Quando, no dia 23 de novembro de 1990, ao sofrerem a perda inestimável do historiador Caio Prado Júnior, um dos maiores símbolos da intelectualidade progressista brasileira, os tutores de seu legado, a massa de filósofos, sociólogos, historiadores, professores etc. ocupantes de cargos da burocracia estatal e representantes oficiais da nossa cultura, tão receosos estavam do chamado avanço neoliberal promovido pelo então presidente Fernando Collor que jamais poderiam imaginar os anos seguintes como o período em que desfrutariam tanto o êxtase da glória quanto a análise criteriosa, jamais vista, de suas idéias e ações políticas.
De fato, o autor de Formação do Brasil contemporâneo era mesmo o símbolo de um curioso fenômeno ocorrido no início do século XX em diversos países e, sobretudo, no Brasil: a paulatina marxização das elites. Filho de uma das mais tradicionais famílias paulistas, sua filiação ao PCB, a adaptação do materialismo histórico à interpretação dos acontecimentos nacionais, além de um panegírico a Stalin, seriam alguns dos principais exemplos de sua atuação deixados à juventude esquerdista. Porém, a fundação da Revista Brasiliense (que dividiria com a pecebista Estudos Sociais o mérito da publicação das primeiras traduções dos ideólogos europeus mais influentes do Brasil contemporâneo, os marxistas ocidentais Georg Luckács e Antonio Gramsci, bem como os primeiros esforços de seus discípulos mais ilustres, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso) seria indubitavelmente sua herança mais duradoura, já que o valor filosófico de suas obras não resistiria às críticas das mais diversas correntes de pensamento em voga no Brasil, e mesmo seus companheiros de militância, empenhados que estavam em afirmar os princípios de um novo modo de batalha, a revolução cultural inspirada no ideólogo italiano Antonio Gramsci, foram alguns dos mais contundentes refutadores de suas idéias. Inapelavelmente, Caio Prado Júnior sobreviveria como emblema de uma esquerda passadista, mas que habilmente extraíra de dentro de si mesma a sua própria contestação.
Dessa forma, o campo cultural brasileiro chegava à década de 90 completamente dominado pelas preferências estéticas dos frankfurtianos Walter Benjamin e Adorno (linguagem expressionista e imaginário surrealista), pelo desconstrucionismo, (que é a decomposição do discurso em partes heterogêneas e dissociadas, de modo a tornar evidente que a reorganização dessas partes, ou seja, a interpretação que o sujeito dará a elas, dependerá, em suma, da intimidade com a própria teoria desconstrucionista e jamais chegará à significação do texto, pois este não existe, exceto quando se trata da significação desconstrucionista, é claro) e pela figura do intelectual foucaultiano - “anarquista da cátedra, (...) anatomista de ‘universos concentracionários` (...), e símbolo perfeito do substrato social que ora sustenta os mitos da consciência moderna: a intelectualidade burguesófoba, cheia de status e prestígio, e não obstante, doida para parecer intelligentsia, renegada pela sociedade” [As idéias e as formas, José Guilherme Merquior].
Desatado o nó, tudo aí correspondia a uma desvalorização sistemática do racional; a uma busca orientada de pulverização, subjetivismo, pluralidade; à procura obcecada das ambigüidades, da incorreção, do marginal, do caótico, enfim, de todo elemento que corroborasse a idéia de desideologização da cultura. E a aparente contradição de todos estes esquemas, que, como num teatro de sombras, ora se entrelaçam ora se distanciam, foi suficiente para forjar o conceito de pós-modernismo, coabitação no mercado da cultura das autoproclamadas diferenças, e escamotear o fundo comum sobre o qual ela se move.
Mas, de acordo com o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em sua obra Esboços de auto-análise, “compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez (...) Alguém se tornava ‘filósofo` [o sociólogo se refere ao ambiente acadêmico francês da década de 50] pelo fato de haver sido consagrado, e a pessoa consagrava-se ao garantir para si o prestígio de ‘filósofo`. Logo, a escolha da filosofia manifestava a segurança estatutária que vinha reforçar a segurança (ou a arrogância) estatutária”.
A concentração da ‘vida intelectual` brasileira em universidades e outras instâncias burocráticas, ou melhor, a dependência quase que exclusiva do aval universitário para a formação e aceitação do sujeito, em detrimento de sua obra, como integrante da classe pensante do país e sua conseqüente participação no debate, revela que o campo cultural aqui também se caracteriza, tal como citado acima, pelo controle estatutário das idéias – controle, aliás, que, dentre suas ações principais, destaca-se a negação de si mesmo como agente controlador.
O governo desse poder tende então a inibir as críticas desfavoráveis ao seu exercício, bem como a supervalorizar as manifestações de apoio aos esquemas retóricos que confirmem as suas bases, em outras palavras, o sistema existe para manter o sistema (um exemplo muito claro disso é a enxurrada de teses acadêmicas, das mais diversas áreas, inspiradas nas teorias pós-estruturalistas, nos estudos culturais). Assim, novamente em Pierre Bourdieu, é simples saber por que é que “existem muitos intelectuais que interrogam o mundo” e, naturalmente, “poucos intelectuais que interrogam o mundo intelectual”.
Os ‘pensadores` brasileiros ficaram órfãos na década de 90 de um de seus nomes mais ilustres e talentosos, indubitavelmente. Porém, a morte do historiador Caio Prado Júnior marca sobretudo a transformação da figura do intelectual ativista e do seu próprio espaço de atuação, uma vez que todo ele já estava travestido por valores subversivos e partilhado entre os grupos ‘libertadores` que compunham o espectro ideológico de então. Assim, a chegada à presidência do sociólogo, adepto de Gramsci, Fernando Henrique Cardoso, e sua sucessão, amplamente gestada no seu próprio governo, pelo seu ‘adversário`, o ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva, são exemplos da extensão do poder exercido por uma grafocracia asfixiante que opera nos limites estreitos da dominação cultural.
Entretanto, avesso à doutrinação acadêmica, desvencilhado de grupos ideológicos, extremamente culto e corajoso, como raras vezes se viu entre nossos homens de Letras, além de implacavelmente disposto ao debate, o filósofo Olavo de Carvalho viria à cena, também nos anos 90, com a publicação de obras fundamentais para a filosofia (a exemplo de Aristóteles em nova perspectiva, estudo em que o filósofo apresenta uma compreensão da obra aristotélica tendo em vista a chamada Teoria dos Quatro Discursos - “o discurso humano é uma potência única, que se atualiza de quatro maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a analítica [lógica]", além da trilogia A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci; O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. Esta última, aliás, tendo causado uma enorme polêmica, (além de uma série de reações de ‘indignidade` da nossa classe letrada), dentre as quais se destaca, não por relevância filosófica, mas por importância, diga-se, terapêutica, O futuro do pensamento brasileiro – obra originalmente lançada em 1997 e recentemente reeditada pela É Realizações.
Nela, o filósofo discute o constante desinteresse da cultura brasileira pelos valores universais, desinteresse tal que relega a consciência histórica, que deveria se traduzir numa busca honesta do passado a fim de se obter uma compreensão cada vez mais esclarecedora do presente, ao círculo único e exclusivo de um presente adornado por uma meia dúzia de acontecimentos pretéritos que dão legitimidade à ação de grupos pautados na emergência do politicamente correto que, por sua vez, se vale do historicamente correto para existir.
Assim, conforme o autor, “se queremos sondar o futuro desta cultura, basta separar, nela, o que está condicionado e delimitado pelo valor documental de um momento, de uma conjuntura, de uma fase, e o que tem valor independentemente de afeições e interesses momentâneos, por mais justos que sejam desde o ponto de vista político, social etc. É esse núcleo de valores supratemporais que poderá, renovando-se perpetuamente, inspirar as criações do futuro. Por eles, podemos ter uma visão das possibilidades e limites que esse futuro nos reserva”.
O que dizer então do futuro de uma cultura adestrada por uma elite pensante que se vale da idéia mesma da impossibilidade dos valores universais; da impossibilidade da compreensão histórica, exceto em função de um determinado ‘olhar`; da necessidade da emergência dos valores transitórios que, quanto mais momentâneos, mais dignos de atenção? O que dizer então de uma cultura que, estando desenraizada da grande tradição filosófica do ocidente, considera a importação dos mais novos modelos de pensamento europeu como exemplo de sabedoria e erudição, confinando ao silêncio tudo o que não esteja afeito a tal modelo?
A massa de filósofos, sociólogos, historiadores, professores etc. ocupantes de cargos da burocracia estatal e representantes oficiais da nossa cultura (que ainda deve uma resposta às críticas contundentes feitas pelo Olavo a suas obras) certamente jamais esperaria que a década de 90 fizesse surgir no Brasil um filósofo em busca da verdade e disposto a sacrificar as honrarias oferecidas ao bem comportado crítico da sociedade, do Estado, da religião, da burguesia etc., para apontar, com esse próprio gesto, que já nos dá a medida de sua grandeza, a possibilidade de um futuro de amplas realizações para a cultura nacional.
Abaixo, segue a entrevista que o filósofo Olavo de Carvalho concedeu ao poeta Raimundo Bernardes no final do mês de setembro, da cidade Richmond, na Virgínia [EUA], onde mora com sua família desde o ano de 2005.
R.B. Olavo, no prefácio à nova edição de O futuro do pensamento brasileiro, o senhor afirma que, se tivesse de modificar alguma coisa neste livro, colocaria o seu título no condicional, pois não é garantido que a nossa cultura venha a ter algum futuro. Quais foram então os acontecimentos dos últimos 10 anos, período transcorrido entre a primeira edição desta obra e a atual, que o levaram a tal desconfiança?
