casamento..., diz ele agora, meio tímido, entregando-lhes o embrulho que preparara em casa. Com mil cuidados e cheios de curiosidade abrem o papel e descobrem uma peça de interesse histórico-arqueológico e rica em pormenores desenhados no ouro puro. Creio que era de uma tribo lá Juruena. Mim achar que tu e tu..., ele abraça o casal, ías gostar.

A professora está de boca aberta. Sempre ouvira falar, e que pouco coleccionadores, no exterior, tiveram acesso a peças dos povos antigos da Amazônia. Nem quer acreditar no que vê.

Hum, continua Manoel, foi o Zé Floresta que mandou pra minha pessoa lá do eldorado, e mim ter outra lá na barraca da Rocinha, víu.

Isto deve ser da tribo dos Apiacá, observa ela, pois você fala da região de Juruena. Ela acaricia a peça como se fosse uma criança acabada de nascer. Os garimpeiros vão destruindo tudo por causa do ouro. A tribo Apiacá era muito rica ao que sabemos. Ou seja, não era rica, tinha ouro em suas terras, porque o ouro não era riqueza para os velhos nativos... Manoel, muito obrigada, muito obrigada mesmo, víu. Mas deixe-me dizer uma coisa para você, meu amigo: se tem outra peça o melhor é oferecê-la para um museu, não a deixe por aí, tá?!... e vê-o acenando com a cabeça em sinal positivo.

Há diversas peças de arte nativa, algumas do Amazonas, por todo o apartamento e mais na sala maior. Ela ter razão, pensa Manoel. No domingo que vem tu vai ter a outra, vai.

Há crimes culturais, diz ela mimando a peça, que são praticados nos garimpos por gente empurrada pela sede de um poder que não passa de sonho, afinal essa gente trabalha duro para enriquecer uns poucos que são os poderosos, aqueles que mandam matar e esfolar para rirem do próprio poder.

Sueli e Marcão conversam, paralelamente. Venha cá, minha linda, venha ver o que nós temos por aqui sobre os seus poetas queridinhos, diz ele. E leva-a para outro canto da sala onde pilhas de livros, aparentemente desordenadas, cobrem parcialmente uma mesa de pinho. Sueli ri, está encantada. Sempre gostei de livros. Pega uma publicação sobre Fernando Pessoa e depois outra com textos de Manuel Bandeira e outra com estudo crítico sobre A Selva; e poesias. Ah, poesias de Mário de Sá-Carneiro!, exclama pegando num livro. O amigo do Pessoa que matou-se em Paris como se estivesse num pagode carioca..., observa ela para Marcão. Ele, que lhe conhecia o interesse por literatura através das dicas de Manoel, oferece-lhe o livro. Ai, muito obrigada. Eu só tenho conhecimento destes poetas por causa de uma prova de português que tive de fazer no secundário. E sempre leio de novo esses livros. A poesia de Mário é fantástica. Eu gosto. Muito obrigada, Marcão.

Foi isso que matou meu irmão de vida, diz Manoel para si mesmo analisando a observação da mulher de Marcão. Ele descobríu a bandidagem dos ouros, da política e das polícias que não são polícias mas bandidos mesmo. Por isso meteram bala em meu irmão de vida.

Está noite alta quando os primos deixam o bairro de Laranjeiras.

E no agito, em plena Favela da Rocinha, encontram o som revivalista dos Anos 60. Para ele, habituado a outras paradas e ao folclore, o Rock n Roll é nada e barulho.

Sueli abraça-o e o faz dançar nas baladas roqueiras. Está animada por ter conhecido gente boa como aquele casal amigo. Foi muito bom saber que ocê tem amigos assim, diz. Ele não responde, beija a fronte da prima bonita com o pensamento em Marta.

A certa altura Negão se aproxima e pede licença para tirar Sueli, o que Manoel Três Bocas interpreta como um abuso a sua pessoa. Se fosse no intervalo das músicas, tudo bem. Daqui a pouco, moço!, quase grita. E não liga mais para ele. Minutos depois sente alguma coisa na cintura, como ferro frio. Uma arma, suspeita. Nem acaba o pensamento e logo gira sobre si mesmo com uma mão em cutelo na direcção provável da mão que segura a arma: o toque violento faz Negão cambalear, e outro atira-o no chão de terra batida. De repente, negão vê uma figura gigantesca em cima. Está neutralizado com dois golpes e sem a arma. Treme, o medo se apossa dele. Em seus olhos o brilha o medo em mistura com ódio e vingança. Nos olhos do outro, a serenidade reina com a frieza.

Todo o mundo pára.

Apavorada, Sueli vê que Negão segura um dos pulsos. Está machucado pela violência do golpe que o desarmou. E agora ocê vê se ganha jeito!, diz ela.

Música gente, música!, grita alguém. E o agito recomeça como se nada tivesse acontecido.

Nos braços do primo ela não questiona. Deixa a cabeça descansar no peito largo e reza para que Negão tenha aprendido a lição. Mas, concerteza Negão vai querer tirar desforra na queima-roupa. Longe do pensamento da prima, ele sorri com a imagem de Marta enchendo-o de sonhos.






11


Homem de setenta anos mas rijo que nem muitos jovens, o padre chega a Medellín. Cidade colombiana a muitos quilómetros de Bogotá.

Providenciára o enterro de José e, por ser muito amigo da família, resolveu ir ao encontro dos pais dele. Do sítio da Serra dos Apiacás, onde dera túmulo raso ao corpo, o padre levara os pertences de José. Mas, somente o que era amarelo, o que era branco deixou para um vizinho. Sabia que José andava metido com a Cocaína embora não fosse um viciado -, e lhe disseram que como não tinha como pagar o pó branco ía roubando do amarelo.

José trabalhava no garimpo à confiança e era, também, um dos homens que tratava do filtro, lá em Juruena. Talvez que o ouro sirva agora pra dar uma boa vidinha aos pais, pensou o padre. Nunca gostou de drogas mas resolveu condescender, como diz, porque a maconha dá sempre um pouco de comida aos pobres ao contrário dos governos de Brasília.

Um pouco antes de morrer, José levou para casa do padre uma sacola de couro: é coisa pra meu irmão Noel, avisou. Sacola que o padre guardou até que Manoel possa ter um momento livre e viajar. O novo-carioca de sangue amazonino, ríu ele.

Rapaz de força este José, mas meteu o nariz onde não devia. Não se pode ter tudo, e para ter um pouco às vezes é melhor calar a boca, disse o padre enquanto o coveiro cobria de terra o cadáver. Orgulhava-se dele como de Manoel. Homens diferentes de mim e do mundo, costuma dizer para si mesmo quando se recorda das aulas de alfabetização na escolinha à beira do rio. O caso mais sério era mesmo José por causa dos ensinamentos de ocultismo que o velho maçon do garimpo lhe deu. O mais interessante é que o garoto, quase analfabeto, aprendeu mais rápido aquelas baboseiras anti-cristãs da Maçonaria e logo que soube dizer eu-sou-um-iniciado julgou-se reflexo do Grande Arquitecto. Olhem só, discutia o padre com os seus botões, o que esses filhos do demo são capazes. Transformar um rapaz que aprendeu a ler e a escrever com a Biblia e as licções de um sacerdote católico, apostólico e romano, em um verme predilecto do demo ao qual denominam de Grande Arquitecto...

Há dez anos que os pais de José se mudaram para a Colômbia fixando-se em Bogotá.

Quando o padre chegou à capital colombiana foi informado que o casal Três Bocas estava longe: foram pra Medellín faz dois anos, disseram. Deram-lhe o endereço. Falou com amigos do casal, e um deles, homem forte na economia informal de Medellín, que o padre conhecia muito bem. Houve tempo em que ele tratava directamente a sorte de muitos pobres com as autoridades dos países da América do Sul.

E de Bogotá, o padre partíu novamente.

Missionário de uma paz que faz o oásis espiritual num mundo complexo e dividido entre a cobiça e a morte matada, o padre é um andarilho desse mundo ao qual pertence também. E dele participa.

Encontra os pais de José à frente de uma lanchonete na segunda maior cidade da Colômbia. É uma loja pequena, de poucos recursos, talvez os suficientes para a sobrevivência no dia a dia. Eles trabalham, trabalham, e só. Do generoso Brasil à difícil Colômbia parece não ter havido mudanças na maneira de estar e de ser do casal, o que não espanta o padre.

Padre?!..., espanta-se a mãe. Ora, ora, que boas novas traz o padre Francisco!, quase berra o pai abraçando o visitante.

De morte matada ele se foi. O padre dá-lhes a má nova logo depois da ceia. Nem tivemos tempo para mais nada, foi rezar missa e enterrar. Agora, só adianta rezar para que a alma se purifique diante d Ele.

Praticante destes assuntos há anos, ele dá a volta por cima com conversa mole. Entre uma e outra opinião sobre coisas brasileiras, o futebol, as mulatas e os políticos de sempre, ah!, e nem queiram saber: essa tropa de evangélicos está por todo o Brasil, acho que é obra de maçons. Só pode, nê...

Há anos que não viamos o nosso José, confessa ela, e nestes últimos tempos nem uma carta recebemos dele. A última foi quando ele falou pra gente que Noel ía pró Rio.

Mas ele não esqueceu vocês. Vejam, e tira da mala uma sacola que coloca na mesa, aqui tem ouro em pó no valor de cerca de trinta mil dólares.

Diante do ar aparvalhado do casal, o padre adianta: eu preciso de um pequeno favor de vocês, é que, como sabem, eu faço pesquisas sobre tudo que se passa em torno do Amazonas, e um dos documentos que preciso está num envelope grande e cinza que o José enviou para vocês há três anos, pois quero falar desse material no meu próximo de artigo de jornal. Valeu?...Ora essa, meu padre santo!, vai buscar essa carta mulher!, determina o pai com as mãos fortemente unidas, quase orando. Demora um pouco mas ela retorna à sala de pouca mobília e friorenta, com um envelope meio rasgado. É esse mesmo!, diz o padre. Fiquem com o ouro, o José queria mesmo é que vocês tivessem um resto de vida sossegado, e vão ter. Não é mesmo?...

A surpresa pela notícia da morte do filho não foi maior que o testamento deixado por ele: ouro. Ó meu Deus, ouro!

O padre, enquanto, acaricia o envelope sujo e rasgado.

Uma coisa o inquieta desde o conhecimento do novo endereço do casal. Algo lhe escapa. Homem conhecedor das vidas clandestinas e do submundo da contravenção, ele quer saber.

Que fazéis vós em Medellín?, atira à queima-roupa.

Sabe que Medellín é a base maior da Cocaína nas américas, principalmente daquela plantada e colhida pelos pseudo-revolucionários maoístas. Sim, ele sabe disso. Mas quer saber por que Medellín é o novo lar daquele casal.

Enxugando as lágrimas com as costas das mãos, o pai de José avança um pouco sobre a mesa como que para sussurrar: obrigaram nós, ó padre santo...

Ai, páre com isso de padre santo. Sou padre!

...sim, padre. Concorda ele. Obrigaram nós a vir pra Medellín, padre, mas com isto - ele aperta o saco com o ouro contra o peito - nós vamo voltar hoje mesmo com ocê, víu, meu santo. Pro nosso Brasil!

Ora..., sorri o padre.

Há um careta no rosto dele. Ouvira o óbvio, adivinhou tudo o que estava atrás da tragédia do casal. Uma careta de riso fácil de mais, cínico. Enigmático. Os narcotraficantes puniram o casal com mão leve. O casal Três Bocas que não o que pôs Manoel no mundo. É outro. O que José sabia dos pais? E o que os pais sabiam dele? O padre acaricia o envelope. Sente o rasgão. Será que leram o que está aqui?, questiona-se. Ai, logo se penitencia, os desgraçados não sabem nem ler!

Eu ainda tenho de falar com uns amigos, aqui na cidade. Mas vocês devem sair daqui. Que o bom Deus vos acompanhe...

Que nosso Senhor nos abençoe, ora ela.

O velho Ford do casal fica, em poucos minutos, atulhado de trecos domésticos. Vamo voar mulher, vamo voar pró Brasil!






12


Todos os dias ele mete a Honda porta dentro.

Meio de circulação rápido na cidade grande, principalmente para um assalariado que tem de a atravessar de ponta a ponta, a moto é uma espécie de menina-dos-olhos que brilha; e também para médicos e executivos mais pra-frentex. Então, para Ambotá a moto é tudo.

São quatro horas da manhã.

Chove muito e fortíssimo em várias áreas do Rio de Janeiro.

Ele acorda em sobressalto. Merda!, ó meus Deuses..., grita. Mas é um gritar abafado no meio do estrondo que ainda faz vibrar a barraca.

Súbito, ele está todo encharcado; uma autêntica bica d água cai sobre a rede onde dormia. A terra treme. E treme. Ambotá está paralisado de medo. Vige!, tá acabando o mundo...

Parte da barraca desaba, todo um barranco entra sem mais nem quê. É tão violenta a força das águas que a pesada Honda é arrastada para fora entre lama e cascalho. Parece que o subsolo está rodando e que a superfície desliza levando tudo. Ambotá cai, e levanta, e cai; está um boneco de lama. Não existe mais barraca. O caos está para onde quer que ele olhe. Ele é o caos. Relâmpagos iluminam a catástrofe. Merda!, ó meus Deuses..., tenta ele correr. E cai. Em dado momento consegue chegar próximo da moto, encalhada nem ele sabe como tanta é força da enxurrada. Deixa-a encostada numa pedra enorme onde a água, a lama e o cascalho se fragmentam para se juntarem mais além levando mais barracas no seu curso fantástico.

Ele é a imagem do nada.

Não tem como se abrigar. A chuva cai impiedosa sobre aquele corpo encolhido pelo frio e as medonhas sensações. Vige!, é o fim do mundo..., pensa. E agora? Vai embora Ambotá, vai. Sai dessa. Vai, vai... Todo o seu ser está num caos mas algo, bem lá no fundo de si, diz para se erguer, ir em frente e sair do perigo. Mas não sente forças para reagir. São segundos terríveis. Sente-se menor que uma gota de chuva. Os relâmpagos fazem-no pressentir o pior.








*

Ela ouve gritos e os sons fortíssimos da pancada de chuva na lage que é o terraço. Leva a mão ao botão da luminária do criado mudo mas tem como resposta o escuro. Um relâmpago ilumina o quarto, o corpo. Corre à janela e vê silhuetas correndo, outras indo nas águas do rio imenso que cai do alto do morro e invade toda a favela.

Cai de joelhos. Deus..., murmura.

O que víu pela janela deixou-a aterrorizada. Sem forças. É o inferno, minha Nossa Senhora de Fátima. Ai, livrai-me do inferno, livr... As mãos crispadas na parede. Tenta se levantar e não consegue. Um ciclone de emoções varre qualquer vontade. Mas tenta. Tenta. Tem unha partida na parede mas ela não sente a dor, não enxerga os fios de sangue que registam o seu percurso de medos. Num esforço que nem ela percebe as mãos seguram agora a cabeça. Todo o seu corpo está aninhado naquele vértice entre o chão e a parede.

Ambotá! Ambotá!, grita. Talvez sem saber que está gritando. A sensiblidade da vida não está ali, o mero mundo animal toma conta da espécie humana. Ambotá! Ambot...

O pánico domina a jovem mulher. A casa treme.

*




Certo de que a moto não cai ele retorna ao interior da barraca. Incerto interior. Uma montanha de destroços é o que resta, pelo que pode ver no meio de tanta chuva e tanta coisa, da barraca onde minutos antes dormia. Encontra um e outro saco plástico e tenta recuperar o que pode na esperança de que o dilúvio diminua de intensidade. Vai embora, vai..., ele ouve aquele som dentro de si. E aguenta. Vamo ver, vamo ver que posso tirar inda..., diz para si. A sua menina-dos-olhos já está segura. Ou assim pensa ele. E continua a tentar ensacar seus pertences.

Após um fabuloso relâmpago que ilumina todo o Rio e dá ao Cristo, lá no Pão de Açucar, uma imagem fantasmagórica e de efeitos visuais que superam a nossa imaginação, cai com estrondo a bateria cósmica sobre os pobres mortais. Como a terra sob os seus pés descalços, o corpo de Ambotá treme em absoluta harmonia. Ó meus Deuses...Ambotá lembra-se de algo valioso e entre os destroços tenta achar a cara-d índio que dizem de Apiacá.

Onde era a pequena copa ele sente qualquer coisa se mexendo. de um pulo mete o nariz num espetáculo de destruição impressionante. É hora! vige... E corre, escorrega, gatinha. Vige, tenho d ir embora...O deslizamento de terras do alto do morro faz uma tromba d água e lama e árvores e pedras que entra barraca adentro e segue favela abaixo. Não há mata nem arvoredo suficientes para deter a natureza insatisfeita com os sem-juízo humanos. Não derrubaram a floresta?... parece querer dizer o som brutal da cascata diluviana no morro carioca. Ambotá consegue ficar entre a Honda e a pedra grande. O coração a bater, apressado.

Após o deslizamento a chuva continua a cair pesada, mas a terra não treme tanto.

Arrumando como pode os seus pertences e tirando da moto os documentos, Ambotá ouve algo diferente: é um disparo. Dois. O segundo raspando a sua cabeça. Saca sua automática da bolsa de couro da Honda e volta-se no mesmo instante em que duas silhuetas tentam alvejá-lo.





*

Vendo tanta gente abandonando suas casas em fuga maciça, desde o alto da Rocinha, ela agasalha-se com uma capa plástica e sai de casa também. Mas não desce como os outros. Sobe. Louca, vem embora ó louca!, grita alguém perto da casa. Ela não ouve. Sobe o morro com imensa dificuldade. Enlameada e encharcada, logo nas primeiras tentativas, ela persiste.

Ambotá!, Ó ceus, mim não ver nada...

Escorrega, cai. A sua cabeça está voando. Ambotá!, grita. Ela quer chegar perto do primo. Uma das mãos sangra bastante.

A chuva ainda é tão compacta e intensa que não a deixa enxergar nem dois palmos na frente do nariz.
*





Pelo som, apesar das dificuldades, Ambotá entende que além, acima de sua cabeça, manuseiam duas famigeradas 38.

Uma das silhuetas salienta-se por um momento e, perspicaz, ele não perde a oportunidade: aperta o gatilho da sua Taurus 7.65 e ouve-se um grito no meio da chuva. E um corpo que rola. Foi mais na intuição, diz para si mesmo. O corpo vai nas águas e passa perto dele. Mas, é um pivete... Ele não acredita no que vê. O corpo confunde-se já com a lama e toda a sujeira que desce do morro. Coisa daquele Negão, pensa.

Súbito, a cena do agito enche-lhe o pensamento. Desforra, pô!... Ai, acho que o Grande Arquitecto me salvou com o dilúvio. Zé Floresta, tu tinha razão, meu irmão! Ele existe, eu sou um filho d Ele!, grita.

Sabe que a turma do narcotráfico coloca pivetes para fazerem o trabalhinho sujo. A desforra de Negão vinha por aí mesmo.

Ao perceber que o outro cai e rola pelo morro, o pivete que resta é tomado pelo pánico e corre. Tenta correr. É um garoto de doze ou treze anos. Ao fugir, para afuguentar o espantalho do medo, ele dispara a arma duas vezes.

Que Ambotá ouve.

E o leva a pressentir a fuga. Rápido, inicia uma perseguição cheia de obstáculos. E está descalço. Na fuga o pivete tropeça e cai. Pô, pô, pô... Puta merda!, berra. Está machucado. Tenta se recompôr e sente um calafrio por todo o corpo: algo o agarra pelos cabelos e sente que lhe tiram o 38 da mão. Não, não, mim não saber de nada, o Negão mandou mim e..., berra tomado pelo mêdo. Vai, pequeno assassino, vai e diz pra Negão que minha pessoa ir ter com ele!, berra também Ambotá. E larga o pivete que corre e escorrega morro abaixo como que fugindo de um fantasma.

Ambotá está triste. Caminha cabisbaixo pela Rocinha.

De regresso àquilo que fora a sua casa de meia-água, vê-se rodeado pelas desgraças vizinhas. A chuva amaina agora, mas quinze minutos de dilúvio marcaram uma vez mais a vida nos morros cariocas.

Em sua consciência a imagem do pivete baleado e a rolar com a morte tendo por esquife lama e pedra e muita água, água, água.

Ambotá!... Ambotá!..., ouve ainda com a imagem brutal da morte.

É a prima Sueli, eufórica. Chorando de alegria.

Está perto da Honda e festeja o aparecimento do primo que já estava a julgar morto entre os escombros da barraca.

Com a confusão ela nem percebeu que muitos haveres dele estão ali, a seus pés, entre a moto e a pedra grande. Oi, meu bem. Tá tudo bem com tu?, quer saber Ambotá. Mas ela abraça-o com força. Agora tu vai mesmo morar lá em casa!, diz ela com determinação e o rosto encostado no peito dele. Que não diz nada. Abraça-a com carinho, afaga-lhe os cabelos enlameados e beija-lhe o rosto.

Mesmo correndo riscos sérios por permanecerem ali, encostados na Honda e enquanto a terra desliza ainda, ambos observam a desgraça que chegou mais uma vez ao Rio de Janeiro.





13


Todo o dia ele se ressente.

Aquela morte. O corpo. As águas diluvianas. Tudo o perturba. É um homem ferido pela bestialidade temporal da sua existência.

Depois de deixar a prima em Vila Isabel foi para o trabalho onde o seu director estranhou o semblante abatido. Ligou isso aos problemas habituais e à chuva pesada que caíra na noite e fez-lhe perguntas de rotina deixando-o logo em paz com o serviço.

Pelo meio da tarde recebe uma chamada. De um orelhão perto do Maracanã é Marcão: Ah, tudo bem, diz para si Manoel ao aceitar o convite para um papo na lanchonete perto do Palácio das Exposições. Encontram-se logo após o fim de expediente. Marcão está visivelmente preocupado com a situação do amigo. Olhe, nossa casa é pequena mas tu cabe bem no quarto pequeno que está vazio..., oferece. Olha para o rosto de Manoel e percebe-lhe a conformação. Minha mulher tinha dito pra ocê sair da favela. Tá com grana boa do salário e pode viver melhor, nê?... Na porta da lanchonete, junto da Honda, um velhinho e very britânico MG que Marcão dirige como peça de museu. Tá, tá, diz Manoel, obrigado, muito obrigado a ocê e tua mulher, víu. Vou ficar por agora lá na casa de meus tios, depois mim procurar pra minha pessoa um buraco, víu... Falou meio engasgado. Agitando as mãos como se ali estivesse a acontecer um blá-blá completamente non-sense. Manoel Três Bocas não está habituado a gentilezas. Caíu, tem de levantar. Caíu de novo, levanta outra vez. Mas sempre com as próprias pernas. Nunca pedíu nada. Olhe, meu camarada - ele recorda-se de algo -, vem na fábrica pra tu levar os cara d índio que mim salvou inda.

Acabam de tomar o chopinho.

Marcão está, ao que parece, feliz. É um homem de sorte. O velho MG tem de ser empurrado para gáudio de alguns populares que conhecem o policial. E policial é policial em qualquer parte do mundo... Depois da ajuda de alguns populares, o MG pega no tranco. O velhinho tem ronco de leão. Marcão paga uma rodada de cerveja ao pessoal e logo segue a Honda do amigo.

