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Teses_Monologos-->Capitalismo e Ser Social em Lukács -- 02/02/2002 - 01:18 (Marcelo Micke Doti) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Capitalismo e Ser Social
O Afastamento das Barreiras Naturais e o Irracionalismo em Lukács



aluno: Marcelo Micke Doti
orientador: José Antônio Segatto




Texto para Dissertação de Mestrado
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia - FCL, Campus de Araraquara



















Dedicada aos meus pais

Índice



Agradecimentos ..............................................................................................................4
Apresentação ..................................................................................................................6

Introdução ......................................................................................................................9
1.Contraditoriedades e Problemas ........................................................................9
2.Significado da Ontologia ..................................................................................14

Parte I - O Afastamento das Barreiras Naturais .........................................................24
1.Introdução........................................................................................................25
2.Pólo Singular da Reprodução e Totalidade ......................................................26
3.Complexos Singulares e Totalidade ..................................................................28
4.Sociabilização e Afastamento das Barreiras Naturais .......................................35
5.Modo de Produção Asiático ..............................................................................42
6.Modo de Produção Escravista - Antiguidade Clássica ......................................44
7.Diferença entre Formação Asiática e da Antiguidade .......................................49
8.Feudalismo .......................................................................................................52
9.Capitalismo ......................................................................................................57
1. Posse e Propriedade ...........................................................66
2. Circulação de Mercadorias .................................................67
3. Grande Indústria e Bens de Consumo: Marx e o
Capitalismo Moderno..........................................................69
4. Desenvolvimento Maior da Mais-Valia Relativa .................70
5. Controle Capitalista ...........................................................72
6. Manipulação ......................................................................75
10.Conclusão......................................................................................................79

Parte II - O Conceito de Irracionalismo ......................................................................81
1.A Ideologia como Categoria da Ontologia de Lukács .....................................82
2.O Conceito de Irracionalismo ........................................................................86
3.Características do Irracionalismo ..................................................................90
4.Tendências Irracionalistas Atuais .................................................................110

Bibliografia .................................................................................................................129

Agradecimentos

Creio que as linhas de agradecimento que desejo fazer aqui tenham o mesmo grau de dificuldade ou talvez sejam até mais difíceis do que escrever esta dissertação. O motivo para isso é que muitas pessoas, direta ou indiretamente, contribuíram para que este trabalho pudesse chegar até aqui. No fim fica uma certeza: o conhecimento é um trabalho, sem dúvida, social.
Inevitavelmente devo agradecer de início a uma pessoa que me permitiu entrar em contato com muitas idéias e pessoas que, de uma forma ou de outra, ajudaram-me ao longo do caminho que por enquanto percorri: o Prof. Quartim de Moraes.
Uma dessas pessoas com quem pude entrar em contato através do Prof. Quartim de uma forma indireta e que me colocou em contato com uma leitura muito atenta e cautelosa de Lukács foi o amigo Sérgio Lessa. Com certeza muito desse trabalho se deve à sua compreensão e paciência. Grande companheiro...
Uma dívida inestimável tenho para com o meu orientador, o Prof. José Antônio Segatto. O Prof. Segatto acolheu o meu trabalho e ajudou-me com os contatos para a banca além, é claro, de sua leitura atenta, crítica e não avessa ao filósofo húngaro como é tão comum no meio universitário. Acrescente-se a isso a indicação de novas leituras mesmo com o trabalho já pronto para que o máximo possível de coerência e capacitação teóricas fossem alcançadas. Não devo nunca esquecer também todos os cuidados práticos com as questões relativas à dissertação como formação de banca, prazos, etc.
Devo um agradecimento especial também ao professores da banca, seja de qualificação, seja de dissertação final, que se dispuseram a ler e avaliar um trabalho sobre o velho pensador húngaro pouco “em moda” hoje em dia.
Gostaria de incluir nessa lista de agradecimentos algumas pessoas de meu convívio pessoal e que foram importantes em alguns aspectos desse trabalho, seja intelectual, seja passional.
E a primeira pessoa a quem devo um agradecimento muito especial é ao amigo e companheiro Prof. Paulo Lima. Paulo está no meio do caminho entre os agradecimentos pessoais e aqueles mais ligados ao meio acadêmico. Foi o Prof. Paulo Lima que me iniciou nas leituras de Lukács e me ensinou a riqueza filosófica do marxismo a partir de leituras como os Manuscritos de 1844, A Ideologia Alemã além de textos de Lukács como o capítulo da Ontologia sobre “As Bases Ontológicas Fundamentais do pensamento de Marx”.Com essas leituras iniciais do marxismo e de sua riqueza filosófica, fiz meu trabalho de monografia de curso tendo como orientador o Prof Paulo Lima. A semente inicial deste trabalho está aqui. A partir, então, dessa descoberta inicial o que fiz foi apenas refinar e apurar cada vez mais os conhecimentos. Tudo isso aconteceu em 1989. Foi o amigo Paulo Lima que continuou a me ajudar, seja em conversas, em projetos, ou simplesmente confiando na minha capacidade de realizar um bom trabalho intelectual. Incentivou-me a terminar este trabalho e prosseguir nas pesquisas lukácsianas. Muitas vezes resolveu problemas burocráticos para mim já que meu tempo é escasso em função da atividade de trabalho. Dessa forma, o amigo e professor Paulo Lima acompanha de maneira muito pessoal e íntima esse trabalho há dez anos conhecendo tanto a evolução conceitual como pessoal do mesmo. Sem palavras para agradecer.
Duas pessoas ainda fazem parte dessa lista. Isso para podermos ser breves. Uma é o Prof. Ismael Silva que ofereceu-me o primeiro emprego e a possibilidade de lecionar pela primeira vez. A partir daí não parei mais. Graças a essa oportunidade é que me pude manter estudando sem precisar de bolsa de pesquisa. Foi a partir da oportunidade oferecida pelo Prof. Ismael que pude primeiro comer, vestir e beber antes de realizar a filosofia e a cultura, nas palavras de Engels.
Também um agradecimento especial a Edilena, minha esposa, que segurou muitas “barras” ao meu lado. Não preciso escrever muito para ela. Não que não precise: o dia a dia fala por si...

