Edward Carr, em “The Twenty Years’ Crisis 1919-1939”, debruça-se sobre a crise internacional então corrente, buscando relacioná-la com ciclos históricos de maior amplitude, verificando, ainda, a capacidade explicativa dos instrumentos de análise então disponibilizados pela recém-nascida disciplina das Relações Internacionais. O autor caracteriza a trajetória humana no campo da Política (tanto nacional quanto internacional) como o resultado do embate perene de duas perspectivas (ou “visões de mundo”) que informam a análise e a ação dos homens - a Utopia e o Realismo. A ineficácia dos citados instrumentos de análise - que, mais, teriam contribuído diretamente para a conformação da crise internacional de então - é situada no marco desse confronto entre perspectivas. A disciplina das Relações Internacionais, informada decisivamente em seu nascimento pela perspectiva Utópica, afastou-se cada dia mais dos processos mais comuns da realidade internacional, tendo, portanto, adquirido parca capacidade explicativa. A empreitada do autor, portanto, visa também reformular a disciplina atuando sobre suas próprias vigas mestras. O “timing” do lançamento da obra (1939) nos indica que Carr não imaginava que sua contribuição fosse valiosa somente para os pósteros - é razoável imaginar que o autor fizesse assim uma “conclamação” a seus contemporâneos, antes que o “pior” ocorresse - como, afinal, viria a ocorrer pouco tempo depois. Não obstante, o valor da obra, bem como sua influência, persistem décadas após seu lançamento.
A Parte II de “The Twenty Years’ Crisis 1919-1939” é parte fundamental dessa obra. Para os propósitos da presente resenha, podemos agrupar as muitas subdivisões e temas abordados na Parte II em seis principais “momentos”:
1) A construção da perspectiva Utópica nos tempos modernos e seu transplante para o plano internacional, após o flagelo da Primeira Guerra Mundial (dando, origem, pois, à disciplina das Relações Internacionais, bem como deflagrando os “vinte anos de crise”);
2) O choque entre a perspectiva Utópica moderna e a crise internacional revela a ineficácia da primeira (Carr caracteriza esse momento como o das “brechas” ou “rachaduras” no “edifício utópico”). Necessidade de se encontrar novos instrumentos de análise. Para esse fito, o autor crê que, não sendo suficiente a demonstração da ineficácia prática da Utopia, torna-se necessária a própria demolição do “edifício utópico”, através de aguda crítica informada pela perspectiva Realista;
3) A construção da perspectiva Realista em contraposição à perspectiva Utópica;
4) A demolição do “edifício utópico” pela crítica Realista (demonstração do “jogo de projeção de interesses particulares, contextualizados por detrás dos princípios universais e atemporais” da Utopia). A crítica Realista retira qualquer solidez à própria estrutura do argumento Utópico, explicando-a, em seguida, à luz do próprio argumento Realista;
5) “Crítica da Crítica”: Carr afirma que a crítica Realista é insuficiente para explicar a realidade. O autor submete a própria crítica Realista à crítica, concluindo pela existência de quatro obstáculos insuperáveis para esta perspectiva;
6) Conclusão: Carr localiza o “drama político humano” no eterno confronto entre Utopia e Realismo, ambos incapazes de explicar a realidade por si sós. A Política pode ser entendida como um ciclo incessante de construção da Utopia, derrubada do “edifício utópico” pela crítica Realista, “involução” da mesma crítica Realista e retorno da Utopia.
Inicialmente, Carr data o nascimento tanto da Utopia quanto do Realismo modernos no início do Renascimento, a partir da implosão da “Respublica Christiana” medieval. Este fato representou o esgotamento de um dilatado período de predomínio da Utopia, motivando o surgimento de correntes criticas desta, que se dispunham a construir uma nova compreensão acerca da Política, lançando mão de aguda critica sobre a perspectiva anteriormente vigente. A novidade trazida por Maquiavel à cena do pensamento político não se esgotou na inversão dos conceitos de então - a Política passava a informar a Ética, e não o contrário. Maquiavel patrocinou uma visão causalista da História e situou a validade de seus argumentos no interior da mesma Historia, propondo-se a estudar “principados que realmente existiram” e deles retirar lições para a prática política. A prática passava, pois, a informar a teoria.