O.C Bom, a situação cultural do Brasil piorou de tal maneira que agora a gente nem saberia mais por onde começar uma reforma, uma cura ou coisa parecida. Em primeiro lugar, os bons escritores que havia, que estavam vivos quando eu publiquei O imbecil coletivo [a primeira edição desta obra é de 1996], muitos dos quais leram o livro já no topo original, ou então logo depois de publicado, morreram ou ficaram tão velhos que estão totalmente fora de combate. Neste período morreu, por exemplo, o Herberto Sales, o Roberto Campos e outros como Josué Montello, o Paulo Francis. Outros ficaram muito velhos, cansados, abatidos, então não dá para eles participarem ativamente da vida cultural, eles se tornaram muito mais símbolos do que forças agentes, muito mais símbolos do passado do que forças agentes no tempo presente, e na geração seguinte não apareceram de maneira alguma substitutos que estivessem à altura deles - não tem nem como você comparar o que era a literatura brasileira até os anos 60, até 70. Havia uma pluralidade de escritores bons, e não só escritores no sentido da literatura de ficção e poesia, mas críticos, pensadores, debatedores de idéias, ensaístas, enfim, uma galeria enorme e ainda enriquecida por alguns portugueses que ou foram morar no Brasil ou tiveram ali uma influência muito grande: o Fidelino Figueiredo, o Adolfo Casais Monteiro, mas tudo isso acabou. Se você comparar as publicações culturais da década de 60 e 70, como os suplementos literários do Estadão ou o suplemento do Jornal do Brasil, que era feito pelo Mário Faustino [(1930-1962) poeta piauiense, autor de um dos mais belos e desconhecidos livros de poesia da literatura brasileira, O homem e sua hora], com o que nós temos hoje, chega a ser algo indescritível, pois a diferença é tão grande que não se pode nem falar de uma queda de nível, o que está se fazendo hoje é outra coisa. Naquela época havia a idéia de cultura superior, hoje não se tem mais. Há três coisas que deveriam ser diferentes, e por si mesmas e pela própria natureza delas já são diferentes, mas que hoje em dia se fundiram numa espécie de pastiche: a cultura superior, a propaganda política e o show business, que se transformaram num complexo no qual os elementos são indistinguíveis. Por que é que aconteceu isso? Principalmente por causa da aplicação sistemática da tal da estratégia do Antonio Gramsci por parte dos partidos de esquerda. A cultura tomada na sua inteireza, a começar pela cultura superior e terminando até na cultura no sentido puramente antropológico, no sentido de usos e costumes, é o campo de batalha da revolução gramsciana. Isto quer dizer que toda a cultura tende a ser aí instrumentalizada a serviço de um grupo político cujo objetivo é a conquista do poder total no prazo mais rápido possível. O rápido dentro da escala gramsciana quer dizer 30, 40, 50 anos. Trata-se de um processo naturalmente lento por que o Gramsci inverteu a fórmula do Lênin: pela estratégia do Lênin um grupo pequeno e organizado, decidido, violento, tomava o poder, impunha a ditadura e daí reformava a cultura, remoldava a mentalidade publica à luz do Socialismo. O Gramsci inverteu, considerava primeiro a reforma do pensamento e só depois a tomada do poder. Então, este processo faz com que, pelo menos idealmente, o partido revolucionário assuma o controle de todos os canais de comunicação cultural, um por um. O que é que ele vai fazer lá? Vai fazer propaganda comunista? É claro que não. Propaganda comunista é apenas o discurso explícito que paira na superfície da cultura. O que interessa realmente é mudar as estruturas profundas de pensamento: os valores, os símbolos, a linguagem etc., e tudo, de preferência, sem nem falar em propaganda comunista. Isto vai criar uma mutação cognitiva, as pessoas vão passar a julgar de outra maneira, e é preciso que esse processo seja tão lento que seja imperceptível, e por ser lento ele tem que ser multilateral, tem que abarcar o espaço todo e tem que ir neutralizando, debilitando e até aniquilando qualquer possibilidade de oposição. E como é que se neutraliza? Contornando o debate, ou seja, só se aceita debater com aqueles que estão mesmo do seu lado, os outros são excluídos. Não é que se vai censurá-los, por que censurar é um ato de governo, não é isso o que eles fazem. Quando se começa uma revolução cultural não se tem o controle do governo ainda, só se tem o controle das instituições de cultura. Então, se marginaliza, se boicota, se difama, e isso é uma coisa organizada e total, quer dizer, vem a instrução do comitê central e todo mundo obedece instantaneamente. A uniformidade da reação desses indivíduos, por exemplo, aos meus livros, aos meus artigos etc. é a maior prova, o sinal mais evidente, de que não se trata de um sentimento espontâneo, mas de uma ação organizada - organizada e muito bem camuflada, porque a camuflagem é a essência da estratégia gramsciana. Então, isso quer dizer que a destruição da cultura brasileira vem da sua submissão a objetivos políticos imediatos, imediatos e concretos. A tomada do poder, a aquisição do controle sobre a sociedade, é a única coisa que interessa, o resto eles não querem nem saber, se o que eles estão dizendo é verdade ou erro, se tem qualidade cultural elevada ou não, se é moral ou imoral, tudo isso não importa, só importa a tomada do poder, ou seja, essa espécie de redutivismo de tudo à luta pelo poder, que é uma coisa que antes acontecia no domínio político exclusivamente, se alastra por toda a cultura. Isto quer dizer que a possibilidade da atividade cognitiva normal é totalmente eliminada. A dose de cinismo, de sem-vergonhice que é necessária para empreender a revolução cultural gramsciana é uma coisa até difícil de medir. Dou um exemplo: como o sujeito [gramsciano] só tem que debater com os membros do seu grupo, ou com aqueles que constituam uma referência imediata para ele, ou com aquele tipo de adversário que seja conveniente para ele, porque fala na sua linguagem e pode ser atacado, pois já deixa um flanco à mostra, o sujeito realmente não precisa ser muito inteligente, não precisa criar esquemas argumentativos muito elaborados, só é necessário usar três ou quatro esquemas retóricos que está tudo bem; e quanto aos outros, aos demais [adversários], em vez de afastá-los, parte-se pra difamação, pra calúnia ou simplesmente para o boicote total, não se fala do cara. A intelectualidade esquerdista destrói os seus adversários, ela corta as possibilidades de expressão dos seus adversários e destrói as suas próprias possibilidades de elevação intelectual, pois ela vai sacrificando cada vez mais a consciência intelectual, a consciência cultural, as necessidades de melhora da política... Então, por exemplo, a degradação da capacidade argumentativa é uma coisa óbvia. Hoje, quando o esquerdista quer responder alguma coisa, ele responde de maneira tão primária, tão boba que, por um lado dá vontade de rir, se fosse um caso isolado se riria, mas como todos eles ficaram assim, então virou uma tragédia nacional. Eu te dou um exemplo: saiu agora o artigo do Ali Kamel [o filósofo se refere ao polêmico artigo O que ensinam às nossas crianças publicado no Jornal O Globo do dia 18/09/2007], comentando, com dez anos de atraso, aquilo que eu já havia comentado no Jornal da Tarde em 1997, que é a enxurrada de livros didáticos comunistas, livros de baixíssima qualidade, livros toscos, que em si mesmos já são uma vergonha e que, além disso, são meros livros de propaganda. Note bem, não se trata de propaganda comunista, apenas de propaganda anticapitalista, porque é parte essencial do esquema gramsciano que ele não se identifique ostensivamente com o comunista. O ideal do Gramsci é que o partido revolucionário se torne, como diz ele, “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico de um mandamento divino”. Quer dizer, o partido está sendo obedecido por todo mundo e sem que o pessoal saiba a quem está obedecendo. Obedecem porque já não têm esquemas cognitivos, nem esquemas lingüísticos próprios, o partido preencheu todo o espaço mental dos caras. Então, sobre a denúncia do Ali Kamel a respeito desses livros, que eu já havia feito e que na época ninguém ligou (a simples demora da grande mídia tomar consciência disso já é um efeito da própria revolução cultural, porque como ela é onipresente, ela ocupa todos os espaços, é difícil identificá-la como um processo, e assim o comunismo se torna não uma corrente política determinada, mas um estado de espírito disseminado por toda a sociedade, ele não tem rosto, então não se pode discutir com o comunismo porque ele nunca está lá, ele está por toda parte e inclusive em lugar nenhum. Aí acontece esse curioso fenômeno - todo mundo pensa como comunista, a pregação anticapitalista está por toda parte, o culto que eles fazem dos ídolos comunistas também está por toda parte, mas quando se fala em comunismo todo mundo diz que não existe comunismo nenhum. Quer dizer, quanto mais ele está onipresente, mais ele parece ausente. Isto está tudo descrito com antecedência nos escritos do Antonio Gramsci, ele calculou exatamente assim e é exatamente assim que está sendo feito). Então, quando o Ali Kamel, com esse significativo atraso, começou a protestar contra esse negócio, saiu hoje [o filósofo se refere à seguinte data: 03/10/2007] uma resposta do Zé Dirceu, lá do Brasil. Ele dizia assim: Ali Kamel e os outros fascistas querem é que a sua ideologia domine todo o espaço e não haja pluralismo. Muito bem, o que é que é isso? É uma simples inversão de frase, inverte-se o sujeito da frase: não sou eu quem está fazendo isto, é você. E assim automaticamente a discussão passa do terreno dos fatos concretos para o terreno puramente verbal. A resposta puramente verbal é uma coisa que se observa em discussões de crianças - o moleque chama o outro de gordo e o outro responde assim: quem fala é que é. É o tipo de esquema argumentativo pueril que normalmente deveria provocar risos na hora, mas que dentro do estado de inconsciência geral, de torpor mental, os leitores podem até ficar perplexos e desorientados - um está acusando o outro e o outro está acusando o um da mesma coisa, então a equivalência de estrutura verbal dos dois argumentos chega a ludibriar o público, ou seja, não é mais possível se discutir as coisas no terreno dos fatos, não tem mais conexão, é apenas um verbalismo, e isso aí significa que o sujeito que está completamente errado, que está mentindo, leva vantagem porque no mínimo, no mínimo, aquele argumento dele que não deveria ocupar espaço nenhum, ocupa 50% do espaço, ele ganha uma espécie de equivalência. Se nós perguntarmos ao Zé Dirceu, por exemplo: Zé Dirceu, é o seguinte, agora você vai nos mostrar um livro didático que tenha propaganda anticomunista. Não existe nenhum, e a gente mostra milhares que têm propaganda anticapitalista, e isto no terreno dos fatos. Mas os fatos só são acessíveis a quem os investigou, o público não sabe, o público só vê duas frases, só vê a expressão verbal do confronto, e como essa estratégia de auto-camuflagem do comunismo chegou a enganar mesmo todo mundo, as pessoas simplesmente não acreditam, têm uma resistência a acreditar que haja essa propaganda comunista espalhada por toda parte. Quando acontece isso, é claro que a inteligência da comunidade vai pro brejo, todo mundo foi idiotizado, toda discussão se torna apenas um confronto mecânico de frases. Um diz: é você. O outro diz: não, não sou eu, é você. E o povo fica ali indeciso, no meio. Outro fator é que dentro desse esquema gramsciano de dominação dos meios de comunicação, os fatos essenciais da última década e meia, ou mais, são ocultados, não saem. Quer dizer, ninguém fica sabendo, por exemplo, a existência do Foro de São Paulo, a entidade política mais poderosa, que congrega mais de 180 partidos, ou algo próximo disso, a entidade política mais poderosa que existe na América Latina, composta de chefes de Estado e de grupos armados etc., as pessoas mais poderosas que existem na América Latina, não é noticia durante 17 anos. Isto quer dizer que todo debate público se desvia para elementos secundários, laterais e, como se diz, ninguém pode botar o dedo na ferida, ou seja, a discussão pública fica deslocada da realidade, e isso imbeciliza, cria um estado de alienação, um estado de embriaguez, e esse processo foi tão fundo que se nota um decréscimo de inteligência até nas pessoas que são, ou que deveriam ser, contra isso - as pessoas que seriam conservadoras ou liberais, elas também se imbecilizam, pois a tática essencial da revolução gramsciana é sabotar os meios de debate, sabotá-los e dominá-los e transformá-los em meios de propaganda. Ninguém resiste a uma coisa dessas. Falar em cultura diante de uma coisa dessas me faz rir. Não há mais cultura, aí o crítico português, o Fernando Cristóvão, dizia: “cultura, novo nome da propaganda”. Tudo virou propaganda apenas. Então, como esse processo se aprofundou muito no Brasil, chegou a um ponto catastrófico, não dá pra voltar mais, eu só vejo possibilidade de sobrevivência de uma cultura brasileira ou no exílio ou em grupos isolados regionais, como esse pessoal da própria revista Poesia e Afins exemplifica.