Apresentação

A intenção desta dissertação de mestrado começou há muito, quando ainda encontrava-me em meu curso de graduação em economia. Pode-se dizer que esta dissertação é uma continuação da monografia por outros caminhos. Por um lado, continuando-a, por outro tomando, novas direções. Na época em que então comecei este “caminho”, o que mais queria era entender o núcleo filosófico do pensamento de Karl Marx. As dúvidas que mais surgiam eram todas voltadas a uma dicotomia que sempre nos assalta quando despreparados para as respostas filosóficas mais importantes: se a base material da vida humana determina um estágio no qual os indivíduos estão inseridos sem apelações e nem possibilidade de modificar esta base, é possível a liberdade? Na realidade o que surgia aqui é a velha dicotomia que perpassa em muitos momentos a história da filosofia, como expressou Lênin, entre materialismo e idealismo.
Com o tempo e as leituras acabei descobrindo que estas indagações e respostas já tinham sido dadas por Marx em suas teses contra Feuerbach. Especialmente na famosa primeira tese:
O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como praxis, não subjetivamente. Eis porque, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo, que, naturalmente desconhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis - realmente distintos dos objetos do pensamento: mas não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, considera apenas o comportamento teórico como autenticamente humano, enquanto que a praxis só é apreciada e fixada em sua forma fenomênica judaica e suja. Eis porque não compreende a importância da atividade “revolucionária”, “prático-crítica” (Marx-Engels, 1986: 11-12).

Portanto tal indagação e formulação da resposta já foi dada de maneira clara e objetiva por Marx e Engels.
Mas isso tudo pode ser tratado como algo muito pessoal e não uma real apresentação sobre o trabalho que se vai ler. Apenas julguei necessário mostrar onde tudo começou para ressaltar que - e agora começa a ligação com o presente texto! - só pude chegar até aqui através dos caminhos apresentados por Georg Lukács. Mais ainda posteriormente com Lukács novas questões surgiram como o problema da especificidade do ser social, o afastamento das barreiras naturais (que se vai ler aqui).
A finalidade desta dissertação, então, é encaminhar um certo entendimento sobre alguns temas presentes na última obra do filósofo húngaro, a tão discutida Ontologia do Ser Social. Não há nenhuma intenção de inovação de temas, nem mesmo apresentar algo inédito. A finalidade é muito clara: recuperar em certa medida a importante leitura filosófica de Lukács para podermos novamente olhar o marxismo no final do século XX como um importante instrumento teórico de análise social mostrando que Lukács tem muito a nos dizer. Muitas falhas também foram deixadas pelo pensador húngaro, em grande parte em função da idade avançada e do enorme projeto a que se propôs que era a constituição de uma ontologia materialista . Estas falhas foram apontadas ainda em vida ao filósofo húngaro, mas não houve tempo vital para corrigi-las. Não iremos nos dedicar a apresentar aqui essas falhas mas elas podem ser encontradas em textos dos pensadores da chamada “Escola de Budapeste”.
Gostaria de ressaltar que o texto final desta dissertação é uma tentativa de abarcar alguns temas presentes em nosso cotidiano, principalmente temas ideológicos que circulam com muita facilidade nos tempos irracionais da globalização e da Nova Ordem Mundial... De forma alguma se pretende um texto acabado. Pelo contrário! Novamente queremos chamar a atenção para o fato de que é possível usarmos conceitos que Lukács já havia utilizado para compreendermos manifestações intelectuais e teóricas de nossos tempos. É uma tentativa de chamar a atenção para a “atualidade” de Lukács, ou como outros dizem de forma imprecisa, uma “nova leitura” de Lukács. Podemos, portanto, utilizar novamente a expressão irracionalismo sem que alguém torça o nariz do nosso lado.
É bom esclarecer que há por parte de alguns acadêmicos uma forte tendência a reconsiderar o uso da expressão irracionalismo para explicar algumas manifestações ideológicas atuais. Não é do nada, então, que saem os nossos argumentos. Apenas estamos formulando-os com base em tendências espontâneas de indignação intelectual face às propaladas ideologias atuais que serão vistas na última parte desta dissertação. É claro que ao considerarmos estas ideologias estaremos fazendo apenas algumas referências e não abarcando todas em seus matizes múltiplos, em suas múltiplas mediações. Este trabalho, então, constitui apenas o início de futuros projetos.
Esta dissertação se compõe, então, de duas partes: a primeira onde temos em vista a apresentação do afastamento das barreiras naturais que, como veremos, é importante para compreendermos o estágio atual do desenvolvimento do capital como uma das tendências do ser social e do capital como modo de produção histórico. A segunda onde são discutidas algumas tendências irracionalistas atuais.
A importância desses temas para as ciências sociais é muito evidente. Por um lado compreender ontologicamente, ou seja, por meio de categorias do real, o estágio do desenvolvimento econômico e social em que nos encontramos. Por outro lado fazer uma crítica a tendências ideológicas (ideologia no sentido de Lukács como veremos adiante) hoje muito presentes.
As duas partes são autônomas e podem ser lidas separadamente. O nosso interesse em juntar os dois conceitos em um trabalho foi o de dar conta de como ocorre o afastamento das barreiras naturais como uma tendência, uma “lei” do desenvolvimento do ser social e como a rejeição a essa “leis”, a essas tendências gerais e ontológicas do desenvolvimento do ser social, constitui uma das formas de manifestação do irracionalismo.
Introdução