O assalto maquiaveliano, propagado por seus herdeiros (Bacon, Hobbes, Bodin, Spinoza etc.) motivou imediata reação no seio do pensamento utópico. Dada a conjuntura de desagregação da unidade política européia fundada num marco religioso (ou seja, de falência prática do argumento da “providência divina”) buscou-se então novo marco, dessa vez secular, capaz de motivar a continuidade da perspectiva em questão. Em consonância com o florescimento das chamadas “Ciências da Natureza” no período, buscou-se analogamente delimitar “Leis da Natureza” que governassem os homens em suas interações políticas - leis apodídicas (universais, atemporais, necessárias), capazes de serem deduzidas dos fatos “naturais” da vida política através da Razão. Estavam lançadas as raízes remotas do movimento Iluminista, marcado por notável otimismo acerca da “perfectibilidade” das ações humanas governadas pela Razão “autônoma”.
Nesse momento, começava a tomar nova forma a perspectiva Utópica da política. A Razão torna-se o tribunal das ações humanas, julgando seus atos com base num padrão acessível a todo indivíduo - indivíduo esse que, dotado de Razão, torna-se o elemento central de toda a análise, em detrimento de instituições e corporações de toda sorte. Não muito mais tarde, porém, uma instituição em especial passaria a ser analisada de forma análoga ao comportamento dos indivíduos - o nascente Estado nacional. Diga-se de passagem, a metáfora do “Estado como indivíduo” foi compartilhada por ambas as perspectivas, Utópica e Realista. Deixemo-la, portanto, de lado para os fins dessa resenha. Retornando a análise da Utopia moderna, verifica-se a consolidação do pensamento desta na obra do filosofo inglês Bentham - sumariada na máxima “a maior felicidade para o maior numero possível”. Realizando a passagem da “razão iluminada” dos intelectuais para o mais prosaico “bom senso” das massas, a nova Utopia ampliava seu “apelo” como leitura da realidade - passando a ser imediatamente acessível a (e inexoravelmente desejável para) todos os seres humanos. Um dos corolários do pensamento de Bentham é a importância conferida à chamada “opinião publica” - se todos os homens podem (e julgam) corretamente, tendo em vista promover o maior dos bens para o maior número possível de contemplados, não pode haver referencial mais correto, nem melhor caminho para a felicidade, do que o somatório de todas as opiniões.
O autor aponta que, não obstante as teses benthamianas tenham encontrado terreno fértil na Inglaterra e outros poucos países liberais no século XIX, seu fôlego foi dos mais curtos. Filósofos, psicólogos e mesmo cientistas políticos liberais (temerosos do estabelecimento de uma “ditadura da vontade” que refletisse o desejo de uma maioria de socialmente desprivilegiados) minaram as bases do argumento de Bentham. Curiosamente, no mesmo período verificou-se o progressivo transplante das teses benthamianas para o plano internacional (com argumentos, por sinal, idênticos aos aplicados no plano da política domestica). Aventaram-se teses relativas à existência de uma “sanção moral” da opinião publica mundial; clamou-se por uma “missão civilizatória” que ensinasse a todos os povos e nações o “caminho da felicidade”. Tais teses foram, no entanto, incapazes de evitar o eclodir da Primeira Guerra Mundial. Esta última, no entanto, conferiria nova forca ao argumento, ao ensejar um movimento de “reconstrução” da estabilidade internacional fundada nos moldes do século XIX (cujo sucesso era tido como derivado do pensamento de Bentham) bem como ao maximizar a influência de um agente notadamente benthamiano, os Estados Unidos da América e seu presidente Wilson.
O autor, em seguida, dedica-se a demonstrar que o argumento benthamiano não possui qualquer valor explicativo a priori, tampouco pode explicar sozinho o “sucesso” que teria ocorrido no século XIX. Uma das pedras angulares da análise de Carr é pela primeira vez empregada: a diferenciação entre uma conjuntura especifica a qual um determinado padrão moral se adequa (podemos nomea-la “afinidade eletiva”) e a eficiência apriorística de um padrão moral supostamente universal. O sucesso do liberalismo no século XIX ocorreu em limitado número de países e deriva diretamente do estágio de desenvolvimento econômico dos mencionados países - não sendo, portanto, explicável pela eficiência “evidente” de um dado padrão moral. Daí o autor retira explicação para o fracasso das tentativas futuras de “exportação” dos modelos liberais para outras partes do mundo.