Estas coisas estão em boas mãos!, diz ele ao agradecer a Manoel a oferta das peças para a sua mulher. Eu não quero saber de ouro, justifica Manoel, sou um filho do sol, e, como dizia o Zé Floresta, estou salvo porque estou no traçado do compasso do Grande Arquitecto. Nenhum ouro me dá mais felicidade que esta Vida que minha pessoa respira...

Vige!, se assusta Marcão, tu tá pior que o Zé e a minha mu er juntos!

Os dois caem numa súbita gargalhada. Liberam a alegria do fraterno abraço. Depois ela diz pra ocê o que vai fazer com...ai!, com os cara d índio, meu.

Marcão deixa a fábrica e segue directo para casa. Manoel dirige-se para a zona sul; na Candelária segue até à Praça XV.

Mais à frente, na Estação das Barcas, ele estaciona a moto. Cuidadoso, escolhe um lugar com pouca gente. Parece haver algum problema com a Honda. Ele abre o compartimento das ferramentas.

Respira fundo.

Manoel Três Bocas não é do tipo complicado. Mas agora respira apressado, está estranho, como estranho ele mesmo se sentíu durante o dia.

Do compartimento retira um saco plástico bem colorido. É agora... Durante o resto da madrugada, fazendo hora em casa de Sueli, pensou muito neste momento. Propositadamente deixára ir embora aquele pivete mas ficára com o 38 dele. O pivete vai embora e cala a boca e eu desfaço-me do 38 e da Taurus, pensou. Agora, apalpa o saco plástico enquanto se aproxima do paredão onde as águas da baía fabulosa beijam o berço carioca: deixa cair as armas, uma a uma. O saco plástico tem outro destino: o lixo, ali mesmo junto de uma árvore. Ouvíu o baque dos metais no contacto com as águas da Guanabara. Não esboça nem sorriso nem qualquer outro traço facial enquanto contempla os círculos concêntricos que ainda ficam marcando o lugar da estranha desova.

Retorna para o local onde deixou a moto.

Em seu semblante há agora uma mistura de riso e de amargura. Talvez que nem isso. Dificilmente ele deixa transparecer o que lhe vai na alma, por isso a sua calma habitual engana muita gente.

Coloca o capacete e faz a moto rodar pela via turística.

Ao parar no Leblon, sob um semáforo (onde é raro alguém parar e nem ele sabe ao certo a razão que o levou a parar), recorda-se do Bossa-Nova e do bar, do café concerto, como ouvira da boca de um europeu. Um dia minha pessoa traz ela no bar, murmura sob o capacete. Em si a imagem de Marta. Ó meus Deuses, Arquitecto meu... Sente-se cada vez mais grudado naquela mulher.

É dia de ensaio, recorda.

Ruma para a Lagoa e toma o Túnel Rebouças... Ai, ah, ah, ah!, ele rindo e pisando fundo; a Honda voa deixando para trás o Cristo em seu abraço luminoso.

Um homem como ele, que conhece a morte de perto e foi treinado para a erguer como troféu em qualquer ponto segundo tácticas e estratégias bem definidas, sabe perfeitamente que tudo rola e continua a rolar enquanto a esperança paira no espírito das pessoas. Vai directo para o Morro do Macaco. Ainda não devem ter chegado, pensa. Como não tem quadra de ensaios, por efeito de um despejo, a escola de samba utiliza todos os espaços que pode e mesmo a avenida principal do bairro boémio.

Aproveita e bate um papo com os velhos no bar.

A vida é uma porcaria. Lixo. Sabe tu, ó do Amazonas? Tudo é lixo. Até nóis, víu. E este Rio de Janeiro é o buraco onde meteram nóis, querem matar nóis na fome e na porrada dos cara milico e policial, e inté dos cara do narco. Tudo é lixo, matança. Nem precisam nem querem nóis pra engorda, víu. Já nem escravo a gente é! Ó porcaria. Vai ver, vai ver agora que vem por aí a eleição. Vai ter político dizendo que buraco taí desde a monarquia, pra tirar buraco tem de votar república. E assim por diante. E os da monarquia diz o contrário, que a bosta da república é puta merda democrática com rei e príncipe pra tudo que é lado; escravo, então, olha nóis aqui...Tudo lixo, porcaria.

É o que ouve. Um queixume.

Queixume generalizado das gentes que laboram dia e noite por uma das cidades mais bonitas do mundo, mas à qual os governos não sabem dar impulso de renovação urbana com a infraestrutura necessária. Bonito é favela pra gringo tirar foto e bandido dormir rindo dos policial..., ouve. Para Manoel Três Bocas, que ouve e pensa muito, reflecte, uma área urbana encaixada entre montanhas e mar tem de ser protegida contra os flagelos da natureza através do reflorestamento das zonas degradadas. É o que diz para o velho que muitas vezes faz par com Marta. E diz mais: cara, e olhe o que fazem no norte. Eh, queimam tudo, destroem até floresta inteira pra fazer pasto de gado. Será que a Terra aguenta tanto gado?... E será que nóis vamo ter grão pra comer depois de tanta terra só pra gado?, interrompe o dono do bar, esquelético mas de boa aparência. Eh, continua Manoel, já temos deserto e tem rio que virou quase mar por causa dos buraco feito pelos cara dos garimpo. Eu sei, minha pessoa inté que é ignorante, mas não burra, nê!.., abre as mãos em jeito de oração, pedido de benção. Mim saber pelos jornais e pelos papos das gentes, verdade, sabe ocê cara, que andam querendo aumentar as favelas?... Mas um dia isto vai acabar mal. Olhe eu, cara, minha pessoa escapou da morte agora, estou vivo graças a meus Deuses, mas barraca virou nada, parece escarro no meio da merda!..., insinua.

O velho sambista, passista de muitas gerações, viramundo de favela em favela, endireita seu esqueleto e dá mais uma puxada no cigarro sem filtro, os dedos amarelos, e acena a cabeça dando a entender que percebeu. Ergue o dedo polegar: esta cidade, diz, tá de pernas pró ar, verdade, dizem e desdizem, contra e a favor de governantes, mas os governantes são gatos do mesmo saco, tá, e nóis é que, ó puta merda!, nóis é que pagamos impostos, e fazemos o Carnaval mais lindo do mundo. Olhe aí, meu, ó do Amazonas, se deputado vem na televisão dizer que tem de ganhar mais, e ele já é marajá!, nóis nunca vamo ter é nada, e inda vão é ter de nóis o futebol e o samba... Bem! Bem!, corta o dono do bar, aí a gente faz guerra e leva inté os milicos na nossa marcha, pô!

Na frente do bar dois moços esquentam os tamboris.

O papo vai longe. Vale tudo desde a Junta Militar a Juscelino e a inflacção que Brasília fez, ao trem d alegria de deputados e vereadores, a Getúlio pai-do-povo, ao caçador-de-marajás que vai virar marajá depois que provar a fantasia da ilha brasiliense; uma gozação política que não os faz esquecer a dura realidade do país. Dessa realidade sai a amargura que os faz resistir.

É quase meia-noite e as duas mulheres ainda não chegaram ao bar.

Taciturno, ele paga a conta e desce até à avenida. Encontra as duas conversando sobre as chuvas, as mortes, os deslizamentos. Olhem, ó meu querido Ambotá..., Marta abraça-o com alegria. Instintivamente ele contorna-lhe o corpo quente e bonito num abraço forte. Sueli, ao lado, sorri.




14

Em seu quarto Sueli desliga o rádio.

Há dois dias que uma gripe a pegou em cheio. Marta esteve com ela no dia anterior, em visita, e foi embora pela noitinha na carona de Ambotá.

Oh garupa gostosa..., ria ela.

Sueli lê um romance americano de muita intriga e muito sexo. Comprou o livro numa loja lá da vila quando, com Ambotá, andava em busca de informação para se documentar sobre a Kizomba, palavra do dialecto Kimbundo, de Angola. Kizomba, é a palavra do todo, quer dizer Fraternidade. A palavra mágica do carnaval que a escola de Vila Isabel vai sambar na Marquês de Sapucaí. Todos aguardam um desfile triunfal pelo toque do ritmo que os integrantes fazem ecoar ao cantarem o samba-enrêdo. 1988 parece ser o ano da raça negra, embora sejam poucos os brasileiros interessados nesta festa. Carnaval não resolve o salário mínimo que eu recebo, mas vou no carnaval pra desencantar e soltar a franga!, dizem todos. Não é a festa que lhes interessa, é a fuga à realidade. Aí, pouca importância tem o enrêdo do Samba. Querem é sambão mesmo. Ritmo, bebida, homem, mulher. Carnavalizar é a bandeira. Foi no meio da pesquisa que Sueli víu a capa do livro e se interessou. Após mais dois capítulos deixa cair o livro sobre os joelhos mas continua sentada na cama.

Vira os olhos para um cartaz gigante. Nele, aquela que foi e é o mito sexual da América do Norte, e de muito mundo - a saia esvoaçando na rua, o riso animal de quem sabe dominar a galera. Sueli sorri, engole em seco. Você conheceu muito homem, moça, e até foi cantada por um presidente poderoso mas acabou se matando. Eu quero conhecer o meu homem na hora, víu - e fixa os olhos na figua da bela que foi Norma antes de ser Marylin -, eu quero o meu homem naquele momento. Quando ele aparecer pra eu, na hora, coração vai estourar que nem boiada e na poeira da rabeira eu vou cair nos braços dele. Víu?... murmura. As mãos unidas.

Veste uma camisola, os cabelos caindo em desalinho. Cruza as pernas para melhor se equilibrar.

Moça, continua ela de olhar apaixonado no cartaz, se desfile correr bem pra eu, ai, mim vai virar manequim. Se tenho corpo bonito que nem tu, ai!, mim vai pegar fama na hora do desfile... Os olhos brilhando. Áurea fabulosa de axé que só um corpo de espírito jovem ligado à aventura pode expôr assim.

Desde que Marta a incentivou a mostrar o corpo sinuoso e sambando, só com biquini e sapato de salto alto, Sueli vem sentindo a cada dia mais orgulho de si mesma. Um dia mim estar aí, moça!, diz. Os punhos cerrados sobre o livro como se estivesse numa competição com a bela do cartaz.

No seu esforço de exaltação a tosse retoma o espaço e ela bebe um pouco de leite com mel da roça. Sente a garganta suavizando.

E retoma a leitura.








15


Tem catorze anos e desde os doze e meio que é moço de recados de Negão. Nos momentos mais livres: matador. Ele é o pivete que Manoel deixou escapar naquela madrugada triste. Do susto, parece que se recuperou rápido.

Moço esperto ele soube como conseguir abrigo.

Encontra-se com Negão hoje, que é segunda-feira. Está com um 38 novo. E na coronha teve já o ensejo de gravar três riscos: dois assaltos a turistas em Ipanema, perto da praia, e outro na estrada da Gávea. Sempre acompanhado de outro pivete, a quem paga com pó branco. Coisa esperta!, como ele diz.

No ritmo assustador dos assaltos em que participou e das várias mortes que causou, uma por medo e reacção instintiva, outras a mando, nunca ele teve problemas. Tinha saído tudo bem até àquela madrugada. Matou meu neguinho sombra..., lamenta-se ainda. Raramente os pivetes atuam isoladamente, há sempre mais um que faz o jogo de diversão preparando o terreno para o assalto final, ou que dá cobertura, faz a sombra. Seja no roubo seja na morte. É a regra.

E olhe a facilidade com que se armam de 38 e de Uzi!, comentou Marcão para Manoel quando soube do acontecimento na favela.

Buscam suas necessidades bélicas em dois campos que por vezes se chocam, mas, é no campo do narcotráfico que eles se reabastecem. No do Bicho é mais perigoso: tem sempre agente de olho na banca da esquina. Depois, quando um pivete cai logo outro lhe ocupa o posto; não há vacuidade no espaço criminal, que a cocaíca maoísta da Colômbia é trocada por armas de última geração. E vova a revolução...

Pressentindo que o Grandão Motoqueiro não vai acusá-lo na delegacia... pra não ser denunciado, pô!, pensa, o pivete esteve o dia todo fechado em casa do pai de Negão. Não é pai, gritou Negão quando o pivete mencionou o nome, é padrinho! Padrinho! A razão disso ninguém no morro sabe. Além de bancar o Bicho o padrinho tem outros interesses, como ouvíu o jovem marginal: tu também pode ir pra uma das fazendas do nordeste, precisamos de gente esperta pra trabalhar e dar segurança lá... Ahn, tenho de falar com Negão!, respondeu o pivete. Tudo bem, e o capanga que o atendeu acomodou-o ali mesmo na fortaleza do crime.

E logo circulou. Rabo de palha..., resmungou o capanga quando não o víu horas depois.

Tem novo parceiro. Mais velho, de quinze anos. Às vezes acompanhado pela irmã, que oferece em troca de fumo. A arma que possui obteve em troca do empréstimo da menina para uma orgia que aconteceu na fortaleza. Por outras vezes já a levaram para as fazendas. O pivete gosta do novo parceiro. Um sombra e tanto, e a maninha chupa o pau que é uma beleza!, comentou ele com Negão.

Tu demorou pra aparecer, moço!, resmunga Negão quando o vê surgir no Largo do Boiadeiro. Veste bermudão e camisa aberta; óculos escuros e ténis vistoso. É tudo que Negão tem no corpo, além da corrente de ouro e da fitinha baiana do Bom Jesus. Dá uma palmada no braço esquerdo do pivete: vamo lá conversar, moço. De bermuda mas descalço, o pivete exclama: Ueh, Negão. Tudo bem, pô. Tou gostando muito do sombra que tu arranjou... Hum, resmunga novamente o outro, do sombra ou da sombra?...Tu tem visto o cara?, o Grandão Motoqueiro?

Em casa da bonitinha, víu.

Negão cala o moço com uma bofetada. Bonitinha vai ser minha e tu trata de falar com respeito. Quero ela pra minha mulher!

Ih!...

E leva outra bofetada. Temo de dar um jeito nesse sujeitinho metido a besta... Ao ouvir isto, o pivete esfrega as mãos. Sua. Lá vem bomba, pensa. Mim estar em casa de tu padrinho...Tá, tudo bem!, quase berra Negão. Quando chegar a hora aviso tu. Não quero que tu sai da casa, de jeito maneira, víu!...

Negão ainda não encaixou bem a perda de um de seus pivetes, e está achando este meio livre, um autónomo. Não estou gostando, diz, não estou gostando nada do que vai por aí, víu. Quem mandou ocê montar a maninha do sombra, eh? Quem?... E agarra o moço por um braço. Quem?..., quer saber. Ai!, grita o outro de dor. Se ele é meu sombra a maninha é minha. E pronto, tá falado. Tu quer a bonitinha nê? Eu querer a maninha do sombra, só pra mim, víu, não vai mais pra orgia. Vai ficar só pra chupar o pau meu!... Negão não quer acreditar no que ouve, mas sabe que não pode perder mais gente. Tá, vai lá foder a sombrinha, ah, ah, ah, mas fica esperto pra hora que eu chamar ocê! Vem comigo... O pivete olha-o desconfiado. Reage com o olhar assustado. Vem comigo, e Negão puxa-o por um braço, vamo lá na casa de padrinho meu buscar mercadoria pra turma.





*

Ultrajado com a falta de confiança e de consciência de Negão, o poderoso do Bicho e do narcotráfico, também benfeitor como qualquer mafioso que se preze, aponta-lhe um único caminho; e manda que dois de seus capangas, ex-policiais, vão ajudar o seu protegido. O padrinho nem quis saber de mais nada, nenhum argumento é válido. Tu tem os teus menino e tu tem de saber gerenciar eles! Mais um caso desses em minha casa e tu paga caro. Entendeu?, falou o padrinho num particular com ele. Quando soube que um pivete estava escondido na fortaleza lançou berros por todo o lado. Só tenho bosta aqui... Mandou um recado a Negão: ele quer ver tu às onze!, disse o capanga. Pensei que que ocê tinha mais mercadoria pra eu distribuir, padrinho?, desculpou-se no meio da descompostura. Qual nada, sua bosta!, e agora trata de tirar esse menino daqui. Quero tudo limpo, víu, esse menino pode virar boca grande...

*







Negão mostra dois pacotinhos com pó ao pivete. Um pra ocê, malandro!, diz. Tinha combinado apanhar mais mercadoria depois da hora do almoço. Viciado, o pivete agarra logo o pacotinho e esconde no bermudão. Algo lhe diz que tem coisa errada. Nem tudo está bem. Ele tá bravo só porque tou fodendo a mana do sombra? Ahn, ele quer ela também... É isso aí, pensa.

Circularam durante horas pela cidade. É noite alta. Onde vamo agora?, quer ele saber. O cara que o acompanha no banco de traz do Mercedes-Benz faz sinal de silêncio. Vêm da zona norte pelo caminho de regresso à Rocinha. Possivelmente. Parece que não têm lugar certo para parar. Fazem um giro imenso até o Jardim de Alah, mas não ficam por aí apesar do carro estar rodando devagar. Súbito, o carro vira para a Lagoa e some no Túnel Rebouças. Um momento de júbilo desperta no pivete. Durante as últimas horas uma agonia de indefinições preenchera-lhe o pensamento. Vamo ter acção!, vamos acabar com alguém lá do Dona Marta. É certo, só pode ser..., diz para si mesmo. Já no fim do percurso subterrâneo ele sente - é um segundo que é uma eternidade sôfrega de horrores, os olhos esbugalhados - um fio de pesca no pescoço; quer lutar, lutar; é uma briga de selvagens. De repente vê tudo negro, branco, não vê nada, nada...

Ainda não é meia-noite.

Mais à frente retornam para depois entrarem na via do Jardim Botânico. Logo apanham o rumo da Estrada da Gávea.

Próximo da sub-estação eléctrica, ali na entrada da Favela da Rocinha, alguém descobre um corpo abandonado. Não liga. É mais um corpo. É o Rio de Janeiro. É como New York, é como Moscovo, ou Paris, ou Lisboa. A vida passa depressa para se dar atenção à vadiagem ou aos cadáveres das bermas de estrada. As pessoas passam. É mais um negro cochilando na noite carioca. E depois? É uma mulher idosa que se aproxima do corpo... Nossa!, grita.

É quase meia-noite quando Manoel Três Bocas retorna para a favela levando Sueli na garupa da Honda; estiveram a noite juntos ensaiando o samba-enredo da Vila Isabel. Deixaram o boulevard mais cedo porque ele temia uma recaída da prima, ainda gripada. De passagem, vêem um grupo de curiosos. Um tititi daqueles. Tem coisa, pensa. E sente a mão de Sueli cutucando seu braço. Resolve dar uma parada. Notam que há muito pivete entre o grupo de curiosos. Não é nordestino vendendo sanfona, diz Sueli.

Mataram o Jairzinho do tamboril, diz um dos curiosos quando a moto se aproxima. Foi turma do Dona Marta, pela certa. Ah se foi...

As opiniões proliferam. E que tinha sido um bom moço, muito amigo dos outros moços da favela. Muito religioso, sabia de cor o serviço da capela. Ora, só pode ter sido gente do Morro Dona Marta, dizem uns. Eles querem vingar o bigode do ano passado, dizem outros. Coitado do moço... Temos de dar um jeito nessa turma palhaça do Dona Marta, valeu?! grita alguém. É Negão. Sueli e Manoel olham-no, desconfiados. Ôpa, na hora certa da curiosidade, diz ela, devia ir pra política este Negão!

Tem jogo sujo, aqui. Queimaram arquivo!

Será, ó Ambotá?

Tem outra saída, Sueli?

Recompôem os capacetes e ele dá nova partida na Honda.

Para trás fica a pequena multidão, que engrossa. No momento em que a moto arranca os olhos de Negão cruzam com os de Sueli, que leva a viseira levantada. Te vou montar, bonitinha!, jura para si mesmo.

Dois carros de Polícia Civil aproximam-se. Luzes e sons misturam-se ao tititi e aquele pedaço vira tumulto com boa parte dos curiosos desaparecendo. Os pivetes mais conhecidos são os primeiros a dar o fora. Do antes tão falador Negão nem sombra... Todos ameaçam todos e para a polícia ninguém sabe de nada. A velha que encontrou o corpo deu o fora tão logo escutou as sirenes. Parece serviço combinado. Atrás dos policiais surgem os repórteres de plantão para as ocorrências da área. Tem flash para todo o lado. Lá foi mais um pró jardim das tabuletas!, comenta uma repórter. Pra esse não tem nem tabuleta, é cova mesmo, lindinha!, emenda um policial bem humorado.



Ainda não são sete horas da manhã.

Mas, é o pivete que ameaçou eu lá na praia!, exclama Sueli ao olhar a foto de Jairzinho estampada no jornal.

Está aguardando o ônibus. Ambotá saíu mais cedo de casa para poder passar a tempo nas Laranjeiras. Ela abre o jornal e fica sabendo o mesmo. Que o único informe é a identidade do pivete encontrado de mãos amarradas nas costa e capuz plástico enfiado na cabeça após ter sido quase degolado.

Foi queima!, é o que ela ouve mais ali no ponto. Só pode..., concorda.

Recorda o olhar frio de Negão na noite de ontem. O olhar de quem sabia de tudo. E começa a tremer, o corpo esquentando no receio. Ó meu Des!, o pivete era o moço de recados daquele bandido...




16


O homem das cartas entrega ali e além. É novo. É a segunda vez que distribui na área. Moço magro, a bolsa com a correspondência parece pesar-lhe toneladas sobre o ombro direito. E vai lenta, lentamente, fazendo a distribuição.

Tem uma carta para Manoel Três Bocas. É pra aquele da moto que me pedíu pra botar selo na carta pra Portugal. Pô, portuga até na favela tem família!, gracejou no momento. Havia encontrado o homem da moto no bar. E agora? Tem carta pra ele e acho que vou deixar no bar mesmo, decide. Oi gente boa, diz em jeito de cumprimento, tem carta pro cara da Honda aqui. Você dá?... O dono bar vai estendendo a mão enquanto acena positivamente a cabeça, mas alguém intercepta: mim logo dá pra ele!, ouvem. É Negão. E pega a carta enquanto o carteiro diz tchau pedindo licença aos pés.

Ooh yeh...

Negão está espantado... É de Amataurá, Amazonas. Bebe mais um gole de cachaça. Ía continuando a leitura em voz alta mas cala-se ao ver o cara do balcão com ouvidos sintonizados. Logo depois, satisfaz a curiosidade de rapina, e lê: ...depois de dar sepultura a José eu fui buscar os pais dele em Medellín. Olhe, meu filho, ainda procurei o velho físico do garimpo que era tão amigo dele mas acho que deu sumiço; ninguém sabe dele. Bem, dei para os velhos de Três Bocas a pequena fortuna do Zé Floresta e logo regressaram para o Brasil. Espero que os de Medellín deixem os velhos em paz, aqui em Amataurá. E se você souber do velho, o engenheiro João do garimpo, me dê notícias logo!... Negão solta um prolongado e grave ooh yeh. Tem na mente uma suposição espontânea: o Grandão Motoqueiro é da turma de Medellín. Sente-se cheio. Acha-se na posse de um segredo. Com isto eu poder afastar o sujeitinho de bosta aqui do morro, pensa. E tenho de saber quem é este Francisco. Pai do cara? Talvez. Então, é família da turma de Medellín... Nossa Senhora!, e em seu raciocínio pressente o perigo de possuir tal informação. Ai, por isso padrinho meu tinha bons olhos pra pai da bonitinha. Por isso... Nossa Senhora, vige!

