As contingências da existência humana, por vezes, se revelam mais fantásticas do que a ficção mais delirante. Tal fato tive oportunidade de testemunhar, quando da feitura de um “trabalho de campo” para a disciplina Antropologia das Sociedades Contemporâneas. A trajetória desse trabalho final serve como alegoria do que Geertz, em “A Interpretação Das Culturas”, considerou o processo do “tornar-se humano” via cultura (cultura entendida como um conjunto de mecanismos simbólicos extra-somáticos para controle do comportamento). O Homem (melhor, cada homem), nesse texto de Geertz, aparece no mundo como um animal incompleto (já que não é guiado, como os outros animais, por instintos fortemente coativos), extremamente versátil, potencialmente apto a viver inúmeras “vidas” e a realizar um infinito rol de ações; no entanto, ele vive apenas “uma vida”, na extensão da qual realiza um número limitado de ações – além disso, torna-se também um indivíduo, algo singular, cuja completa compreensão escapa à capacidade dos demais humanos. Esse duplo processo (de limitação das possibilidades e de singularização complexa) ocorre sob a égide não de uma Cultura abstrata e genérica, mas de uma cultura específica e “concreta” – o animal humano, ao encontrar em uma cultura os instrumentos capazes de preencher o “vácuo” entre seus limitados instintos corporais e o vasto mundo desconhecido e, ao encontrar no seio dessa cultura um “locus” particular (através de contingências ou da própria vontade), torna-se enfim um homem. Mas qual seria a ligação entre esse conceito de cultura e o trabalho final em cujas páginas esse parágrafo se insere?
Uma vez proposto o “trabalho de campo”, eu me encontrava na mesma situação do animal humano de Geertz – havia infinitas possibilidades a serem exploradas. Paulatinamente o número destas diminuiu drasticamente, à medida que procurou-se relacionar o trabalho com os meus referenciais simbólicos mais imediatos – as Relações Internacionais (que podem ser consideradas vagamente uma “cultura”). Tal direcionamento, entretanto, não foi suficiente – as contingências (leia-se limitação do tempo e “condições de trabalho”) fizeram com que um “trabalho de campo” inicialmente focado em comunidades de imigrantes acabasse, sucessivamente, por se voltar para uma análise do circo como “locus da identidade pós-moderna” e, frustrada a alternativa circense, se fixasse enfim no espaço social do Zoológico. A culminância do processo de “individualização” do trabalho representou uma ruptura com o enfoque original; não obstante, guardou deste algo do seu significado – a partir da perspectiva do “outro” transplantado para uma terra estrangeira e do artista de circo, nômade numa sociedade de sedentários, pretendia-se compreender a identidade pós-moderna, “apátrida”, dos habitantes dos centros urbanos atuais – o grupo pretendia conhecer-se um pouco mais! O espaço do Zoológico também se insere nessa problemática pós-moderna – de uma forma menos direta do que o estrangeiro ou o nomadismo, porém.
O que será feito nos parágrafos seguintes, portanto, é fruto de um processo cumulativo de descrição e reflexão, gerando um produto final, à primeira vista, totalmente diverso do projeto original – no entanto, sucessivas investigações poderiam revelar um traço de identidade fundamental entre as propostas precedentes e este texto final. Tal constatação guarda algo da fenomenologia – na medida que foram as relações “vis-a-vis” deste que vos fala com meus orientadores que geraram as idéias posteriormente “institucionalizadas” (ainda que só a última vingasse de forma definitiva) – e da hermenêutica, na medida que encontra-se o “sentido oculto” da similaridade no seio do “sentido aparente” da diferença temática.
O olhar desatento (de uma primeira visita) sobre o Zoológico revela, antes de mais nada, um espaço social rigidamente organizado, aparentemente harmônico e totalmente integrado ao contexto urbano no qual está localizado – a Pampulha, uma região considerada “locus” do lazer (ócio). As pessoas que lá transitam – sejam funcionários ou visitantes – assemelham-se a sombras chinesas, tal é o caráter plano e impessoal que delas emana. As atrações – os animais menos tímidos – monopolizam a atenção dos passantes, ao mesmo tempo que são alvo da indiferença indisfarçada dos funcionários. O trajeto do visitante é quase sempre retilíneo, assemelhando-se ao passeio por um “shopping center” ecológico – com a vantagem de evitar vendedores incômodos e praças de alimentação lotadas. Um quadro de nítida ordem, bucolismo e auto-suficiência, portanto, é oferecido aos olhar incauto do visitante despreocupado, como se este atravessasse um “Panóptico” de Bentham – ninguém (nem os animais!) o observa, mas ele observa a todos em sua tediosa rotina de aparecer e desaparecer atrás de fileiras de árvores ou currais imensos (e onde estão os bois, diria algum cínico) – construído por Durkheim em meio a uma floresta...Um local, portanto, pouco propenso a servir de espelho para as contradições identitárias da pós-modernidade (ou algo do gênero).