1. Contraditoriedades e Problemas

Georg Lukács nasceu no dia 13 de abril de 1885, filho de um diretor do maior estabelecimento bancário húngaro da época. Sua origem burguesa seria manifestada nos estudos que puderam, evidentemente, primar pela qualidade inegável. Mas tudo isso não poderia garantir o futuro do filósofo com a maior obra escrita no século XX e, apesar de todos os preconceitos e incompreensões, um dos filósofos mais importantes deste período. Sob pena de não estudá-lo, podemos deixar de entender a mais importante manifestação filosófica do século: o marxismo. Mas qual seria o futuro de Lukács?
Antes de mais nada não seria um futuro típico de um burguês. Lukács trilharia um árduo caminho dentro do marxismo. Seja em sua atuação teórica marcada de problemas, mudanças, críticas, auto-críticas... Seja também no campo da atuação política. Em outros termos, não seria um futuro certo trilhado com uma tranqüilidade estóica. Pelo contrário, Lukács só encontraria essa tranqüilidade na sua velhice dentro da filosofia quando buscava incessantemente uma tentativa de seu ambicioso projeto de reconstrução do marxismo. Perceberia, então, que os rumos da história, as “cartas do jogo”, não estavam a seu favor. Perceberia mais, que o trabalho de uma ontologia era uma tarefa muito difícil. Mas sabia que a causa justa continua operando no desenvolvimento humano (Tertulian, 1980: 108).
O futuro de Lukács também não seria garantido dentro da academia. Autor cheio de problemas, é atacado por vários flancos. Não estranhamos a crítica daqueles que se limitam à História e Consciência de Classe e jamais chegam às obras em que Lukács buscou marcar uma reconstrução metódica do marxismo. Assim, mais que conteudística, sua obra busca dar uma forma ao marxismo chamando a atenção para os pontos nevrálgicos de compreensão de Marx. Por exemplo, a teoria da reprodução em Marx já é reivindicada em Lukács para se falar de socialismo. Quem hoje, ao falar de globalização, lembra de começar o estudo do capitalismo global pela teoria da reprodução deste sistema econômico? Ou então apresentar a tendência histórica de afastamento das barreiras naturais típica da especificidade do ser social porém acentuada intensamente pelo capitalismo global como é o caso do espaço “devorado” pelo tempo? Falamos de pós-modernidade, do tempo e espaço, de fragmentação do espaço, enfim, uma série de características da globalização mas esquecendo da reprodução capitalista e do avanço cada vez maior da sociabilização.
A manifestação mais clara da repercussão de Lukács dentro da academia é a quantidade de obras que podemos arrolar sobre ele. Vamos recorrer a um exemplo simples no que se refere aos trabalhos dentro da universidade brasileira, especialmente na área que mais nos interessa no momento que é a de mestrado e doutorado. Podemos contar até setembro de 1994 apenas sete trabalhos e, especificamente sobre a Ontologia, apenas quatro . A própria Ontologia não conta com uma edição completa em português. A Estética é completamente ignorada. Um livro mais recente reunindo um conjunto de palestras proferidas na UNICAMP em outubro de 1993 é só o que foi lançado. A grande maioria do que existe remonta a quase vinte ou trinta anos. A que fator podemos atribuir tamanho ostracismo?
Deveríamos na verdade falar de fatores. Isso pelo fato muito simples de podermos conjugar dois. O primeiro deles se refere ao próprio momento vivenciado pelo marxismo e o refluxo do movimento socialista. Mais que simplesmente um recuo do movimento socialista e, junto com o mesmo porém não idêntico ao mesmo, do marxismo, podemos constatar um avanço de tendências irracionalistas baseadas no atual estágio das forças produtivas marcando o momento global do capital: nesse momento o capitalismo procura se afirmar como eterno e para isso liquida a história, destrói as classes sociais ou considera sem valor e desprovida de sentido qualquer grande narrativa da história. O marxismo fica, diante desse quadro, desconcertado, tímido, acanhado, com poucas forças para mostrar sua capacidade explicativa do social. A obra lukácsiana, portanto, desconcerta-se mais ainda visto as características do último Lukács: a insistência sobre a ontologia do marxismo, ou seja, a obra de Marx comportando uma ontologia do ser social, uma explicação desse ser em sua totalidade e seu desenvolvimento. Dentro do próprio marxismo Lukács torna-se um “marginal”, “fora de moda”, um infant terrible.