R.B. A imprevidência e o egocentrismo são diagnosticados por ti em O futuro do pensamento brasileiro como duas características maléficas da cultura brasileira. A expansão do Ensino Superior, ocorrida nos últimos anos, correspondeu à popularização desses males em escala inimaginável – é difícil encontrar um brasileiro indisposto a ver o carnaval como a expressão máxima de nossas potencialidades. É possível virar esse jogo?
O.C. Bom, desde o início da história independente do Brasil o que se entendia por educação e cultura eram duas coisas: ou era um adorno da classe dominante, dos ricos, e um adorno que na verdade era desnecessário à manutenção da sua posição (por exemplo, imagina os senhores de terra que fizeram a nossa Independência, o movimento da Independência: eram todos homens ricos, muito poderosos e que não dependiam absolutamente da aprovação popular porque a sociedade civil era muito diluída, ela não tinha força própria, essa sociedade tinha um montão de escravos, e tinha agricultores espalhados um pouquinho aqui, um pouquinho ali, que era gente muito fraca, a sociedade civil era fraca, então a chamada classe dominante não precisava nem fazer um esforço de persuasão pra manter a sua posição, ela se mantinha por ausência de resistência. Isso quer dizer que ela não precisava desenvolver a cultura como arma, então a cultura se torna um adorno, um adorno e um alívio de certa maneira porque as pessoas estavam se sentindo deslocadas no Brasil, ainda estavam sonhando com o ambiente europeu, não se adaptavam bem aqui, eram o tipo que se chamava na época da colônia de mazombo. Mazombo era o brasileiro que vivia com a cabeça na Europa. Assim, a cultura começa a se desenvolver, em primeiro lugar, como um jogo, um diletantismo nas classes superiores, e como uma espécie de busca de alívio). Por outro lado, o que se entendia como educação e como cultura era a educação popular, que deveria qualificar as pessoas para o exercício de um trabalho que permitisse a sua sobrevivência. Estes são os dois conceitos de cultura que continuaram existindo no Brasil até o século XX - ou é a cultura como diletantismo, como divertimento de rico, ou é a cultura como instrumento na luta econômica. A introdução das ideologias revolucionárias a partir dos anos 20 e 30 dá a elas uma terceira função, que é a função de propaganda ideológica. Então: é a cultura e a educação como adorno, a cultura e educação como meio de subsistência, aquisição de instrumentos para a vida econômica, e a cultura como instrumento de propaganda política e luta pelo poder. À medida que a Igreja Católica adquire alguma força no Brasil, que ela só vem a adquirir depois da República e isso é muito importante saber - nossos dois imperadores tinham problemas com a Igreja Católica e não permitiam a expansão dela durante todo o período do Império, e isso, aliás, foi uma das causas do movimento republicano... Com o advento da República a Igreja adquire então meio de expansão como não tinha antes, então surge uma intelectualidade católica, poderosa, sobretudo, a partir do Jackson de Figueiredo, do Centro Dom Vital, e surge a cultura também como meio de catequese. Dessa forma, o que existe no Brasil de cultura é: adorno e divertimento, meio de subsistência, meio de propaganda política e conquista de poder e meio de catequese. Em todos estes casos a cultura está submetida a outras coisas, ela está submetida a outros fatores, a outros valores, ela não é um valor em si mesma, ela não tem função em si mesma.
O Brasil até hoje não percebeu, primeiro, a importância que o conhecimento tem para a formação da própria personalidade humana. O conhecimento é sempre visto como instrumento, instrumento ou para diversão, ou para a vida econômica, ou para a conquista do poder político, ou para a vida religiosa. Não é uma coisa que tem que se integrar na sua personalidade, é um instrumento, não é uma coisa que você é, é uma coisa que você tem. É uma coisa. Então, naturalmente surge uma atitude ambígua com relação à cultura: por um lado se a deseja, por outro lado se a despreza. Então se cria todo um complexo de inferioridade intelectual brasileira, que sempre se compara com o estrangeiro em situação de desvantagem e busca compensação através desses quatro instrumentos, criando aquele nacionalismo estético idiota do movimento de 22, ou partindo para a glorificação nacional, glorificação da própria inferioridade nacional, procurando essa história de que é necessário valorizar o que é brasileiro. Bom, não é que se tem que valorizar o que é brasileiro, seria preciso que os brasileiros fizessem coisas de valor. Não é glorificando o existente que se cria alguma coisa, que se alcança uma situação melhor, uma vida melhor, é o contrário, é criando coisas melhores.
Então, um elemento que ficou faltante na cultura brasileira é uma coisa que aqui nos Estados Unidos a gente percebe pelo contraste de uma maneira quase chocante. Eu vejo que aqui eu recebo quase diariamente quarenta, cinqüenta pedidos de ajuda para campanhas de caridade, socorro aos veteranos de guerra, ajuda para criancinhas órfãs do terceiro mundo, combate ao câncer, o tempo todo. E essas contribuições fazem parte da vida diária do americano, todo mundo contribui para essas coisas, é uma coisa normal. Além disso, quando se vai à igreja, há o culto e depois as oportunidades de servir, porque a igreja te convoca: nós precisamos de uma pessoa para ir lá ajudar a construir casas para os pobres no bairro tal, nós precisamos de uma pessoa para fazer companhia para fulano que está doente no hospital foi operado etc. Isso quer dizer que a vida da igreja ocupa a semana inteira da pessoa. Outra coisa, o trabalho voluntário é considerado um elemento essencial para integração do americano na sociedade, quer dizer, todo mundo presta trabalhos voluntários e se não presta trabalho voluntário é mal visto pelos outros. Na escola, se o sujeito tirar zero em todas as matérias ninguém liga, mas se o sujeito não prestar nenhum trabalho voluntário, vão falar mal dele. Mais ainda, o trabalho voluntário é incluído entre as práticas disciplinares da escola e o sujeito ganha nota com isso. O sujeito melhora sua situação, se ele é meio burrinho mas fica lá varrendo a escola, se ajuda, vai ter uma nota melhor por causa disso.
Então, a idéia da colaboração intensa do ser humano com o ser humano faz parte da vida diária do americano e mostra o quanto Santo Agustinho tinha razão ao dizer que a base da sociedade humana é o amor ao próximo. O amor ao próximo faz com que as pessoas participem do estado de espírito comum e isto que estou dizendo é totalmente ausente na sociedade brasileira, as pessoas não sabem o que é isso, não que não haja pessoas cristãs, pessoas boas, mas é que isso não faz parte da cultura, sobretudo não faz parte da realidade tal como o brasileiro a entende. O brasileiro acha que existe por um lado a realidade, que é constituída de concorrência, de sacanagem, de vigarice, de luta pelo poder e do outro lado existe a bondade que é um negócio idealista e que está totalmente fora da realidade. Aqui na sociedade americana você não vê isso. Existe a realidade, que é a colaboração de todos e existe o mal que aparece de vez em quando: a vigarice, o engano... Então aqui o mal é considerado uma exceção, o mal é anormal. No Brasil o mal é normal e a bondade é que é uma exceção e às vezes até um sinal de desequilíbrio, de marginalidade, exotismo e loucura, o que significa que a substância moral da sociedade é uma coisa ausente na cultura brasileira.
