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QUARAR
Novo Aurélio
quarar = V. t. d. Int. Bras. 1. V. corar (2 e 9, e nota).
corar = [Do lat. colorare, com síncope e crase.] V. t. d.
1. Dar cor a; colorir, tingir, pintar: As índias coram o corpo com urucu e outras substâncias tintoriais.
2. Expor ao sol (roupa, cera, etc.) para clarear.
3. Cul. Dar (mais) cor a (assado ou fritura); dourar.
4. Tornar favorável, ou aparentemente agradável; disfarçar; desculpar; atenuar: Tentou corar a mentira com uma explicação. T. i.
5. Enrubescer nas faces (por vergonha, pudor, raiva, calor excessivo, etc.): "levantei-a nos meus braços, e confesso que foi corando de vergonha." (José de Alencar, Lucíola, p. 121)
6. Envergonhar-se, pejar-se, enrubescer: "Guerreiros, não coro / Do pranto que choro." (Gonçalves Dias, Obras Poéticas, II, p. 25); Não coras de proceder tão mal? Int.
7. Tornar-se vermelho ou corado; enrubescer, ruborizar-se: Mesmo tendo apanhado pouco sol, o seu rosto corou muito.
8. Cul. Adquirir (assado ou fritura) cor e textura mais apuradas; dourar.
9. Branquear, clarear (em conseqüência de exposição ao sol): A lavadeira estendeu a roupa para corar.
10. Apresentar rubor nas faces, causado por vergonha, embaraço, etc.: Corou, ao ouvir o galanteio.
[No Brasil, nas acepç. 2 e 9 (em geral com referência a roupa), se diz, muito comumente, quarar. Pres. ind.: coro, etc. Pres. subj.: core, cores, etc. Cf. coro (ô), s. m., e cores (ô), pl. de cor (ô), e couro.]
Escreveu-nos uma aluna indagando sobre ser correto ou não o verbo quarar com seus derivados (quarador etc.), ao lado de corar, coradouro. Iniciamos nossa resposta com o que temos dito em diversas ocasiões: é preciso termos em mente o fato de que as orientações gramaticais mudam com o passar do tempo, pois a língua se transforma, tanto na sua forma culta como nas variantes populares, e os escritores também acompanham essas mudanças, pelo que se acumulam novos exemplos e modelos, que se juntam aos mais antigos.
Vejamos um exemplo. Alguns dicionários, como o Aurélio, dão como correta, ao lado de tetravô, a palavra tataravô; não é essa a opinião deste Curso de Português por Correspondência, que, baseado no que escreveu e doutrinou o professor Napoleão Mendes de Almeida, dá como correta apenas a forma tetravô. O Aurélio tem seus motivos e justificações para aceitar o uso de tataravô, os quais não vamos aqui julgar, mesmo por não ser de nossa alçada.
O mesmo ocorre com o verbo quarar e seus derivados, que outros gramáticos aceitam como variante brasileira de corar. Uma explicação, que nos deu em conversa particular o professor Eduardo de Almeida Navarro, catedrático de Língua e Cultura Tupi da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, para o surgimento dessa forma variante quarar, é a possível convergência semântica e morfológica com a palavra tupi kuarasy (= “sol”). Parece tratar-se de fenômeno de hibridismo, que possivelmente se deu no período colonial, quando a língua geral (forma modificada do tupi) era falada em dilatada extensão do território da Colônia por grande parte da população: luso-brasileiros, estrangeiros, mamelucos, escravos africanos e indígenas, índios livres e aldeados de diversas nações etc. Sendo assim, o que ocorreu não é muito difícil de entender: como a roupa que se põe a corar é exposta ao sol (kuarasy), o povo refez o processo etimológico, o que podemos chamar, aqui, etimologia (ou analogia) popular, algo muito comum na história das línguas; desse modo, a forma corar foi comparada com o termo indígena com que se designava o sol, e depois reconstruída lexicalmente com base neste último. Disso resultou a forma popular quarar, que não se prende ao radical cor, mas a quara, de que se compõe o nome tupi kuarasy. (Este nome aparenta ser, já em tupi, um composto cristalizado, do qual se havia perdido a consciência dos formantes. Com efeito, sy significa, em tupi, “mãe”; é possível que tenhamos como étimo o sintagma kó ‘ara sy = “a mãe deste dia ou mundo” — kó = “este, esta, estes, estas, isto”; ‘ara = “dia” ou “mundo”.) Temos aqui, por meio de uma palavra, uma mostra do processo de miscigenação cultural de que teve origem nosso povo com sua cultura, bem como nosso modo de falar o português com um colorido todo especial.
Conforme consulta dos dicionários de Caldas Aulete, Laudelino Freire e Aurélio, vemos que corar e quarar são variantes apenas na forma, pois o significado, neste campo de sentido, conserva-se o mesmo: “Branquear, lavando e expondo ao sol”. Mas muitas das pessoas com que falamos sobre isso disseram desconhecer a forma corar, achando correta quarar. Parece que tal convergência de sentido e forma realmente aconteceu, e prova disso é o fato de essa forma variante, à semelhança de muitas outras palavras e locuções de origem tupi, como mingau, jereré, puçá, catinga (= “cheiro ruim”), mutirão, tocaia, de bubuia, pereba, titinga, tipóia, ter-se conservado na linguagem popular ou dos meios rurais; só muito depois é que algumas destas palavras passaram a ter circulação mais ampla junto aos falantes do português no Brasil e entraram na língua culta.