O segundo fator que podemos arrolar para explicar essa carência de estudos sobre o filósofo húngaro, prova do seu ostracismo, refere-se ao meio que o mesmo escolheu para divulgar seu trabalho: o movimento comunista internacional. Escolhendo a instância da política, posicionando-se politicamente, “engajando-se” no movimento comunista encabeçado por Stálin, nosso autor era tido, dentro do quadro da academia, como um filósofo stalinista. Falta de senso crítico, no mínimo. Se atentarmos melhor, esse senso direciona-se para uma ignorância da obra de Lukács em seu conjunto.
Percorrendo o histórico da Ontologia, por exemplo, perceberemos que suas raízes já se encontram nos anos trinta. Mais à frente falaremos sobre isso mas a questão que deve ficar clara é que o pensamento crítico de Lukács em relação à Stálin já estava esboçado nesses anos em que a Ontologia se gestava enquanto potencialidade teórica.
O problema que está contido nesta imputação que acaba por rejeitar o espaço acadêmico para Lukács é que sua escolha, sendo a da política staliniana, fecha as portas, inevitavelmente, para o outro lado, ou seja, o espaço da democracia liberal: reflexos da bipolarização do mundo... Se atentarmos para o Brasil, estaremos fechando os olhos à realidade não notando que essa escolha de Lukács determinaria seus rumos teóricos aqui. O movimento comunista foi constantemente solapado em terras brasileiras e, especialmente após à II Guerra Mundial (1939-1945) e a emergência da Guerra Fria, o país torna-se área fundamental da estratégia geopolítica norte-americana. Consolida-se o bloco de poder conduzido pelos EUA com a criação da OEA (Organização dos Estados Americanos, em 1948) e do TIAR (Tratado Interamericano de Ajuda Recíproca, em 1952); forma-se uma elite militar com vocação para o poder também conduzida pelos EUA (NWC - National War College que é o modelo da ESG). Escolhendo o lado stalinista, ao menos no Brasil, o destino de Lukács estaria selado.
Essa sua escolha de um dos lados da Guerra Fria é insistentemente criticado. Mas se tratava de uma posição política e ideológica bastante séria. Escolher o outro lado seria “pular fora do barco”quando mais se precisa de teóricos para pensar e tentar consolidar o socialismo. Frases de Lukács como “o pior socialismo é melhor do que qualquer capitalismo” marcam sua maneira de pensar a situação histórica. Tentar ficar de fora era escolher o outro lado. Maniqueísmo? De forma alguma! Primeiro não se pode pensar em maniqueísmo quando o outro lado não era o “bem”. Esta escolha seria uma opção pela propaganda, pela violência e por uma máquina ideológica da democracia liberal que se apregoava como a autêntica “liberdade”. Não se tratava de uma escolha gratuita e desprovida de profundos significados. Tratava-se de uma escolha decisiva e que implicava na concatenação histórica e teórica, quer dizer, na própria coerência de cada consciência. Assim chegamos na segunda objeção: trata-se de uma opção ideológica muito prática. Em momentos decisivos na história, a escolha entre um e outro lado significa a sua própria opção e a sua coerência teórica. É o destino como pensador que se está colocando em questão pois a teoria deve corresponder a uma atitude prática. Lukács preferia ficar com o socialismo e fazer as críticas para a modificação dos rumos do mesmo “de dentro”, mesmo sabendo dos riscos e das críticas. A escolha pela democracia liberal nesse cenário internacional seria comprometedora para a seriedade com a qual Lukács sempre se portou. Os rumos que a geopolítica internacional tomou após à II Guerra não foi obra de Lukács. Ela apenas impôs uma divisão ideológica e a opção, a escolha: Lukács fez a sua (Tertulian, 1978: 507) .
Porém dentro do movimento comunista internacional, o filósofo húngaro era tido como revisionista e perseguido por suas teses. Incorporava citações de Stálin para conseguir sobreviver; escrevia em linguagem criptográfica para escapar à perseguição. Foi acusado de inventar o termo stalinismo (Tertulian, 1993: 7). Enfim, seguindo palavras do próprio filósofo:
(...) fui obrigado a conduzir uma espécie de guerra de guerrilhas pelas minhas idéias científicas, ou seja, através de citações de Stálin, etc. tornar possível a publicação de meus trabalhos e de expressar neles, com a cautela necessária, a minha opinião dissidente, tanto quanto os limites do movimento histórico aos poucos permitia. Conseqüentemente, às vezes, era imperativo calar-se. Por exemplo, sabe-se que durante a guerra [Lukács refere-se à II Guerra] foi decidido declarar Hegel ideólogo da reação feudal contra a Revolução Francesa; naturalmente não pude publicar meu livro sobre o jovem Hegel (Lukács, 1983: 97-98).

