“
Dirty old river, must you keep rolling
Flowing into the night
People so busy, makes me feel dizzy
Taxi light shines so bright
But I don t need no friends
As long as I gaze on Waterloo sunset
I am in paradise
Every day I look at the world from my window
But chilly, chilly is the evening time
Waterloo sunset s fine
Terry meets Julie, Waterloo Station
Every Friday night
But I am so lazy, don t want to wander
I stay at home at night
But I don t feel afraid
As long as I gaze on Waterloo sunset
I am in paradise
Every day I look at the world from my window
But chilly, chilly is the evening time
Waterloo sunset s fine
Millions of people swarming like flies round Waterloo underground
But Terry and Julie cross over the river
Where they feel safe and sound
And the don t need no friends
As long as they gaze on Waterloo sunset
They are in paradise
Waterloo sunset s fine
”
(The Kinks – “Waterloo Sunset”)
Subitamente, as bombas de King’s Road nos fazem contemplar a volatilidade e incerteza de viver num mundo alheio às pré-determinações transcendentes. As explosões pulverizam nossa segurança ontológica – no dizer de Anthony Giddens, um contrato mentalmente compartilhado que nos permite lidar com o risco característico da Modernidade. Não temos mais garantia de que as coisas serão como pareciam ser dantes.
Não obstante, os atentados foram recebidos com uma fleuma, diriam os antropólogos de gabinete, tipicamente britânica. Ou, ainda, os atentados do Exército Republicano Irlandês (IRA) teriam operado um processo de adaptação e aprendizado na população, que já teria desenvolvido barreiras simbólicas para não se deixar afetar, na produção da vida cotidiana, por eventos de tal magnitude. Desconfiar de que algo mais teve lugar em Londres é lícito, no entanto, se percebemos que o fenômeno de 7 de Julho de 2005 produziu efeitos bastante diversos daqueles observados pelos atentados de 11 de Março de 2004, que tiveram lugar em outras paragens acostumbradas a conviver com ações desse tipo, Madrid, Espanha.
Se a motivação dos agentes terroristas por vezes se entrelaça com a visão fundamentalista de alguma religião, os efeitos de seus atos são marcadamente seculares – devolvem os homens à inescapável finitude, à materialidade das vísceras e membros amputados, ao sangue que mancha o concreto. A terra não pode ser sagrada, se foi violada, no dizer de Stuart Hall. Ao invés de produzir um Armageddon, ações terroristas reproduzem o humano, demasiado humano de Nieztsche. É um evento catártico, no sentido conferido ao termo pela tragédia clássica dos gregos.
Nada mais eloqüente, nada mais humano, do que o passo silencioso da multidão que seguiu indômita para os pubs ao fim daquela tarde, qual fosse, um dia possivelmente decisivo para um grupo terrorista (e para o governo Tony Blair), indelevelmente trágico para as famílias dos vitimados (e, dias depois, para um pequeno povoado perdido nos confins de Minas Gerais, mas isso é outra história) – mas para os londrinos, era quinta-feira.
Tragédias, conquanto possam ser absorvidas, não vêm desacompanhados de fraturas expostas. Os atentados terroristas levam as pessoas não apenas a tomarem contato com a fragilidade de suas próprias vidas, numa cultura de risco. Outro contrato é questionado, aquele que diz competir ao Estado a proteção de seus cidadãos. Somos confrontados não apenas com a fragilidade da vida humana na Modernidade. Outra moderna invenção, a Soberania, vêm à tona juntamente com os fragmentos dos ônibus de dois andares – aquela relação social fundada sobre o provimento de segurança, por um ente fictício, para uma multidão de indivíduos racionais, criadores dessa ficção, em determinado território.
A Soberania, como qualquer marco ou fronteira, serve como instrumento de demarcação em duas dimensões: define as possibilidades de ação no seu interior e é referencial para relacionamento com o ambiente exterior.
Ações terroristas não obedecem à lógica espacialmente delimitada (soberanamente orientada) das guerras convencionais, prerrogativa exclusiva dos estados nacionais soberanos – elas questionam o espaço da ação social. Suas manifestações são esparsas; sua organização, em redes. Daí parte da dificuldade dos estados em proceder ao desbaratamento de tais entidades.
Mas ações terroristas não apenas demonstram autonomia frente aos liames da Soberania – elas conferem novo significado ao pano de fundo da vida de milhões de cidadãos, simbolicamente acossados, transitando doravante por uma terra de ninguém. Os sinais que, dantes, manifestavam ameaça ao direto fundamental à vida – ataques aéreos, investida de carros de batalha, violação dos lindes por tropas estrangeiras – são dispensados, substituídos por mochilas, barbas, turbantes ou um trivial olhar que suscite angústia, estranhamento.