Do mesmo modo, sendo que até a moralidade não é uma coisa que faz parte do dia-a-dia, mas é uma espécie de ideal que paira sobre uma realidade miserável, pode-se imaginar o que acontece com a cultura superior, ela não tem nada a ver com a vida diária, a não ser que ela se integre na vida diária através de um desses quatro canais: ou como divertimento, ou como aquisição de meios para subir na vida, ou como luta pelo poder, ou como parte de uma religião, mas quando entra pelo lado da religião, que seria o que há de mais elevado aí, ainda assim ela continua puramente instrumental. Não se vai à Igreja protestante, católica, para adquirir cultura. Tem um pouquinho de cultura que é necessária até para acompanhar o culto, para acompanhar a missa, isso aí é dado para o sujeito, mas não mais do que isso.
Daí também a tendência da discussão cultural no Brasil ou ser levada para o lado econômico, a nossa cultura está mal porque não temos verbas, como se as verbas para a cultura e a educação no Brasil já não fossem monstruosas. O Brasil é o país recordista no número de professor universitário per capita: um professor para cada oito alunos. Nos Estados Unidos é um para cada vinte ou mais, quer dizer, ninguém tem tanto dinheiro para pagar a tanto professor assim no mundo, no Brasil tem. Toda a nossa cultura artística, entre aspas, toda ela vive de subsídios. Se você somar a quantidade de dinheiro, não só dos pontos oficiais, mas também de patrocínio privado que vai para isso, é uma monstruosidade. E, no entanto, quando se coloca esse problema de que, por exemplo, os nossos alunos tiram os últimos lugares nos testes, participaram de um teste estudantes de 32 países, tiraram o último lugar, (agora tem essa pesquisa do Economist que diz que o Brasil é um dos países que menos tem capacidade ou de criar ou de atrair mentes brilhantes, quer dizer, profissionais altamente qualificados, destacados nas suas áreas. Quer dizer, o Brasil só produz e atrai medíocres), quando se verificam essas coisas as pessoas imediatamente dizem: não, nós precisamos investir; ou seja, elas acham que dinheiro é cultura.
Quer um exemplo de como as coisas são diferentes aqui? Compare-se a vida de um americano ilustre e a de um brasileiro ilustre. O americano é o filosofo Josiah Royce e o brasileiro é o Machado de Assis, um contemporâneo dele. Josiah Royce nasceu numa cidade do oeste, do faroeste, e os comerciantes da cidade viram que o garoto tinha jeito para filosofia. Então, o que eles fizeram? Se cotizaram e mandaram-no para a Alemanha, de onde ele voltou armado até os dentes e criou uma obra filosófica brilhante, comparada à filosofia européia já no tempo do faroeste. E no Brasil, o que aconteceu com Machado de Assis? Ele teve que arrumar uma sinecura, um emprego público para poder sobreviver, um emprego que não tinha nada a ver com os seus interesses intelectuais, e ele desenvolvia sua vida intelectual nas horas vagas, e o cara continuou trabalhando como funcionário público até ficar velho. Então, é patente a diferença de tratamento que se dá ao homem de talento nos Estados Unidos e no Brasil. Essa diferença se repete em milhões de casos. Quando se vê que o sujeito tem talento no Brasil, é oferecido um serviço inferior a ele. Por exemplo, o Mário Ferreira dos Santos, que era o maior filósofo vivo do mundo na época, sobrevivia de quê? Do curso de oratória que dava para políticos, ensinando Paulo Maluf e outros a falar besteira. O Otto Maria Carpeaux quando chegou ao Brasil exilado, fugiu da Áustria, na guerra, ele era o homem mais culto do Brasil. Se chegasse aqui, nos Estados Unidos, com aquela bagagem, no mínimo iam dar um departamento de Letras para ele, imediatamente, e iam dizer: você é o chefe aqui, você faz o que quiser, você manda nesse negócio. Era o scholar mais preparado que tinha no Brasil. O que é que fizeram? Primeiro, o Alceu Amoroso Lima, a quem ele recorreu, ele tinha uma carta do Pio XII apresentando-o ao Alceu Amoroso Lima, que lhe arrumou um emprego de bibliotecário no interior do Paraná. O cara evidentemente não agüentou e foi para o Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro conseguiu o melhor que tinha na época, que era um emprego de copydesk no Correio da Manhã. Trabalhou como copydesk primeiro no Correio da Manhã, depois na enciclopédia, depois no jornal de novo, ou seja, o cara trabalhando como copydesk. Agora, imagina a satisfação que um intelectual medíocre tem de rebaixar o seu superior, porque como o Brasil tem todo esse deslocamento, toda essa coisa doente em relação à cultura, então o camarada que demonstra grande capacidade na literatura, na filosofia, nas Humanidades, uma capacidade anormal, superior ao normal, ele se torna uma ameaça, o pessoal tem medo, então precisam rebaixá-lo para se sentirem mais seguros, para sentirem que ele está sob o domínio, e isso é uma constante na vida brasileira.
Assim, para compensar a atividade intelectual, entre aspas, exercida dentro dessas quatro linhas aqui, ela tende a criar o quê? Ela tende a criar grupos, a criar máfia e a criar organizações, a agregação de pessoas que têm os mesmos objetivos: ou pessoas que querem brilhar no show business ou pessoas movidas por interesses profissionais, carreirismo etc. ou os caras que querem o poder político ou os caras que estão mais interessados em religião. Tudo isso agrega e cria as máfias intelectuais. Essas máfias são constituídas necessariamente de pessoas de capacidade inferior, e isto é a base da cultura no Brasil. Daí acontece esse fenômeno de se ter uma multidão de incapazes, mas incapazes mesmo, os caros semi-analfabetos que dominam a instituição universitária, os canais de cultura, e não deixam ninguém passar acima deles. É um problema muito grave, é um problema que vem de muito longe, mas que graças à intervenção desse novo elemento, que é a revolução cultural gramsciana, isso se condensou, se cristalizou e, por assim dizer, se institucionalizou. Quer dizer, um país que chega a achar mesmo que o Emir Sader é um intelectual sério, é porque está completamente louco, o homem é analfabeto, analfabeto e vigarista e, no entanto, como o próprio público não tem condições de julgar pela substância das idéias, da criação individual, ele julga pelo cargo: ah! esse aí deve ser bom porque ele é professor é doutor de não sei onde. Quer dizer, o indício exterior, o cargo, o lugar na burocracia se torna mais importante do que a substância da obra realizada. Se pedirmos para os caras citar um livro do Emir Sader, ninguém sabe nenhum, ou se pedirmos para citar uma idéia do Emir Sader, uma descoberta, é nada, é zero, é menos um porque tem coisas que as pessoas já sabiam antes e que depois de ler o Emir Sader ficam sabendo menos.
Então, o que você tem no Brasil é a organização da anti-cultura, a organização da destruição da cultura. E é claro que o conhecimento não é um adorno, o conhecimento não é só um meio de se ganhar dinheiro, o conhecimento é um meio de estruturar e de dar densidade a sua própria personalidade. Resultado: como as coisas estão do jeito que estão, as personalidades são fracas, as pessoas são exultantes, quanto mais burras mais se acovardam, não chegam à maturidade, nem emocional, nem intelectual, nem social, nem financeira. Em qualquer meio que você for no Brasil o número de pessoas que já estão com seus 30, 40 anos e que ainda dependem da ajuda alheia para sobreviver, não têm uma sustentação própria, ou tem uma sustentação própria porque entrou na burocracia, entrou na máfia, é muito grande, são pessoas muito frágeis. A incapacidade que o povo tem de reagir à ascensão dessa esquerda predatória é o que está deixando as pessoas cada vez mais fracas.
R.B. O poeta Bruno Tolentino disse certa vez numa palestra aqui na Bahia que o Brasil era o país com o maior número de escritores e sociólogos por metro quadrado, e que isto correspondia a uma ânsia desesperada de explicar este país, marca indelével do nosso pensamento. Ele estava correto?
O.C. Em parte sim, a cultura brasileira é toda voltada para a solução impossível de um enigma chamado Brasil. Esse problema de você sondar a identidade nacional, de você querer encontrar uma explicação pro Brasil e tal, isso aí, em primeiro lugar, é doença, porque a cultura de um país são não se preocupa com o país, se preocupa com a humanidade. O Brasil não tem essa dimensão de humanidade, o Brasil não se preocupa com a espécie humana, mas só consigo próprio, o que mostra que tem uma vaga consciência de um país doente e anormal. É a mesma coisa de uma pessoa, se ela só pensa nela mesma, se ela só fica tentando decifrar a si mesma, tem algo de anormal nela. Ela passou a viver dentro de um circuito fechado, num solipsismo, e dentro do solipsismo nada tem solução, porque você entra num mundo dos meros pensamentos. Nós não podemos nos conhecer nos colocando numa mesa e nos examinando como se fôssemos um cadáver na mesa de anatomia, você se conhece pelas decisões que você toma, pelas suas ações reais e pelo que você cria no mundo. É pelas escolhas reais, pelos atos e pelas marcas que você deixa. Daí você tem o que contar, e na hora que você conta você se compreende; você conta o seu passado, e, como num desenho de geometria descritiva, você rebate o passado com o plano do futuro, e você entende quem você tem sido, e quem você pode ser, e quem você deve ser. Agora, essa coisa solipsista de ficar se analisando, analisando, analisando é doença, e isso tanto para uma pessoa como para um país. Eu vejo, por exemplo, que, do chamado “pensamento brasileiro”, praticamente o único que pensou mais em termos de humanidade do que de Brasil foi o Mário Ferreira dos Santos. Ele passa rapidamente pelo problema brasileiro e entende que existem os grandes problemas da humanidade e que não é nos perguntando obsessivamente quem somos que nós vamos descobrir alguma coisa, mas é enfrentando esses problemas milenares da humanidade que nós nos definimos, podemos chegar a ser alguém.