A dificuldade de indicar com precisão o processo de formação de quarar e outras palavras híbridas do português com o tupi reside no seguinte: o registro dessas palavras em documentos é muito recente, resultado de seu emprego por escritores regionalistas e de seu arrolamento por lexicógrafos; muitos autores antigos tinham tendências lusitanizantes e não aceitavam o emprego de palavras ou locuções populares brasileiras de origem africana ou indígena. O verbo quarar sempre foi tido como variante errada e não recomendável de corar, razão esta por que não o encontramos no Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem Tupi de Antônio Geraldo da Cunha (São Paulo, Edições Melhoramentos); por outras palavras: esta importante obra filológica não traz tal verbo porque ele não aparece em nenhuma das obras que seu autor consultou, embora se tenha conservado vivo na fala do povo do interior do Brasil.
Apesar de poder sustentar-se a opinião acima sobre a origem das variantes acima, este Curso sugere o emprego de corar, coradouro. O que quiser valer-se da opinião de outros gramáticos, pode optar por usar quarar, quarador.
Prof. Júlio César da Assunção Pedrosa
http://www.napoleao.com/dicpor6.htm
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Considerando a tradução correta como: whiten
Merriam Webster Thesaurus
One entry found for whiten.
Entry Word: whiten
Function: verb
Text:
1
to free from color and make white or whiter
Synonyms blanch, bleach, blench, decolor, decolorize, white
Related Word dim, dull, fade, lighten, pale; etiolate; frost, grizzle, silver
Contrasted Words color, darken
Antonyms blacken
2
Synonyms PALLIATE, blanch (over), extenuate, gloss (over), gloze (over), sugarcoat, varnish, veneer, white, whitewash
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Considerando a tradução correta como: whiten
Merriam Webster Dictionary
One entry found for whiten.
Main Entry: whit·en
Pronunciation: hwI-t&n, wI-
Function: verb
Inflected Form(s): whit·ened; whit·en·ing / hwIt-ni[ng], wIt-, -&n-i[ng]/
Date: 14th century
transitive senses : to make white or whiter
intransitive senses : to become white or whiter
Considerando a tradução correta como: bleach
Merriam Webster Thesaurus
Two entries found for bleach.
Main Entry: (1) bleach
Pronunciation: blEch
Function: verb
Etymology: Middle English blechen, from Old English bl[AE]cean; akin to Old English blAc pale; probably akin to Latin flagrare to burn -- more at BLACK
Date: before 12th century
transitive senses
1 : to remove color or stains from
2 : to make whiter or lighter especially by physical or chemical removal of color
intransitive senses : to grow white or lose color
- bleach·able / blE-ch&-b&l/ adjective
Main Entry: (2) bleach
Function: noun
Date: 1887
1 : the act or process of bleaching
2 : a preparation used in bleaching
3 : the degree of whiteness obtained by bleaching
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Considerando a tradução correta como: bleach
Merriam Webster Dictionary
Search: WHITEN
Link: "bleach" Encyclopædia Britannica from Encyclopædia Britannica Premium Service.
[Accessed March 21, 2003].
Solid or liquid chemical used to whiten or remove the natural colour of fibres, yarns, paper, and textile fabrics; in textile finishing the bleaching process is used to produce white cloth, to prepare fabrics for other finishes, or to remove discoloration that has occurred in other processes. Chlorine , sodium hypochlorite, calcium hypochlorite, and hydrogen…
Dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito – provavelmente um dos momentos mais ásperos na vida de um morador de rua. É a privação do ritual que uma vez por dia instaura uma pausa na realidade e forma um nicho mental, protegido do mundo, suas exigências, suas tormentas. Repouso do corpo e do espírito, território do sonho, fonte de energia e ainda, em algumas culturas, alcova da entrega amorosa. Da casa burguesa à tenda nômade, varia o ritual singular através do qual um cenário deste tipo toma corpo a cada noite, mas seja qual for sua configuração ele sempre existe. Quando deixa de acontecer é a crueldade de estar lançado no mundo sem trégua, perigo sempre eminente, tensão de um estado infindável de alerta, desassossego. Experiência certamente mais cruel ainda, quando quem mora na rua é uma criança: paroxismo do desamparo de um menino que perdeu (ou sequer chegou a ter) a garantia da proteção amorosa do adulto, importante ingrediente para formar a proteção amorosa de si mesmo, o mais íntimo dos territórios. Dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito, é o que Rivane Neuenschwander escolhe problematizar. O lençol será o material privilegiado em sua estratégia que se estenderá por seis semanas.
Início dos trabalhos. A artista pede que cada menino crie um auto-retrato num boneco de pano. Sem exceção, uma refinada percepção de si aparece corporificada em todos eles. A primeira etapa da estratégia se completa com uma seção de fotos de cada um segurando contra o corpo o boneco de si mesmo. Há naquelas imagens algo mais do que a clássica foto de infância para um álbum de família: torna-se palpável o lugar que cada um recorta para si no visível, mínimo indispensável para que cada um possa acessar seu lugar em trânsito no sonho.
Na seqüência, Rivane pede que tragam uma roupa de cama velha, composta de uma a três peças, para trocá-la por um jogo novo, completo, todo branco, página ou tela sobre a qual se fará o trabalho. No lençol de cima, cada um escreve e, em seguida, borda o próprio nome, com ou sem sobrenome; no lençol de baixo, cada um desenha ou escreve um sonho ou pedaço de sonho, passado ou atual, um desejo, uma fantasia, procurando ocupar toda a extensão do lençol. Uma vez inscritos nomes e sonhos, os lençóis são cuidadosamente dobrados, deixando à vista, no lençol de cima, o nome e, no de baixo, um fragmento de sonho.