O foco da análise de Carr, nesse momento, muda para visualizar o imediato pós-Primeira Guerra Mundial, no qual emergiu uma organização (Liga das Nações) destinada a ensejar a solução pacífica dos conflitos entre os estados e a promover a Paz mundial, evitando assim um novo conflito mundial. O autor situa a Liga num momento de fortes tendências Utópicas (já manifesto na Conferencia de Paz de Versalhes, 1919) - ameaçada, portanto, pela tentação de ser instrumento “perfeito” em termos teóricos, mas pouco eficiente em termos práticos (por exemplo, buscando criar um padrão comum e satisfatório de ação para uma multiplicidade de estados desigualmente dotados). Carr considera que a Liga foi criada de maneira auspiciosa - levando em conta a realidade política de sua época (portanto, coerente com a História). Não obstante, seu fracasso torna-se questão de tempo uma vez que as lideranças políticas da época não lhe conferem muita importância. Está aberto o caminho para livre trânsito da Utopia. Uma profecia auto-realizável está a caminho - os líderes que não deram importância à Liga abriram caminho para que utópicos a controlassem e, retirando qualquer possibilidade de sua eficiência futura. Numa crítica deveras ácida, Carr afirma que a Liga se notabilizou desde então pela construção de catálogos de soluções ”razoáveis” para as questões políticas que lhe eram apresentadas.
O naufrágio da Liga é concomitante ao naufrágio do benthamismo no plano internacional. O argumento da “sanção moral” da opinião publica mundial (tido como infalível e/ou predominante, no longo prazo), largamente endossado pela própria Liga, demonstra-se incapaz de evitar a escalada das tensões internacionais, passando o mundo a assistir uma série de invasões e confrontos, ao mesmo tempo que o baluarte do Livre Cambismo internacional - a Inglaterra - renega este princípio tido como fundamental para os utópicos, tudo a partir do mesmo ano de 1931. Paulatinamente o foco da ação internacional volta-se para sanções materiais e militares, mas já é tarde para salvar a Liga. Cada vez menos crédito e conferido a ação conjunta dos estados e cada vez menos sentido faz a busca do Bem Comum, num ambiente internacional crescentemente hostil. Digna de nota é a constatação de Carr acerca da disparidade entre o discurso utópico de Wilson e as ações dos Estados Unidos no plano internacional. Esse argumento será retomado, de forma decisiva, no curso dos parágrafos seguintes.
A resposta da Utopia à espiral de tensão no plano internacional assusta pelo simplismo - trata-se meramente de decidir se os líderes políticos foram negligentes na aplicação dos princípios (supostamente) universais (ou seja, a tese da traição), se não os compreenderam corretamente (a tese da tolice) ou se simplesmente os líderes agiram movidos pelo interesse egoístico (a tese da mesquinhez). Carr contrapõe ao simplismo da réplica Utópica a complexidade dos fatos, desvelando o imenso abismo existente entre a pregação teórica Utópica e os problemas a serem resolvidos. Ele propõe, assim, a hipótese da falência da Utopia moderna. No entanto, tal argumento requer uma verificação prévia: imaginava-se que a Utopia havia sido bem sucedida no sec.XIX, conquanto se mostrasse falha no sec.XX. O autor, então, debruça-se sobre o sec.XIX, buscando analisar como se deu tal sucesso e se este realmente se deveu a méritos da Utopia.