R.B. Sempre que o comportamento humano se torne cruel e insensato até raiar a pura absurdidade, o que está em jogo, no fundo, é sempre a mesma perversão intelectual, o casuísmo, que consiste em elevar um caso peculiar, uma situação contingente, um anseio momentâneo, ao estatuto de norma universal, e em remodelar por ele o edifício inteiro da cosmovisão e das leis. Portanto, em consonância com tuas palavras, vemos no Brasil o advento do gayzismo, do racismo, do feminismo, do socialismo etc., e todos contribuindo para forjar o simulacro de uma realidade/ suspensa entre os dois mundos como um vórtice, conforme os versos do poeta Bruno Tolentino. Olavo de Carvalho, falta ainda alguma doutrina casuística ou já estamos diante de uma saturação, no momento mesmo em que elas alcançam o seu apogeu, das ideologias revolucionárias?
O.C Não, eu acho que o número dessas bobagens pode crescer indefinidamente; você pode tomar qualquer problema inexistente e hipotético não só como base para propostas que, daí sim, vão criar problemas reais, mas se pode criar toda uma cosmovisão baseada nisso. Você quer coisa mais absurda do que se criar uma cosmovisão baseada nas suas preferências sexuais? Não tem o menor sentido, as preferências sexuais são tão variáveis quanto as cabeças. É só por uma convenção que a gente diz que existe homo e hetero, mas, e os sádicos, os masoquistas, os fetichistas, os necrófilos, os pedófilos, etc.? Há tudo isso, e tudo isso são fantasias da cabeça humana, fantasias que podem entrar e sair, o sujeito pode querer isso durante uma semana e na semana seguinte esquecer. Agora, se o sujeito se identifica com o seu desejo sexual ao ponto disso criar uma identidade, uma figura pessoal pra ele, então isso aí já é mais do que casuísmo, isso aí é um subjetivismo total, isso é um solipsismo, na verdade. Note bem, independentemente do que eu goste ou deixe de gostar, existe a realidade, e a realidade é imensamente maior do que eu, e existe, em primeiro lugar, a realidade do mundo físico. É só olhar para cima, ver o tamanho dessa coisa e refletir que não se sabe quase nada a respeito. Quando se olha para trás e se vê a história toda, se passarmos trinta anos lendo história ainda não teremos sequer uma visão de conjunto, mas apenas visões parciais de culturas mais ou menos separadas. Então, eu me pergunto: como é possível eu querer que o meu desejo, ou meu gosto, seja a chave de tudo isso? É uma perspectiva tão subjetivista que é pueril, é como um bebê: para um bebê recém-nascido o centro do mundo é ele mesmo, aliás, o centro não, ele é a única realidade que existe. Os seus desejos, o sono, a fome, a dor, são as únicas coisas que existem pra ele, aos poucos é que ele vai tomando conhecimento da existência do mundo exterior. Esse tipo de ideologia, a primeira coisa que faz é atrofiar a personalidade, a personalidade não cresce porque fica tão identificada com seus desejos, seus temores, seus sofrimentos, que ela não enxerga além disso. Por exemplo, qualquer pessoa adulta tem a obrigação de saber que, se as mulheres são oprimidas, elas também oprimem os homens, todo mundo sabe que é assim, desde que o mundo é mundo - cada um oprime a seu modo, com as armas que tem. Mas se você encarar sobre um certo aspecto, que é o aspecto jurídico, aí os homens levam vantagem até uma certa época e, a seguir, com as modificações legais que houve, as mulheres passam a levar vantagem. Mas um ponto de vista não é a realidade, um ponto de vista é apenas uma linha de atenção possível que se lança sobre a realidade, e a realidade é composta de um cruzamento de infinitos aspectos, ou seja, se você for olhar a realidade concreta, essas idéias de que as mulheres são oprimidas, que os negros são oprimidos etc. são sempre falsas. Por exemplo, com relação aos negros a gente sempre tem o estereótipo de que os europeus são os escravizadores e os negros são sempre os escravos, mas, oito séculos antes de chegar o primeiro europeu na África, os muçulmanos invadiram a Europa e escravizaram milhões de pessoas, e entre os muçulmanos havia um bocado de negros. Sem contar que, além dos negros africanos, que também faziam parte das tropas, tinha também o fato de que o europeu não distinguia bem entre o negro e o árabe por serem todos escuros. Então, a palavra mouro que se usava é uma coisa indistinta. Otelo, o Mouro de Veneza, ele não é um árabe, ele é um negro, um negro africano, mas do ponto de vista europeu eram todos mouros. Então, de repente, chegavam os homens de pele escura, uns mais escuros e outros mais claros, e os escravizavam, e escravizaram pelo menos cinco milhões de pessoas muito antes dos europeus chegarem lá. Assim, à luz da história, nem o europeu é exclusivamente escravizador nem o africano é exclusivamente o escravizado, e nem o contrário, ambos foram, e com uma diferença, os africanos foram muito antes, eles que começaram com essa história, porque quando eles chegaram à Europa a escravidão européia tinha sido abolida - quando acabou o império romano, acabou a escravidão. O escravo romano era como uma coisa, um objeto, ele era propriedade de seu senhor, ele não podia ter bens pessoais, ele não podia casar, não podia ter família, etc. Quando caiu o império romano a igreja então substituiu isso por uma nova legislação que dava a eles o acesso ao direito de constituir família, legar herança etc., ou seja, eles estavam adquirindo uma condição mais próxima do que a gente chamaria hoje de cidadania. E foi aí que chegaram os muçulmanos, e não só eles escravizam gente a partir já dos primeiros ataques que fizeram à Europa, mas continuaram fazendo isso até o século XIX; no século XIX ainda havia gente escravizando europeu. E no meio dos árabes entravam os negros africanos como escravizadores também - ou como soldados, ou como senhores de escravos eles mesmos, ou como traficantes, ou como capatazes. Hoje em dia é que começam a ser publicados relatos sobre os europeus escravizados nessa época. Então, toda essa imagem de que o negro é um “coitadinho” é uma mentira monstruosa. A escravidão em si é um mal, pouco importa quem escraviza quem, não é uma condição que você deseje pra ninguém, muito menos pra você. É como dizia o filme do Jean Gabin, “Eu amo a liberdade, sobretudo a minha” [risos] .
Então, todos esses movimentos, essas ideologias, têm uma visão muito parcial, deformadamente parcial e transformam aquilo em toda uma cosmovisão e ainda vendem isso como se fosse verdade. Esses caras são todos charlatães, são todos vigaristas, são pessoas perigosíssimas; perigosíssimas, em primeiro lugar, pra inteligência humana. Basta você acreditar em uma figura de pensamento que eles usam e isso entra na sua cabeça feito vírus de computador, porque nossa cabeça funciona analogicamente. Quando você pega um esquema para explicar um determinado fato, você usa o mesmo esquema para explicar muitos fatos análogos, e então a coisa infecta e você acaba pensando tudo por estereótipos. E uma vez que você entrou nisso, o conhecimento dos fatos ou se torna inacessível pra você, porque você não enxerga mais, ou você se torna imune a eles. Por mais que se jogue os fatos brutais na cara do sujeito, ele não enxerga mais, ele já está estupidificado e esta estupidificação sistemática é o que hoje no Brasil se chama educação, é o que se chama cultura superior. Todos esses vagabundos, vigaristas, filhos da puta, canalhas, tipo Emir Sader, Quartim de Moraes, só se dedicam a isto. É gente que, para o meu gosto, estaria trabalhando num posto de gasolina, varrendo rua ou cortando cana como se faz em Cuba, e jamais poderiam ter acesso a uma cátedra universitária porque não têm idoneidade nem moral nem intelectual pra isso. O primeiro traço da idoneidade é buscar os aspectos contraditórios da realidade, todos eles, até compor um conjunto, e daí você pega mais ou menos a estrutura do que está acontecendo. E o que esses camaradas fazem? A primeira coisa é eliminar essa complexidade, escolher uma linha que eles gostam e recriar toda a imagem do mundo a partir desse pontinho, dessa linha e, em seguida, infectar os outros com essa deformidade mental monstruosa, ou seja, eles são vendedores de vírus, são comerciantes de drogas. Uma obra como a do Emir Sader é pior do que maconha, porque o efeito da maconha passa e a de um ensino, entre aspas, como esse não passa, deforma, imbeciliza, estupidifica, aleija mentalmente e desqualifica pra sempre. Eu considero tudo isso crime. Quando eu digo que a educação brasileira é crime organizado não é figura de linguagem, porque tudo isso aí é pra criar uma multidão de imbecis que vai dar sustentação a coisas como FARC, e FARC o que é? Narcotráfico. Se não fosse essa educação brasileira jamais o narcotráfico alcançaria no Brasil o sucesso que alcançou. O Brasil é o único país onde o narcotráfico cresce no mundo. Aqui nos EUA o tráfico diminuiu pra um terço, o consumo de drogas diminuiu um terço nos últimos dez ou quinze anos, e no Brasil aumenta, e com a ajuda de todos esses canalhas, todos são amiguinhos das FARC. Agora, dizer que isso é cultura superior, que isso é ciência, filosofia, isso é nada, é vigarice mesmo. Eu não tenho medo de dizer-lhes isso. Quando eles exigem um debate cultural educado é porque querem cometer todos os crimes que eles gostam e ainda serem elogiados por isso. Eu não respeito nada essas pessoas, elas não merecem respeito nenhum, merecem um soco na cara, uma cuspida no olho, um pontapé na bunda e uma demissão por justa causa, é isso que merecem; tem que botar todos esses caras na rua e dizer: vai trabalhar, vagabundo, pare de falar aí dos pobres e dos oprimidos e vá trabalhar como eles.