Fragmentos de sonho, face invisível do nome, sua verdadeira consistência. É quando o nome designa um território em construção, work in progress de um sentimento de si que se cria e recria com os vestígios da experiência num corpo que pôde tornar-se vulnerável. Nada a ver com uma suposta identidade, além de que imutável e, pior ainda, irremediavelmente desqualificada. Reativar o sonhar e a memória do sonho, tão tolhidos naquelas existências: segunda etapa da estratégia.
Depois é o trabalho com sabão de coco, daqueles de lavar o delicado. Cada um cria uma composição feita de barras de sabão, blocos onde serão diagramadas as letras do nome, em sulcos escavados com palito de dente e preenchidos com temperos em óleo de cozinha. O auto-retrato feito de boneco de infância e fragmentos de sonho, conteúdos de um nome até aqui escrito e bordado, a partir de agora ficará também gravado. Finda a terceira etapa da estratégia.
Os meninos estão prontos para aproximar-se da memória amarga associada aos lençóis velhos: memória da privação de tudo, que culmina com a privação do próprio direito ao descanso, sem o qual não há sonho. Memória da humilhação e seus efeitos colaterais: o desvalor de si, a descrença no futuro, a paralisia do desejo. Memória do desamparo e do medo.
São convocados então os lençóis velhos: última etapa desta singular estratégia. O grupo se dirige à praia do Museu de Arte Moderna da Bahia onde os lençóis serão lavados na beira do mar, como se fazia em beira de rio antigamente, e se faz hoje ainda em alguns poucos lugares. As mesmas bacias de alumínio, os mesmos velhos gestos de ensaboar, esfregar, bater na pedra e quarar. “Quarar”, magia de um gesto através do qual a força humana alia-se à força do sol para eliminar as impurezas que o olho não alcança e tornar os tecidos mais amorosos. Mas neste dia, além da magia que traz por si só o gesto, o quarar é um acontecimento privilegiado: molhados e ensaboados, os lençóis de diferentes formas e tamanhos, estendidos sobre pedregulhos, criam uma geometria feita da profusão de cores primárias de tecido popular com estampas semi desaparecidas, irregularmente desbotadas pelo gasto. O inesperado concretismo brejeiro de uma instalação ao ar livre. Do alto de uma escada, cada um tomará seu tempo para contemplar aquela paisagem, nascida de seus gestos. Depois da pausa virão o enxaguar e o torcer, últimos atos que se fazem na beira do mar. Na volta, esta etapa da estratégia completa-se com o repassar e o dobrar dos lençóis velhos, montando-se pilhas coloridas de grafismo variado. O puído ganha um frescor e uma dignidade. E o trabalho se encerra.
Lavar, quarar e repassar o passado. Primeiro, os lençóis novos, o aconchego de um lugar para o nome e, seu avesso, a singularidade de um sonho. Conforto de estar sendo visto e acolhido. Esboço invisível de um território de onde se vislumbram possíveis. Então, já mais protegidos contra o perigo de contaminar-se do desvalor de tudo, revisitar o passado. Desdobrar e redobrar a memória: reativar a memória doce, a sensação fugaz de um território se fazendo na alma, o prazer e o sonho, contra os efeitos colaterais da memória amarga de uma alma desde sempre prisioneira de uma identidade-refugo. Voltar a dobrar o passado, já com as feridas quem sabe mais lavadas, seu veneno mais neutralizado e partículas de sonho rememoradas. Finalizar a visita à memória deixando tudo cuidadosamente dobrado e guardado.
É a própria subjetividade que passa por esta ressignificação: lavada, quarada, repassada e dobrada, ela se constitui como um território mais habitável. “Lavei a alma”, comenta uma das meninas na conversa que reuniu o grupo ao final da experiência, por iniciativa do educador1.
A proposta da parceria entre A Quietude da Terra e o Projeto Axé insere-se no ideário da religação arte e vida, utopia que acompanha a modernidade na arte desde sua fundação e para além dela, recolocando-se em novos termos na contemporaneidade. Sua maneira própria de inserir-se neste horizonte parece passar fundamentalmente por um desafio: fazer com que a arte tenha um efeito disruptivo na subjetividade da criança que vive na rua, de modo que ela possa apropriar-se da lucidez cortante que o trauma de sua condição social lhe dá, para lutar contra a desvitalização que este mesmo trauma provoca, quando se permanece enredado em seu terror. E reciprocamente, que este desafio coloque para o artista uma exigência de problematização do próprio estatuto da arte. Alguns artistas fizeram deste desafio o eixo de seu projeto. Teria sido Rivane um deles? Como teria se operado em sua proposta este trabalho sutil de desintoxicação do desejo?
A artista parte de materiais que povoam o universo de hábitos domésticos os mais prosaicos, como aliás em muitos de seus trabalhos anteriores. No entanto, diferentemente dos trabalhos anteriores, apenas alguns materiais desvinculam-se aqui de suas funções e, portanto, dos gestos que os acompanham – palitos não são usados para limpar dentes, mas para cravar o nome nas barras de sabão; óleo e temperos não são usados na cozinha, mas para preencher os sulcos de modo a destacar os nomes. Desta vez, a maior parte dos materiais e ações preservam sua função e são descontextualizados apenas no tempo e no espaço. No tempo, porque hábitos ancestrais praticamente em desuso, eles são aqui trazidos para o presente. No espaço, porque eles não acontecem na casa, seu habitat natural, mas no âmbito de um projeto cultural. A água de rio foi substituída por água de mar, onde a lavagem não vinga: o sabão de coco, no salgado, não espuma e as bacias de alumínio, levadas pelas ondas, desaparecem.