Podemos, então, compreender um pouco do desconhecimento de Lukács dentro do meio acadêmico, em especial o meio brasileiro. Hoje toda a conjuntura é mais desfavorável ainda para Lukács. As dificuldades que vimos assinaladas marcando imputações diversas dependendo do opositor (os acadêmicos vendo-o como “stalinista” e o movimento comunista internacional como “revisionista”) são hoje amplificadas por um panorama crítico ao marxismo e avanço das concepções irracionalistas .
Dentro das ciências sociais, da sociologia, podemos arrolar ainda uma outra dificuldade para a compreensão do autor húngaro: o desconhecimento quase completo de sua obra posterior à História e Consciência de Classe. A Ontologia que sintetiza, mesmo incompleta, referências fundamentais para se entender a abordagem lukácsiana de Marx nunca é citada. Não é de se estranhar que muitas vezes percebamos um ambiente teórico marcado pelas questões históricas sem fundamentação em uma base “além do histórico” que procure fugir às armadilhas do “historicismo” que sempre acaba conduzindo ao idealismo. Isso muito simplesmente pelo fato de desprezar a gênese do ser social nas categorias do ser natural e sua posterior evolução. As questões sobre prioridade ontológica e momento predominante no desenvolvimento do ser social acabam desprezadas. Priorizando o Lukács de História e Consciência de Classe perdemos a capacidade de compreender um dos pensadores que procurou pôr a razão a serviço do marxismo de forma mais evidente em nosso século nos garantindo a possibilidade de nos guiarmos mais seguramente contra as armadilhas ideológicas e conceituais que nos conduzam para longe do próprio marxismo. Devemos para isso sempre lembrar que o conceito de ideologia comporta em Lukács uma dimensão também ontológica (como veremos adiante), ou seja, uma função operacional dentro do ser social.
Uma última dificuldade para divulgação do pensador húngaro pelo nosso país refere-se também à sua própria área de estudos, quer dizer, a linguagem filosófica e, especialmente na fase final de sua obra, os estudos de Lukács sobre o “renascimento do marxismo” sustentado sobre uma ontologia do marxismo. Isso tudo dificulta um pouco mais a divulgação uma vez que em um país cujos rumos do capitalismo e da modernização (ainda que conservadora) se deram de forma rápida, como uma avalanche de inovações, era necessário ter como respaldo teórico análises sociais diretas sem uma substancial base metodológica. Era necessária uma teoria que se coadunasse de forma mais imediata com a realidade sem um “dissecamento” maior das próprias teorias.

