SÃO PAULO, FRONT(EIRA) DA MODERNIDADE
Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
“Well the church bells are calling
Police cars on fire
And as they call you to the eye of the storm
All the people say ‘Stay at home tonight’
I say we are the pigs we are the swine
We are the stars of the firing line”
And as the smack cracks at your window
You wake up with a gun in your mouth
Oh let the nuclear wind blow away my sins
And I ll stay at home in my house
I say we are the pigs
we are the swine
we are the stars of the firing line
But deceit can t save you so
We will watch them burn”
(Suede, “We Are The Pigs”)
PCC, “Primeiro Comando da Capital”. Quando os olhos se voltam para São Paulo sob os ataques orquestrados por essa organização de criminosos, o primeiro comando do observador possivelmente inclui um libelo pela admissão da pena capital no ordenamento jurídico brasileiro. Reação compreensível para aqueles que olharam o furacão dos dias passados.
A reação é sobretudo moderna. Implica o encobrimento de uma série de dimensões do fenômeno, compartimentalizadas, para explicitar uma visão unívoca de um acontecimento multifacetado. Tal é a problemática da Segurança, na Modernidade.
O sujeito moderno é um inseguro por opção. Optou pelo risco de construir um mundo seu, em que pudesse exercer livremente a Liberdade da qual crê ser portador, ainda que haja empecilhos de toda sorte. Optou por deitar por terra as garantias de antanho (Deus, tradições, o fado) para conviver e se revolver em seus próprios fatos. O espaço simbólico já estava definido quando o Homem moderno amassa o papel e reescreve sua história em pleno ar, traçando coordenadas dantes invisíveis.
A criação de uma ordem estável, no mundo do risco perpétuo, se fez através de clivagens e traçar de fronteiras. De artifícios. Nenhuma novidade – o Homem constrói seu mundo e se constrói no mundo, à dessemelhança dos animais e demais. A novidade moderna é a forma como tal construção teve lugar.
Quem pode moldar o espaço? Todos, em tese. Todos somos igualmente livres, reza a lenda moderna. Mas se todos o moldarem, não haverá espaço – haverá espaços? Razão é medida, opera através de medições; a própria Razão carece de uma referência estável para daí medir. Faz-se mister fixar as fixações. É preciso partir de algum lugar, em algum momento, ainda que não haja um momento e lugar ideais, uma vez rompidos os elos entre o Homem e suas âncoras divinas. A experiência direta do Transcendente é substituída pela lógica da Representação, da demarcação de pontos na “areia” da existência humana. O Logos substitui o Theos.
O Homem, contudo, não prescindirá de uma Presença Transcendental, garantia da estabilidade da “areia”, vez que tudo passa a ser questionável, uma vez questionado o Todo-Poderoso. A exceção, o axioma, permite o estabelecimento das normas de conduta e de ordenação simbólica do mundo humano. O Homem se torna produto dos artifícios de sua própria Razão, tornando-os reiteradamente “verdadeiros” através de práticas de legitimação. As comunidades políticas são nossas criaturas que passam a nos recriar compulsivamente.
O Estado, a mais privilegiada comunidade política moderna, corporifica toda essa contradição. Tal nos apontava Thomas Hobbes em seu “Leviathan”. O Homem cria um mundo de artifícios, através do supremo artifício da Linguagem. O Estado é um artifício de segunda ordem – após a fixação do sentido do mundo via Linguagem, ele é encarregado de zelar pelo sentido fixado, tornando-se indiretamente criador, representante do Homem. O Estado é um artifício de clivagens, nascido de uma exceção, propalando exceções, ele mesmo prenhe de contradições excepcionalmente desprezadas. O Estado tem a pretensão da Onipresença e da Onisciência; acaba por romper todos os vínculos entre os homens, emaranhados em vários “dentros” e “foras, aprisionado nas fronteiras físicas e simbólicas erigidas para conferir sentido ao mundo. O mundo universalmente povoado de estranhos (Anthony Giddens) é possível na medida em que o Homem torna-se nômade dentro de si mesmo (e Sigmund Freud já apontava isso quando nos remetia ao embate do Id e do Superego, originando o artifício em eterna construção que é o Ego). A sujeição à exterioridade se recombina com uma nova forma de sujeição, introjetada (alusões a Émile Durkheim). A emancipação é emparedada pelo imperativo da ordem, melhor, da ordenação.
A Modernidade é uma prisão, nesse respeito. O PCC nasce na experiência da prisão. Nada pode ser criado a partir do Nada. O ato excepcional de criação da comunidade política moderna deita raízes no tempo e no espaço, num tempo e espaço específicos. Ainda que aspire a ser um parêntese aberto para o futuro e cronicamente indeterminado no passado, o Estado brota em campos de sociabilidade de antanho. O PCC também. Os incendiários de ônibus e assassinos de policiais hoje, outrora, foram indivíduos como nós. Como qualquer um, indivíduos fraturados, nas muitas clivagens modernas. Quedaram do lado errado da fronteira, ou nunca tiveram oportunidade de conhecer “um outro lado”?