Esta ínfima diferença de estratégia promove uma diferença significativa no resultado do trabalho. É que, desta vez, problematizar o hábito, não visa apenas a suspensão denunciadora de seu sentido ordinário – sentido exclusivamente instrumental dos materiais, sentido exclusivamente pragmático das ações, repetição mecânica e desalmada dos gestos, etc. –, de modo a mobilizar a percepção de seu sentido estético. Aqui, se quer explicitar igualmente o sentido sócio-político impregnado nas ações e nos materiais através dos quais estas se fazem: a violência da miséria, o abandono, a injustiça social, e seu efeito tóxico, o desprazer de viver.
No entanto estamos longe do proselitismo que só serve para aquietar a má-consciência. Na doutrinação, o outro não existe efetivamente, a relação se dá com um personagem imaginário, que também no imaginário será salvo pelas boas ações e belas idéias do militante. Nenhuma circulação de afeto entre eles, nenhum contágio, nenhum encontro, apenas um respeito politicamente correto onde ninguém sai do lugar, com exceção da culpa, que com essa estratégia é expulsa de cena, pelo menos por um tempo. Diferentemente de um trabalho de denúncia e conscientização do sentido sócio-político impregnado nas ações cotidianas, tal como acontece na doutrinação, o que se pretende aqui é favorecer a libertação dos efeitos nefastos deste estado de coisas na alma de quem o vive. Criar as condições para reativar o lúdico, o afetivo e o poético nos gestos cotidianos e, consequentemente, nos territórios existenciais que se produzem através deles. Convidados pelo monitor a perguntar-se “o que é arte?”, na reunião de fechamento do trabalho com Rivane, uma das meninas pondera: “arte é a beleza que está em tudo que a gente faz todos os dias”. Reencantar o mundo.
Esta libertação sutil requer uma relação onde o outro exista. Os gestos cotidianos evocados na proposta da artista são portadores de uma carga afetiva, que impregna a memória tanto dela própria, quanto daquelas crianças. Ao compartilhar esta memória, derrubam-se momentaneamente as barreiras identitárias que separam, no imaginário, artistas e crianças sem teto, distensionando os conflitos sociais que travam o afeto. Uma empatia genuína se estabelece entre eles, arma indispensável na luta pela reversão do desvalor que enfraquece aquelas vidas. Isso aconteceu, segundo Rivane, nas “pequenas ações em que a experiência era efetivamente trocada”, “nos dias mais absurdos e desprogramados”, “nos espaços em branco”... Movimentos fugazes, quase imperceptíveis, mas não menos poderosos.
Mobilizar o sentido estético das ações e materiais que compõem os hábitos domésticos, não deixa de ser a meta nesta proposta da artista. No entanto, a operação ganha aqui implicações mais fortes, pois a estética manifesta-se intrinsecamente associada à ética e à política. Ética, porque resgatar a poesia dos hábitos cotidianos é inseparável do resgate de sua dignidade, essencial na cura da desqualificação, causadora da intoxicação afetiva que enfraquece e imobiliza. Política, porque reativar a potência criadora da vida é resistir contra a humilhação, cujo efeito é exatamente miná-la. Uma resistência política que opera no invizível.
É no coração do desejo e da subjetividade dos participantes que a proposta se realiza: arma sutil de interferência no social. A arte se reconecta efetivamente com a vida, reassumindo sua função de crítica social encarnada.
Esta foi a estratégia que Rivane desenvolveu para a parceria entre A Quietude da Terra e o Projeto Axé em seu convívio cotidiano com os meninos, experiência que compartilhei por alguns dias. O sentido de meu ensaio é o registro deste processo: bastidores, ou melhor, entranhas de uma exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia, que deverá acontecer alguns meses depois, junto com o lançamento do livro/catálogo. O desafio da exposição, será encontrar a via de inscrição, no espaço institucional da cultura, do trabalho desenvolvido com os meninos ao longo dos sete meses. Cada artista deverá buscar um modo de expressão formal do problema que perpassou sua experiência, em diálogo com a arte contemporânea, suas questões, seus materiais, suas fórmulas, suas linguagens, suas invenções. Cada um deverá encontrar meios de contornar certos perigos que rondam propostas deste tipo – tais como estetização fetichizadora, folclorização romântica, alucinação militante –, soluções de facilidade que esvaziariam o projeto de sua singularidade, seu sentido, seu valor.
As obras expostas na mostra serão portanto aparas de um processo de criação rearranjadas para este fim (não é este, aliás, o estatuto de toda obra de arte?). Algumas serão deixadas nos bastidores, sem qualquer rastro na cena do museu. No caso de Rivane, será posto de lado o bordado, demasiadamente referido na arte contemporânea a uma suposta escritura feminina, esterilizado em seu uso por impregnação excessiva deste sentido indigente. A obscenidade de justificar a arte pelo gênero, valendo-se para isso da má-consciência. Pela mesma razão, os bonecos de pano sairão igualmente de cena.