Pensa em falar com o padrinho. Desiste. Mim ir ou não ir?

De casa em casa vai o homem das cartas como tartaruga em busca de poiso. Depois de uma viagem de ônibus que vira e não vira na loucura de um motorista que arrasa na selva urbana, o homem vinga-se como pode...

Estou na pior, vige!, murmura Negão olhando o copo vazio de cachaça.




17


Os vigias da fábrica ficam de boca aberta. Um oficial em farda de gala! E quer falar com o chefe da segurança. Tá ficando chique a banda de S. Cristóvão, hein!, riem.

Manoel Três Bocas olha, incrédulo, para o tenente.

Manoel! Ó Manoel!, diz ele ao dar de caras com o chefe da segurança da fábrica. Ainda surpreso, Manoel recebe o abraço dele. Bons velhos tempos aqueles, hein Três Bocas!, ouve. Vem cá, cara!, continua o oficial, espalhafatoso e sibilando algo na orelha do outro após ter cumprimentado o pessoal do gabinete. Tenho um negócio milionário pra ocê, cara... E depois senta-se numa cadeira perto da mesa de trabalho para onde se dirige Manoel. E então, ocê diz pra mim..., convida ele sentando-se na frente do tenente e acariciando os bigodes. Gesto que faz rir o outro. Talvez mais pela pose de segurança assim lançada entre os dois. Vamos então ao negócio, recomeça ele, um negócio que pode dar a ocê muita vantagem social e muito dólar, cara. Bem, tope isto: vou precisar - olha para os lados, mas vendo que ninguém presta atenção continua - de um cara com as tuas características para chefiar uns carregamentos de éter e acetona no sertão e nas fronteiras. Cara, negócio de muita responsabilidade. O resto ocê deixa comigo... Em primeira fase tu dirige o transporte aqui, no Rio, depois nas outras bandas. O resto ocê deixa comigo..., termina o oficial.

Ele conheceu o militar quando esteve em exercícios no Rio. Continua trapalhão, puxa-saco de coronel, e julgando que todo o crime fica impune, ri Manoel interiormente.

Cara, é coisa mole e que dá grana federal. Coisa grande, mesmo. Dólar, dólar, dólar, ó cara, muito dólar tem nesta parada!

Mas eu sei que isso dá cana e morte matada, e que na hora do vamos ver não é ocê que vai tirar a minha pessoa do apuro, não é mesmo camarada?, e deixa o oficial com ar de estúpido. Mas..., parece que nunca víu ninguém recusar dólar fresquinho e fácil. Cara, juro que não entendi...

A mola da vida e a da minha pessoa, prossegue Manoel, não é o poder da grana nem o das armas mas o bom nível espiritual e o bem estar de cada um em seu lugar próprio. Não gosto disso e, creio eu, disse isso pra ocê quando estava nos fusileiros. Larga eu de mão, vai..., remata com ar furioso. Não entendi, diz o outro, mas tudo bem. Seja como o ignorante quer. Botar fora caminhão de dólar. Ahn...!

Cambada de negros estúpidos, e com nariz no ar!, vai dizendo entredentes enquanto caminha na direcção da portaria. Os seus olhos verdes, a pele amorenada pelo sol, homem branco alto e forte, de farda, atrai as operárias que passam e atrasam o passo. Ele lavra no seu íntimo um ódio bravo, rácico.

De novo sentado em sua cadeira, Manoel coça a cabeça. Presunção e água benta..., diz uma funcionária com um trejeito de riso nos lábios. Eh..., responde ele rindo. Sente-se bem. Dilúvio e gripe até que sim, mas corrupção não vai pegar eu!, e ri de novo.



18


Para chegar na Favela da Rocinha ela pega vários ônibus, e se há coisa que não suporta é o ar fechado e os cheiros nos ônibus. Tomada de alergias desde tenra idade, Sueli se vê aflita por vezes até no ar condicionado do supermercado; o que mais a esgota - como a travessia do que diz ser o horroroso Túnel Rebouças - é aquele momento em que aceita a boleia na moto do primo: o capacete integral deixa-a doida mesmo usando sempre a viseira levantada.

Quando há muita humidade no ar, ou chove, tenta evitar a carona de Ambotá. Prefere o ônibus onde tem de viajar em pé como sardinha enlatada, suportar o pico do trânsito urbano, e também as mãozinhas leves que aproveitam a ocasião da maré mansa para lhe apertarem as nádegas e os seios. Tem dias que sai apavorada do ônibus, sem fala. Tem hora em que se julga sem sangue nas veias tal a maneira como se sente gelada de horror.

Chove na Vila Isabel.

Ela aguarda o ônibus no ponto habitual. A chuva miudinha infiltra-se aos poucos nos cabelos longos. Não tarde, sente a roupa encharcada. Nestes momentos sente-se bem, respira uma liberdade sem limites; o cheiro da terra toma-a por inteiro. Mil desenhos animados fazem-na sonhar, ali mesmo. É o mesmo que sente ao caminhar. Adora caminhar. Ocê herdou isso de tua mãe e da irmã dela que era mãe de Ambotá, ambas eram d Angola..., já lhe disseram. Respira o ar húmido, calma.


*

Na mesma hora, lá na serra carioca, Petrópolis recebe uma carga inacreditável de chuva. Ondas e ondas de chuva forte varrem a cidade histórica, o rio principal começa a transbordar perigosamente ao receber toda a carga dos afluentes. Dos morros muita terra começa a deslizar. Casas são inundadas por lama e água e pedra e árvores. Pedras enormes rolam nos morros. Não se vê um palmo de Petrópolis, o temporal cercou a cidade e muita gente não tem como pedir socorro.

*




A crioula bonitinha está na fila. Em seu olhar o sossego e a sensação de mais um dia que passa. Há pouco, ajudando na confecção das vestimentas carnavalescas da escola, Marta confessou-lhe: gostava de ter conhecido minha mãe, víu. Ela me deixou no morro de Santa Tereza e se foi, disse pra eu papai; era neném ainda, e eu ficou com ele até catorze anos. Depois, também papai se foi. Só a avó tá com a gente. Quando casei, víu, mim casar porque neguinho era bom neguinho. Mas fui obrigada, os bandido dos tóxico fazem as lei dos morro, víu. Fui estuprada, torturada, fizeram eu cheirar pó, eh garota, é isso aí. E depois disseram pra eu: te vamo dar ome. E foi. Mas era bom neguinho. Eu já ter duas crianças e casar ser bom, nê. Sempre ajuda no arroz com feijão. Adoro meus molequinhos, ah, ah, ah, víu, ó coisa linda. Mataram meu neguinho depois, coisa de fumo, queima d arquivo, tu sabe... ai, muito gostava aquele neguinho de um porre d haxixe. Verdade, minha linda. Inda agora andam por aí querendo que abra as coxas. Mas estão mansos. Desde que eu comecei no serviço eles não mais ameaçaram - é que eu ameacei de botar eles de cana! Eles não gostam de mulher mandona, mulher brava, ai...!, e ria. Um depoimento cruel. Falava pausadamente com seu português precário apesar de ter cursado o segundo grau. Para cada palavra ela usa mil gestos. Mulher é um barato pra estes negros, ahn!... E esta merda que a gente é não vai acabar nunca. Sei que tu inda sonha, minha linda, que tu inda não teve ome dentro de tu - acariciava o rosto incrédulo e meio assustado de Sueli, que a escutava atentamente - , mas um dia tu vai ter ome dentro de tu. Se tiver sorte tu consegue neguinho bom, ou então qualquer neguinho vai pegar esse corpo lindo e vai botar pau dentro. Eles fazem isso na lage. Deitam tu e abrem tuas coxas. E tu fazes o que eles querem. Mulher é diversão. Vê tu, os gêmeos tem não sei quantos pais, entraram tantos em mim lá na floresta de Jacarepaguá..., e olhava a cara estupidificada de Sueli. Não fica assustada, bem, isto é Rio que tu ainda não conhecer. Dá graças a Deus. Pra negro e branco mulher é diversão. Mas acredito que há mulher melhor que eu, mulher forte, com cara de chefe, e tu ter esse estilo, bem, por isso gosto de ocê..., terminou com um sorriso. Sueli ficou sem saber o que dizer depois de tanta revelação e da breve pincelada carioca. E disse: não, eu não ser tão forte Marta. Tenho medo de viver lá na Rocinha, mesmo com o Ambotá agora lá em casa. Sei que alguns caras não tiram o olho de mim, mas... Afagou os cabelos negros de Marta. Notou-lhe o sorriso ao falar de Ambotá. A encruzilhada social e a sobrevivência na dura realidade do submundo é o que lhe vai no pensamento, agora que aguarda o ônibus. O tempo húmido ajuda-a a respirar e até a raciocinar sobre as revelações da triste vivência da amiga.

Do supermercado, de onde saíram mais cedo, foram participar dos trabalhos da escola de samba que, para perplexidade de muitos, recusou o apoio financeiro dos banqueiros do Bicho. O apoio oficial e as ajudas da comunidade são o que a escola de Vila Isabel tem para chegar com a sua Kizomba na Marquês de Sapucaí. Entre o mutirão de apaixonados do Samba, que ela começa a admirar, apreende aquele todo da vida que emana de uma comunidade esforçada apesar da fome e da marginalidade. O cansaço vence-a às vezes, aí, fica a observar a riqueza dos artesãos do Samba.

A chuva miuda começa a engrossar quando o ônibus pára no ponto. Só falta meterem o pé no bolso do outro passageiro. Sueli sente-se espremida em meio ao calor e aos cheiros de um ônibus que solta passageiro pela janelas e cujo motorista parece estar fugindo dos demónios.

Quase todo o Estado carioca começa a ficar à mercê das chuvas tropicais, e a Baixada Fluminense é alagada em menos de uma hora de chuva forte. É uma lagoa. Gente desaparece tal qual as casas que vão na correnteza.

Na serra, em Petrópolis, o deslizamento de terras é tal que barracas e boas casas desabam de igual modo: parecem castelos de cartas sob breve brisa, ou respiração de criança. No Rio, a Praça da Bandeira transborda com o rio Maracanã fora do leito e o Joana na mesma situação; fábricas e depósitos, casas comerciais e hospitais ficam em alerta total; a Defesa Civil é impotente diante da catástrofe. Automóveis e camiões são arrastados pelas águas; passageiros tentam fugir dos ônibus que se aventuraram em atravessar as águas.

Manoel Três Bocas está retido na fábrica orientando a emergência.

Em alguns pontos da Baixada Fluminense os pivetes aproveitam para invadir casas; e assaltam os motoristas que ingloriamente tentam fugir da estrada abandonando os veículos; tem 38 para tudo e para todos, e faca, ou barra de ferro. Uma catástrofe nunca vem só. Melhor que nenhum outro povo, o carioca sabe disso.

Temos de evitar que o lixo acumule na fábrica, berra Manoel Três Bocas, olhem aí os buracos entupidos. Vamos, vamos lá gente!

Das favelas e dos morros arrasta-se toda uma lixeira para o meio do Rio; a cidade já está entupida, ninguém mais sabe o que é rua, rio, praça, e os ratos tomam conta dos espaços.

A chuva continua forte, forte.

Farta de apalpões, de ser pisada, Sueli chega na entrada da Rocinha quando chove torrencialmente e as águas descem com violência. Inicia a subida e nos poucos metros que caminha sente-se gelada. É raro, mas sente a tremideira nos dentes...

Ouvem-se gritos, avisos. Logo a iluminação pública pifa e ela continua a sua caminhada. Lenta caminhada por um morro desprotegido das defesas naturais: não há árvore nem mata, tudo se foi pela acção depredadora dos yuppie faveleiros. Agora, como sempre, desde que os reles mortais o feriram de morte, as águas descem do morro como cachoeira: mumúrio ensurdecedor mas de pétrea beleza sob os raios febris e fantásticos. Lixos e misérias humanas rolam e rebolam pelo morro.

No bréu, a jovem vai pulando aqui e ali. Demora para alcançar a rua. No instante em que acaba de pular para junto da porta de casa pressente alguém perto.

Oi crioulinha linda..., ouve. E o riso de um moço que a empurra contra a porta. Ahhhh... tenta fugir.

Nada.

O moço empurra-a com força tamanha. Ela sente uma mão tapando-lhe a boca. Tenta morder mas leva um tapa forte. O corpo dele a empurra, esmaga. Dominada pelo medo quase nem percebe que ele lhe tira a chave da mão. Súbito, as palavras de Marta surgem dominando-lhe por instante o pensamento. Fica horrorizada, quase desfalece. Ele consegue abrir a porta e entram de rompante. É arrastada para o meio da sala pequena. De olhos cerrados, não vê que o moço usa agora uma lanterna de pilha. Procura algo enquanto ela está sentada no carpete; tira de uma sacola uma Uzi de 9mm e introduz o pente de munições com uma pancada seca. São segundos de eternidade. Sueli não sente. Está petrificada no meio sala. Tomada de pânico. Algo lhe está acontecendo: percebe que é arrastada, depois colocada em cima da cama. Te despe, moça! diz o moço em voz áspera. É outra voz. Não é o mesmo. Estou louca?, sugere a si mesma. O corpo treme, algo a sustenta ainda entre a vida e a morte E percebe. Entende. Decifrou a voz: Neg...Negão, murmura. Reconheceu a voz do avião. Quer tentar resistir mas o corpo não obedece... Melhor assim!, resmunga ele. Ei, toma cuidado aí fora pra ninguém topar com a gente!, berra ele para alguém que ficou junto da porta. De atalaia. E ouve um risinho moço, malandro. Sem muito cuidado, Negão vai tirando as roupas de Sueli, a colcha ficou molhada com as roupas encharcadas. E despe-se. Com a lanterna percorre o corpo dela. Ai crioulinha... desde os tempo da escola que quero ocê. Agora, ocê é minha. Vige, que corpo lindo. Agora tu é minha..., vai falando num quase murmúrio. Há no seu pensamento a vingança de um tempo perdido. Como câmara de filmagem sobre documentos secretos ele manuseia a lanterna descobrindo a beleza íntima de Sueli, até que coloca a lanterna no criado mudo fazendo incidir o foco da luz na parede oposta. Uma luz frágil ilumina os corpos. Afaga os cabelos molhados da moça, espalha-os no lençol de cores estampadas enquanto com a outra mão lhe percorre o corpo desfalecido mas quente. Abre-lhe as pernas e instala-se entre elas, o falo sobre o sexo dela é a imagem sádica da impotência humana. Debruça-se sobre aquele rosto angelical e, num repente, soam no quarto duas bofetadas fortes; a cabeça da moça vai de um lado para o outro com a violência. Ela acorda. É um acordar apavorado. Tu vai ser minha!, ouve. Fica inerte, estátua. Aos poucos, cheia de dores, os lábios apertados cruelmente, nem gemido solta, sente-se invadida pela loucura de um homem bestial; o sangue solta-se pelo lençol. Não há grito nem choro. É um corpo violentado. Durante a invasão sexual apercebe-se vagamente das palavras da amiga. Os olhos cerrados, duros. E outra vez um corpo entre as suas coxas. Não reage mas sabe que não é o mesmo homem. Tenta descobrir... A alma não reage, a cor da vida empalideceu e futuro não há. É este o estado psiquico da jovem mulher que descobre estar de visitação brutal pelo falo de um pivete. O outro ri. Acaba de apertar o cinto e pega na metralhadora Uzi. Lá fora chove manso, agora.

Num instante, a energia eléctrica retorna ao morro. Notando isso, Negão, em gozo próprio, acende a luz do quarto: a claridade invade os corpos nús. Na...nnn...Não!, berra Negão ao olhar as suas mãos ensaguentadas. Surpreendido pela luz intensa, o pivete abandona o corpo de Sueli e fica horrorizado: o sangue da moça manchou-o todo. Entre as pernas e sobre ela uma poça de sangue testemunha o horror da bestialidade. O pivete não se contém e veste-se rapidamente. Ele e Negão abandonam a casa correndo. Prostrada no leito, Sueli é uma alma penando em corpo violado. O cordão fino de ouro arrancado do pescoço, quase caindo no chão. Uma mão trémula tenta apanhar a medalha do fio. Papai, mamãe... balbucia Sueli.





*


Sangue, águas, lama, pedras, Petrópolis é parcialmente destruída pela tromba d água.

Mortos e mais mortos. A destruição está em toda aquela área serrana. Dezenas de desaparecidos, feridos, milhares de desabrigados, gente soterrada.

O sangue marca a madrugada do horror, em meio à tromba bestial dos cósmicos desígnios e à bestialidade humana.


*



19


Ninguém atende o telefone.

1988 é um ano e um dia, talvez que somente algumas horas: ou, um momento de assombro. Nas feições de Manoel o desespero. As pontas do bigode prendem-se na barba que desponta, rebelde.

Dez horas da manhã neste 1988.

Tudo parece um fresco surrealista. Não que o Estado esteja de pernas para o ar, mas, como um gritar de cuíca puxando as almas, o Rio de Janeiro redescobre-se na verdade que muitos julgavam coisa do impossível. Apesar das realidades do quotidiano. A cidade maravilhosa é somente um cartão postal! No limiar da realidade urbana que ora despontou, diluviana, a escabrosidade da situação faz ressaltar a calamidade social - nada está em seu lugar e quando está não tem infraestrutura.

Com as enchentes dos rios Joana e Maracanã alguns pontos da fábrica foram alagados, apesar dos esforços de todo o pessoal e da dedicação de Manoel Três Bocas. O balanço da manhã é triste. O prejuízo não é muito mas é prejuízo!, avalia ele. Enquanto os operários iniciam a recuperação das instalações atingidas, as emissoras de rádio difundem os aspectos chocantes do desastre na cidade imperial e em toda a Baixada Fluminense, principalmente Caxias.

Preocupada com a ausência de Sueli no serviço, Marta tenta localizá-la até através de amigas. Outras moças que vivem na Rocinha não a viram no ponto do ônibus. Deve estar em casa, com aquele temporal todo..., dizem. Marta pressente algo ruim. O corpo treme, não lhe obedece.

Escutando o “radinho di pilha”, Manoel continua ligando. Mas o fone dá sinal de linha livre..., surpreende-se. Cansado e cheio de sono pede licença para se ausentar da fábrica e descansar um pouco. Vá descansar meu jovem, fez um ótimo serviço!, diz-lhe o velho director. Ele desaparece mas uns segundos depois está de volta: esqueci o capacete e os documentos..., diz. O velho ri, dá uma palmada no ombro dele e recorda: você está indo descansar, senhor Manoel Três Bocas!

O tráfego está caótico.

Indo por atalhos e caminhos de morro que ficou conhecendo anos atrás, ele encurta a viagem. Que terá acontecido?, questiona-se. Atavés de Marta já soube que a prima não foi no serviço. Pelas cortadas que faz no meio dos veículos, em velocidade doida, ele é alvo de impropérios e businadelas. Coisa que não ouve, nem poderia: tem o pensamento na Rocinha.

Encontra a porta da casa entreaberta.

Ih!

Sem tirar o capacete precipita-se para o quarto de Sueli e, logo ali, na porta, fica paralisado. A cena horrível da violência choca-o.

Inanimada, manchas de sangue nas coxas e no ventre, roupas pelo chão, Sueli é a imagem de tudo o que ele jamais queria ver. Encostado na porta quase desmaia. A custo, tira o capacete que rola pelo chão. Um turbilhão de idéias rola em seu cérebro. O homem absorve toda a desgraça que contempla. Com as costas da mão limpa o suor frio que goteja na fronte ao se aproximar do corpo. Su...Sue...Su...Sueliiii!, grita enquanto abana o corpo. Sueliiii!, esfrega-lhe os braços, as pernas.

O desespero sufoca-o.

O telefone toca. E ele corre. Reconhece a voz de Marta. Depois te ligo, tá!, e desliga. Pelo número da polícia pede carro-patrulha e ambulância.

Fixa o olhar na sacola de borracha, dessas que são confeccionadas por uma micro-empresa na própria favela. Está na entrada da sala. Se eu fosse tu não chamava os policial, víu!, ouve ele. Fica manso, moço. E sabe tu?, os polícia até que íam gostar saber porque o tal José foi morto por tal Francisco. Ahn, tu mandar matar José, tu ser ome de Medellín..., é Negão que agita a carta na frente de Manoel sabendo-se protegido pelo 38 que o pivete aponta. Na realidade, Manoel quase nem escuta. Quer socorrer Sueli. Vê que o pivete apanha a sacola de borracha e um boné que estava por baixo. Ela é muito gostosa..., ri o pivete. Ooh yeh, a crioula bonitinha vai parir muitos menino!, remata Negão. Os dois recuam para a porta, Manoel não se mexe, está sob a mira do 38. Era uma carta do padre Francisco, reconheceu ele pela letra. Memorizou bem as linhas do rosto do pivete. É a vez de Marcão ajudar minha pessoa, pensa. Ouve as sirenes e vê que é a patrulha e uma ambulância.

Sueli é levada para um hospital perto do Leblon. Antes disso, a polícia fez foto e peritagem na cena do crime. Manoel retirou da mão dela o fio com a medalha e escondeu no bolso. Só peço pra não botarem foto nos jornais, solicitou ele aos policiais. Por sorte não chegou nenhum repórter com a viatura da patrulha, coisa rara.

Liga para Marta e dá informações: ela está em choque, mas viva. Os meus Deuses vão ajudar. Eu sei quem fez o serviço e vou ficar na cola, bem!

Parece que adivinhei, Ambotá. Ontem estava falando pra ela daquele meu caso que ocê sabe, bem, e nunca pensei que ía acontecer..., diz Marta. Vou ter com ocê no hospital, bem!

Eu vou buscar ocê!, diz ele.

A vida é muito má, reconhece Marta ao subir na moto. Enfia o capacete com a viseira levantada. E continua: depois, negro não gosta de negro. Não gosta da raça, víu. Quer branco ou branca, e se é negro vai procurar loira. Ai que raiva, Ambotá!, desabafa ela. Abraça-o pela cintura: Vamo lá, bem!, e a moto arranca do estacionamento do supermercado.

Na mente dele a cena do agito. Aquele aviso que deveria ter levado a sério. Mesmo que eu estivesse em casa essa turma faria a mesma coisa na minha frente!, reflecte. Estupro. Estupro, meus Deuses, como isso é possível?!

E por que a carta na mão de Negão?, pergunta-se. O carteiro não víu eu na barraca e deu pra ele no bar. Só pode... E será que o carteiro botou a carta para Portugal? Minha pessoa já devia ter resposta. Ou a rua que meu irmão de vida deu está errada?

Ehhhh...Eh, Ambotá!

Marta grita, aflicta. Por pouco não chocam com a traseira de um ônibus. O ônibus parou mas não fez sinalização. Cena comum no Rio de Janeiro entre ônibus.

Com perícia ele foge do choque e prossegue. Marta dá uma cutucada no braço dele. Vê se fica esperto, meu!... E ele levanta a mão direita tocando no capacete dela. Tudo bem, bem!