A prisão representa, simultaneamente, o bloqueio da faculdade moderna de moldar o espaço através de práticas, e uma forma de fixar um novo território no “nada”, igualmente moderna. A prisão reproduz a lógica (soberana) da exceção. Traça no vazio do espaço cartesiano a linha entre a norma e o desvio, entre os incluídos e os desvalidos, cria com novas fronteiras um espaço de não-sociabilidade, separando o ser racional, autônomo, capaz de pactuar, do ser passional, imaturo, receptáculo da luz exterior. O Panóptico de Jeremy Bentham é uma metáfora acurada das luzes que emanam dos olhos ilustrados, em contraposição ao opaco contexto por detrás das grades. A televisão se ilumina, estamos à salvo dos “bárbaros” nas esquinas, provavelmente. Estamos seguros. A Razão que ordena o espaço traça na “areia” da conduta humana fronteiras simbólicas, tornando o indivíduo submetido à prisão nômade dentro de si mesmo, objeto da exterioridade. A prisão é uma mensagem que se destina aos que estão fora dela, já que por dentro não há senão fragmentos. Tão humanos.
Não obstante a quebra dessa lógica ocorre quando se formam laços de sociabilidade através e a despeito das fronteiras internas e externas. A prisão deixa de ser um espaço privilegiadamente organizado (portanto, estéril) para se tornar um foco de re-espacialização (dinâmico e disruptivo). Redes que se formam através das fronteiras - dentro da prisão, da prisão para o mundo lá fora e entre os “mundos” soberanos, lá fora. A mesma lógica, o mesmo desafio – violar as fronteiras em nome da Liberdade (qual aponta Agnes Heller, um conceito vazio de conteúdo, cronicamente preenchível). A opção restante? Uma duvidosa emancipação tutelada externamente, cada vez mais empurrada para um distante tempo que nunca vem. Para os que viveram imersos no não-lugar como não-sujeitos, a experiência da ruptura da ordem institucionalizada é uma apoteose profana, é o vir-a-ser improvável, tornar-se alguém nas vísceras e resíduos dos sujeitos do “lado de lá” da fronteira. É uma busca por comunhão, conquanto não seja de bens...
A busca por reintegração não se esgota na narrativa inexorável da ordem externamente erigida, na fixidez dos papéis e identidades - o indivíduo quer se integrar consigo mesmo, busca a totalidade violada, antediluviana. A ordem instituída enseja uma totalidade via adequação, regeneração, remissão, religamento (daí, religião). O “indivíduo negado” busca se tornar idêntico a si mesmo (individuar-se, em contraposição a outros indivíduos e fontes de autoridade externas – emancipação).
Fixar a Liberdade no espaço social moderno, soberanamente organizado, implica fixar os “desviantes” (tenham ou não escolhido permanecer nas margens da sociedade) num espaço estéril, excepcionalmente dissociado. A reintegração/religamento opera duplamente, através do esvaziamento do sujeito, através do esvaziamento do espaço – mas um esvaziamento externamente posto, não-moldável, vedando ao “desviante” a faculdade de Descartes. A alternativa que resta nessa profecia auto-realizável é a associação do “desviante” com a an-arquia - sua estigmatização como irrecuperável, ameaça para si mesmo e para todos simultaneamente. A relação temporal entre a norma e o desvio está congelada no espaço excepcionalmente fixo da prisão. A prisão produz tanto indivíduos reintegrados quanto “ameaças em potencial”, comparativamente, os últimos importam mais que os primeiros. A experiência da prisão é alienante e oblíqua – a mensagem se dirige aos que não estão “lá”. Precisamos de algo que para nos impelir à busca da Segurança (ontológica).
O questionamento dessa fixação soberana do espaço social ocorre com a compartimentalização das manifestações do “desvio” - ataques localizados a estruturas materiais que corporificam o Estado, quartéis, escolas, fóruns, delegacias, vias de tráfego. O PCC desorganiza o espaço soberano, transformando a prisão num espaço de ressocialização, repolitizando a Capital. Desorganizando para se organizar, organizado para desorganizar. O “desvio” se manifesta de forma organizada, jorra como fratura exposta, explicita sua capilaridade e a fragilidade das fronteiras modernas. Reconcilia o cidadão moderno com sua condição de agente no risco. Questiona a exterioridade da relação moderna de autoridade política (as autoridades em questão executaram à perfeição o minueto, negociando diretamente com o PCC). Os cidadãos, cada qual cioso de seu quinhão na res publica, esses estão encastelados. As ruas estão desertas, as artérias da Capital desobstruídas. O banditismo por uma questão de classificação – de localização – se torna um problema político, e não de polícia!
Então, podemos voltar os olhos para a Modernidade. A Modernidade começa na prisão. Começa no desejo humano, via Razão, de se libertar do jugo de exterioridades, seja advinda de Deus, da tradição, dos sentidos, da própria constituição dos grupamentos humanos – um impulso de emancipação. O impulso de emancipação espacialmente orientado conduz à uma clivagem entre os homens e dos homens consigo mesmos. Lindes são erguidas. A produção frenética do “outro” implica uma profecia auto-realizável: insegurança. Aqui ninguém dorme. Nunca faltarão fraturas identitárias e “desvios” para nos reconciliar (religar) com o sonho moderno: a certeza de que nada exista entre nós e nossa ansiada Liberdade. A Modernidade, diz Agnes Heller, começa com a Liberdade e termina num campo de concentração.
E por isso deixaremos queimar, devagar. A Capital. E quem mais estiver do lado de lá.