É verdade que também de lençóis abusou-se nesta direção empobrecedora, mas estes Rivane decide assim mesmo manter. É que, para ela, eles preservariam na exposição o sentido que tiveram no processo: o alerta sensível para a aspereza de dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito, na vida de quem não tem direito ao repouso. Mas é principalmente por seu valor formal que a artista irá privilegiar os lençóis: depurados dos bordados de nomes e dos desenhos de sonhos, uma geometria branca inesperada poderá apresentar-se ao olhar. Sem os nomes, porque insculpidos nas barras de sabão de coco, eles teriam encontrado uma formalização mais feliz do que bordados: “o exercício da composição dos blocos, o raciocínio geométrico, a caligrafia dada em função de um campo retangular pequeno”, observa Rivane. Sem os sonhos, porque se o exercício de desenhá-los serviu para mobilizar a percepção do sonhar e instaurar um espaço para esta experiência na alma dos meninos, mesmo que fugaz, no contexto de uma exposição tal sentido certamente se perderia. Manter os desenhos torna-se então mera redundância, pois o lençol já traz em si virtualmente a memória de todos os sonhos.
Há também, portanto, sobras do processo que permanecerão na exposição: lençóis molhados, lençóis empilhados, imagens do lavar e do quarar, composições de sabão de coco com os nomes inscritos. Aparas que se desdobram, agenciadas a novos materiais e gestos aos quais serão de algum modo associadas, imprimindo ao trabalho outras direções.
De elementos novos, Rivane irá introduzir basicamente, o pular elástico: brincadeira tradicional da infância brasileira2, que a artista reviveu por acaso com os meninos, num daqueles momentos desprogramados, espaços em branco inesperados numa tarde qualquer, em que se deu a magia de uma experiência compartilhada. A que vem esta aproximação entre o pular elástico, o lavar roupa em beira de rio com barras de sabão e o quarar sobre a relva, que Rivane imaginou para a exposição?
Para a artista, a aproximação tem dois sentidos. A possibilidade de o pular elástico contaminar os afazeres domésticos, o que daria visibilidade ao sentido lúdico que os permeia. Mas é principalmente do ponto de vista formal, que esta vizinhança lhe interessa. Tanto o elástico estendido da brincadeira, quanto o lençol, formam figuras geométricas. Igualmente, nos dois casos, é no movimento dos corpos que se desenha e redesenha sua forma. No elástico, o movimento do corpo que serve de suporte e do corpo que salta; no lençol, o movimento do corpo que dorme, que sonha e que faz amor; mas também do corpo que, na lavagem, o torce, retorce, bate, estende e cria um campo geométrico nos gestos de quarar, repassar, dobrar e empilhar.
Terá Rivane conseguido manter nos objetos expostos a vibração vital do processo que os configurou? Terá conseguido resistir nesta passagem ao apelo por um formalismo reducionista que o sistema da arte dirige à alma do artista para acolhê-lo em seus salões?
Este tipo de problemática não é estranha à obra de Rivane. É com o prosaico de substâncias, materiais e coisas ínfimas que povoam o cotidiano, que a artista faz obra. No rastro da vida que pulsa imperceptível nestas partículas anônimas, a artista traça seus desenhos sutis, com ou sem controle, memória de um processo ou atualidade de devires. Mundo e arte misturam-se em seu trabalho.
A experiência no projeto A Quietude da Terra II pode ter levado a artista a ampliar o alcance de seu problema. O que teria aproximado, na imaginação de Rivane, a brincadeira do elástico do ato de lavar roupa em beira de rio e quarar sobre a relva que ela compartilhou com os meninos? Provavelmente o fato de serem, todos eles, gestos ancestrais. Dá para imaginar que experimentá-los teve o sabor do tempo que dissolve a cegueira do hábito e, com isso, expõe a intimidade que existe entre corpo e formação de universo. Generosa oportunidade para nós observadores, para a artista, e talvez para as crianças, de redescobrir que gestos constituem espaços e demarcam territórios de existência, aquilo que provê um sentimento de si e a possibilidade de inserção no mundo. Revela-se que produção estética e produção da existência podem ser plenamente coextensivas. Corpo e subjetividade incorporam-se à mistura de mundo e arte que Rivane vinha fazendo. A vida está em obra.
Não é evidente que este problema encontre um modo de formalização na exposição, nem mesmo que esta seja uma questão para a artista. Impossível saber. De todo modo, na memória do encontro de Rivane com os garotos, reata-se realidade e poesia.
Quarar a alma
Dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito – provavelmente um dos momentos mais ásperos na vida de um morador de rua. É a privação do ritual que uma vez por dia instaura uma pausa na realidade e forma um nicho mental, protegido do mundo, suas exigências, suas tormentas. Repouso do corpo e do espírito, território do sonho, fonte de energia e ainda, em algumas culturas, alcova da entrega amorosa. Da casa burguesa à tenda nômade, varia o ritual singular através do qual um cenário deste tipo toma corpo a cada noite, mas seja qual for sua configuração ele sempre existe. Quando deixa de acontecer é a crueldade de estar lançado no mundo sem trégua, perigo sempre eminente, tensão de um estado infindável de alerta, desassossego. Experiência certamente mais cruel ainda, quando quem mora na rua é uma criança: paroxismo do desamparo de um menino que perdeu (ou sequer chegou a ter) a garantia da proteção amorosa do adulto, importante ingrediente para formar a proteção amorosa de si mesmo, o mais íntimo dos territórios. Dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito, é o que Rivane Neuenschwander escolhe problematizar. O lençol será o material privilegiado em sua estratégia que se estenderá por seis semanas.