O ponto de partida da análise de Carr é um dos problemas fundamentais da Política - por que os homens obedecem? O autor localiza na História duas respostas distintas, associadas respectivamente às perspectivas Utópica e Realista. Para os primeiros, os homens obedecem porque agem no marco da promoção do Bem Comum (fundado numa “intuição do correto”), sacrificando seus interesses particulares. Para os últimos, os homens obedecem porque incide sobre eles a ameaça, velada ou explícita, do uso da forca física por parte de outros homens. Os Utópicos não têm como explicar racionalmente o curso de ação que leva os homens a obedecerem, ao contrario dos Realistas. Para os primeiros, a Política deriva da Ética - o contrário ocorre para os últimos, portanto. Carr considera ambas as alternativas dignas de objeção, na medida que as “conquistas históricas da Razão” impõe-se à perspectiva Realista, conquanto os utópicos não consigam justificar racionalmente seu curso de ação. A Utopia, no entanto, aparentemente resolve seu impasse com a identificação entre o Bem Comum e o interesse particular de cada indivíduo (ou estado, levada a cabo metáfora já mencionada anteriormente). Se os indivíduos, racionalmente, tem acesso ao Bem Comum e este coincide com seus interesses, está plenamente explicado o curso de ação humano. A desarmonia seria fruto de cálculo incorreto ou mesmo de ignorância... Surge, daí, a chamada teoria da Harmonia de Interesses, o segundo pilar da Utopia moderna, ao lado do benthamismo (cuja fragilidade conceitual já foi demonstrada).
Confrontado com o aparente sucesso utópico, via Harmonia de Interesses, no sec.XIX (manifesto principalmente no predomínio da economia dita “clássica”, de cunho smithiano, promotora do princípio do “Laissez-Faire”), Carr identifica, de forma brilhante, uma afinidade eletiva entre o estágio de desenvolvimento capitalista na Inglaterra de então, o grupo que controlava o poder político na Inglaterra da época e o contexto internacional de então (no qual a Inglaterra ocupava papel central). Dessa conjunção - cenário ideal para o florescer da tese da Harmonia - derivou a idéia de que a mesma tese seria válida para todos os países, em qualquer época. A prosperidade, afinal, parecia infinda! Não foi o que se verificou, no entanto. A sobrevivência da tese da Harmonia, para Carr, não seria fundada na sua eficiência, mas na sua apropriação ideológica por um grupo dominante cujos interesses eram diretamente atendidos pela contínua adesão da sociedade como um todo à tese (no sec.XIX, podemos identificar tal grupo como sendo a classe dos industriais-colonialistas).
A tese da Harmonia de Interesses prosperou por algum tempo, com suas promessas de prosperidade infinda, enquanto havia terreno farto para a expansão econômica, enquanto a Inglaterra não teve rivais sérios em seu caminho e enquanto as “fricções” do Nacionalismo não se fizeram vigorosas (pois os proponentes da Harmonia de Interesses eram entusiastas apoiadores do príncipio da autodeterminação dos povos). Ainda podia-se pensar que, buscando promover seus interesses, os estados promoviam concomitantemente o Bem Comum. Uma vez claro que os interesses de estados como Alemanha e Estados Unidos eram melhor atendidos com protecionismo econômico do que com livre comércio, e uma vez estes tornando-se concorrentes sérios ao papel privilegiado ocupado pela Inglaterra, a tese da Harmonia foi balançada em suas bases. Seus proponentes tentaram mantê-la viva incorporando o argumento da competição interestatal não como “caso desviante” mas como “normalidade”, em sintonia com a “maré determinista” então em voga na metade do século XIX, dentro e fora das Ciências Sociais (Hegel, Marx, Darwin). Á Harmonia de Interesses seria, assim, acoplada uma “hipótese auxiliar” - o Bem Comum eqüivaleria aos interesses dos setores “competitivos” da sociedade. Estava justificado o Imperialismo. Pouco a pouco, revelavam-se os interesses particulares por detrás do discurso universalista dos Utópicos, diria Carr.
