Anos 1960. A década que não acabou, marco do século XX com suas convulsões e invaginações frenéticas. O apocalipse nuclear ao alcance de dois botões, na crise dos mísseis cubanos. Descolonização afro-asiática, questionando o eurocentrismo nas relações internacionais. Revolução oficialmente cultural na China, informalmente cultural no Ocidente – estudantes às ruas, com o livro de Mao em riste por toda Pequim, nas barricadas do Maio de Paris, tornando-se alvos móveis na Cidade do México, esmagados pelos tanques soviéticos em Praga, em ritos fúnebres nas ruas do Rio de Janeiro. O Homem conquista a Lua. A mulher, o direito à igualdade nas relações íntimas e profissionais. Revolução sexual. Arte Pop e política como estética. Hippies. Fundamentalistas. Revolucionários.
No entanto, desafiando o coro da mudança, Jim Morrison, o xamã do Rock N’Roll, à frente dos californianos Doors, celebrava, em 1967...o FIM. Uma ação entre amigos, uma elogio do derradeiro sensível, não uma mera evocação abstrata, é o que se depreende do verso inicial do fim (1):
“
This is the end
Beautiful friend
This is the end
My only friend, the end
“
Se esgueirando por acordes vagamente orientais a cargo dos companheiros Raw Manzarek, Robbie Krieger e John Densmore (não mais uma novidade no entusiástico frenesi de fusões sonoras do Rock N’Roll de então), Morrison lima as pontas do “sonho hippie” sessentista. Como um Flautista de Hamelin temporão (ou o deus grego Pã), Morrison encarna o arauto do fim dos tempos, não como apocalipse, mas com uma aquiescência cerimonial. Com a pachorra zen dos budistas, ele inverte o sentido das orações, enfatizando, sereno – enfim, o fim. O tempo, Sísifo, eterno ceifador das construções humanas, torna-se visível quando se cerram os olhares. A visão, sentido moderno por excelência, alegoria empregada pelo poeta-xamã para caracterizar o fim. Seria Morrison um leitor singular da Modernidade...Ou apenas mais um bardo hippie turvado pelo espírito dos tempos?
“
Of our elaborate plans, the end
Of everything that stands, the end
No safety or surprise, the end
I ll never look into your eyes...again
“
Entrelaçar diferentes referências culturais é o que mais aproxima Morrison de seus contemporâneos, os hippies da década de 1960 que no entanto são alvo de sua crítica. Um abismo referencial separa o flower power californiano das visões túrgidas e inexoráveis – pois, trágicas – do futuro levada a cabo pelos Doors. O prazer vicário (2) exalado por todos os poros das canções dos Doors, em contraposição ao paraíso hippie, postava-se como uma versão californiana de Satyricon (3). Sem um baixista para sustentar ritmicamente suas canções – digamos, uma rede de proteção – os Doors se lançaram no olho do furação das te(n)soes encruzilhadas de 1960:
“
Lost in a Roman...wilderness of pain
And all the children are insane
All the children are insane
Waiting for the summer rain, yeah
“
Bem a seu estilo, Morrison alterna uma estrofe que toda banda do High-Astbury (4) poderia ter assinado tranqüilamente (“The blue bus/Is calling us”) com uma (sub)versão do mito grego de Édipo (o filho que mata seu pai e desposa sua mãe) ambientada na “Terra da Liberdade”, numa descrição com tons bastante vivazes para nossos dias de massacres em Columbine e Minessotta. A viagem do ônibus psicodélico, lúdica nas canções dos Beatles (5) e Who (6), torna-se uma tragédia grega, sem paralelo com seus contemporâneos. Mais - despida do efeito catártico incutido por um Sófocles (7). Outra navalhada dos Doors, inscrevendo a ferro e a fogo, de forma visceral, mas ainda alegórica (e portanto, velada) o sentido da mudança que seus contemporâneos deixavam nas sombras. A criação, por vezes, implica destruição.
“
The killer awoke before dawn, he put his boots on
He took a face from the ancient gallery
And he walked on down the hall
He went into the room where his sister lived, and...then he
Paid a visit to his brother, and then he
He walked on down the hall, and
And he came to a door...and he looked inside
Father, yes son, I want to…
Mother, I want to…
“
Morrison, pois, não está fazendo uma referência aos gregos para retomar os pontos de vista originais destes, mas uma apropriação, uma releitura. Como veremos a seguir, uma releitura moderna. Algo similar, a princípio, à releitura do mito grego operada por Sigmund Freud e tornada elemento basilar da psique humana. Mas, como de costume em se tratando de Jim Morrison, há mais para se ver do que desvelam os olhos.