Início dos trabalhos. A artista pede que cada menino crie um auto-retrato num boneco de pano. Sem exceção, uma refinada percepção de si aparece corporificada em todos eles. A primeira etapa da estratégia se completa com uma seção de fotos de cada um segurando contra o corpo o boneco de si mesmo. Há naquelas imagens algo mais do que a clássica foto de infância para um álbum de família: torna-se palpável o lugar que cada um recorta para si no visível, mínimo indispensável para que cada um possa acessar seu lugar em trânsito no sonho.
Na seqüência, Rivane pede que tragam uma roupa de cama velha, composta de uma a três peças, para trocá-la por um jogo novo, completo, todo branco, página ou tela sobre a qual se fará o trabalho. No lençol de cima, cada um escreve e, em seguida, borda o próprio nome, com ou sem sobrenome; no lençol de baixo, cada um desenha ou escreve um sonho ou pedaço de sonho, passado ou atual, um desejo, uma fantasia, procurando ocupar toda a extensão do lençol. Uma vez inscritos nomes e sonhos, os lençóis são cuidadosamente dobrados, deixando à vista, no lençol de cima, o nome e, no de baixo, um fragmento de sonho.
Fragmentos de sonho, face invisível do nome, sua verdadeira consistência. É quando o nome designa um território em construção, work in progress de um sentimento de si que se cria e recria com os vestígios da experiência num corpo que pôde tornar-se vulnerável. Nada a ver com uma suposta identidade, além de que imutável e, pior ainda, irremediavelmente desqualificada. Reativar o sonhar e a memória do sonho, tão tolhidos naquelas existências: segunda etapa da estratégia.
Depois é o trabalho com sabão de coco, daqueles de lavar o delicado. Cada um cria uma composição feita de barras de sabão, blocos onde serão diagramadas as letras do nome, em sulcos escavados com palito de dente e preenchidos com temperos em óleo de cozinha. O auto-retrato feito de boneco de infância e fragmentos de sonho, conteúdos de um nome até aqui escrito e bordado, a partir de agora ficará também gravado. Finda a terceira etapa da estratégia.
Os meninos estão prontos para aproximar-se da memória amarga associada aos lençóis velhos: memória da privação de tudo, que culmina com a privação do próprio direito ao descanso, sem o qual não há sonho. Memória da humilhação e seus efeitos colaterais: o desvalor de si, a descrença no futuro, a paralisia do desejo. Memória do desamparo e do medo.
São convocados então os lençóis velhos: última etapa desta singular estratégia. O grupo se dirige à praia do Museu de Arte Moderna da Bahia onde os lençóis serão lavados na beira do mar, como se fazia em beira de rio antigamente, e se faz hoje ainda em alguns poucos lugares. As mesmas bacias de alumínio, os mesmos velhos gestos de ensaboar, esfregar, bater na pedra e quarar. “Quarar”, magia de um gesto através do qual a força humana alia-se à força do sol para eliminar as impurezas que o olho não alcança e tornar os tecidos mais amorosos. Mas neste dia, além da magia que traz por si só o gesto, o quarar é um acontecimento privilegiado: molhados e ensaboados, os lençóis de diferentes formas e tamanhos, estendidos sobre pedregulhos, criam uma geometria feita da profusão de cores primárias de tecido popular com estampas semi desaparecidas, irregularmente desbotadas pelo gasto. O inesperado concretismo brejeiro de uma instalação ao ar livre. Do alto de uma escada, cada um tomará seu tempo para contemplar aquela paisagem, nascida de seus gestos. Depois da pausa virão o enxaguar e o torcer, últimos atos que se fazem na beira do mar. Na volta, esta etapa da estratégia completa-se com o repassar e o dobrar dos lençóis velhos, montando-se pilhas coloridas de grafismo variado. O puído ganha um frescor e uma dignidade. E o trabalho se encerra.
Lavar, quarar e repassar o passado. Primeiro, os lençóis novos, o aconchego de um lugar para o nome e, seu avesso, a singularidade de um sonho. Conforto de estar sendo visto e acolhido. Esboço invisível de um território de onde se vislumbram possíveis. Então, já mais protegidos contra o perigo de contaminar-se do desvalor de tudo, revisitar o passado. Desdobrar e redobrar a memória: reativar a memória doce, a sensação fugaz de um território se fazendo na alma, o prazer e o sonho, contra os efeitos colaterais da memória amarga de uma alma desde sempre prisioneira de uma identidade-refugo. Voltar a dobrar o passado, já com as feridas quem sabe mais lavadas, seu veneno mais neutralizado e partículas de sonho rememoradas. Finalizar a visita à memória deixando tudo cuidadosamente dobrado e guardado.
É a própria subjetividade que passa por esta ressignificação: lavada, quarada, repassada e dobrada, ela se constitui como um território mais habitável. “Lavei a alma”, comenta uma das meninas na conversa que reuniu o grupo ao final da experiência, por iniciativa do educador1.