Eu fui muito pobre quando criança, comecei a trabalhar com quatorze anos de idade pra me sustentar, tive os piores empregos que havia na praça. Mas eu sei que o seu Lula, com vinte e poucos anos, arruma uma aposentadoria e vive dela até hoje. Quer dizer, ele é pobre honorário, porque deixou de ser pobre há muito tempo, hoje é milionário, e continua tendo, vamos dizer, as honras devidas ao pobre. E eu, que continuei pobre, sou oficialmente um representante da burguesia, do imperialismo, do grande capital etc. Ora, quem é que não percebe que tudo isto é uma farsa? Que é em parte uma fantasia, uma doença, doença psiquiátrica mesmo, e por outro lado é uma farsa interesseira? Eu lembro que, quando fui ter um debate com o João Pedro Stédile no Rio Grande do Sul, eu fui de paletó e gravata, por uma questão de educação, e ele foi de macacão. Então eu tive que avisar à platéia: olha turma, não se deixem iludir pelas vestimentas das personagens, porque meu interlocutor é economista formado por uma faculdade particular, que eu, naquela idade jamais poderia pagar. Mas no Brasil o parecer é tudo, o ser é nada.
Como é que você vai falar de cultura superior num lugar onde as pessoas não têm nem essa noção? Elas não têm a noção da busca do conhecimento, não têm a noção da verdade, não têm a noção do esforço intelectual e sobretudo não têm a noção da luta da alma individual com as dificuldades do conhecimento - quer dizer, uma realidade opaca que resiste à sua inteligência e que você tem que lentamente ir perfurando até chegar a alguma coisa. Eles nunca tiveram esse problema. Por quê? Porque quando tinham dezoito anos receberam a solução pronta de todos os problemas. Esse idiota do Quartim de Moraes quando tinha quinze anos alguém meteu esse marxismo na cabeça dele, e ele disse: É isso, tá resolvido, já sei tudo; e continua sabendo até hoje. Também meteram na minha cabeça, eu também acreditei, dos quinze até os vinte e um; se eu fosse um cara inteligente eu levaria três meses pra me livrar dessa merda, como eu sou burro levei uns cinco ou seis anos. E daí eu mesmo falei: não, agora eu quero ver o avesso disso, eu quero ver não só o avesso, não só o contrário simétrico, mas quero ver outro lado, outras possibilidades. Mas eles não se interessam por isso, não se interessam pela busca da verdade porque vivem da mentira, são profissionais. Imaginem se esse Quartim de Moraes amanhã ou depois descobre que o marxismo não funciona? Ele não vai contar pra ninguém, vai esconder embaixo da cama, porque vai ser um vexame, não é?
R.B. Em contraposição ao crédito que ainda goza o conceito de Revolução, o senhor nos afirma, em um de seus artigos, que “mentalidade revolucionária” é o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana em geral – por meio da ação política. E vai mais adiante, afirmando, em seguida, que ela, tal mentalidade, é totalitária e genocida em si, independentemente dos conteúdos ideológicos de que se preencha em diferentes circunstâncias e ocasiões. A questão que se coloca então é se o ideário revolucionário contemporâneo se impõe como uma escolha livre dos homens ou como um coup de force do Estado. E, caso se imponha como uma escolha livre dos homens, ou da maioria dos homens, não seria ele legítimo ainda que genocida e totalitário? Enfim, quais os limites da democracia?
O.C. Para o meu entendimento das coisas, depois de quarenta anos estudando esse negócio, não existe no mundo crime maior do que o de ser revolucionário. Tudo o mais é brincadeira de criança perto disso. E digo por quê:
A mentalidade revolucionária surge desde dentro do cristianismo, ela é um subproduto do cristianismo, ela é um subproduto da decadência do cristianismo. Ela surge em primeiro lugar nas seitas messiânicas, entre os séculos XV e XVI, e a idéia é a seguinte: são sujeitos religiosos que ficam revoltados com as injustiças, com a bandalheira do mundo etc., e resolvem tomar o emprego do nosso Senhor Jesus Cristo. Nosso Senhor Jesus Cristo anuncia no evangelho que haverá o juízo final, e que ele virá separar os carneiros dos bodes. Esses caras pensaram: não precisa esperar o juízo final, nós vamos fazer isso já, ou seja, eles se investem do papel do Cristo vingador e pegam o chicote na mão pra castigar a humanidade. Nenhum ser humano tem o direito de fazer isso, essa idéia em si é criminosa. Nenhum ser humano pode se levantar acima de toda a humanidade, e se intitular o padrão, o paradigma de justiça e bondade, de tal modo que isto o habilite a punir os outros. A idéia da punição geral de toda a humanidade é inerente à mentalidade revolucionária, e não existe um crime maior porque isto é o crime em si. O indivíduo simplesmente toma o lugar de nosso Senhor Jesus Cristo: desce daí da cruz, sai daí, agora você me dá o chicote que eu vou castigar os “vendilhões” do templo. Quer dizer, a idéia de se fazer a justiça universal, de se fazer justiça pelas próprias mãos é errada sempre. Agora, se você fizer justiça pelas próprias mãos em cima de toda a humanidade, você é um monstro, você é o pior dos criminosos; tanto que todos os males apontados pela mentalidade revolucionária são tremendamente aumentados pela intervenção da própria mentalidade revolucionária. Se você somar todo o derramamento de sangue, as guerras, a miséria, o empobrecimento geral, a destruição civilizacional feita pela mentalidade revolucionária desde que ela surgiu até hoje, não há nada no mundo que se compare. Se você pegar só o que aconteceu no século XX, pega esses cem milhões de vítimas do comunismo e procure algum outro mal que tenha afligido a humanidade em outras épocas e que tenha matado cem milhões de pessoas. Nada matou cem milhões de pessoas. Se você somar todos os terremotos e epidemias e as duas guerras mundiais, tudo isso matou menos gente que o comunismo. E ainda tem gente que tem coragem de achar que o fato dele aderir ao comunismo é por idealismo ou por bondade. Não é idealismo nem bondade nenhuma, existe aí uma vaidade monstruosa que é intrinsecamente assassina. É necessário entender isso, porque a revolução é o desejo de punir a humanidade. O sujeito revolucionário se coloca automaticamente acima da justiça e diz: eu sei o que é justiça, e vocês não sabem, e eu vou impor aquilo a ferro e fogo. Qualquer sujeito que tenha essa idéia é um criminoso, é um sociopata, uma pessoa que deveria ser excluída do meio social até que tirasse essa idéia da cabeça: olha, você não tem esse direito, ninguém tem esse direito, e aqui ninguém vai punir ninguém, nós podemos no máximo punir um ou outro que cometa abusos extraordinários - como se castiga um estuprador, um assassino ou uma coisa assim -, mas punir a sociedade, punir a humanidade? Que é que é isto? Quem é você? Como é que se pode acreditar que o desejo de justiça pode tomar a forma de uma ambição de poder que vai dar ao indivíduo um chicote do tamanho do mundo? Você acha que isso é justiça? Isso é a máxima injustiça que pode haver. Quer dizer, aquele grupo representa o bem e vai castigar todos os outros. Só esta pretensão já é totalmente injusta. Porque justiça significa equilíbrio, senso da proporção, e essa idéia já é tão desproporcional, ou seja, o indivíduo se intitula o Cristo vingador, assume o lugar do Cristo vingador, e daí sai de baixo, ele vai castigar todo mundo. Qualquer pessoa que tenha essa idéia é um inimigo da espécie humana, e o número dessas pessoas multiplica. Desde o século XV ou XVI que essa coisa vem se multiplicando, multiplicando, até que por volta do século XVIII e XIX isso se transforma nas ideologias de massa, que se condensam nos regimes revolucionários como o comunismo, o nazismo, o fascismo etc., com distintas gradações de poder. Se você tomar somente uma dessas que é o comunismo, que foi a maior, e abordar a questão da miséria e da fome no mundo, nunca nenhuma crise econômica, ou onda de desemprego, ou guerra, conseguiu matar de fome trinta milhões de pessoas de uma só vez, como o regime comunista conseguiu com o grande salto para frente, que foi a coletivização da agricultura; e com isso eles conseguiram passar até à frente da Rússia, que conseguiu matar uns dez milhões, dos quais oito milhões na Ucrânia - a Rússia matou de fome oito milhões de pessoas na Ucrânia. Então, como é que pessoas que personificam essa ideologia têm a cara de pau, o cinismo de dizer que elas lutam para eliminar as misérias do mundo? Mas elas são a causa da miséria do mundo, a principal causa da miséria do mundo! Agora, onde a mentalidade revolucionária não pega, como não pegou, por exemplo, na Inglaterra e não pegou aqui [EUA] , existem possibilidades, as coisas vão prosperando e vão se ajeitando. Agora, onde entra a mentalidade revolucionária, ela provoca rupturas tão profundas, e destruições tão avassaladoras, que depois não se tem como consertar. Veja, o regime comunista chinês matou 60 milhões de pessoas, criou a ditadura mais tenebrosa, mais opressiva que a do Hitler - porque o governo do Hitler ainda tinha pelo menos o mérito de ser anárquico; por exemplo, as várias facções do partido nazista brigavam umas com as outras, o partidário tinha lá o seu feudo que ninguém invadia, ou seja, ainda tinha um resto de confusão. Agora, o chinês foi organizado, tão organizado que conseguiu matar muito mais gente do que o próprio Hitler. E o que é que eles conseguiram com isso?