Freud, não obstante um crítico da Razão (8), levou a cabo ele próprio uma abordagem estruturalista, caracterizando de forma logocêntrica (9) seu “Princípio do Prazer” e instituindo o Ego como mecanismo regulador das pulsões caóticas, à semelhança do Estado (num esquema mecanicista de fazer inveja a Sir Isaac Newton). Morrison, em seu introspectivismo crítico, por seu turno, retira as ataduras estruturalistas ao pensamento de Freud. À primeira vista, esse movimento poderia ser interpretado como uma reconexão do Id “emancipado” a um misticismo ancestral mais afeito à obra de Jung (10). Morrison, em transe xamânico, parece transfigurar sua proposta de uma consciência coletiva, telúrica:
“
Ride the snake, ride the snake
To the lake, the ancient lake, baby
The snake is long, seven miles
Ride the snake...he s old, and his skin is cold
”
No entanto, ao levar, conscientemente (que ironia) ao limite da realização o “complexo de Édipo” (antropologicamente, uma das poucas características comuns às sociedades humanas), Morrison não pretende restaurar um passado idílico, seja a “Idade de Ouro” dos conservadores britânicos (11), seja o “bom selvagem” de Rousseau. Nas trevas, Morrison vê uma nesga de luz. A promessa de emancipação irrestrita vem aninhada entre trêmolas nuvens, qual Valquírias em cavalgada (12). É uma anti-epifania moderna em suma:
“
Can you picture what will be
So limitless and free
Desperately in need...of some...stranger s hand
In a...desperate land
”
Sua proposta é uma ruptura antropocêntrica, moldada na gramática do gênio renascentista encarnado por Michelangelo – uma ruptura informada, por exemplo, pelas mesmas preocupações estéticas que levaram o mestre florentino, segundo seu biógrafo Vasari (13), a ignorar as preocupações científicas dos neo-aristotélicos, a perspectiva geométrica de Piero de la Francesca e as teorias homeostáticas de Alberti, na feitura do teto da Capela Sistina. A desproporção das dimensões das figuras de Michelangelo, as violentas contorções do espaço que ele levou a cabo no teto da Capela encontram espelho nas metáforas oblíquas de Morrison e nas reviravoltas súbitas de sentido de seus escritos. Ambos comungavam de uma precedência da expressão em relação à forma e a incerteza é uma presença constante em ambas as obras – como desafio ao espírito, ao dom do Homem (eudaimon). Nesse sentido, Morrison traduz o mito fundador norte-americano da “fronteira” como perdição, existencial, espacial. Os sítios se tornam palcos para uma tragédia anunciada. Não há ouro no fim do arco-íris. Todos os caminhos levam à incerteza:
“
There s danger on the edge of town
Ride the King s highway, baby
Weird scenes inside the gold mine
Ride the highway west, baby
“
Não obstante, Morrison não abraça, como seria esperado, a metafísica neoplatônica (14) que a estética de Michelangelo poderia implicar. O vocalista californiano traça outra de suas curvas abruptas, nesse sentido. Como Nieztsche, Morrison têm uma visão pessimista da sociedade humana em geral e de seu tempo, em particular. Mas, seguindo o filósofo alemão (e ao contrário, por exemplo, de Kurt Cobain (15)), o porta-voz dos Doors crê na possibilidade da redenção humana através da Arte. Morrison, curiosamente, também estende a mão para o anátema de Nieztsche, Sócrates, levando a cabo uma espécie de maiêutica em suas canções, porém uma maiêutica despida de pretensões racionalistas. A Verdade oculta em nós não é desvelada através de uma Razão transcendental, nem corresponde a um ordenamento racional da realidade. Ao mundo das idéias puras de Platão, a serem contempladas asceticamente (causa de severo tormento moral para Michelangelo, prenunciando o dilema barroco entre a carne e o espírito) Morrison contrapõe o poeta e místico inglês William Blake (um crítico do materialismo e racionalismo do século XVIII) e seu sensualismo radical:
”Quando as portas da percepção forem abertas, o Homem verá as coisas como verdadeiramente são – infinitas” (16)
A fuga, nos termos alegóricos de Morrison (sejam as drogas, a morte, o repúdio ao estrelato, a provocação estabelecida com seu próprio público, o isolamento, o hermetismo, a negação dos padrões socialmente admitidos de intimidade), nunca é completa, pois implica um retorno. A fuga, como negação, implica “fim da prisão”, pois um prenúncio para a mudança. A decadência é uma porta aberta (sem trocadilhos) para o novo – um rito de passagem, nos termos de Malinowski (17). “Ir para o Oeste” passagem entre a vida e a morte, em algumas culturas, é bradada a plenos pulmões pelo xamã californiano:
“
The west is the best
The west is the best
Get here, and we ll do the rest
“
Morrison levaria essa idéia ao pé da letra em direção aos anos derradeiros dos Doors, trocando sua imagem de anjo imberbe da psicodelia californiana – como ele mesmo diria, um bibelô da indústria cultural – por um meio-termo entre os arquétipos do “beatnik” e do “bluesman”: longas barbas, forma física prejudicada pelas drogas, cerveja e “junk food”, comportamento anti-social e freqüentes passagens pela polícia, narrativas situadas na Modernidade levando a um destino inevitavelmente trágico emoldurando canções cada vez mais minimalistas. Os clichês do Rock N’Roll e do Blues adquirem nova ressonância, por vezes mântrica, nesse arranjo singular dos cacos à margem dos sonhos manufaturados da indústria cultural perpetrado pelos Doors:
“
C mon baby, take a chance with us
C mon baby, take a chance with us
C mon baby, take a chance with us
And meet me at the back of the blue bus
Doin a blue rock
On a blue bus
Doin a blue rock
C mon, yeah
”
As letras dos Doors, dessa forma, tornam-se um diálogo com o ouvinte, em busca do desvelamento do caos, da tragédia e da ironia da existência humana, subjacentes, contidas pela rotina e pela interdição dos sentidos levada a cabo pelas instituições modernas. Em meio às sombras, Morrison vê em si próprio, e em cada um, uma nesga de luz. Metaforicamente tomando as músicas dos Doors como “tapeçarias sonoras” (caso não apenas de “The End”, mas de “When Music Is Over”, “The Celebration of the Lizard”, “The Soft Parade” etc), concordaríamos, como Caravaggio, que não há luz sem sombras. O Chiaroscuro sonoro de Morrison & Cia., não de forma gratuita, está traduzido nas sombrias capas de seus discos, nos cinemáticos vídeos de seus shows, nas metáforas herméticas e abruptas de suas letras. Das trevas emerge o foco de luz colocado sobre o xamã, o go-between, o Mercúrio dos romanos, amarrando o Moderno ao desconhecido – muitas vezes, a despeito do desgosto de seus contemporâneos, levados às trevas para posterior “reconquista” da luz. Morrison não se vê como mártir, mas afaga uma melancolia casual, dos incompreendidos sarcásticos, ao modo irônico de Voltaire:
“
It hurts to set you free
But you ll never follow me
The end of laughter and soft lies
The end of nights we tried to die
“
Está claro, pois, que a proposta estética dos Doors, não obstante radicalmente crítica, configura-se como narrativa moderna, totalizante. Morrison não renega a Modernidade como tal, mas a reinterpreta. Ele abraça o lado escuro da Lua chamado Modernidade não de maneira apocalíptica, como Benjamin (18), mas como possibilidade de realização, no plano imanente, de caracteres transcendentes do “humano”. Esta ontologia afasta o Rock N’Roll dos Doors de análises feitas nos anos 60, que viam a banda como mais uma tradução da “contracultura” hippie então em voga, influenciada pelo pensamento materialista das diversas correntes do Marxismo (canções de protesto como “Unknown Soldier” e aparentes chamados às armas como “Five To One” foram interpretados nesse sentido – a última, inclusive, associada às barricadas de Maio de 1968 em Paris).
Morrison, no entanto, advogava uma emancipação, através da mudança radical, mas uma emancipação simbólica, fundada no livre-sentir (não no livre-pensar), em faixas como “The End” e “Five To One”. Uma revolução da juventude, não pela juventude, mais facilmente adestrável, constituir a vanguarda do “novo mundo” pós-capitalista, mas por ela já conter em si, e exprimir à flor da pele, os caracteres definidores do “humano” – a potência de Nieztsche (a sensualidade), menos sujeita à interdição do sentido socialmente constituída. Á disciplina processual, doutrinária, da revolução materialista, Morrison contrapõe a ruptura que permite a realização imamente do a priori emancipado reino da sensualidade transcendente – uma ruptura, pois, sedutora. Diferentemente, pode-se dizer, de marxistas como Gramsci, Morrison não transporta a luta de classes da esfera da produção para a “sociedade civil” ou cultura. Ele rompe com a idéia de cultura com “visão de mundo” imanente, capaz de promover uma nova configuração social, em favor da transcendência. The Doors não era o que o senso-comum político diria uma banda “esquerdista” (19).