A proposta da parceria entre A Quietude da Terra e o Projeto Axé insere-se no ideário da religação arte e vida, utopia que acompanha a modernidade na arte desde sua fundação e para além dela, recolocando-se em novos termos na contemporaneidade. Sua maneira própria de inserir-se neste horizonte parece passar fundamentalmente por um desafio: fazer com que a arte tenha um efeito disruptivo na subjetividade da criança que vive na rua, de modo que ela possa apropriar-se da lucidez cortante que o trauma de sua condição social lhe dá, para lutar contra a desvitalização que este mesmo trauma provoca, quando se permanece enredado em seu terror. E reciprocamente, que este desafio coloque para o artista uma exigência de problematização do próprio estatuto da arte. Alguns artistas fizeram deste desafio o eixo de seu projeto. Teria sido Rivane um deles? Como teria se operado em sua proposta este trabalho sutil de desintoxicação do desejo?
A artista parte de materiais que povoam o universo de hábitos domésticos os mais prosaicos, como aliás em muitos de seus trabalhos anteriores. No entanto, diferentemente dos trabalhos anteriores, apenas alguns materiais desvinculam-se aqui de suas funções e, portanto, dos gestos que os acompanham – palitos não são usados para limpar dentes, mas para cravar o nome nas barras de sabão; óleo e temperos não são usados na cozinha, mas para preencher os sulcos de modo a destacar os nomes. Desta vez, a maior parte dos materiais e ações preservam sua função e são descontextualizados apenas no tempo e no espaço. No tempo, porque hábitos ancestrais praticamente em desuso, eles são aqui trazidos para o presente. No espaço, porque eles não acontecem na casa, seu habitat natural, mas no âmbito de um projeto cultural. A água de rio foi substituída por água de mar, onde a lavagem não vinga: o sabão de coco, no salgado, não espuma e as bacias de alumínio, levadas pelas ondas, desaparecem.
Esta ínfima diferença de estratégia promove uma diferença significativa no resultado do trabalho. É que, desta vez, problematizar o hábito, não visa apenas a suspensão denunciadora de seu sentido ordinário – sentido exclusivamente instrumental dos materiais, sentido exclusivamente pragmático das ações, repetição mecânica e desalmada dos gestos, etc. –, de modo a mobilizar a percepção de seu sentido estético. Aqui, se quer explicitar igualmente o sentido sócio-político impregnado nas ações e nos materiais através dos quais estas se fazem: a violência da miséria, o abandono, a injustiça social, e seu efeito tóxico, o desprazer de viver.
No entanto estamos longe do proselitismo que só serve para aquietar a má-consciência. Na doutrinação, o outro não existe efetivamente, a relação se dá com um personagem imaginário, que também no imaginário será salvo pelas boas ações e belas idéias do militante. Nenhuma circulação de afeto entre eles, nenhum contágio, nenhum encontro, apenas um respeito politicamente correto onde ninguém sai do lugar, com exceção da culpa, que com essa estratégia é expulsa de cena, pelo menos por um tempo. Diferentemente de um trabalho de denúncia e conscientização do sentido sócio-político impregnado nas ações cotidianas, tal como acontece na doutrinação, o que se pretende aqui é favorecer a libertação dos efeitos nefastos deste estado de coisas na alma de quem o vive. Criar as condições para reativar o lúdico, o afetivo e o poético nos gestos cotidianos e, consequentemente, nos territórios existenciais que se produzem através deles. Convidados pelo monitor a perguntar-se “o que é arte?”, na reunião de fechamento do trabalho com Rivane, uma das meninas pondera: “arte é a beleza que está em tudo que a gente faz todos os dias”. Reencantar o mundo.
Esta libertação sutil requer uma relação onde o outro exista. Os gestos cotidianos evocados na proposta da artista são portadores de uma carga afetiva, que impregna a memória tanto dela própria, quanto daquelas crianças. Ao compartilhar esta memória, derrubam-se momentaneamente as barreiras identitárias que separam, no imaginário, artistas e crianças sem teto, distensionando os conflitos sociais que travam o afeto. Uma empatia genuína se estabelece entre eles, arma indispensável na luta pela reversão do desvalor que enfraquece aquelas vidas. Isso aconteceu, segundo Rivane, nas “pequenas ações em que a experiência era efetivamente trocada”, “nos dias mais absurdos e desprogramados”, “nos espaços em branco”... Movimentos fugazes, quase imperceptíveis, mas não menos poderosos.
Mobilizar o sentido estético das ações e materiais que compõem os hábitos domésticos, não deixa de ser a meta nesta proposta da artista. No entanto, a operação ganha aqui implicações mais fortes, pois a estética manifesta-se intrinsecamente associada à ética e à política. Ética, porque resgatar a poesia dos hábitos cotidianos é inseparável do resgate de sua dignidade, essencial na cura da desqualificação, causadora da intoxicação afetiva que enfraquece e imobiliza. Política, porque reativar a potência criadora da vida é resistir contra a humilhação, cujo efeito é exatamente miná-la. Uma resistência política que opera no invizível.
É no coração do desejo e da subjetividade dos participantes que a proposta se realiza: arma sutil de interferência no social. A arte se reconecta efetivamente com a vida, reassumindo sua função de crítica social encarnada.
Esta foi a estratégia que Rivane desenvolveu para a parceria entre A Quietude da Terra e o Projeto Axé em seu convívio cotidiano com os meninos, experiência que compartilhei por alguns dias. O sentido de meu ensaio é o registro deste processo: bastidores, ou melhor, entranhas de uma exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia, que deverá acontecer alguns meses depois, junto com o lançamento do livro/catálogo. O desafio da exposição, será encontrar a via de inscrição, no espaço institucional da cultura, do trabalho desenvolvido com os meninos ao longo dos sete meses. Cada artista deverá buscar um modo de expressão formal do problema que perpassou sua experiência, em diálogo com a arte contemporânea, suas questões, seus materiais, suas fórmulas, suas linguagens, suas invenções. Cada um deverá encontrar meios de contornar certos perigos que rondam propostas deste tipo – tais como estetização fetichizadora, folclorização romântica, alucinação militante –, soluções de facilidade que esvaziariam o projeto de sua singularidade, seu sentido, seu valor.