2. Significado da Ontologia

A Ontologia do Ser Social não pode ser considerada uma obra ou mesmo um livro. Ela é na verdade uma ruína. Poderíamos quase compará-la aos restos de um monumento. É uma obra composta pelas pesquisas de Lukács nos seus últimos anos de vida e depois sintetizada nos Prolegômenos, obra que seria uma introdução à Ontologia ao mesmo tempo que resposta aos seus discípulos conhecidos como a “Escola de Budapeste” (Tertulian, 1990: XI).
Um dos fatores que devem ter contribuído para a dificuldade de divulgação da obra de Lukács, em especial da Ontologia, além daqueles arrolados acima, deve ter sido o fato desta obra ter ficado inacabada. Somado a este fato podemos ainda dizer que a Ontologia e os Prolegômenos demoraram à aparecer: Lukács morreu em junho de 1971 e o texto da segunda parte da Ontologia só apareceu em italiano em 1981 e a versão original alemã incluindo os Prolegômenos só surge entre os anos de 1984 e 1986 (Tertulian, 1990: XI). Portanto de dez a quinze anos mofando antes de vir à luz a parte mais importante da obra, aquela onde os principais complexos e categorias ontológicas são elaborados. Nesta segunda parte aparecem as categorias do trabalho, da reprodução, do estranhamento e da ideologia, fundamentais na teoria marxiana.
Nesta parte de nossa introdução gostaríamos de apresentar uma rápido histórico da Ontologia considerando brevemente no final o seu significado filosófico tanto para a filosofia como para as idéias e ideologias hoje vagando pelas mentes muitas vezes desprevenidas da força que alguns conceitos têm: daí serem ideologia.
Os inícios teóricos da Ontologia coincidem com os debates dos anos 30 (Tertulian, 1993: 20 ss.). Vamos encontrar, então, já nos anos 1930, no conhecido período “staliniano” de Lukács, as “idéias diretrizes de sua grande obra de síntese, a Ontologia do Ser Social”, ou seja, as críticas de Lukács ao reducionismo entre o econômico e as demais esferas do ser social, a desprezada herança hegeliana, uma “falta de tato” no que se refere às articulações entre ideologia e as suas bases sócio-econômicas, a mecanização da ralação entre forças produtivas e relações de produção bem como o esquecimento da tese marxiana sobre o desenvolvimento desigual entre os diferentes complexos sociais acabando naquilo que seria um materialismo vulgar e mecanizado. Todas essas críticas a um marxismo “congelado”, “rígido”, já se encontram nesse momento (Tertulian, 1993: 21). Assim, se deduzirmos que a gênese da Ontologia coincide com os anos 30, então, de forma lógica, como se fosse um silogismo, devemos concluir que já nesse período, quando Lukács faz sua opção política permanecendo junto de Stálin, suas críticas ao stalinismo já estavam formuladas, justamente quando se chamava Lukács de stalinista. Jamais ocorreu falta de consciência do filósofo húngaro sobre as teses teóricas de Stálin: foi uma opção política assumida dentro do quadro de isolamento da URSS e, posteriormente, da geopolítica bipolarizadora do pós-guerra e não uma opção teórica. A prova disso é a sua obra de maturidade crítica à Stálin e com raízes fincadas já naqueles duros anos de construção de uma alternativa socialista.
Em História e Consciência de Classe existe uma abertura de espaço para a “modernidade” do historicismo “capaz de abrir a via à análise de fenômenos ideológicos do capitalismo tardio”. Porém esse mesmo historicismo perde as “dimensões ontológicas”, ou seja, a capacidade de análise sobre a estrutura do ser (Netto, 1983: 43). O projeto de “renascimento do marxismo” no qual o filósofo húngaro esteve empenhado em seus últimos anos de vida, passa necessariamente por uma ontologia materialista onde seja possível apreender o ser social e suas categorias básicas, como essas categorias se articulam e se reproduzem elevando as dimensões sociais e tornando o ser social mais específico em relação ao ser natural (é a questão do afastamento das barreiras naturais). Essas categorias que são “formas do ser, determinações da existência” (Marx, 1987: 21), ao contrário das categorias da “velha ontologia”, são categorias que possuem um desenvolvimento imanente, possuem uma história (Lukács, 1981: 165-7). Um historicismo desprovido de uma ontologia “raspa” sua conceitualização no idealismo ao romper a unidade última do ser, desconsiderando o homem como ser que evolui do ser natural, que está intrinsecamente relacionado com uma base biológica em sua existência, que possui uma base natural. É a unitariedade última do ser.
O próprio autor da Ontologia reconhece a questão da fundamentação ontológica do marxismo ao mesmo tempo que concebe a historicidade das categorias. Em uma entrevista concedida à Leandro Konder, Lukács deixa claro:
A elaboração da ontologia do marxismo parece-me ser uma tarefa filosófica básica para nós. O desenvolvimento de um sistema de categorias capaz de dar conta da realidade do real (se me permite a expressão) é imprescindível para que os marxistas enfrentem de maneira justa os equívocos difundidos em torno do caráter materialista marxismo: é imprescindível para que os marxistas aprofundem a crítica das posições existencialistas e das posições neopositivistas. Devemos desenvolver uma ontologia marxista capaz de determinar mais concretamente a unidade do materialismo histórico e do materialismo dialético. À base de uma concepção que seja historicista sem cair no relativismo e que seja sistemática sem ser infiel à História (Lukács, 1978: 22).

No projeto lukácsiano maduro de “renascimento do marxismo”, a Ontologia ocupa, portanto, um papel central. Na perspectiva histórica existe uma crítica ao marxismo do período stalinista, como acima já se apontou, e que só post festum, só na maturidade completa do filósofo marxista húngaro é possível perceber. Aliás o “verdadeiro motivo condutor da Ontologia” é essa crítica ao stalinismo (Tertulian, 1980: 90). Esse stalinismo que parece dar muitos frutos já que, ao identificar na prática o “marxismo oficial” com os diversos partidos espalhados pelo mundo, ao identificar marxismo com a política oficial do PC, acabou por levar à identificação da crise de uma sociedade historicamente construída e cheia de problemas (o socialismo real), uma alternativa ao capitalismo, com a crise de uma teoria.
No plano teórico a Ontologia preencheria o espaço destinado a um projeto filosófico que fosse capaz de dar conta da realidade e destinar o marxismo a ser mais do que uma explicação da sociedade: trata-se de uma filosofia total. Isso é claro quando se considera muitas vezes o marxismo como explicação social e econômica de determinada sociedade, porém, quando é necessário alicerçar os fundamentos de uma crítica estética ou de questões de teoria do conhecimento ou até mesmo de problemas éticos, abandona-se Marx para buscar outros autores (Lukács, 1983: 93; 1986: 48-9). A Ontologia seria “um sistema de categorias capaz de dar conta da realidade do real”:
Com a sua Ontologia, Lukács esperava restituir ao marxismo a dignidade de uma filosofia de grande classe reatualizando as categorias da filosofia clássica e reexaminando-as à luz da experiência teórica do marxismo (Tertulian, 1980: 89).