O pessoal pensa que a economia chinesa é pujante, ela é pujante em apenas cinco cidades. A miséria do interior da China é uma coisa indescritível e apocalíptica que continua a mesma coisa. Ou seja, eles não conseguem resolver os seus problemas. Qualquer partido revolucionário que chega ao poder só tem uma capacidade, que é a capacidade de destruição. Portanto, se não houver resistência a ele, como não acontece no Brasil - está tendo uma ascensão revolucionária e não há resistência -, aí eles, o partido, têm que inventar inimigos. Então inventam que existe uma burguesia organizada contra ele, mas não tem nada, não existe nada, e se eles não têm inimigos, inventam inimigos honorários, como fazia a KGB. A KGB tinha uma cota diária de prisões para efetuar, e não interessava quem ia ser preso. Eles tinham que prender um certo número de pessoas para dar a idéia de que existia um movimento subversivo tentando derrubar o Estado comunista. Ou seja, o número de condutas que podem ser criminalizadas vai aumentando até chegar em casos como esse do Armando Valladares, que por causa de uma piadinha o sujeito ficou preso por vinte e quatro anos. Quando não há perigo para o regime, qualquer coisa se torna perigoso, até uma piadinha, e isso faz parte da natureza mesma da ideologia revolucionária. Portanto, não tem perdão, o revolucionário é criminoso e genocida por excelência, e pode passar o tempo que for, os fatos só confirmam o que eu estou dizendo. São fatos tão monstruosos que as pessoas ficam com medo. Os revolucionários são pessoas tão ruins, tão ruins, que as pessoas têm que atribuir algo de bom a isso: tem que haver algo de bom nisso, não é possível que tudo isso aconteça e não resulte em nada de bom. Por que as pessoas são capazes de entender, por exemplo, que o nazismo não tinha nada de bom? Só por um motivo: porque o nazismo acabou. Se ele estivesse aí, se ele ainda fosse um perigo, as pessoas estariam atribuindo a ele toda a sorte de virtudes como atribuíam naquele tempo, até os comunistas atribuíam, até Stalin atribuía virtude ao regime nazista. E isso porque quando se tem medo de alguma coisa, existe um limite pra capacidade humana de sentir medo, ou seja, quando o medo passa de um certo ponto, começa-se a delirar, quer dizer, começa-se a querer enfeitar aquele elemento perigoso para o alívio do sujeito. É como o conto da Flannery O`Connor, A good man is hard to find, que é um dos grandes contos da literatura americana: uma família que sai de férias, e lá pelas tantas são pegos por uns bandidos que estavam ali à solta, e então a velha, a avó, que é uma mulher falante, toda empombada, metida, até o fim quer se persuadir de que o assassino é um cara bom. Ela vê que eles pegam seu genro, levam pro meio do mato e “pum”, ouve-se um tiro. Daí sumiu o genro. Daí sumiu o filho. Daí sumiu o outro... e ela até o fim querendo se convencer de que os caras eram bons, até que eles dão um tiro na cabeça dela. Então, é o medo, que depois denominaram “síndrome de Estocolmo”. Isso quer dizer que, para se reconhecer a realidade do movimento revolucionário, é preciso simplesmente ter coragem intelectual, coragem moral, que não está ao alcance da média humana. Poucas pessoas têm, e estas são pessoas que são capazes de ver o mal com todo o seu tamanho porque confiam e têm uma idéia real da grandeza de Deus. Então, se você conhece o bem, você sabe o tamanho do bem, porque o bem é sempre maior. Agora, se você está vacilando nisso, você vai ter que “folhar o cu da gansa”, você vai ter que enfeitar o mal e dizer: eles fizeram tudo isso, mas foi por idealismo, foi por um mundo melhor.
Ora, a estrutura interna do raciocínio revolucionário é o seguinte: Eu invento um mundo melhor, hipotético para o futuro, e já atribuo a mim os méritos desse mundo futuro, de maneira que eu já estou autorizado a fazer no presente todos os crimes que eu queira, por quê? Porque eu sou o representante do mundo futuro. Isso é a estrutura interna do raciocínio revolucionário. Todo raciocínio revolucionário consiste em poder fazer o mal no presente em nome de um futuro hipotético, ou seja, você está fazendo um mal real, efetivo, em nome de um bem meramente hipotético. Você percebe que a pessoa que raciocina assim, já está se dando prerrogativas divinas. Por que nós somos obrigados a aceitar que você é bom, só porque você falou de um futuro? Por que você não mostra a sua bondade agora? Por que é que pra chegar nessa coisa maravilhosa que você diz, tem que passar por tantos crimes e tantos horrores? Por que você não faz algum bem agora? A resposta é simples. Se ele quisesse fazer algum bem agora, ele teria de fazer um bem na realidade, e o bem na realidade é limitado, cada um só pode fazer um pouquinho, e ele seria apenas uma pessoa como qualquer um de nós e não esse tipo especial, maravilhoso, que ele quer ser, que é o príncipe vingador, o arremedo de Cristo, o arremedo satã de Cristo.
Porém, o fato é que quando começou a surgir isso, a própria igreja não soube entender o que estava acontecendo e não percebeu a gravidade do que estava acontecendo. E tem muita gente que até hoje não percebeu. É aquela famosa frase: Quem não é comunista aos dezoito anos não tem coração e quem é aos cinqüenta não tem cérebro. Não, o sujeito é comunista aos dezoito anos porque ele não tem coração, porque, se ele tivesse coração, ele ia tentar fazer o bem para as pessoas que estão ao seu alcance, e não tentar matar um monte de inimigos primeiro pra criar um mundo futuro melhor. É um raciocínio tão invertido, que o caráter psicótico deles se revela imediatamente, psicótico e perigoso. Os revolucionários são todos sociopatas, e eles são a causa de todos os males do mundo moderno, que são males incomparáveis a tudo aquilo que a humanidade já viveu. Você não vai encontrar nenhum fenômeno parecido nem no tempo de Átila, o uno, Genghis Khan, Júlio César... não tinha nada disso. Veja, as guerras na Europa, as grandes guerras que a gente fala, as guerras de religião que as pessoas falam como se fossem o pior dos males, as batalhas, até a época do Renascimento e depois, envolviam no máximo algumas centenas de pessoas, e fora das cidades. Depois, com o advento da modernidade, das luzes etc., as guerras invadem tudo, invadem as cidades, invadem os lares, invadem as famílias... e agora tem esse conceito hediondo da guerra do povo inteiro, defendido pelo Ho Chi Mihn e hoje pelo [Hugo] Chávez. Que é que é isso? A mentalidade revolucionária.
Há muitos problemas humanos que não têm solução, que fazem parte da estrutura da vida mesmo, nós não podemos suprimi-los, nós podemos tentar melhorá-los à medida das nossas possibilidade e, aliás, é o nosso dever fazer isso. Agora, esses males trazidos pela mentalidade revolucionária, eles não são necessários, eles não fazem parte da condição humana, eles são uma anormalidade, esses podem ser resolvidos. Se me perguntarem: como é que nós vamos fazer para elevar a situação do camponês russo, desde a condição de quase servo da gleba à condição de um cidadão de uma democracia industrial moderna? Eu não sei, eu não tenho essa solução, pode ser difícil, pode levar cem ou duzentos anos, mas, qualquer que seja a magnitude desse problema social, ele é menor do que o flagelo representado pelo comunismo, porque o comunismo aumenta a miséria, um cidadão soviético da década de setenta comia menos proteínas em média do que um súdito do Czar, cria um morticínio e um regime de terror permanente, e ainda cria a loucura generalizada, porque o medo enlouquece, não se pode fazer as pessoas viverem na base do medo; na base do medo todos começam a desconfiar uns dos outros, e todas as virtudes humanas vão pro brejo e todos os bons sentimentos desaparecem, ou seja, é uma monstruosidade, isso não tem perdão e não tem explicação. Eu compactuei com isso quando era jovem, por um breve período, e muita coisa que eu concluí depois foi examinando os meus motivos, e os motivos dos meus amigos: por que é que nós entramos nisso? É porque nós amávamos todos os pobres? Nós não amávamos ninguém, os pobres para nós eram uma entidade abstrata. Aos poucos que eu fui percebendo que não era um idealismo mal orientado, não, era uma perversidade intrínseca, uma vaidade monstruosa, e uma reivindicação de poder anormal. Nenhum dos déspotas da Antiguidade tiveram um poder comparável ao de Stalin, Lênin, Hitler... eles nem podiam imaginar uma coisa dessas.
R.B . Como não poderia deixar de ser, em O futuro do pensamento brasileiro, o senhor não avalia a extensão e a influência dos teus escritos que, inegavelmente, já fazem parte da formação intelectual de um numeroso grupo de jovens dispostos a compreender a realidade sem o compromisso de filiação às normas de conduta e discernimento impostas pela ideologia política dominante. Como então o senhor analisa a influência de tuas idéias tendo em vista o futuro do nosso pensamento?
O.C . Eu acredito que essas idéias e essas coisas todas que escrevi têm uma irradiação considerável, e eu acho que não há outra pessoa atuando na área intelectual que tenha uma influência desse tipo, porque a influência do Emir Sader e do Quartim de Moraes não é intelectual, é pura máfia, não é uma questão de idéias, é simples arregimentação de militantes. Então, influência intelectual eu penso que ninguém atualmente tem como eu, no Brasil. Mas, mesmo assim, é uma coisa muito limitada em face do problema que a gente tem na mão, tinha que ter pelo menos duzentos fazendo a mesma coisa que eu estou fazendo. E infelizmente o único similar a mim que eu encontrei foi o Bruno [Tolentino], mas ele como força cultural não deu certo, ele tinha uma missão educativa, mas não lhe deram os instrumentos pra isso, e ele não soube conquistá-los. Não soube por quê? Ele não entendeu que a miséria do ambiente intelectual brasileiro era muito pior do que ele estava pensando. Tudo aquilo que escreveu em Os Sapos de Ontem [de 1995, este livro registra a polêmica análise que o poeta B.T. fez de uma tradução do poema Praise for an urn, do Hart Crane, realizada pelo poeta Augusto dos Anjos, e publicada pelo jornal Folha de São Paulo. Além disso, há também um ensaio de abertura a respeito do Concretismo, bem como uma série de poemas satíricos dedicados a uma parcela significativa dos homens de Letras deste país] são críticas leves se você compará-las à maldade real daquelas pessoas. Então, ele achava até que podia conviver com essas pessoas na base do debate intelectual, mas não podia, porque elas não são intelectuais que estão debatendo com você, são grupos políticos que querem te destruir - destruir socialmente, destruir economicamente, destruir profissionalmente e, se tudo isso falhar, destruir fisicamente. Todas elas são adeptas do homicídio político. Ninguém pode ser marxista sem concordar com o homicídio político, e com o homicídio político em massa. Tá aí o Quartim de Moraes fazendo apologia de Stalin, dizendo que ele foi maravilhoso, o libertador da humanidade, e o número de puxa-sacos de Che Guevara e Fidel Castro já mostra que todos eles acham isso lindo...