Essa impressão não resistiu, porém, quando da feitura das entrevistas com funcionários e visitantes. A simplicidade quase insuportável das aparências desapareceu no plano do discurso, felizmente, desvelando aos olhos (agora surpresos) do investigador todo um contexto rico em contradições. Geertz estava, decerto, correto em afirmar que “o objetivo da Antropologia é o alargamento do universo do discurso humano”. Ainda que diversas respostas fossem muito similares (foi quase uma unanimidade a consideração do Zoológico como local de lazer e de encontro com a natureza), a referência social mais marcante no discurso das pessoas foi a crítica (ou a menção) ao aumento do preço dos ingressos do Zoológico, servindo como instrumento de seleção dos visitantes pelo critério de renda (essa última afirmação não é uma inferência dos autores desse trabalho, mas a transcrição de diversos discursos, o que é surpreendente – nunca subestime a sagacidade humana, mesmo a dos “objetos de pesquisa”)...A “função social” do Zoológico – diversão popular e complemento à Biologia apreendida na escola – transmuta-se em uma forma de lazer mais elitista, o que é deveras preocupante. O tratamento dispensado pela administração aos ambulantes também sofreu severas críticas – as quais mostraram que a ordem e a harmonia, afinal, era relativas, mantidas apenas por relações desiguais de poder.
O “teatro humano” no contexto do Zoológico tornou-se mais nítido. Os funcionários, antes sombras, vultos que flutuavam daqui para mais adiante, tornam-se pessoas, seres corpóreos, cada um com sua história particular (e toda história, afinal, é a história de um corpo). Uns trabalhavam por opção, outros por necessidade (semelhança com o trabalho de campo ?); alguns já faziam parte da paisagem há 20 anos, outros mal contabilizavam meses; alguns eram fãs do Gorila, outros do Leão...Figuras humanas fantásticas, como o palhaço que decidiu atuar na entrada do Zoológico para divulgar seu trabalho circense ou o monitor, ex-dono de uma indústria de lapidação, exilado numa paisagem tão diversa do seu “locus” anterior (e ele não parecia deslocado)...As identidades, antes indistintas (eram os funcionários visitantes entediados?), tornaram-se singulares num mesmo contexto. Tais identidades, entretanto, não são entes monolíticos fechados em si mesmos, imutáveis – elas se transformam acompanhando as mudanças do ambiente e dos outros agentes. A decadência de que fala o ambulante não é apenas percebida nos espaços vazios em um ambiente tão vasto, mas outrora (experiência pessoal do autor dessas linhas) bastante mais cheio; ela é visível na amargura conformada do ambulante e se vincula ao suspiro da vendedora de bebidas, saudosa da freguesia que deixou de frequentar o local devido ao aumento de preços...
Mesmo com todas estas restrições, é inegável que o Zoológico continua a realizar (de forma mais restrita) a sua “função social” – diversão a preços relativamente baixos. Casais de namorados, famílias em piqueniques, crianças correndo, visitantes de primeira “viagem” algo deslumbrados...todos se integrando, ainda que de forma fugaz, ao ambiente. A beleza estética (por vezes obscurecida pelo odor típico dos zoológicos) é deveras reconfortante, ainda que o calor não dê trégua um minuto sequer. Pode-se perder horas a fio curtindo um ócio reconfortante, mesmo que o visitante esteja longe das jaulas/gaiolas, com a vista perdida entre árvores e cadeiras de restaurante. Escapismo? Com certeza. Mas ninguém pode ser antropólogo durante todo o dia. Uma hora “de la siesta” tem suas recompensas, não só em termos de descanso. É na despreocupação que o olhar aprimora algumas de suas faculdades – observar aquele passante desconhecido pode trazer novas dimensões à investigação. Cada parada (para uma foto, um lanche ou uma discussão rápida) significou a oportunidade de dar novos rumos ao “trabalho de campo”. Foi numa delas que surgiu a idéia de buscar significados ocultos no discurso das pessoas entrevistadas – até então, o viés do trabalho era visivelmente fenomenológico e/ou funcionalista.
Numa perspectiva hermenêutica (utilizando um olhar mais “treinado”, portanto, o que ocorreu na segunda visita), é possível buscar o significado oculto nos discursos de funcionários e visitantes. A menção frequente do “contato com a natureza”, longe de revelar algum resquício de Romantismo saudosista, pode ser melhor interpretada como uma tentativa do urbanóide atual retomar as “raízes” perdidas no processo de Modernização há priscas eras, voltando a ser portador de uma identidade “orgânica”, completa (fragmentada esta nos dias atuais, devido à multiplicidade de fidelidades paralelas que a vida moderna cria). O “passeio pelo Zoológico”, como o deus romano Janos, apresenta duas faces simultaneamente: uma de estranhamento e outra de familiaridade – o estranhamento frente à “natureza” (um fóssil na metrópole?) é compensado pela intensa intervenção humana sobre o espaço (em teoria) característico dos animais. Não é, com efeito, o tão citado “mundo animal” o que é observado num Zoológico – mas sim um espaço destinado aos animais pelos homens, que o cria de acordo com a interpretação que os homens têm das necessidades dos mesmos animais. O traço antropomórfico é perene – a casa do Gorila se assemelha a uma cabana rudimentar, bem como a da Pantera e da Onça. O fosso dos Jacarés se assemelha mais a um jardim – o próprio Zoológico pode ser descrito como um “jardim do Éden” da Sociologia positivista...