No pensamento tem novamente a imagem do carteiro...

Pelos “radinhos di pilha” que alguns visitantes usam enquanto aguardam a chamada, Marta e Ambotá ficam sabendo que Petrópolis foi arrasada, que não haverá Carnaval na cidade; as bancadas da avenida estão sendo retiradas. As máscaras de Petrópolis são outras e as gentes devastadas pelo infortúnio têm o lamento como ritmo. Que desde 1966 não se vivia coisa igual no Estado carioca.

Os dois estão abraçados.

A menina teve hemorragias e perdeu muito sangue, está com a capacidade de reacção debilitada por um tempo. Ouviram de uma médica simpática. Há duas horas que enfrentam a angústia do desconhecido em relacção ao estado de saúde de Sueli.

Há quem fale de cem mortos em Petrópolis, outros nem tanto, mas as emissoras de rádio e televisão apontam para cerca de cinquenta; e a Baixada Fluminense está um caos, ouve-se na sala de espera, está isolada e pode vir epidemia com os mijo dos rato! Verdade. É a tradução imediata que aqui se faz dos noticiários. E bandido não morre de chuva... Absortos no caso que os une e os faz ser um só, Ambotá e Marta não prestam atenção nos comentários dispersos mas constantes sobre a tragédia. Podem vir!, chama a mesma médica da primeira informação.

Sabem-na em estado de choque. Pegam em suas mãos, transmitem-lhe o vero calor humano. Ele aproveita e coloca a correntinha de ouro com a pequena medalha na mão. Ahn..., ouvem ela agradecer num sussurro. Não podem estar muito tempo no quarto. Ela vai ter alta dentro de quarenta e oito horas, sabem pela médica. Quando fecham a porta do quarto abraçam-se. A médica sorri, cúmplice. O beijo que o casal troca sela um momento de força espiritual e de muita esperança.

Do orelhão do hospital ele comunica com Marcão. Que não se encontra. Vem cá pra janta!, convida a mulher dele. Tá bem, diz, não posso dizer não a ocê!

Leva então Marta para casa. Dirige a moto com cuidado. As imagens do carteiro, do pivete e de Negão marcam-lhe o pensamento.

Em casa conversam da vida e da nova situação que estão a criar para ambos. Ai minha mulher, princesa minha... Ela não o ouve. Está tomada pelo carinho e o prazer de ter o seu homem. Também ele circula no prazer de se dar à mulher que quer como companheira e de a receber no mesmo carinho. A ternura os faz viver a plenitude do amor.

Tinha razão o Zé Floresta... Com uma puta a gente nem se dá, se esvazia, nem sente. Com a mulher da gente é tudo, se a gente ama ela!, pensa. Tá torrando tua cachola com quê?, quer Marta saber. Mas ele ri, e continua lhe afagando o corpo. Sabe, meu bem - fala ela baixinho -, é gostoso ter ocê só pra mim. Poder dizer faço amor com o meu ome, o ome que eu escolhi pra sambar comigo, o ome que eu quero sentir dentro de mim. Que bom. Muito ome entrou em mim, ocê sabe disso, mas nenhum outro ome me deixou com tanto tesão e saudade como ocê... e abraçam-se fortemente. O perfume do sexo com amor é uma essência que toma conta da casa.



*

Eram dezoito horas quando Marcão chegou em casa. A mulher informou-o da visita que vão ter para o jantar.

Coisa muito ruim deve ter acontecido para um cara como ele vir pedir ajuda a um policial, mesmo que amigo e conterrâneo. Mas ele vai ter todo o apoio que precisar!, remata acariciando o rosto dela.

No pequeno ecran da televisão as imagens de Petrópolis. Marcão abana a cabeça, desolado. A coisa tá brava, diz ela, e continuam achando que cortar mata nativa é coisa simples...

*



Marta espreguiça-se. O corpo nú.

Ai... meu Ambotá, suspira. Ele veste-se. São quase vinte horas e tem de estar em casa do amigo. Princesa minha, diz, hoje tu fica aqui pra me ajudar a botar ordem na casa. Temos de receber Sueli depois de amanhã e é bom não ter por aqui vestígios da cena.

Não demora, bem.

Despedem-se com um beijo prolongado.

A cidade está coberta de nuvens negras, muitas águas podem ainda rolar; cachoeiras há muito esquecidas e cobertas pela mata podem reaparecer furiosamente descobertas pelas águas da chuva. Os canais de concreto que esmagam os rios que cruzam a cidade são lixo de todas as poluições. É o que falam as gentes que transportam as alegorias carnavalescas de Vila Isabel. É preciso muita Kizomba para sobreviver no deserto administrativo e político que é a cidade maravilhosa. Chove mansinho. Talvez que um sinal de dias melhores apesar das nuvens.

Ao passar por um grupo que toca tamboril, cuíca e bombos, Manoel Três Bocas acena. Já o conhecem. O anjo da guarda da bonitinha, comentam. Deixa algo no bar do Morro do Macaco que Marta lhe pedira: a grana que ficara devendo na última rodada de cerveja. Tá pago, ouve ele. O velho sambista, sempre ele por ali, à cata de alguém para dois dedos de papo informal, aponta o dedo para as nuvens. Vai cair mais!, diz. Logo que a moto arranca do terreiro a chuva começa a cair mais pesada. Nem mesmo com a pancada ainda mais louca por ser empurrada pelos ventos Manoel se abriga. A moto corta as ruas, o motoqueiro tem hora agendada.

Entra! Pô, tá uma água só!, ri Marcão ao recebê-lo na porta do apartamento.

Tudo bem, Marcão? pergunta em jeito de cumprimento, enquanto dá para o filho dele o capacete. Eu é que quero saber, ó motoqueiro!, brinca o outro.

Parece uma sopa, Ambotá!, exclama o garoto. Os caras da Fórmula Um também ficam com o capacete assim pingando quando chove na pista?... e sem aguardar resposta de alguém procura lugar para colocar a cabeça do motoqueiro.

Destruição e morte é o tema durante o jantar. Com a mulher de Marcão por perto de Ambotá o tema principal é sempre a coisa do baú da velha. Falam sobre Juruena, os ouro e os Apiacás Foi com o Zé Floresta que minha pessoa aprendeu que o ouro é nada, e isso já era coisa dos filhos do sol, e ele dizia que os povos antigos eram isso, que tinham vindo de outras regiões mais antigas, que pra eles a terra era o bem maior. Interessante saber que agora não é tanto assim. Sim, pra muita tribo árvore nativa e ouro quer dizer verde em nota americana. Não são mais filhos do sol, não vivem pelo bem. Os demónios que os jesuitas trouxeram usurparam até a língua das tribos antigas. Os caras Carijó sairam lá da Amazônia e foram pra costa, de Santa Catarina pra São Paulo e pro Paraná além do Uruguai, e foram deixando a sua Acutia em cada região; eh, eles sabiam que através da reverência à casa-mãe estavam no caminho certo. E muitas outras tribos fizeram isso, mas se deixaram ir na lábia dos jesuitas e dos outros padres que queriam terras e ouro, como os bandeirantes. Terras e ouro. Ai, nunca pensaram, em nós, na humanidade..., desabafa ele. Ninguém quer saber da história como ela é e agora imagine você a dificuldade que nós temos em pesquisar isso tudo nas universidades!, concorda ela. Durante cerca de duas horas conversam de tudo um pouco.

Na hora do cafezinho, ele e Marcão ficam a sós. Me diz, camarada, fala ele, que sabe tu de um tal de Negão, lá da Rocinha?

Esse cara já esteve em cana umas quatro vezes e uma delas por estupro seguido de morte, e ainda não entendi com foi solto; no resto, tu sabes, é porte ilegal de arma, tráfico de Cocaína. Ele é filho do banqueiro do Bicho e traficante que te quis contratar. Lembra da nossa conversa?... Ao ouvir isto Manoel fica pedindo ajuda a seus Deuses. Vingaram-se de minha pessoa estuprando Sueli!, é o que lhe vem ao pensamento. Uma idéia que o enche de raiva, o arrasa. Marcão nota a aflicção no rosto dele. Que tem você a ver com Negão e o pai dele?, quer saber o outro. Olhe, minha prima Sueli foi estuprada ontem por Negão e um pivete. Era virgem, ainda... Está numa clínica e acho que passou o perigo!, ele faz um pausa, os punhos cerrados sobre os joelhos enquanto Marcão acende um cigarro e empurra um copo com uisque para ele, que aceita. Quando mim recusar contrato, víu, fiquei sabendo nos bate-papo que eles têm ligação com os países aí da raia... Olhe, camarada, quiseram foi vingança de mim. Sueli foi a vítima inocente do jogo. É isso, cara! Ai se eles tocam na pessoa de minha Marta, ai...diacho!, as lágrimas que vinha reprimindo se soltam nos olhos, brotam. Marcão bate-lhe nos ombros. Não tem pressa meu camarada Ambotá, eles vão cair!, diz. Não apenas para o reconfortar. É categórico. E o outro notou. Para Manoel Três Bocas aquelas palavras são o sinal de que a Polícia Federal está em acção. Estão em cima, raciocina.

Quando ele falou o nome de Marta, o policial recorda-se dela do último encontro. Bonita. E de um tenente. Tenente... Marcão faz estalar os dedos, luminoso: você, ó Ambotá - Manoel Três Bocas, você vai ter muito, mas muito cuidado com relação àquele tenente que foi na fábrica, hein. Ninguém tem provas contra ele mas suspeitas temos nuitas, víu. Bem, a barra tá pesada, pesadíssima Manoel Três Bocas. Mas vamos em frente. Olhe, o mundo não acaba porque Petrópolis foi arrasada, perdeu o Carnaval, ou porque os trombadinhas e os trombadões saltam no pêlo dos turistas e dos motoristas infelizes - ou, no nosso caso de agora, porque uma garota é estuprada... Eh, é o nosso mundo!, remata Marcão erguendo o copo com uisque para mais um gole. Uma merda, diacho!, comenta o outro terminando de enxugar as lágrimas.

Não notaram que ela assomara na porta da sala e ouvira parte da conversa. Agora, suavemente, junta-se a eles. Vou passar mais um pouco de pó... de café!, diz ela a sorrir.

Olhem, o tempo vai melhorar!, grita lá da copa. Olhem, a noite tem estrelas. Venham ver!

Na copa, os dois se deliciam com o reaparecimento das estrelas entre as muitas nuvens. A nossa única riqueza é poder ver e sentir!, desabafa o amazonense. Ela, achando profunda a observação dele, questiona-o sobre as últimas leituras. É daquele, o do guardador de rebanhos. Mais ou menos assim, tá..., desculpa-se Manoel Três Bocas deixando o casal na risada.

Ah, ó Ambotá - permite que chame você assim, diz ela, colocamos aquela outra peça no museu da universidade. Qualquer dia pode ir lá ver; tem por baixo a legenda científica e o seu nome.

Não habituado a tais gentilezas ele engole em seco, e balbucia: obrigado, minha pessoa agradece. Vocês são gente boa. Sim, nem tudo é mau, como dizia o Zé Floresta fazendo eco do que dizia o tal velho que era engenheiro, ainda há estrelas, ainda há amizade, e a Luz vem do espaço do Grande Arquiteto. Engraçado, eu sinto isso, sinto essa Luz no meio destas dificuldades e não preciso de ir em igreja nenhuma, parece que cada coisa que faço é uma oração...

Nós somos gente que gosta de ver e de viver o prazer, mesmo o mais oculto prazer, meu camarada!, observa ela.

Isso! Isso!, recorda Ambotá. Era isso que o Zé Floresta sempre falava e minha pessoa tinha esquecido: a coisa oculta. Tudo é oculto enquanto a gente é ignorante, dizia.

Isso mesmo..., concorda Marcão.






20


Uma semana depois Manoel Três Bocas consegue falar com o homem das cartas. Sim, o Negão sacou carta de ocê pra entregar. A outra, sim, botei selo internacional e foi para Portugal. Sim..., revela o carteiro. Obrigado, companheiro!, diz ele oferecendo uma nota de cem cruzados para o chope. O carteiro agradece e continua o seu serviço público.

No íntimo de Ambotá vive o desejo de logo ir ter uma conversinha com Negão e o pai. Sempre pensei que o bicheiro era padrinho só, raciocina. Pai mulato de filho negro só pode dar nisso! Quantas neguinhas tem ele nas favelas e nos bairros chiques?... Ele sabe que o bicheiro tem quartel-general nas bandas da Avenida Perimetral. Aos poucos, reprime o desejo da vingança imediata, de corpo aberto. E depois, sabe que a PF está investigando fundo. Uma precipitação de minha pessoa pode botar tudo a perder, conclui.

Ei, seu Manoel, seu Manoel!, é o carteiro. O homem deve ter esquecido alguma coisa, pensa. Vê que ele agita um envelope. Estava aqui entre as outras, víu!, pede desculpa o carteiro. Errar é humano, e vamos em frente que atrás vem gente!, ri Ambotá.

É carta de Francisco. E fica curiosíssimo.

Senta-se na soleira da porta e abre o envelope. Mandei carta para você, meu filho, mas não teve volta no correio. Perguntava se você sabe do endereço do físico. Se souber me escreve pois tenho interesse em falar com ele. Bom, e o que quer que eu faça ao pó que o José deixou para você?, lê. Intrigado, faz um esforço de memória para recordar que diacho de pó era esse que o irmão de vida lhe deixou. Pois é, lembra, quando saí lá do sítio disse pra ele que minha pessoa ía retornar pra trabalharmos juntos... E quando ocê chegar vai ter algum pó pra ajeitar a vida, retorquíu então o outro. O padre Francisco torna a falar do regresso dos velhos de Três Bocas, pais de José, que os acha fora dos caminhos da morte. O padre termina dizendo-se disposto a viajar para o Rio e lhe entregar pessoalmente a herança do amigo. Manoel Três Bocas respira aliviado com a possível viagem do padre, mas intriga-o muito a busca pelo endereço do velho do garimpo

Um chopinho vai cair bem em minha pessoa, ri ele dirigindo-se para o boteco que fica a poucos metros da casa.








21


Larô-iê...!

Sueli acorda, julga ter ouvido aquele gritar de caboclo. Respira fundo e volta-se na cama. Facilmente o sono toma-a novamente.

Três horas da manhã.

Há duas horas atrás ainda ela e Ambotá e Marta participavam dos ensaios precários para o desfile da mostra das raças e da afro-brasilidade que a escola vai sambar com uma Kizomba que faz sucesso em todo o Rio. Sueli decidíu não participar do desfile mas não deixa de apoiar nos preparativos. A seu lado, Marta dançava como se fosse mulata d Angola e ele, guerreiro, curtindo um astral elevado em sua própria fé, naturalíssima fé de homem sempre ligado ao Cosmo.

Apesar da educação católica, apostólica e romana que recebeu do padre Francisco, lá no sítio da beira rio, Ambotá nunca esqueceu a sua origem. Com o irmão de vida Zé Floresta, fez um despacho quando soube da data em que iria assentar praça como fusileiro naval. Que as chamas desta fogueira do Bem te encontrem na plenitude da Graça, ó Grande Arquitecto! Assim te pedimos a benção para a Vida!, oraram. Deu certo: ele foi para a vida militar e José ingressou no garimpo através do velho para ganhar seu primeiro salário e saber das dificuldades da sobrevivência. Obrigado, ó Grande Arquitecto!, disseram dois anos depois acendendo nova fogueira no mesmo local.

É madrugada de sexta-feira.

Como anos atrás, também sexta-feira, Manoel Três Bocas, agora sózinho, leva a chama do isqueiro à palha: lê num murmúrio um desejo que havia escrito num pedaço de papel, fixa as chamas, e lança nelas o desejo. Larô-iê...!, finaliza em grito potente. Quase todos o fazem com vela vermelha, entre garrafa com cachaça da roça, charutos, moedas e prato com farofa. A oração a Orixá dos caboclos. Com o homem do Amazonas não é assim. A chama da fogueira é o reflexo da Luz que o Grande Arquitecto lhe dá para uma comunicação elevada.

Ambotá sente-se transando em outra órbita, a viver o diferente. O ritual tão profundamente vivido leva-o a pensar que está na companhia de Zé Floresta.

Larô-iê...!

Foi o que Sueli ouvíu. O grito caboclo na noite cheia de estrelas.

Ontem de tarde, ele foi ao banco e sacou de sua poupança cinquenta mil cruzados deixando ainda sete mil. Com muitas cautelas, agora ele entra em casa e fecha a porta com mil carinhos. Não quer acordar a prima. Arruma alguma roupa e umas botas pondo tudo em um saco de viagem. Na carteira, em cima do criado mudo, tem a passagem aérea para Manaus. Lá vou eu...

Cinco horas da manhã. Manoel Três Bocas, após deixar um recado escrito para Sueli, abandona a Favela da Rocinha dirigindo-se para o aeroporto. O padre me espera..., pensa. Havia enviado um telegrama: me aguarde em Manus, aeroporto, sábado, primeiro avião.

































II PARTE


As Sombras Do Mal









22


O pequeno jacto desliza agora na pista de muitas encruzilhadas da história do progresso. Manaus é o símbolo de boa parte da transformação industrial em cima da actividade de extracção de produtos naturais que colocou o Brasil novamente como eldorado aos olhos de todo o mundo. De escravos a sub-empregados os trabalhadores continuam uma massa de sem-tecto e sem-terra sob o chicote dos capatazes da tecnocracia gerenciada pelos grandes grupos empresariais dos países fortes. O brasileiro e o Brasil são apenas peças na engrenagem económica das multinacionais. Ai, este gigante que nem sabe o que é ser grande e poderoso!, murmura Manoel Três Bocas com o olhar nos barracos das gentes famélicas em rápida observação aérea.

Treze horas em Manaus.

Nas imediações do aeroporto um Chevette de duas portas circula com três passageiros. Aguardem aqui que eu vou buscá-lo, diz o padre. Estacionou o veículo e dirige-se para o saguão.

Ambotá, murmura ele para seus botões recordando esse nome que lera em uma das cartas do antigo aluno. Ambotá...sim, acho que sim!, e desaparece no interior do aeroporto.





*

Amataurá, treze horas.

A casa comprada recentemente pelo casal Três Bocas, pais de José, é invadida por três estranhos; dois outros ficam aguardando num Jeep tipo Bandeirante. O quarto do casal é revirado, nada fica em seu lugar. Parece ser gente muito bem informada. Achei!..., grita um deles pegando em duas pastas. Outro pega no material e abre de imediato. Vamos ver se essa dona da limpeza falou certo, resmunga. São pastas plásticas de arquivo. De uma retira documentos vários. Ahn..., observa o que achou as pastas. Em uma há cerca de meio quilo de ouro em pó e talvez um quilo em pacotinhos de Cocaína; na outra, dois mil dólares americanos, alguns pesos argentinos, uma pistola Astra.

Com spray, um deles pinta nas paredes as iniciais CM.

Treze horas e quinze minutos. Como se fossem visitantes despedindo-se do casal, os três deixam a casa e sobem no Bandeirante que logo deixa o local em velocidade moderada.

*




Por causa do calor intenso os ocupantes do Chevette passeiam a poucos metros. Ele, fumando Maconha. Os óculos escuros dão-lhe um ar de mafioso bem entranhado em esquemas, a barriguinha de chope caindo sobre o cinto. Ela, pobremente vestida, também com óculos escuros. Num repente, ele fica a olhar um Ford Scort conversível que se aproxima: Oh meu Deus! Vamo morrer, mulher..., consegue ainda articular. O mêdo faz dele a imagem do pánico. No mesmo instante ela também olha o carro. Ele, tremendo, leva a mão ao paletó e tira uma Walther, mas logo o corpo salta, contorce-se, cai soltando sangue da cabeça: um único tiro foi disparado por uma carabina com silencioso. Ao cair, ele puxa o gatilho e ouve-se um Ai! de dentro do Ford Scort, enquanto outra bala arremessa a mulher contra o Chevette. O carro, dirigido por uma mulher, deixa o local em alta velocidade; um dos ocupantes guarda a carabina, e ajuda o companheiro baleado. Os olhos dele deixam ver que nada mais há a fazer. Está morto. Oh merda! Merda!, berra a mulher.

Gente da segurança do aeroporto corre para o local. Os disparos da Walther foram ouvidos. Encontram os dois corpos contorcidos, duas poças de sangue.

Ora cá está o..o Ambotá!, graceja o padre Francisco abraçando Manoel. Você me parece muito bem, padre Francisco!, ri ele.

Sem esperar, alegre, o padre diz: esta é a bolsa que o José deixou para você. Pelo peso, deve valer uma boa grana. Os pais do José estão lá fora e aguardam por nós. Convidei-os para passarem o fim de semana aqui em Manaus.

Manoel sabe do homem de decisões que é o padre. Você pode até vender essa mercadoria aqui mesmo, em Manaus!, ouve. Sabia que o padre teria alguma engatilhada, e ri para si mesmo. Eu posso falar com um amigo benfeitor que costuma comprar ouro, continua o padre. Compreende a aflicção do padre que não o quer nas ruas com tal fortuna nas mãos. Meu bom padre...

Está um calor sufocante.

Ambotá!, sorri Francisco abanando a cabeça. Acha piada ao nome. Coloca um braço pelos ombros de Manoel e saem assim do saguão.

Não longe dali, uma pequena aglomeração de curiosos e seguranças e policiais chama a atenção dos dois. Aquele é o carro deles... meu Deus!, exclama o padre. Correm para o local. E você vai - o padre pára, determinado -, você vai apanhar o táxi e aguardar no hotel que você mesmo agendou. Vá!

Padre...

Engolindo em seco, sem força para se opôr à ordem do padre, Manoel apanha um táxi. Ao se instalar entende o gesto do padre: o ouro.

Entre as pessoas, o padre vê o táxi levando Manoel.

Muito bem, diz para si mesmo. E se aproxima do policial graduado que está a dirigir a operação de reconhecimento: eles me trouxeram até aqui, são de Três Bocas mas residem agora em Amataurá. Oh meu Deus, mas isto não vai acabar nunca?!...diz, revoltado com a situação. Padre, o senhor pode fazer agora uma declaração sumária, opina o policial, e mais tarde nos encontramos na delegacia. O que deixa Francisco mais aliviado. Trate então dos corpos, eu faço questão de pagar o enterro cristão dos meus amigos. Tentaram roubá-los...





*

A quase dez quilómetros do aeroporto o Ford Scort acaba de avançar numa pequena rampa e penetrar no bojo de um contentor. Instantes depois o camião de longo curso deixa Manaus.

Morena, de falar castelhano aportuguesado, espécie de portanhol, aquela que até há pouco dirigia o Ford Scort fala pelo rádio-transmissor acoplado na cabina do camião. De Manaus ao CM. A música foi tocada mas temos uma nota fora da pauta. Nossa. De resto, positivo. Copiem!... E logo desfaz a ligação acomodando-se no assento. Em menos de dois minutos recebem comunicado. Do CM a Manaus. Show de Amat foi beleza. Vamos comemorar. É tudo, positivo!, ouve ela. Sorri ela olhando para o motorista do camião. E agora vamos cavar buraco para o nosso presunto, tá!, diz ele de modo grave.

O camião segue para a fronteira com a Argentina.