R.B. Professor, qualquer um que tenha acompanhado os teus artigos, tuas conferências, teus debates, teus pronunciamentos no blog talk radio etc. tem a impressão imediata de estar diante de um homem imensamente corajoso e perseverante. Quando é que o senhor tem medo? O que faz o filósofo feliz?
O.C. Eu tenho medo do Juízo Final e isto é suficiente para atenuar qualquer outro medo que eu venha a ter, porque a minha preocupação com a sobrevivência existe, como a de todo mundo, mas como eu sei que existem perspectivas maiores e mais sérias do que a morte, então é evidente que eu me concentro nelas e não vejo a morte ou a desgraça terrena como o mal maior. Quem tem alguma idéia do que é a vida após a morte, eu andei estudando bastante este assunto e sei que não é uma questão de pura fé, mas um fato, uma coisa que existe realmente, começa a ter uma visão bastante diminuída ou atenuada dessas coisas que tanto preocupam as pessoas cuja perspectiva é exclusivamente terrestre – se o sujeito está apenas interessado em sobreviver na Terra e levar a vida da melhor maneira que possa, as preocupações dele são uma, já as minhas são evidentemente outras. Eu só estou interessado, por exemplo, com relação aos leitores, ao público etc., aliás, o único público para o qual eu escrevo é Deus, eu só quero saber a opinião de Deus a respeito do que eu estou fazendo; a do outros, se for favorável é bem vinda, se não for favorável não tem a menor importância. Então, o público para o qual eu escrevo é um público extremamente exigente e ele não vai se limitar nem a dar palmadinhas nas costas, e nem a fazer fofocas. Assim, quando a gente pensa nas coisas nessa escala, evidentemente todos os valores da vida mudam de dimensão automaticamente. Eu já avisei às pessoas que eu não vou me comover com a minha própria morte, então qualquer chantagem que seja dirigida ao meu senso de sobrevivência tem um efeito bastante limitado, não digo que não tenha efeito nenhum, algum tem sempre, tenho meu instinto animal de autopreservação, mas acima dele existem outros fatores. Eu sei que isto se tornou impensável e inimaginável para uma grande parte das pessoas. Pelo menos nos centros urbanos, as pessoas nem sabem do que estou falando quando me refiro a essas coisas, mas eu sei que não posso basear minha conduta, minhas reações nas opiniões e sentimentos dos outros.
R.B. E o futuro do pensamento do Olavo de Carvalho? O que podemos esperar? Algum livro no prelo? O que o senhor espera do futuro?
O.C. Para mim o principal agora é terminar esta série de estudos que estou fazendo sobre a mentalidade revolucionária. Não é um plano literário, não é um plano de edição, é um plano de investigação filosófico-científica que quero fazer chegar a algumas conclusões e espero poder divulgá-las. Não sei se isso poderá tomar o formato de um livro, porque o material que eu já tenho acumulado sobre o tema já dá pra muitos livros, e além disso dei muitos cursos que foram gravados e que se fossem transcritos iria dar dez livros. Eu não faço planos literários. Eu não me incomodo se vou editar livros, se não vou. O que importa pra mim é o que eu posso aprender, o que eu posso descobrir no curso desses estudos e transmiti-los pelo menos a uma pessoa. Antigamente o pessoal perguntava assim: quantos alunos são necessários pra você dar um curso? Eu respondia: no mínimo um. Se tiver um sujeito para você falar, é possível que ele repasse aquilo a outras pessoas. Claro que é importante documentar o resultado da pesquisa, mas, se você vai formatar isso como livro ou como dvd, não tem grande importância. O meu plano é, primeiro, terminar esta investigação, que já tem bastantes resultados, mas ainda tenho uma lista de, pelo menos, duzentos livros, duzentos documentos escritos que ainda tenho que examinar pra isso e que talvez modifiquem algumas das conclusões que eu já expus nos cursos. Plano na área intelectual, no momento, é apenas este. No mais, não estou planejando nada, eu estou muito satisfeito com aquilo que estou fazendo, só acho que eu tinha que fazer mais, mais e mais intensamente, eu espero. Agora que a gente entra na última etapa da vida, depois dos 60 anos, eu espero me livrar dos últimos resíduos de dispersão que tenho, que ainda são muitos. Lamento anos e anos que perdi me interessando por bobagem e espero me tornar, nos próximos anos, um sujeito mais concentrado e mais devoto também - espero que a consciência que eu tenho da vida após a morte se aprofunde e que quando chegar a hora de morrer eu sabia mais ou menos para onde estou indo, e espero também ir para o lugar certo. São só esses os meus planos, o que mais eu poderia esperar da vida? Nós existimos para servir a Deus, essa é a verdade, e no meio do serviço a gente se esquece e pensa em outra coisa e busca um monte de auto-satisfações pueris. Eu imagino que Deus deve dar muita risada às nossas custas, porque Ele dá um negócio sério pra gente fazer e a gente esquece e começa a tratar de bobagem. Deus tem uma paciência muito grande com a gente. Digamos que se eu percebesse aos 20 anos claramente o que é que eu tinha que fazer, eu teria tido 40 anos a mais pra fazer, mas a cada dia é que eu vou entendendo o que é preciso fazer, e quanto mais se entende, menos tempo se tem pra fazer e isso de certo modo é bom porque o sujeito vai se concentrando, concentrando, concentrando... Então, o que eu espero é simplificar a minha vida e me concentrar nas tarefas verdadeiramente importantes, e acho que esse deveria ser mais ou menos o trajeto de todo mundo, à medida que se vai ficando velho, vai concentrando. Quando se observa, por exemplo, a obra dos pintores, se vê que quando eles ficam velhos os traços vão se tornando cada vez mais simples, mais sumários, mais esquemáticos, o sujeito não quer mais detalhar as coisas - eu acho que eu também estou ficando assim, estou concentrando. Enfim, o meu maior sonho na vida é não morrer como um idiota. Tem a famosa frase do Bernanos [George Bernanos (1988 – 1948), escritor católico francês que residiu no Brasil de 1940 a 1945] que, quando eu li, fiquei muito assustado: "O perigo que nós corremos não é só o de morrer, mas de morrer como idiotas", e aquilo me deu um calafrio na espinha, você vê milhões de pessoas que morrem como idiotas, que morrem sem nunca ter pensado o que é que é morte. Mas veja que coisa mais idiota: nós sabemos que vamos morrer, temos um prazo para viver aqui, um prazo mais ou menos indefinido, há uma média estatística de duração de vida, depois nós vamos morrer, e as pessoas não querem saber o que é que é morte – como é possível? Há vinte anos eu li um monte de livros sobre isso, sobre depoimentos de pessoas que estiveram clinicamente mortas e que relatam suas experiências, e há uma uniformidade muito grande no que elas contam, além de eu ter estudado a teologia da morte, como é no Cristianismo, como é no Judaísmo etc., e acho que todo mundo deveria se interessar por isso porque é algo que vai acontecer com todos nós, e, no entanto, as pessoas se preocupam se o pau delas vai se levantar no dia seguinte, como se a humanidade estivesse muito interessada nisso; se o sujeito não levantar o seu pau vai haver uma crise universal, ou vamos morrer de fome [irônico], mas acontece que, se o sujeito não levantar o seu pau, sua mulher vai dar pra outro, e isso é o máximo que pode acontecer, e são coisas que estão acontecendo desde que o mundo é mundo. Então, a futilidade das preocupações das pessoas é algo que me impressiona cada vez mais, a futilidade das minhas próprias preocupações passadas me impressiona. Eu vejo, por exemplo, que as pessoas perdem tempo pra saber se elas estão agradando, se elas não estão agradando; se as outras gostam dela, se não gostam dela; ficam como umas idiotas puxando aquela florzinha: bem-me-quer, mal-me-quer. Quer dizer, o sujeito perde anos nessa bobagem e chega uma hora que você fica velho e diz: daqui pra diante eu tenho um certo prazo pra viver e depois vou morrer, então eu tenho que fazer isso com seriedade e elegância, tá pensando o quê?, não se pode passar um vexame na velhice, na morte. O filósofo Mário Ferreira dos Santos viveu pouco, ele tinha um problema cardíaco muito grave, era gordo pra caramba, então com uns 60 anos, com a minha idade, ele já estava no balão de oxigênio sabendo que ia morrer daí a pouco. Mas na hora de morrer, ele quis morrer de pé, ele pediu pras pessoas colocarem-no de pé e morreu de pé rezando o Pai-nosso. Eu não tenho planos de morrer semana que vem, nem hoje, muito menos hoje, mas eu quero ter uma morte digna, não com a consciência do dever cumprido porque nós jamais cumprimos o dever, mas pelo menos com uma consciência que dê a Deus um pretexto para Ele nos salvar. Eu vou morrer assim, pedindo: Ó Deus, inventa alguma coisa em meu favor, o Senhor deve saber, eu não sei, o Senhor é capaz de inventar alguma coisa, algum pretexto pra perdoar os meus pecados e me botar no paraíso.