As diversas formas de “darwinismo” social e similares, mais que teorias da superioridade de povos e nações, legou para a teoria política internacional uma herança de extensas reações à tese da Harmonia de Interesses. Pressão doméstica dos setores potencialmente “perdedores” na competição social fizeram com que os estados estabelecessem cada vez mais “redes de proteção”, bem como os estados desfavorecidos na competição internacional tornaram-se conscientes da necessidade de adotar medidas de proteção, se “fechando” no plano internacional. A Harmonia de Interesses implicava uma ameaça potencial à sobrevivência de estados e populações e perdeu rapidamente adeptos. Não foi sem razão que a tese passou logo a constituir quase que exclusividade de britânicos e norte-americanos (aliás, povos que quase monopolizavam a produção teórica em Relações Internacionais e campos correlatos, ao contrario de outros povos e estados em situação diversa). Dessa forma, não se verificava que todos os estados fossem igualmente interessados na Paz - talvez aqueles estados que já estivessem numa posição privilegiada o fossem, bem como todos o seriam caso estivessem na mesma posição. Nem tampouco o argumento do “internacionalismo” era desprovido de “segundas intenções”. Por trás de todo país que conclama os demais a unir forças em nome da “solidariedade internacional” em suas várias formas, esconder-se-ia um candidato a “hegemon”...
Carr atinge, através desse lento delinear da trajetória da Harmonia de Interesses, consciência acerca da relatividade do pensamento humano. Princípios universais escondem interesses particulares, formados numa conjuntura específica (algo que a critica marxista já havia apontado). Os utópicos não atentam para esse fato e, mais relevante, preferem identificar seu interesse particular com o Bem Comum do que fazer o contrário, num sutil cinismo analítico que não é desprovido de conseqüências relevantes. O mesmo comportamento é verificado no plano econômico. O Nacionalismo econômico protecionista era condenado pelos utópicos como um “tiro no próprio pé” dos seus proponentes. No entanto, estes recusavam-se a crer que tal comportamento fosse justificável para atender os interesses de países que não eram centrais (ou que um dia desejassem sê-lo), diferentemente da Inglaterra. E que a própria Inglaterra já lançara mão de medidas protecionistas, num passado remoto.
O autor leva o argumento utópico ao seu limite, ataca seus pontos centrais, expondo-os contra o pano de fundo da crise internacional que somente se agrava. A resultante desse processo? Carr demonstra a falência do edifício utópico, a ineficiência de suas prescrições e o crescente descrédito que esta recebeu. Mas, nas palavras do próprio Carr, apontar as brechas e insuficiências do edifício utópico não seria suficiente para um adequado entendimento da realidade - a crítica (Realista) deve, sim, demonstrar a fragilidade estrutural da Utopia, demolindo-a por completo para permitir a reconstrução do entendimento humano em bases mais sólidas. Hora de abordarmos a critica Realista, pois.
O autor retoma as conclusões que foi obtendo a partir do desgaste das teses Utópicas - de que a Historia é uma seqüência de causas e efeitos racionalmente apreensíveis, conquanto não sejam dirigidos pela imaginação (como pensavam os utópicos). Outra conclusão - a teoria surge para justificar a prática, bem como a Moral é produto da estruturação do poder político em uma determinada época. O pensamento humano, ainda, é relativo e condicionado. O autor, retomando o princípio de sua analise na Parte II, faz remontar todas essas teses à destruição da unidade política medieval, centradas na figura de Maquiavel. Esse pensador seria, portanto, o fundador da perspectiva Realista? Mais exatamente, seu grande sistematizador, dado que Carr menciona tal perspectiva como sendo uma constante na Historia, apenas desfavorecida no passado por não possuírem grande influência (política) seus proponentes entre os gregos, romanos e medievos.
A perspectiva Realista, desde Maquiavel, teria sofrido significativas alterações dada a incorporação do sentido “progressista” da História ocorrida no sec.XVIII (fato também verificado na perspectiva Utópica, como vimos anteriormente). Diferentemente da Utopia, porém, o Realismo não tinha que se preocupar com um padrão ético universal atemporal - dando, portanto, origem a inúmeras escolas de pensamento que englobaram desde Hobbes e Bodin a Hegel e Marx. O determinismo do sec.XIX não apagou o sentido fundamental Realista de que não há verdade, em termos políticos, fora da História - e que só à luz das lentes desta o passado e o futuro podem, assim, ser julgados. Notável é, ainda, a constatação de que os vitoriosos que a Historia apresenta condicionam o rumo futuro dos acontecimentos - e as teorias que surgem para justificá-los. Influência considerável também exercem os modismos intelectuais e acontecimentos sociais marcantes. A evolução teórica também é, portanto, historicamente governada.