*




Levantando o polegar esquerdo o padre dá indicação para Manoel de estar tudo bem. Francisco acaba de falar pelo telefone com um comerciante de ouro e pedras preciosas, seu velho conhecido.

Fico mais aliviado, diz Manoel. Ficar sem este peso que é muitas gramas de pó amarelo é bom e um cheque de três ou quatro milhões é mais leve e facilita a vida. Ah, quero uma sepultura de família em Três Bocas, daquelas com mármores. Minha pessoa quer essa família junta de vez. É minha homenagem a meu irmão de vida Zé Floresta..., murmura pensando alto. Eu trato disso, meu filho! Tenho dez mil dólares ainda que José me pedíu para guardar... agora, os dólares servem para isso e ainda para ajudar quem precisa!, opina o padre.

Manoel Três Bocas, o Ambotá, é um homem de certa maneira amargurado. Dói-lhe muito a perda do amigo Zé Floresta. Ai, meu irmão de vida, tu parece que conseguíu subir os degraus e chegar na porta que o Grande Arquitecto abríu para tua pessoa; tu conseguíu achar a Luz através do Bem e da Fraternidade. Tu conseguíu. Pode ter a certeza, meu irmão de vida, minha pessoa vai subir esses degraus todos e achar ocê na casa do Grande Arquitecto. Ai, minha pessoa sabe que a casa d Ele está no coração, mas minha pessoa quer ficar com ocê, quando chegar a hora certa..., pensa. No seu pensamento passam idéias e mais idéias. Como o José os pais foram assasinados. Foi alguma coisa que eles guardaram. Algum papel de seu João? Talvez sim, talvez algum papel dele. E como minha pessoa não recebe resposta dele? Ai...Decidira não questionar Francisco sobre a insistência no endereço do físico português. Mas aflige-se. Um dia descobrem que padre Francisco é amigo meu, que sabe alguma coisa dos pais de José, e pronto... Recorda que o padre já foi ameaçado lá mesmo em Três Bocas, segundo ele disse depois no sítio de Juruena. Mas este meu bom amigo sempre sabe sair das encrencas na hora boa, raciocina. Francisco interrompe os pensamentos de Manoel, guardando a bela caneta-tinteiro com que assinou os gastos do telefonema. Tu, meu filho, vai dar um giro e pela hora da janta retorna. Vem. Deixa a bolsa comigo...

Dezoito horas, Manaus.

Deixa o hotel com o pensamento focalizado nos guaxebas que atuam por conta dos donos dos tóxicos. Se calhar os velhos - ih, eles fizeram até operação plástica!, deixaram a Colômbia sem pagar as ajudas, ou, talvez que estivessem fazendo o negócio sózinhos. Hum, e a máfia não perdoa essa traição... Felizmente que todo mundo sabe ser o padre Francisco um santo benemérito!

Entra num bar e pede cerveja gelada. Bem gelado, companheiro!

Numa esquina próxima um negro de meia idade canta uma lenga-lenga e vende literatura de cordel.

Bebe calmamente o chope. Demora um pouco no bar. Sente que tem de caminhar, apesar do calor que o sufoca.

Aproxima-se do embolador da esquina que canta versos acerca do eldorado de Mato Grosso, de um Apiacá descendo a serra furioso contra os brancos e negros que matam e mandam matar pela cobiça do metal amarelo; que ao índio deixam só a pinga... que mata. Ele pára e escuta melhor a lenga-lenga improvisada pelo poeta popular.

Xicão!..., diz ele sem acreditar no que vê.

O da lenga-lenga ouve-o bem. Mal vestido, descalço e mal nutrido, ele vira-se para o outro: Ueh, olhem pro marajá! Que coisa mais louca de emprumadinho. Olhem só! Manoel...

A emoção dos dois é pura fraternidade.

Curtem um abraço de profunda saudade. Ficam assim apertados no meio da rua. E quase sós. O calor espanta as pessoas. Parecem um só no abraço que o sol abençoa.

Manoel compra alguns livros que o amigo escreveu, na sua lírica cordelística. Fecha o ponto e vamos forrar a bariga com boa comida!, convida. O padre Francisco está no hotel...

O nome do padre parece dar alma nova ao já remoçado embolador Xicão. Não consegue reter as lágrimas: a última vez que vi Francisco faz muito tempo. E soube da morte do José por um artigo que ele escreveu num jornal que circula por aqui. José, o nosso Zé Floresta. Tu sabe, ó Noel (era assim que ele te chamava, nê), o nosso Zé Floresta era um cara abençoado. Tudo que aquele engenheiro ensinou pra ele das coisas ocultas, de rosacruzes e maçons, bom... acho que mais de maçons, que o engenheiro é maçon mesmo (é ou era, que nunca mais o vi...), pois é, ele aprendeu direitinho. Tudo pró nosso Zé Floresta passou a ter um grau de mil percursos, tudo era cerimonial. E tinha razão: cada passo nosso é um dos percursos do cerimonial da vida. É nisso que eu admiro os da Maçonaria, víu. Gente que ajuda a gente para estar sob a graça espiritual do Grande Arquitecto. Tenho bons amigos. Alguns já me quiseram iniciar...Oh!, mas vê bem, ó Noel, me iniciar agora que conheço a vida e sei dela as profundezas de seu ritual, acho desnecessário. Mas eles insistem. Talvez até que eu vá, sim. Tive algumas discussões com o padre Francisco por causa daquela mania dele dizer que os maçons são filhotes do demo, gente sem alma; eu sei que ele é padre feito lá no Vaticano, em Roma, mas por isso mesmo ele deveria saber respeitar as outras crenças. Eh, aquele poeta, o Pessoa, é que tinha razão (ah, dizem que era também maçon, ou rosacruz, assim uma coisa), ele dizia que era visceralmente contra os padre de Roma e a favor dos irmãos da Maçonaria. E olhe, eu só conheço a Maçonaria como coisa benemérita, espiritual... Mas, só eu falo?, questiona percebendo a calma do outro na atenção às suas palavras. Sim, diz Manoel, eu sei que nesse caso o nosso padre amigo é radical e nem tem bons olhos. A minha prima Sueli deu-me a ler umas coisas desse Pessoa, víu?, e deixa o embolador com cara de espanto. Mas não vou virar poeta como ocê, não!..., e se abraçam novamente com o riso da felicidade nos olhos.

Xicão arruma a sua banca que deixa guardada, com os livros, as revistas e a viola, sob a escada de um prédio, onde habitualmente também dorme.

Enquanto caminham pelas ruas da ensolarada cidade, Xicão fala sobre José. Ele sabia que ía morrer, fez uma fogueira e orou como filho do Sol prestando homenagem ao Grande Arquitecto. Se encomendou, digo. Foi um despacho de muita vibração. Na realidade não é despacho, que isso é coisa de macumba, mas um ritual em que a magia é a poesia da vida, como seu João lhe havia ensinado. Foi uma semana antes do crime. Ele tinha descoberto coisas graves lá do garimpo com políticos de Brasília no meio, e nesse meio tinha droga e tinha ouro. Ele foi encontrado morto com um saco de plástico na cabeça. Então, meu irmão, foi queima de arquivo! Só pode... Ele deve ter descoberto o nome de alguém muito mas muito importante do narcotráfico e que ele mesmo conhecia muito bem. Creio até que ele experimentou o cara para ter a certeza. Sei que um cara do garimpo mandou recado para Francisco mas ele chegou tarde. O nosso irmão Zé Floresta já era..., finaliza com o rosto carregado. A revelação embaralha os pensamentos de Manoel. Estão diante do imponente Teatro de Manaus, símbolo maior do Ciclo da Borracha que foi muito retratado pelo Ferreira de Castro. Com as mãos afastam os mosquitos que sempre voltam para os atormentar. Manoel não entende a relacção do padre com tanta coisa. Ele é muito conhecido e muito querido por muita gente, sabe, mas não entende porque ele - um padre, tem de estar metido com tudo isso. Deixa pra lá, resolve.

E ocê, meu irmão?, marajá..., quer saber Xicão. Botas e terno, hospedado em hotel bom, Manoel dá a impressão de alguém muito bem de vida. Mas ri debaixo da expressão gozadora de Xicão, enquanto entram numa lanchonete. Bebem chope e o embolador aproveita para abrir o apetite para a janta, e pede uns salgadinhos. Há quanto tempo ele não come direito?, pergunta-se Manoel. Como urubu finalmente diante da peça tão desejada, Xicão devora os quatro pedaços de frango assado. Espicha aí um fumo!, pede Xicão ao balconista. Sob o riso franco de Manoel, Xicão observa o homem colocando um cigarro na boquilha que fez de um pedaço de marfim. É só artesanato, irmão!, e riem. O balconista dá para Xicão mais um cigarro: é pra depois da janta, poeta!

Meu caro Francisco, sempre no caminho do bom negócio. Os padres de Roma sempre tiveram bom faro para o negócio. Nada como os portugueses para este tráfico de influências, meu caro Francisco!, diz o homem sentado na frente do padre.

O comerciante é um cara caminhando a passos rápidos para a velhice. Veste de branco, dos sapatos ao chapéu. Um charuto cubano no canto da boca. No rosto as marcas de um vida consagrada a furar bloqueios e a muito alcoól.

Estão no saguão do hotel.

Vamos para o meu quarto, diz o padre. Francisco havia sugerido que o negócio fosse tratado antes do jantar. Fecha a porta do quarto tão logo o comerciante entra. De uma maleta tipo diplomata ele tira uma pequena balança que ajeita sobre uma cadeira. Recebe do padre o pó e pesa a quimera amarela com precisão profissional. Tem todo o aspecto do homem meticuloso, aquele que aprecia os detalhes de cada coisa, e entre palavras, buscando sempre o que fica fluindo do não-dito; tira do bolso do paletó uma calculadora tipo solar e precisa o valor da mercadoria. De seguida preenche dois cheques que passa para o padre.

Um é de duzentos mil para os seus pobrezinhos e o outro é de quatro milhões e oitocentos mil para esse moço afortunado...and the cloud nine for him, brother!, remata. Francisco sorri. Vê-o guardar a bolsa com o ouro juntamente com a balança. Dá um Porto vintage, moço!, pede ele ao barman quando chegam no barzinho do saguão. E, dando o braço ao padre que se deixa ir: uma bebidinha espiritual para um dia celestial com a graça do Vaticano que consegue conceber homens como você!

Manoel e seu amigo Xicão encontram o padre Francisco perdido entre as muitas páginas de uma pesquisa memorial que lhe traz de volta os tempos do convento.

Francisco deixou os seminários de Braga e de Leiria, no norte e centro de Portugal, foi para Roma, e de lá viajou pela América Latina até se fixar como missionário no Brasil. Está fora da terrinha faz quarenta anos. E como será o Portugal dos cravos?, pergunta-se. Está absorto. Instruido dentro de uma ideologia caduca e de uma profissão de fé arcaica ele soube das novas lusitanas de 1974 com muita apreensão: é o fim do império cristão, os comunistas vão saquear Fátima e incendiar Braga..., pensou. Apostou sempre no apoio espiritual àqueles endinheirados que, com suas posses, podem diminuir o sofrimento do povo pobre; daí o seu ótimo relacionamento com o mundo mercantil legal e ilegal. Perdemos a África depois de termos vendido o Brasil para pagar as dívidas com a Inglaterra, e agora o Império é só aquele umbigozinho de coisas à beira-mar plantado... E ainda temos de aturar essas seitas demoníacas que os Templários fizeram proliferar sem a autorização do Papa. Muita fogueira tem de ser acesa ainda, tem muito maçon praguejando contra o nosso Cristo... Me parece que o Brasil não será o império que Vieira queria. Mas tentemos, continuemos a tentar com a benção d Ele e de Nossa Senhora de Fátima! Se tiramos a língua dos nativos e fazemos valer a nossa, que é a língua da cristandade, também vamos conseguir liquidar os comunistas, os maçons e tudo o mais!, conclui.

Oi!, repára ele nos dois.

Levanta-se e cumprimenta Manoel. Ao olhar melhor reconhece Xicão. Puxa...!, ele cumprimenta o embolador com um forte abraço, e diz: se conseguirmos equilibrar a vida espiritual com a riqueza material a vida vai ser mais cheia de sol, de alegrias. Isto não te ensina a Maçonaria, mas ensino eu que sou padre apostólico, católico e romano!

Pode ficar na sua padre que na minha caminha a poesia da vida!, ri Xicão.

Coisa fina, padre Francisco!, observa Manoel os dois cálices e a garrafa de Porto vintage. Já teve negócio por aqui, pensa. Bebemos um gole depois do jantar, convida o padre. E repára que Xicão carrega duas sacolas de casa comercial. Vendo o interesse do padre ele mesmo explica: o camarada marajá parabenizou o poeta com doação de roupa e botas.

Com isso, Manoel ficou somente com o dinheiro para pagar o hotel e comprar a passagem de volta para o Rio de Janeiro. Sempre fui metido a besta, mas Xicão merece as roupas, as botas e o chapéu, pensa. Leva o amigo para o quarto e o faz tomar um banho para depois trocar de roupa. Que tal?, pergunta Manoel a Francisco ao apresentar o novo Xicão. Francisco cai na risada. Moço, diz, tire o chapéu para sentar à mesa na hora de comer.

Desajeitado, Xicão não sabe quando vai cair das botas e empunha a colher para comer. Homem livre, não gosta de estar sujeito a nada. A sua instrução é superior ao Segundo Grau, todos lhe dizem que escreve bem e canta ainda melhor seus versos de cordel na velha tradição portuguesa implantada nos sertões do norte brasileiro. Já recusou convite do padre para trabalhar com comunidades carentes. Não quer saber de quatro paredes. A minha igreja é a vida e a vida a minha oração. Prefere a rua e a instabilidade, sentir a poética do Todo que o Criador nos oferece dia a dia e cantar essa poética como profecia de cada momento. Andarilho, percorreu boa parte do Brasil, e esteve no Uruguai e na Argentina, sempre às custas do canto e dos acordos que consegue da viola. Vende os livrinhos de cordel com um gozo que só ele sabe. Cada livro é como um caminho que tenho de percorrer para me entender e, com isso, receber a graça do Grande Arquitecto, porque a nossa criação é um reflexo da criação divina..., havia dito para Manoel.

Eia, vinho do Rio Grande do Sul!, exclama ao ver a garrafa nas mãos da garçonete. Brindam ao reencontro, e no segundo copo Xicão dá coice para tudo que é governo, e padre, e freira. Olhe só o que faz a má influência..., observa o padre para Manoel. É a verdade dele, comenta Manoel, e nós temos de saber respeitar essa verdade...

...em vinha d alho!

Também!, responde Xicão com o riso estampado na cara de Francisco. O alho é pra espantar os demónios lá de Roma, víu.









23



Fim de tarde na Favela da Rocinha.

Ilumina-se a cascata que na noite carioca é já um ex-libris. Cartão postal. Os turistas fazem fotos de longe para não ficarem sujeitos ao empréstimo compulsório da máquina. Mas, nem tudo é assim na Rocinha. Tem gente trabalhando duro para aguentar a vida numa barraca e esquecer a fome e a desventura das secas lá no sertão, sim, que grande parte dos favelados veio lá dos confins da terra brasileira cuja cor os filhos e os netos desconhecem.

Brincam as crianças sobre as lajes e nos caminhos, ou cachoeiras.

Muita criança é anzol e avião para traficante de tóxicos e bandido de furto pequeno: a criança vai, faz, entrega, e retorna ao ponto do crime; quando é apanhada em flagrante pela polícia logo é posta em liberdade, e, instantes depois já está praticando o crime. A criança é o eldorado do crime organizado nas favelas e nas cidades grandes.

As crianças que vão na escola têm pais com outro nível de consciência. Eles são favelados por força das circunstâncias financeiras, mas os filhos têm de ir na escola. É outro tipo de favelado. Muitos da classe média baixa já habitam a favela. É um mundo inimaginável para o turista que fotografa: ele só vê as cachoeiras, a cascata de luzes da favela sob a lua... o sub-mundo que todos querem registar mas não querem dar fim.

Iluminada também por iniciativas de índole social de longo alcance, no âmbito artístico e educacional, a Favela da Rocinha possui talentos que funcionam como ilhas neste território amplamente demarcado pelo sub-mundo.

Tem até Barcelos, a vila proletária habitada pelos de melhor situação financeira e os bem relacionados com os barões da malandragem. É a capital do fumo, segundo uns. Aqui vivem cerca de quinze mil pessoas. A vila tem a sua Via Ápia por onde circulam os proletários com aspirações a burgueses de qualquer jeito. Aqui, em Barcelos, desenvolvem-se alguns projectos de microempresas e projectos comunitários muito interessantes artisticamente falando. No entanto, sempre a sombra do narcotráfico e da contravenção. Mas, se é assim por todo o Brasil poderia ser diferente na vila Barcelos que dá charme à Favela da Rocinha?

Domingo, vinte horas.

Foi dia de feira da arte em Ipanema e Sueli circulou por lá antes regressar ao morro. Encontrou na feira muita coisa parecida com as peças manufacturadas nas microempresas da Rocinha.

Sentada na cadeira de baloiço que foi do pai, ela observa o movimento. Não está totalmente restabelecida do estupro. Criou um silêncio profundo em torno de si mesma. Tirou da idéia a possibilidade de sambar e, taciturna, faz agora o percurso casa-trabalho-casa sempre de ônibus. Nem o primo a faz mudar. Me parece uma bela louca, opinou Marcão para Ambotá quando a víu assim. Quem está chocadíssima é Marta. É que 1988 é o ano da mulher bonita e do Vila Isabel, e não ter Sueli sambando no desfile... é ruim, é ruim, é ruim mesmo! Mas vamos vencer por ela com muito axé..., diz para as amigas. Com impulsos cadenciados, Sueli faz balançar a cadeira. Sobre os joelhos tem um tapete que comprou junto das mulheres da cooperativa de costureiras e artesãos quando regressava da feira. Por que comprei?, murmura com os olhos na peça de corte pequeno. Foi um impulso. Comprar... Depois circulou pela favela. Propositadamente andou pelo dito Departamento da Rua Dois que funciona como Rua-QG do tóxico. Sempre seguida por um pivete. Ninguém lhe falou. Mais adiante, o pivete lhe deu um envelope do tipo comercial, grande; enquanto apanhava o envelope sentíu muitos olhos gulosos em seu corpo bonito. O acto do estupro não foi muito comentado no morro. Para Sueli, é o que está escrito em letras vermelhas. É do Negão, logo ela reconheceu a letra recordando os bilhetinhos que recebia dele na praia. Deixa cair o tapete no chão, o olhar quieto. Acompanhando uma revista pornográfica mais um bilhetinho: te espero na boca do fumo, Su. E decide-se a descer as ruas de Barcelos. Toma um banho demorado. Enfia-se num vestido fino de cor vermelha, sapatos de salto médio, os cabelos soltos. Está linda a crioula. Passa baton rouge nos lábios e olha-se no espelho do armário. Que diz ocê de mim?, diz ela virada para o cartaz com a musa Marylin. Mulher é isto mesmo, víu, um bicho doce de pernas abertas para os homens se fartarem..., quase berra agora. E deixa o quarto. Senta-se novamente na cadeira de baloiço. Folheia a revista que conta um caso entre um negro e uma loira; está meio excitada... Ela, Sueli, com a mão esquerda enfiada entre as coxas, a cadeira a baloiçar.

Vinte e duas horas. Favela da Rocinha, Barcelos.

Transportando uma sensualidade algo misteriosa a crioula bonita bamboleia-se sob o olhar perturbado, doido, de Negão.

Vamo lá, diz ela abraçando-o, vamo meu cabra-macho!

Ele está submetido à beleza de Sueli. Aperta-a com força contra o próprio corpo fazendo notar isso ao passarem por outras pessoas. Ueh, mulher de Deus! Que beleza..., desabafa Negão não querendo acreditar ainda na realidade. Passa a mão no traseiro dela cujas linhas adivinham-se facilmente no vestido apertado. Vamo linda, vamo a um lugar mais próprio!, e puxa-a para dentro de um velho FIAT. Na mente dele o agito sofisticado que o padrinho tem perto da Praça Mauá.

Negão apresenta a moça ao padrinho que surge no agito, por volta da meia-noite... Que gracinha de garota..., opina. A seu lado, dois capangas. Não tarda, Sueli dança nos braços do velho que a apalpa e, aos poucos, a leva para junto de uma porta na extremidade do balcão do bar maior. Após um sinal de cabeça para um dos capangas, a porta é cercada tão logo o par entra.

Eu vou fazer de ocê uma carinha de revista. Não. Melhor ainda: vou fazer de ocê modelo. Ou misse..., sussurra no ouvido dela. Beija-a sofregamente. Eu ser tua se isso acontecer mesmo!, aceita ela.

Quando a víu na pista, o velho tardou mas a reconheceu como a prima do Manoel Três Bocas. Uma gatinha pra ninguém botar defeitos, disse para si.

Agarra-lhe os cabelos com força e a faz ajoelhar. Puxa o fecho da braguilha e solta o pénis que se espeta na direcção daqueles lábios vermelhos. De olhos semicerrados, a imagem da mulher do cartaz no subconsciente, ela chupa o falo até sentir a seiva quente esguichar no céu da boca. O velho grita de prazer animal. Não satisfeito, pega nela e deita-a na mesa do escritório. Vou dar pra ocê todo prazer do mundo, víu, e ocê me dá o mundo da fama..., diz ela, sentindo-se sem calcinha e logo invadida por ele. Ai, velho bão!, geme ela, luxuriosa.

Parece ter pirado após o estupro. O que vai pela cabeça de Sueli?

Insuflando em si a imagem da musa americana parece buscar uma força total que não sabe ainda como atingir; e, loucamente, lança-se pelas veredas de um inconsciente aberto à insanidade.

Pouco depois está novamente nos braços de Negão, rodopiando na pista.

Negão deixa Sueli em casa depois de ter gozado seus prazeres no banco de trás do carro. Convencido de que o padrinho não mais largará Sueli, Negão a tomou como se fosse a última vez, alucinado, com o barulho das ondas de Ipanema em fundo.

Está exausta a garota de Barcelos.

A jovem, inesperadamente, levanta-se e dirige-se ao armário. Tira uma pequena pilha de livros e revistas. Encontra um folheto graficamente bem produzido onde procura uma página que já conhece. Algo que a faz sair do torpôr em que estava. Lê: Quando eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar chicotes, chamem palhaços e acrobatas... Com o baton faz uma marca que envolve o poema de Sá-Carneiro. Um poema do desespero do ser luso pela memória grega.

Eu não quero ser palhaço nem acrobata, ora!, quero ser chama, fogo, quero ser o fogo purificador!, diz ela a meia voz.






24



O movimento das pessoas que vão para o trabalho começa a aumentar quando os relógios marcam cinco horas.

Manoel Três Bocas deixára a Honda no estacionamento do aeroporto. Ouve-se o roncar da máquina que agora sobe o morro como se tivesse despertado com o nascer do novo dia.

Sentado junto de uma porta, Negão vê que ele passa, mas não dá atenção. Está muito ocupado já a fumar o seu pedaço de orgia matinal. Já estuprara outras moças que, sob a ameaça de ficarem na boca do povo, cederam à chantagem e passaram a incorporar os grupos que vendem drogas em São Conrado e Ipanema: um sistema de recrutamento que leva também à prostituição potencial de menores. Mas mim perdeu Su, pensa. Sabe que sim, e por causa de um homem poderoso: o padrinho. Masca esta raiva com a Maconha que fuma e a cachaça que ingere lentamente.

