A VALSA DA DESMEMÓRIA - trabalho sobre Cardoso Pires
"–Não tenho palavras para descrever isto! Deveria estar um poeta no meu lugar!"
Carl Sagan (1934-1996), Contacto;
"Memória: função geral de conservação de experiência anterior, que se manifesta por hábitos ou por lembranças; tomada de consciência do passado como tal; lembrança; (...) recordação; (...)"
A memória é responsável por tudo o que sentimos do passado, por tudo o que somos no presente, e o que iremos ser, com outras memórias necessariamente, no futuro.
As lembranças da nossa juventude, das aventuras que tivemos, das vezes que fugimos das saias da mãe, em direcção ao campo proibido, mesmo ao lado do quintal permitido, pensando descobrir um mundo novo... a recordação do cheiro do campo, do som da água a cair no pátio, o sabor a ferrugem da água fresca na boca, doseada pelo calor do sol nas costas... a vontade de viver, a sensação que o tempo não existe, que a hora é um conjunto de eternos minutos, e que o dia só acaba quando, sentados no parapeito da garagem vizinha, assistimos ao render do sol, que, invariavelmente, irá aparecer de novo. Tudo isto de poder descrever agora, aquilo que já foi, devemos à memória.
No entanto, também lhe devemos a recordação de doenças tidas, de erros cometidos, de sanções às quais nos submeteram, e que só mais tarde percebemos porquê, a recordação da morte de queridos, que desaparecem, tendo sido sempre, até aquela data, como a hora e o sol...
À memória devemo-lhe o facto de saber o que é o tempo. A escola encarrega-se, com o tempo, de dizermos, inconscientemente, "Já estou no quinto ano!", ou parafraseando um amigo dos meus pais, "Não acredito! Como ele está grande! Sabes, eu lembro-me de ti quando tu eras pequenino, assim deste tamanho... – tabelando a baixo do joelho – Eu andei contigo ao colo! Não te lembras de mim?! Claro que não, eras tão pequenino... agora já estás um homenzinho!". A noção de espaço, de pertença, de passado... a memória.
Com o tempo, invariavelmente, as lembranças aumentam, não só em número como de intensidade. "A tomada de consciência do passado como tal" é real, sendo as recordações mais marcantes: é a entrada dos amores e dos desencontros.
Os primeiros amores aparecem, ingenuamente, e como convenção ou contracto, chamamos de namorada a alguém que nada nos diz, mas também nada nos pergunta!
O Secundário aparece com a força de que o tempo é algo que existe, e que é um bem escasso. Os sonhos de ser alguém, de ser como o alter–ego, aparece, ou adoptamos os sonhos que nos são propostos ou até impostos. No entanto, as sensações, por fim conscientes, é que nos movem, sendo as namoradas reais... os desamores quase fatais!
Imaginemos por um instante, que perdemos a memória, ficando sem saber o nosso nome, o nosso passado, sem sentido de pertença, sem noção de espaço nem de tempo, tornando esse mesmo instante incomensurável... sem a lembrança da nossa juventude, do sabor da água enferrujada, sem saber o que é ler, nem escrever. Imaginemos que a dada altura, não lembramos que amamos uma mulher que sempre nos amou. Imaginemos o que sente essa mulher, que nos ama consciente e inconscientemente, ao ser confrontada com um "Quem és tu?" silencioso, falado por um olhar distante de encontro com o lado oposto do quarto do hospital, um olhar consciente e seco, embora com a mão pertencente desse olhar seja tocada por outra, sem que esse saiba porquê. Imaginemos que perdemos a memória, e todos os objectos se tornam desconhecidos, sem utilidade nem finalidade aparente, denominando–os por palavras inventadas ou com outras que designam coisas totalmente diferentes.
O vácuo, o vazio, o nada, como algo consistente, que nos sustende na realidade dos outros. "Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior".
Esta sensação viveu-a, o já saudoso, José Cardoso Pires, aquando de um acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada.
Sem poder escrever, sem poder ler, sem poder falar, sem poder comunicar, tendo sido a sua vida feita para comunicar.
A angústia de ter-se perdido em si, de já não saber quem se foi, levou-o a considerar-se um outro que não ele. A repulsa de si mesmo por ter existido, mesmo de forma acidental, um outro que não ele, de se ter esquecido que amava Edite, revolta-o, fazendo da De Profundis, Valsa Lenta, uma obra de catarse, de tentativa de arrependimento, quer perante Edite, como se a tivesse traído no seu amor sincero e profundo, quer perante os seus amigos. Penso que nunca se perdoou por ter sido corpo dessa traição, apesar de acidental e sem vontade própria.
No entanto, o De Profundis, Valsa Lenta é um livro que transcende a vertente de catarse do autor, remetendo-nos para um confronto entre discursos: o cientifico e o artístico.
Tendo sido José Cardoso Pires um mestre no discurso estético, mas um leigo na matéria de neurologia, transpôs, para esta obra, o seu testemunho sobre a desmemória, até agora só vista na alteridade, por olhos moldados pelo rigor cientifico, por forma a que originasse um discurso de acordo com os traços do paradigma epistomológico.
Porém, o regresso de José Cardoso Pires ao pleno das suas faculdades, caso raro quando alguém sofre um acidente vascular cerebral, permitiu-lhe remontar e escrever um testemunho, dentro do domínio estético, tendo em conta apenas o que sentiu, e não o que memorizava o relatório clínico, resultando um precioso documento cientifico, pois centra-se no que sente/pensa o paciente, e não na reacção do aflito perante certos estímulos.
Pode-se assim dizer, que a De Profundis, Valsa Lenta é uma obra que estabelece uma ponte entre o domínio científico e o estético, algo que só assente num discurso livre, subjectivo, único, próprio de um maleável paradigma criativo, seria possível. Por outras palavras, só sendo obra de arte é que surgiria tal possibilidade de uma estrutura pênsil, entre os dois domínios.
Por outro lado, esta obra de arte tem como ponto concomitante, para a outra margem, a roupagem de memória, de "dissertação científica, literária ou histórica" , nunca esquecendo que no plural, memórias, será "escrito narrativo em que se compilam factos presenciados pelo autor ou que este tomou parte" , como é, também, o caso, como frisou, em estilo de ressalva, no desfecho da obra, José Cardoso Pires: "Memória, Memória Descritiva e, daí, Memória de uma Desmemória poderia chamar-se a este relato se o rigor cientifico me tolerasse um título de metáfora tão esguia e o gosto da escrita o não rejeitasse por exibicionismo fácil. Todavia, culpa minha, foi na memória ou na tragédia da memória que, com o maior ou menor erro, concentrei o acidente vascular cerebral que acabo de redigir.
Se esse enforcamento é aceitável do ponto de vista neurológico não sei, mas foi a experiência sofrida que mo ditou na interpretação forçosamente diletante em que a tentei descrever" .
Por ser uma obra de arte, sujeita à subjectividade da interpretação do espectador, ao momento da recriação pela interacção com o espectador, retiro e guardo, na minha memória, não só a catarse do autor, não só o diálogo entre os dois domínios, mas também, a evidência, que por piores que sejam as lembranças que a memória guarda, serão sempre melhores do que uma "desmemória", que nos atira para um nada, sem história, sem sentimento de pertença... no fundo, para a solidão.