Ações terroristas tornam o espaço da vida social uma planície virtual, isonômica em suas coordenadas de possibilidades – aquele pub poderia voar pelos ares a qualquer momento, ou seria a loja de departamentos, quem sabe o seu ônibus? A linha simbólica entre combatentes e civis, já definitivamente borrada pelo século XX, torna-se impraticável quando todos, simultaneamente, estão submetidos ao risco constante de serem a bola da vez.
Mais que isso – ações terroristas transmutam indivíduos comuns em bombas ambulantes. Na Babel política, cidadãos passam a não mais se entender, quando um contrato fundado no imperativo da ordem compartilhado por indivíduos pragmáticos, racionais (corolário: segurança ontológica) é substituído por indivíduos desejosos, agindo no marco do juízo privado acerca de sua autopreservação, produzindo incerteza. Uma alegoria filosófica indicaria John Locke cedendo lugar para Thomas Hobbes. Do outro lado da Soberania, se a violência (na escala empregada pelos atentados) deixa de ser um atributo da relação interestatal, é o próprio Estado – e o sistema anárquico que deriva da constituição dos estados – que sofre questionamento.
O próprio Hobbes, melhor do que ninguém, tem uma resposta na manga para tais questionamentos – trata-se de refixar a segurança, traçando novas linhas simbólicas. E foi precisamente dessa forma que os estados nacionais, soberanos, procederam. No plano interno, reforço dos mecanismos de controle, especialmente sobre as minorias (vide imigrantes no Reino Unido e Estados Unidos da América). No mundo da anarquia interestatal, fixação do terrorismo em estados párias via práticas de territorialização e desterritorialização, além da estigmatização dos terroristas como irracionais.
Desta feita, vemos que o questionamento à Soberania, como as marés, pode se converter num reforço dessa invenção moderna. As mesmas marés que trazem à tona podem, eventualmente, refluir. Qual seria o resultado das marés políticas que se fizeram presentes, no mês de Julho de 2005, nas Ilhas Britânicas? Ainda, haveria algum efeito colateral oriundo dessa operação de fixação de ações terroristas no espaço euclidiano anárquico sustentado pela Soberania?
Os estados nacionais buscam lidar com o gênio do Terrorismo prendendo-o na velha lâmpada da Soberania territorial, acesa com o óleo do equilíbrio de poder (entre estados). Os Estados Unidos declaram guerra ao Terror com o apoio de uma coalizão – Reino Unido, Austrália, Itália, Paquistão etc. Essa nova aliança determina potenciais inimigos – o eixo do mal, ou os santuários estatais do Terrorismo (Iraque, Irã, Coréia do Norte, e a lista pode aumentar dependendo da conveniência). O Terrorismo é colocado na agenda das instituições interestatais, tais como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. No mapa traçamos as rotas do teatro de operações: Afeganistão, Iraque, ?
Esse eterno retorno da Realpolitik teve lugar, não coincidentemente, no mesmo quadrante espaço-temporal em que a Soberania havia sofrido dois golpes sutis, mas de efeito potencialmente prolongado: a escolha da cidade de Londres como sede dos Jogos Olímpicos de 2012 por uma organização não-governamental, o Comitê Olímpico Internacional, e os espetáculos de música popular gratuitos do Live 8, que ecoaram por toda a velha cidade, orientados para pressionar os chefes de Estado do G-8, que se reuniriam, ali do lado, na Escócia, para discutir, dentre outras coisas, auxílio financeiro aos países africanos.
Nas palavras do organizador do evento Bob Geldorf, ao contrário do ativismo musical filantrópico dos anos 1980, a proposta do evento de 2005 não era arrecadar donativos para aliviar o sofrimento dos habitantes da África. Tratava-se de trazer à tona alguns matizes por demais esquecidos da relação política mais elementar, a autoridade:
”Não queremos seu dinheiro, e sim sua presença. São as pessoas que escolhem os governantes. A presença delas não é apenas uma forma de se conscientizar e se comover com os problemas vividos por outras pessoas ao redor do mundo – é uma forma de pressionar seus governantes, dizer a eles que as pessoas não estão aquiescendo frente às decisões dos homens de estado. São elas que os colocam nesses cargos. As urnas se farão ouvir mais alto que as guitarras, nos shows do Hyde Park”
O líder do U2 Bono Vox, ecoando Geldorf, chamou o premiê canadense de imbecil por este ter afirmado que os cidadãos canadenses não estavam dispostos a colaborar, imediatamente, para o cumprimento das metas de auxílio externo em relação ao PIB, estabelecidas pela Cúpula do Milênio da ONU. O premiê canadense, aparentemente, recuperava para o debate o papel dos cidadãos como sustentáculo das políticas públicas, dentre elas as políticas exteriores de um estado como o Canadá (no qual as relações exteriores fazem parte do debate público interno – oxalá a moda pegue cá por estas plagas).