O golpe decisivo - e final, no dizer de Carr - da critica Realista sobre a Utopia não consiste na constatação das muitas incongruências da Utopia (expostas nos parágrafos acima), nem na constatação de que os homens parecem pouco afeitos a viver conforme padrões universais, ou que tal fato seja considerado improvável. O ápice da critica Realista é a demonstração de que os utópicos, supostamente defensores de padrões universais, atemporais e “neutros”, defendem (de forma consciente ou não) na verdade seus interesses particulares, produzidos num determinado contexto social e atendendo aos ditames de determinado período histórico. A leitura dos utópicos da realidade não e uma leitura “universal” ou “ desinteressada” da realidade, nem tampouco uma leitura acurada. Uma vez consolidado tal argumento, desaba a Utopia moderna. Sobre suas ruínas os homens deverão reconstruir seu entendimento da realidade. Estaria aberto, assim, o caminho para que o Realismo explique a realidade por completo, “de uma vez por todas”?
É a partir desse instante que percebemos a originalidade e a relevância da contribuição de Carr para o entendimento das Relações Internacionais em todo o seu vigor. Carr assume uma posição pouco comum - quiçá única - entre os autores que contribuíram para o emergir da perspectiva Realista. Carr considera que o Realismo, conquanto seja necessário e suficiente para demolir o claudicante edifício utópico, é igualmente insuficiente para construir um novo edifício de forma definitiva, não conseguindo explicando, portanto, a realidade de forma completa. O autor acredita que a própria crítica Realista deve ser submetida à crítica, conforme o ocorrido com a Utopia. E a perspectiva Realista não sai incólume desse processo. Vejamos a critica de Carr ao Realismo.
Carr acredita ser impossível, por diversas razões, levar a cabo o que ele chama de “Realismo congruente e concreto”, ou seja, há limites intrínsecos à capacidade do Realismo explicar a realidade política. Inicialmente, o Realismo motiva uma idéia da política como processo infinito, algo incompreensível e inatingível para os homens. Via de regra, autores Realistas acabam por dar o “braço a torcer”, reconhecendo um objetivo finito último da Política - recaindo, no entanto, no erro de localizar tal “telos” fora do processo histórico, tal como ocorre com Marx. Carr aponta que a Política, ao contrario do que aponta o Realismo, é um processo continuo mas que visa a um objetivo finito. Em seguida, ao identificar um forte elemento emocional/irracional motivado pela busca política de objetivos finitos como se estes fossem infinitos (por exemplo, no argumento mobilizador de que haveria “guerras para acabar com as guerras” etc.), Carr vê uma clara deficiência do poder explicativo Realista, incapaz de explicar tal fenômeno. Em seguida, Carr aponta a insuficiência de “espaço” na perspectiva Realista para a realização de julgamentos morais acerca da política. Levado ao extremo, essa insuficiência reifica a realidade e esvazia de qualquer sentido o pensamento objetivista. E, mais importante, autores Realistas nunca deixam de fazer julgamentos de valor e prescrições morais em seus escritos. A própria necessidade de disfarçar interesses particulares em roupagens “universalistas” e “neutras” denuncia o fracasso do Realismo em lidar com a Moral. Cada época, assim, criaria seus valores, conferindo-os valor absoluto e usando a arma da critica Realista para demolir valores concorrentes. Finalmente - falha mais grave, segundo Carr - o Realismo não oferece campo para a ação objetivista e significativa na Política (dada a combinação de determinismo objetivo dos fatos e do relativismo de nossos pensamentos e ações), implicando, em última instancia, que o máximo que podem os homens conhecer da realidade é contemplá-la passivamente (em sintonia com a filosofia de Schopenhauer), conclusão que o autor reputa inaceitável. Dessa forma, Carr finaliza seu argumento na Parte II com a conclusão de que a explicação da realidade não reside exclusivamente nem na Utopia, nem no Realismo. O pensamento político lúcido deve basear-se em elementos tanto de Utopia quanto de Realismo. A História apresenta um caráter cíclico, com ascensão periódica da Utopia, demolida em seguida pela crítica Realista e esta, por sua vez, novamente mostra-se insuficiente para erigir sozinha um novo edifício, ensejando o retorno da Utopia. “O grande drama político dos homens consiste no fato de que a vida política se compõe de dois planos - Utopia (Ideais, Moral) e Realidade (Instituições, Poder) - que jamais se encontram e são mutuamente incompatíveis”. Uma analise, novamente, eivada por imensa originalidade e que distancia Carr não somente dos pensadores de seu tempo, mas de seus “seguidores” Realistas.