Encosta a moto perto da porta. Ih!, resmunga ele ao ver a porta aberta. E corre, o coração batendo loucamente.

Oi, meu bom Ambotá!

Na sua frente: ela.

Sueli ouvira o barulho da moto. Tirou o vestido, nem sabia onde estava a calcinha e o sutiã tinha sumido há muito, e esperou pelo primo.

Ele olha para a moça com o olhar paralisado.

...?!, não sabe nem onde está. A sua expressão é de desencanto. Estupefacto, sente o corpo tremer e suar com abundância.

Louca! ó loucura!, diz num quase fio de voz, ainda os sentidos não se recuperaram totalmente.

Sueli corre para ele, tenta abraçá-lo. Não consegue. Ele agarra-a com firmeza e leva-a para o quarto. Fique aí, quieta. Logo minha pessoa vai levar ocê até um médico da cabeça!, diz, tiritando de tanto nervosismo e espanto. Vê-a sentar-se na cama, calmamente. Ele sai do quarto com o corpo cansado, quer dormir...

Cruza as pernas como que praticando ioga, as mãos sobre os joelhos, cabeça levantada. Deusa emanando fascínio lírico. Mulher caída na irrealidade pelo encontro fatal das trevas temporais. Os olhos brilham como pedras preciosas. Fixa o cartaz daquela cuja saia esvoaça numa boca de ar, e solta uma gargalhada.

Invadida por uma nuvem de luzes e de imagens que não sabe definir, levanta-se e arranca o cartaz da parede atirando-o para cima da cama. Busca algo com os olhos. Não sou como ocê, víu!, mas tu morre com eu..., o olhar vidrado numa mescla diabólica de ódio, loucura. E acha o que procurava...

Um isqueiro.

Faz soltar a chama e a leva a lamber uma ponta do cartaz. E ri. Bestialmente bela, assiste à queima da imagem da musa.

A roupa da cama vai na chama, cada vez maior.

Abrindo os braços, ela abençoa a destruição: vem aí a purificação!, grita. Logo sai correndo arrastando consigo os tecidos em chama. Passa pela sala com uma gargalhada rouca.

Manoel Três Bocas, que se deitára vestido no sofá da sala, começava a mergulhar ruidosamente no sono quando a gargalhada o desperta. Tem fogo aqui, desperta ele de vez. Levanta-se de um pulo, e ainda vê que Sueli acaba de transpôr a porta da rua com os cabelos em chamas. Eu não estar bem..., resmunga, dando uma palmada no rosto. E outra.

Sueli corre pelo morro.

Tocha de berros e risos e loucura invadindo a manhã.

Um amanhecer de fogo.

Mais para lá do que para cá, Negão continua fumando e bebendo seus prazeres. Na dele. Súbito, fixa aquilo. Ôba...olha aí gente, é crioulinha feita fósforo! É..., encosta-se na parede procurando apoio. Está horrorizado o moço. Sente náuseas, enquanto ouve um grito alucinante da moça que cai a seus pés.

A morte num amanhecer de fogo.

Apavoradas, as pessoas aproximam-se. Uma velha surge da casa ao lado e jorra água sobre o corpo de Sueli. Colado na parede, trémulo, Negão é a imagem do horror.

Entre a casa, cujos vizinhos se ajudam no combate às chamas ainda somente no quarto, e o local da queda do corpo, Manoel Três Bocas não sabe o que fazer.

A desgraça parece ter grudado nele. Onde quer que eu vá ou esteja a morte se agita, pensa. Suando por sentimentos que não entende, toda a sua alma se desprende - estátua humana a contemplar o tempo. E desaba. O corpo cai. Sentado na terra, as mãos segurando a cabeça, lágrimas que desgrudam da alma e rolam pelas faces.

A louca vontade que fez Sueli se transformar em fósforo é coisa que lhe escapa, mas a causa... Está ali! Está ali!, murmura com a raiva apoderando-se de suas entranhas sob a imagem de um Negão também sentado no chão.

Manoel Três Bocas não se levanta. Não tem forças. As lágrimas rolam livremente, mar de angústias e de uma existência que parece sob profecia de efeitos temporais negativos. E só. Me ajuda, ó Grande Arquitecto!, diz para si mesmo. Tanto degrau difícil pra minha pessoa chegar a Ti...Eu sou como Zé Floresta, um filho do sol, vim de Ti, ó Grande Arquitecto!, é um murmúrio de lágrimas, desabafo, oração. Ai, mas minha pessoa vai levantar e vai mostrar que a Vida que de Ti recebo eu mereço. Eu vou viver a Vida, não vou cair na tentação da Morte. Se isto é uma prova, ó Grande Arquitecto, procura outra. Minha pessoa é filho do sol, dos povos fortes dos tempos antigos, estas lágrimas minhas são pra lavar o meu caminho. Vou continuar subindo os degraus pra abraçar o Zé e agora a Sueli que Tu levou. Eu chego lá com a Luz que de Ti, eu sei, vou receber sempre!

Os curiosos formam um círculo em torno do corpo que a velha acaba de cobrir. O fogo foi dominado na casa, e os vizinhos aproximam-se de Manoel.

Estava pensando na vida, diz, eu já levanto.

Um pouco mais tarde, é chamado à delegacia policial.

Com o desánimo no rosto, máscara de dor e de algum descrédito na humana essência, ele explica o que, em seu entender, levou Sueli em busca da morte.

Doutor, diz para um delegado bonacheirão, eu sei o que deu nela mas acho que a médica que tratou ela lá no hospital é que deve falar!, e deixa o policial com a pulga atrás da orelha. É um homem novo ainda, mas quase obeso e descuidado no vestir; sabe dos problemas gerais e particulares da favela, e que o tal Ambotá não é cara de se meter em briga. Você é um cara limpo, tem trabalho em empresa importante, não está metido com tóxicos nem com prostituição - e, incrível!, nem com o Bicho... mas, uma noite destas andou metido em briga com Negão. Foi mesmo?, diz o delegado encarando decididamente o olhar de Manoel. Que não se mexe. Deve estar julgando que minha pessoa matou Sueli, pensa. Os olhos fixados nos do policial. É verdade que minha pessoa andou de briga com Negão, sim, pra defender ela. Depois, na noite das chuvas que caíram e arrasaram a cidade (mim ficar retido lá na fábrica...), o Negão e um pivete foram a casa e estupraram ela; quando eu cheguei só tive tempo de chamar polícia e ambulância, mas eles foram lá buscar uma sacola que tinham esquecido. E estavam bem armados, tinham até Uzi. Antes disso, Negão mandou dois pivetes liquidar minha pessoa, sabia? Um era esse tal Jairzinho do tamboril, que apareceu aí de morte matada, e o outro caíu nas águas. O corpo deve andar por aí nas lamas. Víu, minha pessoa escapou por pouco dessa malandragem, milagre que devo ao Grande Arquitecto que ilumina meus passos nos degraus da Vida!, desabafa, a boca seca pela emoção de rever mentalmente a morte do pivete. Ao lado, um escrivão anota todo o depoimento, rápido. Tu é da Maçonaria?, quer saber o delegado. Manoel Três Bocas, com um ar de certa perplexidade e meio pensativo, diz: Que minha pessoa saiba ninguém de entre os maçons sai por aí dizendo que o é...

Tá certo, tá certo!, concorda o policial com um sorriso. Nem isso vem ao caso, conclui.

Uma informação que os policiais obtiveram logo diz respeito a Negão: ele estivera com ela fora da favela até alta madrugada. Daí que o delegado tenha mandado procurar Negão nos locais habituais de São Conrado e Ipanema, já que da Rocinha havia tido sumiço. Ele é a pista, sabem.

Agora, no pensamento do delegado, faz-se luz sobre alguns acontecimentos e, sobretudo, acerca da morte de Jairzinho. Uma coisa ele sabe e diz: E ocê, meu caro kaa pora..., e vendo que Manoel fica intrigado com o palavrão, ri e continua com a explicação, olhe, kaa pora é Tupi e quer dizer gente do mato, morador do mato. Tudo bem, pô. Isto aqui não é sala de aula. Avancemos no que estava colocando: ocê tem de largar a favela ou eles vão te liquidar!

Eh, eles inda matam eu!

Ocê tem uma boa situação na fábrica mas tem de se proteger, avisa, e se puder cave do Rio.

Manoel Três Bocas sabe que sim, que não tem alternativas. Tornou-se obstáculo para as gentes do Narcotráfico e até para as do Jogo do Bicho, em muitos casos a mesma rede. Cavar ou não cavar do Rio de Janeiro não é questão se lhe coloque. É um homem práctico. É mais um sinal, uma centelha da Luz divina, talvez que, pensa, seja mais um degrau no meu caminhar.

E se a Marta não quiser ir?, questiona-se com o pensamento na amada. Por vezes, apesar da sua força de vontade, a Existência parece-lhe uma encruzilhada de difícil saída.

O delegado dá para ele ler o auto das declarações. Pede dois reparos no termo e depois assina o documento. Pense bem no que vai fazer, diz o delegado despedindo-se com um aperto de mão caloroso. Ah, ocê sabia que além das drogas e das mulheres, a turma está traficando viado e bolsas de sangue?, e diante do espanto do homem do Amazonas, ele ri e conclui: só existe uma epidemia e ela atende pelo nome de humanidade, aquela que não sabe de uma Luz que a abençoa.

...?! Manoel Três Bocas fica mais espantado ainda. Parece que o Ze Floresta baixou no moço aí, pensa. Mas não fala e deixa a delegacia com um sorriso.





25


Aveiro, centro de Portugal.

João Matias, homem magro e quase dois metros de altura, acaba de chegar de Barcelos, cidade do norte, na província do Minho. É quinta-feira, dia da feira semanal. Eles vão gostar, pensa, vão gostar de saber que estou levando um Galo de Barcelos para Barcelos. Ai, ah, ah..., ri. Nem sabem que Barcelos também foi a primeira capital da Amazônia, além de Vila na favela carioca e Condado primeiro de Portugal. Interessante.

Está no centro da bela cidade, sentado num banco de jardim. Nas mãos uma carta que acabou de chegar do Brasil.

Brasil.

Com o olhar semicerrado, João Matias retorna ao Brasil dos anos de chumbo...

Anos 70.

Faço-me presente todos os dias no garimpo... Nos sábados caminho pra endireitar as pernas, e leio, leio, leio para escrever melhor; e aos domingos remo e pesco. Só como coisa cozida, e sempre um bom vinho. Ah, um bom néctar como os deuses sempre recomendam!

Tu entendeu?

Tem coisa que mim não entender, responde Zé Floresta, mim não entender como ocê fala como nóis, Irmão...

...Irmão?!, interrompe ele. Hum, gostei. Gostei desse teu à-vontade, desse Irmão. Ai, eu sei que tu chega lá, meu jovem obreiro. Inda vais mostrar um novo mundo, a Luz! a Luz!, aos cegos que estão por aí...

Tá, continua o jovem, olhe, mim não entende como ocê fala como nóis mas escrever certinho. Até parece escriba, nê...ah, escritor de jornal. Fala pra eu como é que isso é, seu João?... Ora se falo, eu tenho de falar como ocê pra tu entender eu, não é mesmo?, pois então, quando eu escrevo eu tenho de escrever direito pra não arranhar a Língua portuguesa, mas às vezes escrevo como falo pra tu e tua gente entendam logo o que quero dizer, ou seja, eu não deixo de ser universitário por conversar na linguagem do dia a dia. Tu entendeu?

Olhe aí, seu João, ocê escreve nos papel que fazemos do momento uma nova idade, que... onde tá isso, ó Deuses? ah, e que temos um passado pelo que fomos, um calendário de pedra; e aqui - ele separando mais uma folha de entre um maço de quinze -, aqui ocê escreve que a obra faz eterno o ser matando-lhe a fome...

Estão sentados no pequeno barco, comem frutos secos e bebericam goles de um Vinho do Porto vintage. Tradição minha, como diz sempre seu João. O domingo está agradável, não muito quente, corre mesmo uma brisa que agita as águas do rio.

Vamos por partes, meu jovem e fraterno aprendiz de tudo. Tu sabe que aquele avental branco que mostrei pra ocê há tempos tem o mesmo significado que tinham as vestes brancas dos reis e sacerdotes antigos, lá de entre os celtas, chineses, hindus e outros mais? A cor branca das vestes é também um rito, tal qual a tradição dos contos que nos dizem ser as coisas do Noé coxo idênticas às dos famosos reis coxos celtas e chineses, todos eles ligados a dilúvios e coisas mais, ou seja, meu Irmão, tudo tem um princípio único - a Luz que nos chega do Grande Arquiteto. Bom, isto para chegar ao que quero dizer agora: A cada momento nós somos um tempo novo, a cada experiência ganhamos uma nova idade sempre lembrando a nossa história, as raízes - isto é, uma espécie de calendário de pedra; ora, meu jovem, por tudo o que fazemos há um rasro que deixamos, e é nessa Obra (Obra sempre com letra grande, víu!, porque significa Vida vivida), é nessa Obra que fica a nossa marca. Os gregos diziam isso, e os velhos povos também: as esculturas, os desenhos, os nomes das aldeias que eles deixavam aqui e ali.

Entendi, entendi, seu João. Entendi. Minha pessoa entender agora isso que tava escuro. Vige!, como ocê fala bonito, meu mestre. Como é bom nóis saber ler e escrever bem. E isto também é dos relatório que ocê faz todo mês, seu Joâo?, quer saber. Não, diz ele olhando os papéis, mas tem muito a ver. Imagina, meu jovem, que eu só escreva sobre minas, mortes, tráficos. Vou dar em doido, nê. Essas folhas aí que ocê andou lendo são poesias - e vendo a cara aflita do outro -, sim, assim como canções escritas, canções que a gente tem cá dentro e bota pra fora, escreve no papel. Uns poemas são mais simples e outros nem tanto, mas neles eu canto o que que sinto, lavo minh alma de andarilho.

Zé Floresta dá mais uma olhada nos papéis. este português sabido tá escondendo coisa de minha pessoa..., sentencia a cada nova leitura.

E o fim do dia que não chega.

Dos relatórios, ele tem em casa os originais que o físico lhe entregára para guardar. Deles, sabe tudo. E lhe bastara ler por alto. Sabia tudo. A cada morte nos acampamentos, onde chegam cada vez mais sem-terra sonhando alto, uma nova rede de escravos é montada. Esse relacionamento de todos com tudo é o histórico minucioso que João Matias elabora por gosto. Isto é a outra selva, costuma dizer. Um caderno tem até esse título. Fugindo da espionagem dos acampamentos do garimpo encontrou no jovem amigo o guardião seguro.

Zé Floresta, enquanto o outro dá uma arrumada na cana de pesca, lê um dos poemas. Murmura cada palavra...

O velho sorri. Ele está entendendo. Este rapaz promete, é estudioso. Perguntador. Ele é energia pura. No entanto, algo está no ar: há talvez uma pergunta que ele quer colocar e está com medo. O velho decide aguardar. Ó Zé, meu jovem, ocê sabe que já escreveram sobre a Amazônia?

Verdade?, ele levanta os olhos do papel.

Um cara lá da terrinha, um tal de Ferreira de Castro escreveu o livro A Selva, e nele mostra toda a exploração no ciclo da borracha. Ora, uma Obra que o deixou na história, na eternidade.

E que Obra pode minha pessoa fazer?, indaga Zé Floresta enquanto busca outra folha. O velho nota-lhe a amplidão do pensamento, do querer. E diz: sendo o que ocê é e continuando a ser pra se merecer a si-mesmo. Nessa simplicidade ocê é um guerreiro da Luz e da Fraternidade sob os desígnios do Grande Arquitecto. A tua Obra é viver a Vida.

Zé Floresta olha para o amigo longamente. Não fala. Parece absorver o que acabou de escutar. Posso ter esse tal livro?, questiona. Vendo que o velho acena a cabeça afirmativamente, e sorrindo como se a aguardar já a pergunta, o jovem fixa o papel e reinicia a leitura lenta em ladainha baixa.

E fica silencioso após o último verso. Um silêncio longo. Tratando da pesca, João deixa-o nas intestinas pesquisas.

Por que o padre que deu as aulas pra minha pessoa e pra Noel não escreve assim bonito?, corta ele o silêncio. João olha-o, meio suspenso, apanhado na curva. Ele escreve como nóis, mim e Noel, sabia?, continua ele. O velho parece ter sido apanhado mesmo... É alfabetização. Ele estava ensinando ocês com as coisas do vosso dia a dia, diz. Mas o jovem não lhe responde. E inaugura mais um tempo de silêncios aqui e ali sobressaltado por uma ladainha mais alta. Um dia, diz João em meia voz, ocê vai entender que o que parece nem sempre é, que o bom pode ser o mau dependendo da máscara, que o frio e o quente queimam do mesmo modo, que a pedra pode virar ouro quando amamos a Vida, aí tu vai ter a porta aberta para a Vida, para o Cosmo sob o sorriso do Grande Arquitecto! Sim, Anarquia pura: tudo e todos têm um lugar, é só deixar fluir a Vida.

João fica de braços abertos para a natureza que os rodeia.

Podem botar bala em ocê por causa do que ocê escreve, nê?

E daí?

Ome, meu Irmão, minha pessoa perguntou primeiro...

E caem os dois na gargalhada. Eles só não sabem que eu registo as actividades do garimpo, que eu faisco tudinho, tudinho, nem puta escapa!

Ó seu João...

Ele pressente, na expressão meio escondida que observa, chegado o momento. Alguma coisa ele estava querendo saber. Sim?...

Disseram pra eu que maçon não fode, ai!, quer dizer com perdão da palavra, que não procura mulher, não fazer amor. Só procura ome... Verdade?

Quem foi a besta que disse isso?

Ao contrário do que pensara Zé Floresta o velho não se irrita. Sorri até.

Meu pai, informa ele encabulado. Besta mesmo, continua João. Anda por aí agarrado nas saias dos padrecos, só fornicam pra fazer filharada. Que gentinha... teu pai, me desculpa garoto, é uma besta...

Tá!, corta Zé Floresta, são coisas das conversas entre ele e o padre. Mas só podia ser..., ri João. Tá bem, torna o jovem, mas vamo aos finalmente seu João. Mim querer saber como é... O velho não entende e o jovem percebe isso. Mais encabulado ainda, diz: minha pessoa quer saber como foder, fazer amor, montar mulher, vige!

...?!, o espanto de João é uma mistura de incredulidade, pena, riso, tudo. Ai, ai, ai...

A gente não faz do momento a nova idade?, questiona Zé Floresta com o verso de um poema que lera duas ou três vezes.

Ocê me saíu melhor que a encomenda, Irmão. Então, mulher... Mulher é poesia...

Papel minha pessoa rasga dá ao fogo mas não monta, vige!

Ah, ah, ah..., ri João, mulher é poesia, ternura, ela é o coração em pessoa. Tocar uma muller é tocar uma flor, é saber o quanto é frágil o sentimento. Abraça a mulher, beija-lhe devagar os lábios, sente-lhe a língua, devagarinho acaricia-lhe o pescoço, sente-lhe a respiração do desejo - aí, igualzinha à do teu desejo de homem, e deixa-te ir no abraço dela, nos afagos dela. Os dois são um. Nada de pressas, que aos poucos as roupas caem dos corpos. Uma peça agora outra peça depois. Aí, sente ela e deixa que ela te sinta. Beija-lhe o corpo e deixa as mãos procurarem toda a leveza da pele, carne quente e sedosa; ah, e deixa a mulher fazer o mesmo. O que é bom pra ocê também é bom e gostoso pra ela, sabia?

Zé Floresta está em fogo, não sabe o que fazer das mãos e olhos estão fixos nos movimentos graciosos que o velho faz com suas mãos na tentativa de explicar espacialmente o óbvio.

E quando os corpos estiverem como chamas, lambe-lhe o sexo devagarinho, deixa a mulher em transe - aí, tu vais sentir o pau em tesão absoluto, e mais pau quando sentires as mãos dela afagando-o entre a raíz e os colhões, e ainda mais quando ela o chupar. Os dois assim, entregues ao prazer, são tudo. Ela vai dizer que é mulher sentindo o homem nela, mas tu, ome, tu vais te sentir um pau inteiro penetrando nela, te entregando na entrega dela!... Além do homem e da mulher em amor não há mais nada. Tudo o resto é paisagem. É a Vida que ganhamos com o Amor, meu jovem. A mulher é poesia, doçura. Beija-lhe o sexo, lambe de novo, deixa que ela te lambe, os dois vão se sentir entre sinos celestiais porque é a Vida explodindo na força da Luz divina. Que graça tem a Vida sem isto? Não existe Vida sem Amor...

Vige!, ó seu João, tou todo molhado...!

Ah, ah, ah...

Ocê fala assim a modos que...

A modos que?

Não sei, vige! Tou todo molhado!

Ah, ah, ah, aiiiii...!

Então a besta falou que maçon é veado, torna João, pois a besta não sabe o que é Amor! Ora, vai Zé Floresta - continua ele eufórico -, meu Irmão, vai, transa, faz a viagem primeira, vive o Amor, e deixa a mulher te fazer feliz. Não há poder de um sobre o outro, é só entrega. Isso, o Amor é entrega. E antes de pensar em filhos ocê deve pensar em ocê e nela - a tua mulher, tua companheira, aí sim, planeja o filho com ela. Um maçon, meu jovem e fraterno obreiro, é um ser livre dos preconceitos: ele ama a Vida e amando a Vida usufrui nela os prazeres carnais - o Amor, que também é carregado de uma grande espiritualidade. Amor é isso: carnes se dando em prazer e gerando poesia, paz, v-i-d-a!

Puxa, seu João!, exclama.

E como é gostoso sentir o tesão do prazer. Possui e deixa-te possuir em amor!, parece terminar João.


Começa a escurecer.

Vamo embora, seu João. Vamo embora!, diz o jovem fazendo o velho olhar o horizonte. Tem razão, diz, tá na hora mesmo. E tu vai ainda tomar um bom banho. Não esquece de guardar a papelada, tá! Ai, te segura Vida que a lua e o sol vão se encontrar... no Amazonas!

Rindo para si mesmo, João Matias recorda aquele domingo inigualável em que se empolgou no dizer o Amor, o prazer.

Fazendo uma viagem de cinco meses pela Europa, passa o último em Portugal.

Aveiro, a lusa Veneza.

Ele lê novamente a carta. Não lê. As palavras escritas são poucas. Está assinada por Noel. Não quer acreditar na carta. É certo que Zé Floresta tenha enviado ao amigo de sempre o endereço de Aveiro. Quis avisar de algo, talvez. Estava observando o Galo de Barcelos e um Cristo, outra peça cerâmica da região que comprou por bom preço por ter a assinatura da famosa Rosa Ramalho, quando a governanta lhe entregou o envelope. É do Brasil, doutor...

No jardim, ele ri e chora. Sempre quiseram achar aquela papelada que, aliás, não sabem exatamente o que contém. E por isso mataram aquele fraterno obreiro do Grande Arquitecto, resmunga. Eh, tens de voltar ao Brasil mais cedo, pá...