Mas o que, enfim, ecoava Vox, senão o desnudamento de uma pressuposição (típica da Soberania) de que os governantes são os únicos autorizados a falar em nome de seu povo? Vox apontou os shows do Live 8 que tiveram lugar no Canadá, e as pesquisas conduzidas paralelamente por organizações não-governamentais, indicando que expressiva maioria dos cidadãos canadenses se mostravam favoráveis a uma mudança de rota na relação do G-8 com a África, bem como apoiavam o cumprimento imediato das metas do Milênio, como indícios de que a presença dos indivíduos contradizia o discurso do premiê canadense. E isso, dito por um estrangeiro, um irlandês que ostenta credenciais de cidadão do mundo. Duplamente estrangeiro – um irlandês, no Reino Unido. Mais – apontando o dedo para um chefe de governo não-britânico, mas formalmente submetido à Coroa de Sua Majestade Elisabeth II. O incidente é revelador dos desvãos, das fraturas simbólicas, das irregularidades ocultas (e acomodadas) pelo véu opaco da Soberania.
Este segundo round de embate simbólico entre presença dos indivíduos e governantes que operam a Soberania, onipresente terminou abruptamente com as bombas de 7 de Julho. Estas interromperam a reunião do G-8, precisamente quando Tony Blair tomava a palavra para a abertura dos trabalhos. Doravante, o discurso da guerra contra o Terrorismo seria célere na ocupação de todos os espaços de debate político disponíveis. E seus porta-vozes – George W.Bush, especialmente, mas Tony Blair, nesse momento, o grande interessado – puderam deixar os incômodos indivíduos em segundo plano, seguindo adiante com a moldagem do alvo de suas políticas – o terrorismo internacional. Nesse ínterim, acabam por prender seus cidadãos numa redoma, cada vez mais assemelhada ao Grande Irmão de George Orwell (sintomaticamente, um autor britânico). Nada de novo no front – vigiar e punir, essas palavras indicam Modernidade, dizia Michael Foucault.
Um cronista do séc.IV teve a felicidade de nos trazer esse relato, referente ao saque de Roma pelos visigodos em 410, bastante ilustrativo ainda 16 séculos depois:
”Por que os bárbaros não quiseram dominar Roma e sim, saqueá-la?”
Esse artefato lingüístico – os bárbaros – correspondia a uma pluralidade de tribos e povos, unidos apenas em sua condição de inferioridade (vide Aristóteles) frente aos civilizados. Alanos, francos, hunos, godos, burgúndios etc. foram desconstruídos em suas peculiaridades e interesses divergentes, pelas práticas discursivas de Roma e reconstruídos, em oposição a esta, como uma só entidade, monolítica, ameaçadora e incontrolável.
Somente desta forma o fausto de muitos imperadores, bem como os sistemas de clientela política que já se mostravam robustos mesmo naqueles dias, puderam ser sustentados, às custas do romano médio, que foi buscar abrigo no campo sob a tutela de patrícios afortunados, dando o pontapé inicial no colonato que desaguaria no Feudalismo. Ao mesmo tempo, a própria Cidade Eterna vinha, já de séculos, incorporando germânicos a seu exército e pagando vultuosas somas para que estes procedessem à defesa das lindes imperais, confrontadas com ameaças ainda maiores. Havia, pois, bárbaros e bárbaros...
Destaque merece ser conferido ao caráter voluntarioso e imprevisível conferido aos bárbaros. Segundo o cronista romano, eles não quiseram dominar Roma, apenas saquear. Que insondáveis desígnios passariam pelas primitivas cabeças daqueles que, de roldão, colocaram a guardiã da civilização, a invencível Cidade Eterna, de joelhos – apenas para se esvair, em seguida? Bom, talvez povos que naturalmente não soubessem governar a si próprios (novamente, Aristóteles) não estivessem muito preocupados com o imperativo da ordem.
Corte para 2005. O chefe de polícia londrino, momentos após os atentados de 7 de Julho, fez-se ventríloquo das crônicas romanas d’antanho:
“Se esperaram o dia seguinte, poderiam os terroristas querer que Londres sedie a Olimpíada?”