Pode-se afirmar, com alguma certeza, que tal caráter de planejamento incentiva a ida dos visitantes, afogados no “caos” da metrópole, na medida que lhes proporciona uma mistura cuidadosa de exotismo escapista e segurança reconfortante; à brutalização da vida nas grandes cidades, corolário da Modernidade, opõe-se (aparentemente) um “processo civilizatório” implícito (não jogar lixo no chão, não alimentar os animais etc.), apologia da Modernidade racional (o domínio do Homem sobre a Natureza), tentativa de recompor identidades fragmentadas e ritual que busca revigorar a própria Modernidade. O Zoológico, assim, é um instrumento de um processo social contraditório – a Modernidade – não se opondo tacitamente ao caráter da vida urbana, servindo mais como um complemento desta. O sucesso dessa empreitada civilizatória torna-se mais provável quando os visitantes passam a se identificar com algum animal em especial – o Gorila, o Leão, a Pantera, as Cobras etc. – fazendo com que o mundo “animal” do Zoológico, rigidamente ordenado, seja visto como um reflexo da sociedade humana (esta, precariamente ordenada)...A sociedade pós-moderna, assim, pode ter sua coesão regenerada via Zoológico, reanimando o sonho durkheimiano de uma sociedade de “solidariedades orgânicas” mais sólidas...
Fecha-se assim o ciclo de investigações, com o achamento da posição do Zoológico no espaço social dos centros urbanos da atualidade, através da busca de significados ocultos no discurso das pessoas que lá trabalham ou que por lá transitam e de uma tentativa de “descrição densa” do ambiente; tal constatação, em alguma medida, realizou o intento primordial desse trabalho de final de semestre, proporcionando-me um grau maior de auto-conhecimento, na medida que o “locus” do Zoológico na (pós) Modernidade abre espaço para reflexões sobre a posição de cada indivíduo nesse mesmo contexto, bem como sobre as forças que, partindo dos indivíduos (ou não), tentam recompor identidades fragmentadas ou, aproveitando-se dessa indecisão que a fragmentação identitária manifesta nos indivíduos, manobram sistemas simbólicos a fim de criar maior coesão social...
A Etnografia, caso tomemos como referência o trabalho de Geertz, é melhor definida como texto. Tal perspectiva é assumida pelo autor desse trabalho. Um texto, sem sombra de dúvida, envolve alto grau de subjetividade (por se tratar de uma interpretação feita sobre a interpretação de outras pessoas), ainda que não possa prescindir dos “pés no chão” da experiência de campo e das referências metodológicas. Mas é a subjetividade que romperá as fronteiras entre o conteúdo que o autor pretende comunicar e a compreensão do leitor – buscar um grau infinito de objetividade é buscar um distanciamento desnecessário e improvável entre autor e leitor, comunicando que o texto não se tornará, para o leitor, alguma forma de auto-conhecimento; é uma tentativa de impor ao leitor o ponto de vista do autor, como se este último fosse o bastião da sabedoria, da objetividade e não houvesse “semeado um campo arado previamente” (interpretação de interpretações)...o autor não é o único senhor de suas palavras, pois estas refletem a interpretação do autor sobre a interpretação prévia de outrem, e isso pode ser dito ad infinitum...
Esse relatório final do “trabalho de campo”, portanto, não pretende ser visto como um produto objetivo, completo e auto-suficiente, nem jamais permitirá o esgotamento do tema. Outros investigadores que porventura forem ao Zoológico realizar seus trabalhos obterão dados diferentes e, certamente, o resultado final de suas investigações diferirá em muito da presente obra. Essas poucas linhas não pretenderam jamais delimitar o “esqueleto, sangue/carne e alma” da vida social, tal como se propôs Malinowski em relação às ilhas Trobriandt...O que houver de semelhança entre esse trabalho e quaisquer outros que se debruçarem sobre o espaço social do Zoológico pode ser creditado aos referenciais metodológicos. As diferenças, finalmente, poderão ser compreendidas através de uma metáfora artística – em Escultura, os instrumentos são os mesmos, bem como a matéria-prima; o que fará uma pedra de mármore bruto revelar um David ou um Rodin ou uma Vênus, com esta ou aquela perspectiva, será o artífice.
BIBLIOGRAFIA
BENTHAM, J. “Panóptico” in REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA vol. 11. São Paulo, 1987
DURKHEIM, E. LIÇÔES DE SOCIOLOGIA – A Moral, o Direito e o Estado. São Paulo, TA Queiroz-Edusp, 1983
GEERTZ, C. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS. RJ, Zahar, 1978
HALL, S. IDENTIDADES CULTURAIS NA PÓS-MODERNIDADE. Rio de Janeiro, DP&A, 1997
MALINOWSKI, B. OS ARGONAUTAS DO PACÍFICO SUL. Diversas edições