Dirigi-se a um posto de Correios e envia telegrama para o Rio de Janeiro com o endereço da fábrica onde trabalha Noel.







26


Marta junta-se a uma turma que dá acabamento em vários adereços que o cortejo carnavalesco vai apresentar.

Há muitos anos que a escola luta pelo ceptro de campeã do Samba. Sem quadra de ensaios e dispondo somente dos subsídios oficiais, da boa vontade da comunidade, e também de uma mulher que preside corajosamente aos destinos desta parte da alma carioca, a escola investíu tudo na simplicidade e na cor, na movimentação das alas -, o Samba na alma de uma raça que leva o sangue no pé!

Marta está ressentida com tudo. Não vai poder lançar na avenida aquela que prometia ser o corpo do sucesso. Mas é uma mulher de garra. Na passagem do ano foi em Copacabana e entrou nas águas toda de branco: que tu Iemanjã dê pra eu a força da vitória!, pedíu ela ofertando flores que as ondas acariciaram. Mística, olha agora uma pequena imagem da Escrava Anastácia que a comunidade negra santificou. Se ome bom apareceu pra eu, mim logo agarrar, e muito mas muito axé!, exclama com um sorriso. Tamanha é a sensualidade do seu porte que as companheiras se riem. Ambotá não tarda aí, bem... graceja uma delas.

Está ansiosa. O meu ome mim querer perto, pô!..., é o que vai em seus pensamentos.

Ele, que após as declarações na delegacia, passou no banco para depositar o cheque, chega na fábrica. Aplicou o dinheiro em fundos de renda fixa, poupança e overnight. Quer comprar uma casinha, ou um apartamento, em Cruz Alta, no Estado gaúcho que tem fronteiras com a Argentina e o Uruguai. Eh, vai pensando ainda pelas ruas de São Cristóvão, eis uma cidade que mim gostar muito; ali tenho bons amigos e a amizade é tudo.

Marta aguardou mas ele não apareceu na Vila Isabel.

Regressa a casa quando dois negros, saídos de um Fusca que acaba de frear bruscamente, a forçam a entrar. De tonta que ficou nem reagíu. O carro arranca mas pára mais à frente. Ó minha Nossa Senhora, murmura em seu desespero. Sabe que este tipo de operação é feita para apagar quem é agarrado. Um deles corta-lhe o pensamento...

Mulher do nosso morro, dona, casa com ome do nosso morro. Tá falado!

Ela tinha esquecido a lei imposta às moças pelas turmas do narcotráfico e seus justiceiros.

Tá falado!, sublinha outro asperamente acariciando-lhe os cabelos.

Foi um aviso, diz para si mesma no momento em que o Fusca pára novamente e eles a empurram para fora. O carro segue sob o olhar irónico dela.

Ambotá encontra-se com ela na manhã seguinte. Depois de colocarem flores no túmulo de Sueli, ele revela seus desejos. Sob uma árvore, com o rosto descansando no doce peito da amada, ele diz: vamos embora do Rio depois que o Carnaval passar, bem. Vamos embora. Tu lembra do ouro que mim ter de vender? Eh, vendi e a grana tá depositada. É grana pra gente viver bem e montar nosso negócio, bem.

...Sim, concorda ela. Depois do Carnaval, bem. Vamo pra longe desta cidade bonita, ai, tão bonita como traiçoeira. Ela afaga o rosto dele, pressiona-lhe levemente a cabeça contra os seios. Abraçam-se com força. Parece-lhes que do parque onde descansam os desencarnados vibram forças de uma Luz oculta emanando da própria Terra. Telúrica coisa... Me dá uma vontade grande de vitória, prossegue Marta, vamo os dois no desfile, bem, provar que somos gente forte, que desgraças não ganham de nóis!

Perto, raso é o túmulo de Sueli.


O sacerdote ergue a taça
Convocando toda a massa
Neste evento que congraça
Gente de todas as raças
Nesta emoção
Esta Kizomba


lê-se no papel que acompanha a coroa de flores comprada por Ambotá. É parte da letra do samba-enrêdo da escola em que Sueli se iniciou na arte carnavalesca. A morte é a vida em outra forma, um outro ciclo que só desencarnando poderemos conhecer. Por isso a kizomba, explica ele a razão daqueles versos diante das lágrimas teimosas de Marta.

De mãos dadas deixam o cemitério.

Na graça do amor começa um novo ciclo para eles. Algures, depois da festa que vai unir as raças na afro-brasilidade do Sambódromo.






27



Tarde de sol em Petrópolis.

Debruçados na protecção de metal que limita a ponte há dois homens que conversam em surdina. Dá a impressão que não conversam sobre o caudal louco do Quitandinha nem das desgraças da cidade que as chuvas deixaram. Usam terno e gravata, têm gestos polidos que chamam a atenção dos velhos impacientes que tiram, vez por outra, os olhos do rio.

Sei apenas que ele vem para o Rio...

O outro olha bem no rosto do homem que lhe dá a informação. Marcão acaba de receber uma informação bem sigilosa. O encontro entre os dois foi agendado para fora do Rio. Em uma área de São Paulo, a PF conseguíu enxadrezar um perigoso grupo de narcotraficantes. E tem outra informação não confirmada, ainda, do mesmo companheiro:

O agente de ligação aos colombianos escapou por pouco em Manaus onde um comando apagou um casal de traidores e em casa deixaram a marca CM. Isso aconteceu em Amataurá. Um dos caras do comando foi baleado, segundo pessoal do aeroporto, mas se acabou logo deram sumiço no presunto!

Tudo bem, diz Marcão, mas se o padre não tem a ver com eles e o tal CM, então, quem é o agente de ligação?

Viajou com Marcão uma agente para dar busca em uma mulher que, supõem, terá desaparecido no mar de desgraças que quase destruíu a cidade imperial. A mulher, comenta o cara que está com Marcão, era peça-chave para nós. Se não a acharmos ficamos em branco...

...talvez!, diz a agente que se junta a eles.

Como talvez?, quase falam os dois ao mesmo tempo.

A agente é uma mulher de trinta e poucos anos; não é bonita mas transporta uma graciosidade muito sensual. Essa mulher conhecia um padre sim, mas isso não adianta nada para nós. Até agora não conseguimos nem pista dela em Petrópolis. Parece que foi engolida pelo rio Quitandinha! Bom, continua ela, sabemos que o cara vem ao Rio, e vindo, pela certa vamos dar de caras com ele. Ou na Rocinha, ou no Leblon, ou em São Conrado, ele vai aparecer. E nós também.

Ela puxa de um maço de cigarros e oferece aos dois.

Pela atitude do trio, os velhos julgam que eles estão procurando algum desaparecido. Não estão assim tão longe da verdade.

Vamos tomar um cafezinho?, Marcão puxa-os para um bar ali perto.




*

Na fábrica, Manoel Três Bocas encontra na sua mesa um telegrama. Só pode ser de seu João, julga. É mesmo. E tem menos de duas horas para o ir receber no aeroporto. O velho vai querer saber como foi que descobriram que o Zé Floresta tinha os documentos!, é o que pensa ele enquanto avisa a todos que só retorna no dia seguinte.

*




Há cerca de dez anos que a PF procura localizar o homem da ligação que, para alguns investigadores, pode ser mesmo um alto funcionário governamental ou militar da activa. Também pode ser mulher, embora a análise pericial das informações aponte mesmo para que seja homem. Que actua no norte e no nordeste. Pode até mesmo ser, dizem outros, um caipira de gema. Pelo que se supõe entre os investigadores, ele privilegia os contactos nas fazendas, viaja constantemente e sem dar nunca a cara. Durante algum tempo buscaram um padre mas as evidências negativas gelaram a investida. Não têm a mínima idéia de quem seja e de como é, se branco ou negro ou amarelo. Como estão no Rio algumas das celebridades do Narcotráfico e do Bicho, existe a esperança de que o tão desejado surja num dos pontos nas próximas quarenta e oito horas. Conhecendo o grau de infiltração e mando que essa gente tem entre as diversas polícias, a PF decidíu manter a operação em segredo: as outras corporações só saberão da acção na hora e por nós!, é a ordem. Ou a operação é um fiasco daqueles ou tudo dá certo e os criminosos levam desta vez com as algemas da Lei.







*

João Matias procura o homem dos bigodes grandes. Pelo tamanho de um cara que surge trazendo a etiqueta da TAP na asa de uma maleta, Manoel exclama: seu João!

Ah, Ambotá!, sorri o homem grande de simpática velhice. Vamos logo conversar, ó pá!, desculpa que a terrinha fica logo ali. Pra esquecer, vamos numa batata frita com mostarda e chope aqui mesmo, embora isso não seja hábito meu, mas carioca.

Manoel Três Bocas entende agora, num ápice, o porquê da amizade extraordinária que unia Zé Floresta a este homem. Tá bem, pá - ri ele -, vamos lá conversar.

*




No bar, os agentes ouvem as lamentações populares. Existem muitas casas e famílias em perigo e o apoio a Petrópolis é lento, ineficaz para muitos. E o Quitandinha continua nervoso, observa a agente ao se dirigirem para um Jeep.

O sol brilha no meio da tarde apesar de algumas nuvens ainda ameaçadoras.







*

Uma das peças sob vigilância desloca-se. Levantou vôo do aeroporto de Jacarepaguá às nove horas da manhã. Quando, na Quinta da Boa Vista dois agentes descobrem Negão perto dos pedalinhos. Estava com revólver 38 e dois pivetes como sombra. Na mochila de couro, uma Uzi. Foi surpresa para a própria PF. O grupo ía fazer uma venda de doze pacotinhos de Cocaína. No mesmo momento o jatinho tomava altura...

*





Devido às dificuldades naturais e ao tránsito da Baixada Fluminense, o Jeep chega ao Rio só final da tarde. Os agentes são apanhados por um alerta geral. De imediato ocupam os seus postos dentro da gigantesca operação já em movimento, e há alguns meses parcialmente no ar. Talvez seja o nosso homem... É a esperança de todos. A agente sorri: é desta, é desta...






28


Diz pró motoqueiro que tem carta lá no boteco!, ouve Marta de uma moça que acaba de chegar da Favela da Rocinha. Por que anda a moça tão interessada?, questiona-se Marta observando a colega tomar o lugar no balcão de uma lanchonete do supermercado. Hum, não deve ser nada. E prepara-se para iniciar o seu trabalho. Antes, de um orelhão, liga para a fábrica: tem carta pra ocê lá no boteco do morro, avisa com voz ternurenta. Tudo bem, agradece ele com alegria. Mim deu o recado, víu. Obrigada moça!, diz ela de passagem.

Da conversa com João ele retirou informações assombrosas. No mesmo dia, o físico tomou avião da VARIG com destino ao sul para constatar uma ligação que tinha em mente. Se é certa, meu jovem Ambotá, eu mesmo quero agarrar esse safado!, disse.

Na fábrica, ele recebe outra chamada: é o delegado. Quer ter uma conversa urgente com ele. Mas primeiro, Manoel Três Bocas dirige-se para a favela e apanha a carta no boteco. Reconhece a letra de Francisco e guarda o envelope no bolso. São quase dez horas quando entra na delegacia. E recebe a notícia da prisão de Negão, no Rio. E com ele uma carta com estes dizeres..., o delegado mostra um rascunho com o teor da carta certamente ditado via telefone. Calmo, ele sorri para o delegado. Que não entende. E fica pior sob a gargalhada do outro. Terá ele pensado que minha pessoa é mafiosa?, julga Manoel. Olhe, fui agora no morro apanhar uma carta que mim não abríu ainda. É de meu amigo Francisco. Um padre. Quer abrir? É dele mesmo. O envelope dançando nas mãos. O delegado começa a pensar que Negão terá sacado a carta em algum lugar. Não doutor, adianta Manoel cortando a imaginação dele, Negão não roubou a carta, foi mesmo o carteiro que deu pra ele entregar a minha pessoa.

Abrindo os braços, resignado, o delegado diz: mas esse padre é duro de roer, hein!

Manoel percebeu que ele lera a carta com atenção ao contrário de Negão. Juizos precipitados levam a acções que desencadeiam injustiças, não é mesmo?, observa o delegado.

Na volta, ele passa pelo banco e confere a compensação do cheque. Saca cinquenta mil e dirige-se ao Leblon pela Bartolomeu Mitre.

Não tem muita gente o supermercado. Na frente da moça que dera o recado para Marta está um cara alto e forte, elegantemente vestido. Bom dia..., cumprimenta. Ela me falou que bigodes vai com ela pra Cruz Alta depois do Carnaval, diz a moça enquanto serve um café expresso. Pagando a despesa, ele deixa três notas de mil nas mãos dela. Compra um vestido novo, neguinha!, e como se fosse um vulgar cliente ele deixa o complexo.





Manoel Três Bocas dirige o carro da empresa. Assim posso fazer tudo na hora, pensa. Durante alguns dias andou em busca uma boa arma. Não viciada nos circuitos do crime ou da contravenção. Ontem contactou um contrabandista espanhol, ele actua com um português em São Paulo que lhe mostrou algumas automáticas de última geração. Aqui tem os seus cinquenta mil, entrega ele o dinheiro ao contrabandista. Estão num bar já conhecido de Manoel. E aqui tem a boneca, diz o outro enquanto estende um pacote. Ele abre e dá uma espiada rápida: é uma Unique 7.65 com pente de sete munições. É a mesma boneca que você experimentou na Tijuca, diz o vendedor. E sorri. Antes de sair do bar entra no lavabo, carrega a Unique e coloca-a no cinto. Em cada bolso do paletó uma caixa de munições.

O contrabandista ri para o balconista: têm os olhos no homem que acaba de sair. Ele caminha algo desajeitadamente. Não é para menos. Esta mania de terno e gravata, resmunga Manoel.

Acha um orelhão perto e disca um número: Alô!, berra no meio do barulho do tránsito. Oi, ó Ambotá!, é a mulher de Marcão, ele não está. Há dois dias que não vem em casa. O serviço apertou..., adianta ela sem que ele lho perguntasse. Tudo bem, logo eu ligar de novo...

Manoel retorna ao Opala negro e segue em direcção à fábrica




29


Marcão, um dos investigadores do posto coordenador das várias operações em curso, fica a saber que o jatinho retornou sem o primeiro ocupante mas trazendo outro piloto e um passageiro. Marcão rói as unhas de tanto nervosismo.

Ele deve estar usando ponte aérea pra despistar a nossa gente e os olheiros, é o raciocínio de um inspector que acaba de chegar na sala operacional, e isso faz brilhar uma luzinha no olhar de Marcão. Logo, uma equipa de cinco agentes é mobilizada para o aeroporto doméstico Santos Dumont.

Os agentes rezam para que tudo dê certo.

Uma hora depois de o jatinho ter retornado a Jacarepaguá um velho desembarca no Santos Dumont. Traja impecavelmente. Na mão, uma pasta de couro. Cumprimenta quase familiarmente alguns funcionários. Um homem se aproxima dele: o tenente. De óculos escuros e aba do casaco de couro levantada ele impressiona. O nosso homem quer ir para Cruz Alta, informa com um sorriso sarcástico que o velho imita. E você avance com o nosso plano!, ordena o outro. Enquanto o tenente se afasta uma morena elegante encontra-se com o velho; os dois deixam o aeroporto e desaparecem no interior de um luxuoso Mercedes-Benz. Ela dirige o conversível último modelo. Hum, deve ser amante estrangeira. Pela aparência pode ser alguma gringa, opinam os agentes que nem deram atenção ao tenente. Antigo conhecido e sob o olhar de outro grupo. Dezenas de agentes estão mobilizados. Ai, pode ser a colombiana, e se for ela o contacto tem de trazer, por força, uma caneta-tinteiro com CM gravado na tampa de rosca, palpita um deles. Atrás do Mercedes-Benz gruda um Opala cinza com dois conhecidos capangas do velho.

Eles vão pró centro!, ouve-se no rádio da central. E logo: meteram no trevo e seguem prá Rodoviária em marcha lenta.

Marcão bate com o lápis na mesa. É lá que fica a Avenida Perimetral, pô!...

Os agentes de plantão em Jacarepaguá não intervêm quando um Chevette e um FIAT Uno se aproximam; os dois tripulantes do jatinho - um bimotor bem aparelhado - já os aguardavam há quase duas horas. São vinte horas e a visibilidade é pouca. Transportando os caras e três malotes, os dois carros deixam Jacarepaguá. Seguem na direcção do centro!, informam os agentes.

Após a certeza de que o QG do velho alberga agora gente muito importante, de uma coisa o pessoal da Polícia Federal está consciente: o contacto está no QG. Só pode..., reza Marcão. Só pode...

Vinte e duas horas.

Policiais do Rio e de São Paulo começam a tomar posições estratégicas em torno do QG na Avenida Perimetral.

Rio de Janeiro, madrugada quase gelada.

O ataque é para todos os pontos gerenciados pelas turmas até o QG do velho, diz a ordem.

De um orelhão na Ilha do Governador, o tenente liga para o QG: soube agora que estão quase dando o bote na gente!

Merrrdaaaa!...

O velho acerca-se da cobertura, revólver em punho.

Filhos da puta...!, rosna ele atirando contra os vultos que logo percebeu serem policiais cercando a casa. Uma rajada certeira projecta o velho para trás. Um heli, logo de seguida, deixa um policial em cima da cobertura e outro perto da piscina. A invasão é feita em massa.

Desde as bocas-de-fumo até o QG são detidas dezenas de pessoas descobrindo-se agentes da autoridade e ex-agentes na trama do velho.

No desenvolvimento da operação um dos ocupantes do QG suicidou-se e uma mulher - a morena (é a de Manaus!, grita a agente que esteve em Petrópolis) - tentou fazer o mesmo. Mais rápida, a policial impedíu-a de ir até o fim. Temos umas contas prá ajustar, minha bela..., disse a agente controlando a situação. Um homem vestido de negro levou um 38 à boca e logo caíu fulminado.

Nem a PF imaginou que poderia chegar tão longe.

Marcão é um homem preocupado com um detalhe inesperado, coisa súbita que apareceu logo após a tomada do QG: é preciso saber quem e o nome do contato internacional. Todo mundo tem de ser passado a pente fino.

Onde está essa caneta?, questiona-se a agente junto de Marcão.








30


Entre os vários nomes que constam da lista riscada de alto a baixo com um X feito a lápis vermelho, o que na gíria do submundo significa gente a abater em curto prazo, Marcão lê o do amigo.

Ligando para casa em busca do apoio da cara metade: Ambotá vem logo em casa!, diz ela. Uma notícia que lhe dá algum sossego. Bem, ó bem!, ele que não saia de casa sem eu chegar.

Ao saber que o nome Manoel Três Bocas está incluso no caderninho da morte Marcão deixa-se abater, angustiado. Ele pode não ter chance de escapar. Tenho de fazer alguma coisa, pô!, decide-se.

Laranjeiras, um bairro movimentado.

Aqui ele encontra Manoel. Está no apartamento em conversa animada com João. Com o filho de Marcão o homem do Amazonas fala de tudo e de carros. Tudo é velocidade, Indy e Fórmula Um, e Honda pra cá Honda pra lá.

Boa essa farpela, hein!...brinca passando a mão pelo terno de Manoel.

Riem. Este aqui, diz Ambotá, é o famoso seu João!

Ih, vamos ter então uma janta esotérica..., o rosto de Marcão parece agora menos contraído. Encontrar o amigo bem disposto está funcionando como uma boa ducha.

Ela leva o filho para o quarto e deixa os três homens na sala. Sabe que a conversa está relacionada com os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro. Por instantes ela interrompe o início da conversa para deixar na mesa vinho tinto, salame e torradas. Divirtam-se...

Antes de mais, diz João Matias, quero lhe agradecer o apoio, e de certa maneira, a protecção fraterna que vem dando para o Ambotá. Amigo do meu filho espiritual Zé Floresta é também meu filho. E como sei que você está ocupado com esses trecos da operação carioca, vou directo à coisa: quando ele - coloca uma mão no ombro de Ambotá - me comunicou a morte estúpida do Zé Floresta eu não pensei duas vezes, apanhei passagem e voei de Portugal para cá. Alguma coisa me dizia que uma pessoa muito conhecida estava por trás das informações que levaram ao assassinato do Zé Floresta. Tinha as minhas suspeitas fazia muito tempo, sabe..., mas sem provas tudo fica difícil. Fui lá em Porto Alegre conversar com um conhecido agiota português que me deu (como dizem vocês?), ah, que me deu a ficha do cara. Inclusive foi com esse agiota que o padre negociou o ouro de Ambotá...


...?!, e o outro fica estupefacto.

E adiante. Em conversa com Irmãos sulistas soube que o tal cara é a ponte principal de toda a parafernália e literatura que circula contra a Maçonaria. É mesmo um puxa-saco do Salazarismo e da Igreja romana...

...era...

...?!, é a vez de João ficar olhando Marcão. Mas continue, por favor.

Hum, isto aqui está quente!, graceja. Imagine, e isso eu já sabia pelas conversas com Zé Floresta, que o cara simplesmente tem como argumento principal uma acusação falsa: os maçons são homossexuais. Imagine a estupidez dessa Igreja romana. E faz-se valer da história distorcida das acções que culminaram com a destruição dos Templários - mais: que foi preciso a virilidade lusa para transformar os Templários na Ordem de Cristo. Realmente, a maldade e a hipocrisia são as armas dos analfabetos e dos sem-espírito, e mais amplamente, da falta de fraternidade. E por causa disso, e sempre levantando fundos para combater os infiéis à Cristandade, o cara - esse gajo!... procura até o narcotráfico. É um criminoso... Também, crime por crime a gente sabe que a Igreja romana tem no Brasil vastíssimo latifúndio enquanto abençoa a pobreza e a infelicidade dos sem-terra. Mas, isso é outra coisa... Mais: diz que, vejam bem a contradição!, se padre quiser casar que saia da Igreja romana e vá para os infernos da Maçonaria. A consciência é a coisa mais amordaçada entre essa gentinha...

Entre os dois, Manoel Três Bocas está ficando com os pensamentos num barulho só.

Marcão dá uma explicação generalizada sobre a operação policial que está a levar muita gente graúda para o xadrez.

A operação em si era importante até para o Brasil, comenta, tinhamos de mostrar a nossa capacidade no combate ao Bicho e às Drogas. A questão é social, política e policial. E havia algo que há cerca de dez anos tinhamos como alvo principal: um homem e, ultimamente, um objecto que com ele se identificava. Mais precisamente uma caneta-tinteiro de ouro com tampa de rosca, na qual, a inscrição CM.

Nota que Manoel fica perturbado. Muito perturbado. Ao ouvir falar na caneta de ouro Ambotá recorda-se, e até fica espantado com a rapidez da relação que lhe surgíu na mente, de uma caneta assim... com duas letrinhas na tampa. Te diz alguma coisa?, dispara Marcão. O homem dos bigodes está hirto, perdeu o sorriso. A pergunta de Marcão é quase uma certeza quando junta isso às palavras anteriores de João.

Se um buraco existisse na sala ele se iria sem dizer um ai.

E pensa, pensa. São segundos terríveis. Por isso ele pode ir pra todo lado, por isso ele é um homem forte, por isso chegou tarde em Juruena quando José chamou ele, por isso morreram como morreram os pais de José... Estas imagens desde há alguns dias incomodavam-lhe o sono. Está sem pinta de sangue. Deixando alguns de fora, como minha pessoa, ele mantinha a imagem de gente boa e fina pra todo mundo...