Supor que haja uma orquestração de âmbito global, opondo à civilização o terrorismo, e atribuir a esse inimigo uno, indivisível, quase um Deus mortal, caráter volitivo e capacidade de operar globalmente com coesão, coerência, unidade de comando e de controle, não difere em número e grau em relação à análise dos romanos de outrora. O mecanismo de mascaramento e ocultação é o mesmo – causas díspares são reduzidas ao mesmo patamar – a criação de um Estado Palestino fica reduzida à mesma dimensão da morte de um mullah tido como líder espiritual no interior do Afeganistão. E ambas se coadunam sem problemas com a realização dos Jogos Olímpicos de 2012.
Que tal manipulação simbólica seja a plataforma política de Osama Bin Laden é possível, provável até, mas seria uma metonímia (otimista, para Bin Laden) tomar a Al Qaeda como sinônimo (e organizadora, quase soberana) das ações terroristas ao redor do globo. Mais grave é perceber que tal operação – diluir demandas locais sob o manto de um discurso ideológico (supostamente) coerente em âmbito global – equivale a realizar a profecia de Bin Laden, e é precisamente este o efeito obtido pelas práticas discursivas de George W.Bush.
Ao desautorizar críticas à sua guerra contra o Terror, internas e externas, implodindo rotas alternativas (ou estão conosco ou estão com eles) a administração republicana autoriza as ações terroristas da Al Qaeda e reforça as potenciais afinidades eletivas entre esse grupo e outros congêneres. Expectativas díspares passam a convergir, para fins pragmáticos, não apenas no mercado global do emprego não-soberano da força armada, mas dentro dos Estados Unidos da América (por exemplo, indo dos neoconservadores seculares aos fundamentalistas cristãos, passando pelo proverbial complexo militar-industrial e pelas firmas privadas de prestação de serviços de segurança). Os sacrossantos direitos civis são apenas a vítima mais visível dessa rearticulação política na fronteira soberana do interno e do internacional.
A Al Qaeda torna-se um arremedo de Império do Mal, para rejúbilo das viúvas de Ronald Reagan. Como nos idos de 1947, governos com credenciais democráticas já duvidosas ganham fôlego e margem de ação para escorchar ainda mais seus respectivos cidadãos. Não nos olvidemos dos bárbaros úteis, aqueles que são nossa salvaguarda contra as verdadeiras ameaças – monarcas absolutos, teocratas ou meros homens fortes do Oriente Médio e Indostão estão aí para dirimir qualquer dúvida a respeito. Os partidários da civilização não se enojam com tal recuo estratégico.
Tal é o efeito colateral. Ao contrário das bombas de King’s Road – manchando a escatologia com o sangue das vítimas, jogando detritos e vergalhões de ferro sobre a assepsia das grandes narrativas, solenemente desprezando com silêncio e pinchs de cerveja o transe místico, ritual, hipnotizante, associado ao Juízo Final – as práticas da aliança de estados contra o Terror, capineada pelos Estados Unidos, recupera aos escombros da Guerra Fria o espírito cruzadista que prenuncia o Armageddon, o derradeiro, inexorável, confronto entre as forças irreconciliáveis do Bem e do Mal. Algo para deixar atônitos os mais empedernidos defensores da Realpolitik – por detrás do amoral e racional jogo do poder entre os estados, ressurgem antidiluvianas guerras de religião, que conduziram (reza a lenda) ao pragmatismo da anarquia sistêmica encarnado em Vestfália. A vitória na guerra contra o Terror será de Pirro.
Enfim, diria Jean-Paul Sartre, o Inferno são (mesmo) os outros – os indivíduos. Os grandes perdedores das batalhas simbólicas de Julho de 2005, nas Ilhas Britânicas. Mais até do que o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que perdeu seu estandarte da luta mundial contra a Fome para uma multidão de bem-alimentados ouvintes de Rock N’Roll, pouco interessados nas articulações multilaterais do Terceiro Mundo via ONU (e nos encadeamentos que o governo brasileiro imaginou auferir daí em outros foros, como o Conselho de Segurança da própria ONU) e muito interessados em serem reconhecidos como força motriz nas eleições vindouras dos países do G-8. Os africanos, futuramente, poderão nos dizer se agradecerão ao som de Pink Floyd...Ou de Zeca Pagodinho.
Quanto aos indivíduos...Entre Bin Laden, George W.Bush, Tony Blair etc, a quem podem recorrer, senão ao proverbial be afraid? Ou talvez, ecoando Sócrates, optarão pela senda do conhece-te a ti mesmo, encarando os atentados terroristas como oportunidade (atroz, que seja) de rever sua posição nas relações que estabelecem com aqueles investidos de autoridade?