As obras expostas na mostra serão portanto aparas de um processo de criação rearranjadas para este fim (não é este, aliás, o estatuto de toda obra de arte?). Algumas serão deixadas nos bastidores, sem qualquer rastro na cena do museu. No caso de Rivane, será posto de lado o bordado, demasiadamente referido na arte contemporânea a uma suposta escritura feminina, esterilizado em seu uso por impregnação excessiva deste sentido indigente. A obscenidade de justificar a arte pelo gênero, valendo-se para isso da má-consciência. Pela mesma razão, os bonecos de pano sairão igualmente de cena.
É verdade que também de lençóis abusou-se nesta direção empobrecedora, mas estes Rivane decide assim mesmo manter. É que, para ela, eles preservariam na exposição o sentido que tiveram no processo: o alerta sensível para a aspereza de dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito, na vida de quem não tem direito ao repouso. Mas é principalmente por seu valor formal que a artista irá privilegiar os lençóis: depurados dos bordados de nomes e dos desenhos de sonhos, uma geometria branca inesperada poderá apresentar-se ao olhar. Sem os nomes, porque insculpidos nas barras de sabão de coco, eles teriam encontrado uma formalização mais feliz do que bordados: “o exercício da composição dos blocos, o raciocínio geométrico, a caligrafia dada em função de um campo retangular pequeno”, observa Rivane. Sem os sonhos, porque se o exercício de desenhá-los serviu para mobilizar a percepção do sonhar e instaurar um espaço para esta experiência na alma dos meninos, mesmo que fugaz, no contexto de uma exposição tal sentido certamente se perderia. Manter os desenhos torna-se então mera redundância, pois o lençol já traz em si virtualmente a memória de todos os sonhos.
Há também, portanto, sobras do processo que permanecerão na exposição: lençóis molhados, lençóis empilhados, imagens do lavar e do quarar, composições de sabão de coco com os nomes inscritos. Aparas que se desdobram, agenciadas a novos materiais e gestos aos quais serão de algum modo associadas, imprimindo ao trabalho outras direções.
De elementos novos, Rivane irá introduzir basicamente, o pular elástico: brincadeira tradicional da infância brasileira2, que a artista reviveu por acaso com os meninos, num daqueles momentos desprogramados, espaços em branco inesperados numa tarde qualquer, em que se deu a magia de uma experiência compartilhada. A que vem esta aproximação entre o pular elástico, o lavar roupa em beira de rio com barras de sabão e o quarar sobre a relva, que Rivane imaginou para a exposição?
Para a artista, a aproximação tem dois sentidos. A possibilidade de o pular elástico contaminar os afazeres domésticos, o que daria visibilidade ao sentido lúdico que os permeia. Mas é principalmente do ponto de vista formal, que esta vizinhança lhe interessa. Tanto o elástico estendido da brincadeira, quanto o lençol, formam figuras geométricas. Igualmente, nos dois casos, é no movimento dos corpos que se desenha e redesenha sua forma. No elástico, o movimento do corpo que serve de suporte e do corpo que salta; no lençol, o movimento do corpo que dorme, que sonha e que faz amor; mas também do corpo que, na lavagem, o torce, retorce, bate, estende e cria um campo geométrico nos gestos de quarar, repassar, dobrar e empilhar.
Terá Rivane conseguido manter nos objetos expostos a vibração vital do processo que os configurou? Terá conseguido resistir nesta passagem ao apelo por um formalismo reducionista que o sistema da arte dirige à alma do artista para acolhê-lo em seus salões?
Este tipo de problemática não é estranha à obra de Rivane. É com o prosaico de substâncias, materiais e coisas ínfimas que povoam o cotidiano, que a artista faz obra. No rastro da vida que pulsa imperceptível nestas partículas anônimas, a artista traça seus desenhos sutis, com ou sem controle, memória de um processo ou atualidade de devires. Mundo e arte misturam-se em seu trabalho.
A experiência no projeto A Quietude da Terra II pode ter levado a artista a ampliar o alcance de seu problema. O que teria aproximado, na imaginação de Rivane, a brincadeira do elástico do ato de lavar roupa em beira de rio e quarar sobre a relva que ela compartilhou com os meninos? Provavelmente o fato de serem, todos eles, gestos ancestrais. Dá para imaginar que experimentá-los teve o sabor do tempo que dissolve a cegueira do hábito e, com isso, expõe a intimidade que existe entre corpo e formação de universo. Generosa oportunidade para nós observadores, para a artista, e talvez para as crianças, de redescobrir que gestos constituem espaços e demarcam territórios de existência, aquilo que provê um sentimento de si e a possibilidade de inserção no mundo. Revela-se que produção estética e produção da existência podem ser plenamente coextensivas. Corpo e subjetividade incorporam-se à mistura de mundo e arte que Rivane vinha fazendo. A vida está em obra.
Não é evidente que este problema encontre um modo de formalização na exposição, nem mesmo que esta seja uma questão para a artista. Impossível saber. De todo modo, na memória do encontro de Rivane com os garotos, reata-se realidade e poesia.