Uma análise crítica da contribuição de Carr para as Relações Internacionais não demora a notar lacunas (relevantes) entre sua obra e a obra de autores Realistas considerados seus seguidores. Creio que, por um lado, Carr possa ser considerado um precursor do Realismo, no sentido de que ele foi um dos primeiros a sistematizar vários dos axiomas mais caros a esta tradição das Relações Internacionais. Por outro lado, a riqueza da contribuição do autor supera largamente o escopo da tradição Realista. Paralelismos entre a obra de Carr e outras escolas de pensamento e tradições foram notadas por diversos autores. Chris Brown , por exemplo, qualifica Carr como “quase marxista” (no meu entender, dada a importância com que os constrangimentos do mundo material informam o pensamento dos agentes internacionais, no dizer de Carr, bem como sua análise da Harmonia de Interesses como prática e discurso hegemônicos). Coadunando Carr com a tipologia do Realismo feita por Grieco , vemos menos continuidades do que discrepâncias - dentre as últimas cabendo destaque à não-centralidade do Estado e à aguda continuidade existente entre as esferas interna e externa dos estados. Nesse sentido, se muito, Carr pode ser qualificado como um “Realista excêntrico”, não obstante autores como Burchill não hesitem em qualificá-lo como bastião do Realismo, por notarem insuficiência de argumentação de Carr acerca da relevância da Utopia, mesmo caracterizada a insuficiencia explicativa do Realismo. Outros autores, como Martin Wight - citação feita em texto de Ian Clark - preferem analisar de forma crítica o conteúdo de “The Twenty Years’ Crisis 1919-1939” - situando-o num contexto intelectual (anglo-saxão) que Wight qualifica como “patológico”, severamente afetado pelas mazelas da guerra.
Dessa forma, creio ser digna da qualificação “exagerada” a apropriação do pensamento de Carr feita pelos autores Realistas após a vitoria deste sobre os utópicos (no que foi, para muitos, o primeiro “Grande Debate” das Relações Internacionais). Fazendo uma analogia com a própria obra objeto dessa resenha, a crítica Realista que Carr emprega de maneira bem-sucedida contra os utópicos não faz dele automaticamente um autor Realista, da mesma forma que a “demolição do edifício utópico” não confere à crítica Realista estatuto automático de explicação definitiva da realidade. Insistir em apontar Carr como puro Realista implica, senão ignorar, matizar sobremaneira um dos elementos centrais, senão o elemento central da análise deste - a consideração da Política como composta tanto de Utopia quanto de Realismo, sendo ambas as perspectivas tomadas isoladamente incapazes de explicar completamente a Realidade. Se há insistência na localização de Carr no seio dessa tradição, pergunto: haveria nela lugar para algo como um “Realismo Critico” ou “Teoria Critica do Realismo”? De fato, ignoro. Contudo, não duvido em nada quanto à justiça do adjetivo “crítico” para qualificar Carr. À semelhança da qualificação conferida por Williams & Booth a Kant (Teórico sem Limites) , eu nomearia Carr “Crítico sem limites”.
A guisa de conclusão, confesso ainda que, fosse eu Martin Wight, teria extrema dificuldade em localizar Carr no seio de apenas uma das tradições! Creio, por fim, que o pensamento de Carr supera em escopo o que consideramos Realismo e que ele dificilmente se encaixa em outras correntes teóricas, constituindo, como Kant, quase um “universo paralelo”...e que seria um programa de pesquisa deveras interessante a análise das múltiplas possibilidades de contribuição “carriana” para o estudo das Relações Internacionais.