Portanto a investigação da história humana e o senso categorial dessa história articulada na forma de uma ontologia, constituem o “objeto principal de meditação do pensador húngaro”. Também é do interesse de Lukács perceber que o ser unitário possui um desenvolvimento que o leva à diferenciação em três esferas: ser social, ser orgânico e ser inorgânico. Esse desenvolvimento acaba por desdobrar o ser nestas três esferas e conferir um caráter específico à cada uma. Esse confronto entre as várias esferas do ser destinado a “pôr em evidência a organização específica da sociabilidade humana” leva Lukács a ampliar sua investigação ontológica e incluir no seu projeto uma ontologia da natureza: existe no filósofo húngaro uma “aspiração filosófica universal” (Tertulian, 1980: 90). Não seria de se estranhar visto que Lukács busca dar ao marxismo uma totalidade teórica que supera certa compreensão de Marx como um autor que explicaria apenas a história, o desenvolvimento social e econômico, enfim, um Marx com cabeça que desembaraça os laços históricos da sociabilidade humana, o desenvolvimento das forças produtivas, etc. porém sem pernas já que não confere uma explicação para essa mesma sociabilidade humana, uma explicação material. Sem essa base ontológica o homem se tornaria o único ser da face da Terra que não teve evolução em outras esferas do ser. Daqui para se chegar a um historicismo é muito rápido e para se abandonar o materialismo e abraçar o idealismo mais rápido ainda .
Apesar do grande esforço de Lukács, uma ontologia, hoje, conhece suas limitações. Isso significa dizer que o trabalho lukácsiano encontra-se isolado no panorama filosófico contemporâneo e até mesmo dentro do marxismo: “justamente nesta pesquisa está a raiz do isolamento intelectual de Lukács: a percepção ontológica é estranha à modernidade filosófica” (Netto, 1983: 84). A pesquisa ontológica é fundamental para restituir ao real a sua verdadeira autonomia - já que a tese básica de toda ontologia é a independência do ser em relação à consciência e a infinitude deste mesmo ser comparada com a finitude e limitação da consciência - e as possibilidades teleológicas humanas de agir sobre essa realidade. Parece sim que a consciência se arroga capaz de dominar todos os processos sociais e assim até mesmo criar o sistema sócio-econômico que levou a história ao fim... “A ênfase ontológica de Lukács contraria frontalmente as tendências filosóficas contemporâneas” dominadas quer pelo neopositivismo, estruturalismo ou o marxismo dogmático privilegiando a categoria da necessidade (Netto, 1983: 84; Tertulian, 1990: XVII e 1978: 498-517).
As dificuldades de uma ontologia são reconhecidas pelo filósofo marxista húngaro na primeira página de seu último trabalho escrito:
Não seria surpresa para ninguém - menos ainda para o autor destas linhas - se a tentativa de basear sobre o ser o pensamento filosófico sobre o mundo vá encontrar múltiplas resistências. Os últimos dois séculos de pensamento filosófico foram dominados pela gnosiologia, lógica e metodologia e o seu domínio está bem distante de ter passado (Lukács, 1990: 3).

Dificuldades para uma inserção ontológica não faltam num cenário filosófico onde o poder de cognição é que é indagado, os métodos de análise e suas capacidades operacionais e interpretativas e jamais a realidade, o ser. Dificuldade, portanto, de se compreender Marx e as suas “afirmações ontológicas” como fundamento filosófico necessário para que a perspectiva marxiana de interpretação da realidade não se desvie ou se envolva com elementos que lhe são estranhos do ponto de vista da totalidade do método de Marx . Nisso precisamente consiste o “renascimento do marxismo” que o filósofo húngaro esteve envolvido durante os últimos anos de sua vida.
Deve-se acrescentar que o recurso à ontologia como forma filosófica também pode nos garantir um corpo teórico de categorias, um corpo teórico que, em momentos de capitalismo global garante uma consistência e coerência teóricas necessárias para evitar a fácil penetração e adesão às teses do novo irracionalismo apologético do pós-Guerra Fria, o irracionalismo em tempo de globalização.
Antes de concluirmos essa introdução, gostaríamos de acrescentar algumas observações feitas por Carlos Nelson Coutinho em um trabalho apresentado na UNICAMP em homenagem aos 70 anos de História e Consciência de Classe e publicado posteriormente em livro (Coutinho, 1995: 143-160). Com isso poderíamos mostrar um último e importantíssimo significado da Ontologia e também um problema teórico dentro do projeto ontológico, da Ontologia e do próprio pensamento de Lukács.
Carlos Nelson faz uma pequena exposição filológica sobre o termo “ontologia” que será amplamente empregado pelo último Lukács. Porém nem sempre Lukács acolheu de bom grado esse termo. Quando seu debate com o irracionalismo em todos os seus aspectos era muito forte, o termo ontologia aparecia de forma “negativa” uma vez que era usada pelos existencialistas como Heidegger e significava uma verdadeira ontologia. Mesmo posteriormente o termo continuará aparecendo como sinônimo de uma não historicidade. Assim:
Durante o período em que sua batalha cultural tinha como alvo principal o irracionalismo - que como vimos, apresentava-se muitas vezes como o representante da verdadeira ontologia (que era chamada de “existencial” ou “fenomenológica”) -, o termo “ontologia” e seus derivados tiveram na obra de Lukács um sentido fortemente negativo. Até mesmo numa obra tardia como a Estética, escrita ao longo dos anos 50 e publicada em 1963, a palavra “ontologia” ainda é usada nesse sentido negativo (sobretudo como sinônimo de não-aceitação da historicidade da vida humana) (...) (Coutinho, 1995: 146-7)