Da mesma forma, o decadentismo latente na obra dos Doors é dirigido contra-sensualmente em direção oposta à corriqueira operacionalização estética de um, digamos, “ethos” conservador. Os Decadentistas-Simbolistas alheiam o “eu-lírico” de qualquer conexão com outrem, refém de "forças ocultas" esmagadoramente poderosas – as instituições da Modernidade (20). Ao desespero atomístico, quase autista dos reacionários, às epopéias do “eu inerte” à espera de um milagre que o ressuscite, agonizante, sorumbático, Morrison, com sangue nas veias e pulsando de lividez, pressente uma oportunidade de redenção, de libertação, não no sentido gótico de libertação em relação ao mundo, mas de libertação DO e NO mundo. A mudança adquire um sentido positivo, ainda que eivado de morbidez, na obra de Morrison, filho temporão de Baudelaire e Rimbaud. The Doors tampouco era uma banda “de direita”.
As portas dos Doors, permaneceram, pois, abertas para o infinito, para além da rotulação compulsiva, binária, da Modernidade. Críticos do moderno, no moderno, ampliando o campo de possibilidades do moderno. Quanto mais teremos que esperar por novas propostas estéticas de tal robustez, no Rock N’Roll? Um estilo que, de tempos em tempos ouvimos dizer, morreu? Enfim...Remetendo às linhas pregressas, “The End” pode ser apenas o começo para algo maior. O Rock N’Roll ainda tem futuro, mas apenas porque o passado está presente no futuro (21).
“
This is the end
Beautiful friend
This is the end
My only friend, the end
This is the end
“
1. “The End” é a canção que fecha o disco de estréia dos Doors, homônimo, lançado em Janeiro de 1967 – o chamado “Verão do Amor”.
2. Projeção psicológica na qual um indivíduo se compraz com uma atitude alheia – considerada tabu – correspondendo a alguma coisa que esse indivíduo inconscientemente gostaria de ter feito...
3. Obra clássica romana, escrita pelo “árbitro da elegância” Petrônio em 65.
4. Localidade na cidade de San Francisco, EUA, considerada o berço do movimento hippie.
5. “Magical Mystery Tour”, do disco homônimo (1967).
6. “Magic Bus”, do disco homônimo (1968).
7. SÓFOCLES, Édipo Rei. São Paulo: Scipione, 2000.
8. De acordo com o autor austríaco, sua contribuição teria “retirado” o Homem do centro do Universo pela terceira vez, manifestando a falência do projeto iluminista, ao indicar que a não-centralidade da Razão como elemento definidor do comportamento humano (primazia concedida ao inconsciente). As rupturas prévias teriam sido as obras de Copérnico (retirando a Terra do centro do Universo) e de Darwin (colocando o Homem como apenas mais um animal a povoar a Terra).
9. Vide CAMPBELL David “Political Prosaics, Transversal Politics, and the Anarchical World. Challenging Boundaries: Global Flows, Territorial Identities” in SHAPIRO, M & ALKER, H. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996
10. Afinal, o arquétipo Morrisoniano do “Rei Lagarto” possui afinidades inegáveis com a obra jungiana.
11. FLORENZANO, Modesto. As Revoluções Burguesas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
12. A “Cavalgada das Valquírias” de Richard Wagner era utilizada com freqüência na abertura dos shows dos Doors.
13. VASARI, Life of Michelangelo. Ellsworth: Alba House, 2003.
14. Enquanto que Leonardo Da Vinci associava-se ao neo-Aristotelismo (daí sua predileção científica), Michelangelo Buonarroti foi grandemente influenciado pelas correntes neoplatônicas populares na corte de Lourenço de Médicis.
15. Vocalista da banda Nirvana, se suicidou em 1994.
16. BLAKE, William. The Marriage of Heaven and Hell. Miami: University of Miami Press, 1961.
17. MALINOWSKI, Bronislaw K. Magic, Science, and Religion. Garden City: Doubleday, 1954.
18. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
19. Bandas como Rage Against The Machine e System of a Down são comumente caracterizadas assim.
20. Anthony Giddens teria muitas críticas a fazer, nesse sentido. Vide GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
21. Expressão cunhada por Felipe Bicalho durante um dos debates que tivemos oportunidade de travar, a respeito da “temporalidade nas Relações Internacionais”, na UNI-BH em 2004.