Tem as mãos sobre os joelhos. E treme.

O meu bom Francisco, bálbucia ele. E eu que não quis acreditar nas histórias do Xicão. Ele me disse, lá em Manaus, que achava o padre tão criminoso quanto os traficantes, que ele era da mesma matilha e se escondia na batina.

E você recorda que uma vez te falei de um padre português há muitos anos no Amazonas?, observa Marcão. Pois ele, o bom Francisco, é mesmo o cara tão procurado. Teve azar: Por duas vezes alguém notou uma caneta de ouro com as iniciais CM na tampa e associou isso ao Cartel de Medellin.

E que é feito dele?, quer saber João Matias.

Ele era o cara que fazia as mais importantes ligações internacionais na América Latina. Um cara importante do Cartel de Medellín, e as iniciais CM são isso mesmo. O que ele fez em Manaus foi obra de mestre: enquanto te esperava, um comando saqueou a casa em Amataurá e outro liquidou os velhos no estacionamento do aeroporto. E ele de cara limpa, ali! Foi o que uma de nossas agentes descobríu ao pegar a caneta-tinteiro e descobrir a morena no QG que estouramos na Avenida Perimetral.

Ele era?

Sim, explica Marcão, ele já era Ambotá. Quando entramos no QG o cara meteu na boca o cano da 38 e se desfez todinho. Não tinha outra alternativa, pô!

Oh Marta...minha pessoa tinha acabado de falar pra ela que ía conhecer uma pessoa boa. E agora? Ai, que mundo terrível este!, desabafa Ambotá.

Marcão e João abraçam Manoel Três Bocas, sentem-no fraco. É muita emoção negativa em tão pouco tempo para um homem só.

Tu vai sair do Rio, agora!, que os bandidos acabam com ocê..., determina Marcão.

Não!, só depois da janta..., adverte a dona da casa.

Ai, ah,ah,ah... muito bem, apoiada!, ri João.

Quem iria pensar que o bom Francisco, velho missionário, era uma cobertura do Mal?, comenta João Matias. E para você (você tal qual Zé Floresta...), meu jovem Ambotá, tudo o que descobríu aqui no Rio foi podridão e mêdos, extorsão e crime, poderes do submundo do Mal querem dominar o Bem que muita gente transporta altivamente na simplicidade do dia a dia do trabalho. Talvez para você seja um absurdo a polivalência ideológica daquele padre, no entanto, meu jovem Ambotá, até isso é falso: não há aqui polivalência, o que há é uma ideologia pôdre que minou o Cristianismo a partir do Vaticano, e que, felizmente, tem opositores no seu seio - gente que não se permite ficar sem opinião vendo o Mal se alastrar por aí, de capela em capela. Veja, todos aqueles que lhe preencheram a infância caíram mortos, ceifados pela ignorância de uns face à Luz divina. É nisso que você tem de pensar agora. E, no mesmo tempo, dar o fora do Rio...

Obrigado, seu João!

Marta!, gritam-lhe as entranhas. Ela é a tábua a que ele se agarra com veemência. Marta!..., um nome que sua alma assimilou e grita no contraponto à crueldade de uma realidade patética, bestial.

Manoel Três Bocas - o Ambotá, está numa encruzilhada para a qual não estava preparado nem física nem mentalmente.

É duro olhar em frente quando se perdeu muito daquilo em que se acredita!, a sua voz altera-se subitamente na sala. Me resta Marta, a minha Marta!














31



o mar nos galga
solene e bela penetração
erguemo-nos como nação
nos dias de maré alta

sabemo-nos a sal
idéias de sorte se aliam em nós
à revolução


Encostada em uma caixa de madeira, nostálgica, Marta vê com apreensão o espaço da Marquês de Sapucaí. O grito forte dos Palmares, que correu terras, céus e mares, influenciando a abolição..., ouve-se já no Sambôdromo: a escola Vila Isabel inicia o seu desfile. O samba-enredo faz levantar o povo nas bancadas; os relógios de quartzo marcam o tempo do desfile. Usando pouca coisa no corpo bonito e gingão, qual mulata d Angola, Marta é uma passista que dá nas vistas.

Que bom se tu estares aqui com eu, meu amor, meu Ambotá!, murmura dando os primeiros passos na avenida do maior Carnaval do mundo. A imagem do amado enche-lhe o pensamento. Que saudade... Ai, meu bom Ambotá!

Com seus guerreiros deslumbrando a Comissão de Frente dá um espetáculo à parte; a bateria de centenas de integrantes dá o ritmo forte cadenciando o samba-enredo no desenvolvimento das alas. É desta, é desta vez... é campeã! é campeã!, grita o povo dando a Nota 10 a toda a Vila Isabel.

Aos poucos, sabendo que o seu Ambotá a aguarda em Cruz Alta, ela deixa o coração sambar contra a Lei Áurea e a pseudo Abolição impostas. Acena para um camarote e ri. Êta portuga danado...

Que o Rio é negro todo o mundo sabe e que o negro vem de todas as bandas da Guanabara esquentando seus tamboril e pandeirete para ganhar a festa, a felicidade das noites do Carnaval... também, todo o mundo sabe. Depois, ora, depois é a resistência de todos os dias: as outras máscaras, as da dor, do racismo, da humilhação. Negros que continuam morando nos morros sem direito a nada e sujeitos ao crime. É pela Kizomba que negro vai à luta!, grita Marta para outra passista. Toda a ala de pé descalço, as mulheres tomando a liberdade da nudez dos seios. Marta deixa-se tomar pelo mar que a galga, sintoma de uma magia que lhe faz vibrar o coração pela vitória - a sorte da luta, síntese de comunidades em reunião de raças no expurgo de muitas feridas...

O povo levanta-se, é uma massa só:... é batuque, canto e dança, Jongo e Maracatu. Vem, menininha, pra Dançar o Caxambu..., canta o povo e canta a Vila Isabel. Estremece a Marquês de Sapucaí.

Valeu ó Zumbi!, gritam.

Empolgado, o povo balança com a escola num ímpeto interior que faz ferver o sangue e leva ritmo ao pé. Nos olhões que dizem do tempo da evolução ninguém quer saber: a melhor informação está aqui, na frente dos olhos, sob o nariz.

Marta, esquecida de tudo, é amor por Ambotá e axé em pé descalço.






32


É madrugada na cidade gaúcha de Cruz Alta, no belo Estado do Rio Grande do Sul.

Ainda em casa de uma família de amigos, Ambotá acaba de adormecer na cadeira; a televisão ligada lançando na pequena sala tons claros e escuros em feixes de dispersão.

Depois da conversa com Marcão reuníu suas coisas e foi despedir-se de Marta, sempre com João por perto. Eu só regresso a Portugal, ó pá!, depois do teu embarque lá para os pampas, advertia ele. Tudo foi feito rapidamente. Te espero no domingo à noite!, disse para Marta ao entregar-lhe duas passagens aéreas. Entendera perfeitamente a necessidade que ela tinha de ficar. É a minha homenagem a Sueli, vou ser campeã por ela!, ouviu dela. Eu trato dela até lá, meu jovem apaixonado, pois eu vou assistir ao carnaval carioca como sempre quis: de camarote!, ríu João. E contou que sempre sonhou estar no Rio para isso. Só para isso. E sempre a leitura ou a pesca lhe tiravam a vontade na hora. Como diria o Pessoa: É hora!, e abraçou Marta na maior gargalhada.

Bebericando no chimarrão, assistíu ao desfile entre conversas e baralho com o amigo e a mãe.

Já ganhou!, opinou ele ainda a escola estava no meio da avenida.

Ele mesmo estranhou-se. Nunca foi ligado no barulho dos sambas. Porém, há agora a magia de uma sambista... Ela levanta o seu astral.

Manoel! Ei, ó Manoel!

Huummm..., ele sespreguiça-se ao sentir a mão da mãe do amigo.

Vai deitar, vai!






*

Ilha do Governador, Rio.

Uma amiga do tenente fala sobre as últimas da investida policial. O tenente é um bicho acuado. A barba por fazer, o cabelo em desalinho. Nada nele faz lembrar o tenente que partia corações femininos e masculinos à sua passagem. Morde-se de raiva, impotente.

E aquele cão de bigodes tem de morrer, continua ela em fala mordaz, foi ele que levou a PF até ao QG porque o Negão comeu a estúpida da prima e ainda a deu pró pivete. Cão! Cão! Mas esteja ele onde estiver o cabra tá marcado...

A mesa estremece com o murro que ela lhe desfere.

Bebe um longo gole de caipirinha. Isto acalma a gente, pô!..., diz. É uma quarentona bonita. Apesar do ódio que há instantes transpirava a sua áurea de beleza permanece no espaço visual.

Sim, esse cão vai morrer...de velho! Agora não estou nessa. Chega!... E você, lindinha, que sempre fez a festa do padre em tua casa de Petrópolis agora vai ser a minha festa...!diz ele.

*




Sob o sorriso da mãe do amigo ele sai da sala e dirige-se para o quarto. A senhora, idosa e obesa, desliga a televisão e deixa também a sala.

Com o pensamento em Marta adormece enroscado em si mesmo, perdido na vasta esperança que o horizonte feérico lhe transmite em torrente de maravilhas.






33


Quarta-feira de cinzas.

Através de um telefonema a imobiliária informa Manoel da disponibilidade de uma casa. Está dentro daquilo que o senhor nos pedíu, dizem. Eu já passo por aí, diz ele eufórico. Oba...

Dá a boa nova ao amigo e sua mãe e solta-se pelas ruas de Cruz Alta. É um homem feliz. A casa é óptima, com pequeno jardim e garagem ampla. Decide-se pelo financiamento bancário e fecha negócio ali mesmo.

Oba, temos casa ó minha Marta!, vai quase cantarolando pelas ruas.

Ela está longe. No meio da turma da escola onde se destaca a presidente. Preparam-se para ouvir as respostas dadas pelos jurados aos quesitos.

Há algum tumulto nas bancadas do Maracanazinho entre as torcidas: gente da Mangueira é caçada com armas mas em breve tudo retorna à normalidade possível neste ambiente inegavelmente esquentado por muitos interesses exteriores ao próprio evento carnavalesco e popular.

Já em casa dos amigos, Manoel ouve as notas pela televisão. Está animado. Ah!, olhem lá, olhem lá...

Que foi, Manoel? pergunta a idosa. Olhem lá. É a Marta, a Marta! Oba...

Na turma da Vila Isabel lá está Marta. E o avô do coração, como ela chama ao seu mais recente amigo, seu João.

Quem está abraçado a ela?, ó Manoel... pergunta o amigo. É ele, responde, um português meu amigo que ficou para ajudar ela até embarcar. Ele mesmo devia estar indo pra Portugal, agora. Hum, o velho português está se deliciando com os carnavalescos e vai, de certeza, escrever qualquer coisa acerca do Rio. Também, se não tomar cuidado fica por aqui mesmo, que portuga é assim mesmo. A terrinha é muito pequena para esse velho de alma grande... Tu sabe que Portugal cabe no Rio?, hein...

Estão nisso quando as imagens da televisão mostram uma explosão de alegria entre a turma da Vila Isabel. É campeã! É campeã!, é o grito que se ouve. Todo o Brasil fica a saber: Vila Isabel é campeã do Carnaval carioca.

João Matias, que nunca assistíu a coisa igual em sua longa vida, ampara a chorona e trémula Marta com um abraço carinhoso. É por Sueli, avô do coração. E por ocê, tá...ouve ela.

1988, Vila Isabel é campeã do carnaval.

O ceptro muda de mãos e talvez que nem o Rei Momo esperasse isso. A canção da escola é cantada em uníssono - é a Kizomba do boulevard ao Morro do Macaco. A festa da união.

Marta quer seguir com a turma para a Vila Isabel. Mas nem pensar, garota. Acabou o recreio!, diz João energicamente. Se calhar alguém te espera. Vai comigo para junto dos teus filhos, pá!, e não discute com este avô porque vai levar palmada das antigas.

Tem razão, avô... concorda ela. Não posso perder a cabeça. E o meu Ambotá espera a gente.

Pois, tu vais para os pampas e uma hora depois eu embarco para o velho mundo, diz João. Amanhã é dia de partidas. Vou sentir saudade da alegria de viver desta minha neta.

O abraço dos dois é uma emoção só.

No morro, a liberdade efémera de um samba de muito axé agita meio mundo






34


As pancadas d água enchem os rios que atravessam a cidade, os morros cedem e os deslizamentos provocam horrores.

Dona Marta, Rocinha, Macaco, Sumaré, um pouco por todo o Rio de Janeiro, casas desabam e dezenas de mortos são um rastro de destruição.

Em poucas horas os morros não contêm mais as águas.

Um clínica em Santa Teresa vive um pesadelo: uma cachoeira há muito desativada e escondida pela mata reaparece na força das pancadas de chuva forte. As terras deslizam e se fazem acompanhar de pedras e mais pedras. Perto da reaparecida cachoeira, a clínica recebe toda a carga do deslizamento, as estruturas não aguentam e o complexo desaba soterrando muitos pacientes que ainda estavam no refeitório. O horror toma conta da área.

Em outros pontos da cidade muita gente fica presa no meio do dilúvio, carros são arrastados diante da impotência dos donos. Logo os pivetes aproveitam-se: assaltam ônibus, carros e levam tudo. O de sempre. Nas áreas da Baixada Fluminense a coisa é pior: os pivetes são uma calamidade maior que o dilúvio. O inferno, como diz quem já teve que enfrentá-los em tempos de azar.

A leptospirose mata. Uma cidade à beira do nada. Há quase um mês que a Baixada Fluminense está ilhada. Uma parte do Estado carioca está um lixo.

Horas de incerteza, solidão e morte.

Manoel Três Bocas fica preocupado com as notícias que ouve no rádio do FIAT Uno que acabou de adquirir.

Oi, meu jovem!, atende João o telefone na recepção do hotel. Estava tomando sumo com os filhos de Marta quando uma garçonete o chamou. Aqui está tudo bem. Vou pedir para passarem a ligação para o quarto da Marta.

... Oi amor, meu Ambotá!

Marta!, está tudo bem com ocê?...

Tudo bem, bem!

Conversam sobre o tempo, as crianças, o avô do coração e... da casa de Cruz Alta. Os molequinhos vão adorar o jardim, víu! Na voz dele a emoção de uma realização.

Dizem que não vai mais ter desfile das campeãs no sábado, informa ela. Também, com estas desgraças... A festa acabou. Tu saber da greve dos aeronautas aí de Uruguaiana?

Sim, mas não vai atrapalhar o vôo. Eles dizem que nesta política tem sempre teto!





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Entre as coisas que retirou da casa da prima estão os livros que ela tanto gostava de ler. Minha pessoa nem sabe se ela entendeu direito alguma vez estes escritos. Tem coisa esquisita, difícil. Coisa pra seu João, sim. Não pra nós. E estes escritos d ome que assina com outros nomes e do outro que quer morrer como se estivesse em orgia de frescos...

E no entanto, até ele ficou fascinado por tais escritos. Principalmente pelo gordinho que queria palhaços e mais palhaços na hora de morrer. Eh, e morreu mesmo o danado. Um barato este gordinho, murmura Manoel Três Bocas passando os olhos pelo livro que Marcão havia oferecido a Sueli. Entre os livros encontra um folheto que ele mesmo, recorda, apanhou na porta de casa e que ela deixára cair quando saíu feita tocha humana. Nunca de seu ao trabalho de olhar. Um dos escritos está rodeado por um círculo feito com baton rouge.

Ah, tem coisa escrita por ela aqui..., observa. E lê: eu querer chamas, querer o fogo pra purificar a alma profanada pelo demónio humano.

Ele relê os versos de Mário de Sá-Carneiro que ela demarcou e tenta entender a relação.

Diacho, murmura, ela quis achar força nos versos do gordinho e não achou. Como ela ía ficar na eternidade, como dizia o Zé Floresta, se não tinha obra pra deixar? Diacho, é isso mesmo. Por isso procurou o fogo pra purificar sua pessoa e chegar bem até Grande Arquitecto... Sim, os povos antigos, os do sol, também faziam isso. O fogo é divino, limpa. Ela tinha dito pra minha pessoa que todos somos palhaços... Sente-se cansado, violentado com a descoberta que acaba de fazer. Tal qual o gordinho também Sueli estava ferida pela solidão. Mas agora tu é uma deusa linda cuidando da gente, um anjo do Grande Arquitecto.. Uma deusa linda, gente!

Sabe que Marta já embarcou. Vai recebê-la dentro de uma hora. Treme só de pensar que a sua Marta está a chegar.

...a minha mulher. A minha Marta!... Abençoa a gente, Sueli!

Senta-se na cadeira de balanço. Do bolso da camisa tira a gaita, sacode-a. Uma melodia campestre enche o tempo.

















JOÃO BARCELLOS


“Há muito radicado nos caminhos da América do Sul, tornou-se um estudioso da Luso-Brasilidade e produziu vários livros sobre o assunto: romances e estudos históricos - um sobre o capitão-general de São Paulo (O Morgado de Matheus, SP-1991) e outros sobre a região cotiana do Piabiyu (Cotia - Da Odisséia Brasileira De São Paulo Nas Referências Do Povoado Carijó, SP-1993; De Costa A Costa Com A Casa Às Costas, SP-1996). Os seus conhecimentos sobre a sempre presente Cultura Minho-Galaico Sob Referências Célticas permite-lhe alcançar várias rotas de estudos e aprofundar o seu conceito de Ser-Estar Português No Mundo. Filho de família que mistura as linhas de serviço público, tecnologia industrial, comércio, artesanato e literatura, João Barcellos transpõe para os seus escritos essa vivência cultural que aprofundou nas suas andanças jornalísticas - é, assim, um intelectual de vanguarda com bagagem humanística poeticamente assumida! (Tereza de Oliveira - artista plástica, poeta; Paris/Fr, 1998)” / “O universo que nos cerca, seja o sistema ecológico seja o sistema humano - e, na realidade, o segundo sobrevive sem o primeiro (somos seres solares e lunares, ou cósmicos) -, é o material de base para as ações intelectuais do escritor luso-brasileiro João Barcellos. Ele é o Ser em busca do Ser entre as coisas da Terra e a floresta do Pensamento. Se o Ser Humano é o que é em função da evolução cósmica, João Barcellos é um poeta que escreve com a coragem de Viver esta evolução natural; e por isto, ele Vive em si mesmo a Humanidade que raro encontra nas esquinas do sistema humano. Ele é o Poeta por inteiro na Anarquia do prazer de Viver!... (Marc Cédron - ecologista, psiquiatra; 1999, Zurich/Suiss)” / “Ao ler o romance ‘Clube Brasil’ quase fiquei em pânico: entre banditismo sociopolítico e místicos esforços romanceados, o Mestre JB traz a verdade sobre o Nazismo que poucos conhecem, mas deveriam conhecer! É uma obra de fôlego pelo que as entrelinhas deixam ler, no entanto, o incluso ‘Manifesto von Stuka’ é uma bofetada política e cultural na idiotice mundializada que nos rodeia e enforca economicamente, tal como o Sionismo quis fazer ao Nazismo em 1933, daí a guerra... Este romance não difere muito, na sua plástica cultural, daquele ‘O Outro Portugal’, que tanto sucesso tem obtido. Mestre naquilo que os outros não gostam de analisar, Mestre JB é sempre uma boa surpresa literária (Ruy Hernandez, crítico, Barcelona/Esp., 2001)


Trabalhos Literários

POESIA E SEIS CONTOS DUM BARALHO SÓ coletânea (1989, RJ); - ESTÓRIAS POÉTICAS crônicas (1989, RJ); - TEMPO DE VINGANÇA romance (1990, SP); - UM LUSO NA ILHA DE SAMPA poema; - UMA CARAVELA DE PRATA romance (1992, RJ); - MORGADO DE MATHEUS pesquisa/ensaio (1993 e 2000); - COTIA pesquisa/ensaio; - TEATRO (peças em 1 Ato) ; - DE FERNANDO PESSOA A MACHADO DE ASSIS ensaio/palestra; - CAMÕES / O POETA DO TEMPO LUSITANO ensaio (1991, RJ); - SIDÔNIO MURALHA / O POETA DA VIDA ensaio/palestra; - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO ensaio/palestra; - ANTERO DE QUENTAL ensaio/palestra; - CAMILO PESSANHA ensaio; - A CRIAÇÃO POÉTICA ensaio/palestra (1990/91, Rio de Janeiro e Florianópolis); - O TROPICAL JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS palestra; - OS DESCOBRIMENTOS ensaio (Prêmio Pedro Álvares Cabral, 1990 - SP); - REFLEXÕES SOBRE FERNANDO PESSOA ensaios/palestras; - A MULHER E A POESIA EM FLORBELA ESPANCA palestra; - OS CELTAS ensaios/palestras; - DE COSTA A COSTA COM A CASA ÀS COSTAS história brasileira a partir de acutia; - OI, COTIA! / HISTÓRIA PARA CRIANÇAS (com ilustrações de Ricardo Feher); - O PEREGRINO / A ESSÊNCIA POÉTICA DO SER ensaio/palestra (1995); - O PEQUENO PEREGRINO e outros contos; - ENTRE O POETINHA E O CANTO DAS VANGUARDAS ensaio sobre Vinicius de Moraes; - CONTOS PARA TODOS contos para jovens (1995); - CONTOS para jovens (1995); - ESCRITOS ECOLÓGICOS coletânea de ensaios (São Paulo e Buenos Aires, 1996); - MÁRIO SCHENBERG / O SER QUE SABIA ESTAR palestra; - JOSÉ DE ALENCAR palestra; - O PEREGRINO / Palestra Primeira e Palestra Segunda (1998); - TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA / palestra (Ouro Preto,1998); - AMOR poesias c/ marc cédron joane d almeida y piñon tereza de oliveira jb mário castro (Grupo Granja, 1999); - OUTROS ESCRITOS - poesia, teatro, conto (1998); - EXUBERÂNCIA E FOLIA NO MAR DE LONGO – poema épico (Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1998; - CLUBE BRASIL romance (São Paulo e Buenos Aires, 1992/98); - O OUTRO PORTUGAL romance (2000); - 500 ANOS DE BRASIL ensaios-palestras (2000); - BAPTISTA CEPELLOS o poeta brasileiro (com ilustrações de Ricardo Feher, 2000); - OLHAR CELTA; - ORDEM & SOCIEDADE palestras; - OUTROS POEMAS coletânea; - EDUCAÇÃO & CULTURA textos vários.

Enquanto leitor crítico, JB escreveu mais de uma centena de Prefácios e Opiniões; editor, é responsável pelo jornal O Serigráfico e o Jornal d Artes, ambos de âmbito nacional; editor de Cultura de jornais e rádios regionais; orienta Oficinas de Poesia, palestras em universidades e clubes literários, além de aulas de português e literatura brasileira. É membro do restrito grupo intelectual "Grupo Granja". Integrou o grupo que fundou a Associação Profissional dos Poetas do Estado do Rio de Janeiro (APPERJ), é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina / IHGSC e Associação Nacional de Escritores (ANE, Brasília-DF).
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