E Carlos Nelson conclui dizendo que essa rejeição ocorreu apesar da Estética estar repleta de considerações e categorias claramente ligadas à problemática da Ontologia.
A escolha do termo “ontologia” irá significar então a aproximação de Lukács a toda uma pesquisa fundada sobre a autenticidade do ser contra as correntes filosóficas as mais diferentes mas onde todas acabam sendo uma forma de desviar a análise dos problemas filosóficos para fora do campo do ser e tratar tudo sobre a forma de problemas do conhecimento e do entendimento.
Portanto, a escolha do termo “ontologia” pelo ultimíssimo Lukács - uma escolha influenciada também, talvez, pela leitura tardia da obra de Nicolai Hartmann, tratada com extrema simpatia na “grande” Ontologia - parece assim derivar do empenho do velho pensador em se contrapor do modo mais explícito possível ao epistemologismo das correntes neopositivistas, inclusive das que se apresentam sob a bandeira do marxismo. (...) a “descoberta” da ontologia torna mais nítidas e coerentes suas posições filosóficas, mas não altera substancialmente o conteúdo de sua reflexão, nem em relação à Estética, nem tampouco a uma obra bastante anterior, escrita nos anos 30, a excepcional monografia sobre O Jovem Hegel. (Coutinho, 1995: 147)

Para Lukács, então, o termo “ontologia” aparecia com um conteúdo negativo, sendo uma característica das tendências irracionalistas. Só posteriormente é que ele vai deixar de lado esse aspecto negativo do termo. Mas não se deve deixar de perceber que a preocupação com a ontologia já vinha fazendo parte de suas pesquisas teóricas há muito tempo. Isso ficou evidenciado acima. Mas devemos acrescentar um significado importante da pesquisa ontológica de Lukács. Assim:
a preocupação com a ontologia lhe adveio, em grande parte, de um exame atentadass novas características do capitalismo tardio. Essas características o impressionaram a tal ponto que ele chegou a pensar em escrever um O Capital do presente, só não tendo enfrentado o desafio por causa de sua idade avançada. (Coutinho, 1995: 144)

Esse é um aspecto que traz um significado muito interessante e importante das preocupações ontológicas de Lukács, ou seja, a íntima conexão entre a indagação e a pesquisa filosóficas e a problemática econômica da atualidade. Parte da gênese da Ontologia estaria, assim, nas pesquisas do desenvolvimento do capitalismo tardio. Método e realidade se conectam para trazer à luz a melhor compreensão dessa mesma realidade. “Em outras palavras: o Lukács tardio revelava-se assim plenamente consciente da importância da crítica da economia política na constituição do método filosófico de Marx (...)” (Coutinho, 1995: 144)
O estudo do capitalismo no século XX ganhava para Lukács uma dimensão filosófica além de econômica. E para Lukács esse capitalismo tinha características muito novas tais como o controle capitalista e a manipulação que acabariam se refletindo na cultura, ideologia, etc.
Segundo Lukács, o capitalismo em sua fase tardia revelava uma característica nova da maior importância: a luta para evitar crises e, ao mesmo tempo, assegurar a dominação dos monopólios teria levado o capitalismo a tentar “racionalizar” - a buscar submeter a regras de cálculo racional-formal - o setor do consumo, criando todo um vasto e diversificado sistema destinado a manipular a vida dos indivíduos. Esse sistema de manipulação, gerado inicialmente no nível da economia, teria se generalizado depois às esferas da cultura, da ideologia e da política. Segundo o velho pensador, esse sistema encontraria sua expressão teórica nas correntes neopositivistas: apesar de sua grande diversidade, essas correntes se identificariam numa batalha aberta contra a ontologia, contra a análise dos movimentos essenciais da realidade, em favor de um esclarecimento apenas formalista e logicista da racionalidade humana (de uma racionalidade entendida, ademais, como mera técnica para manipular dados fetichizados e fragmentados). (Coutinho, 1995: 145)

Vemos, então, a partir das idéias de Carlos Nelson, que o termo “ontologia”, a princípio visto de forma negativa por Lukács, vai se incorporar ao pensador húngaro a partir de uma análise dos movimentos da própria realidade econômica mundial e como contraposição às expressões ideológicas da manipulação. A preocupação com a ontologia vem , portanto, de uma análise da realidade capitalista e o termo acaba sendo incorporado por Lukács como forma de se contrapor às correntes filosóficas neopositivistas e epistemologistas. Concluindo: tanto o fim da aversão ao termo “ontologia” como a preocupação com a realidade constitutiva do ser social surgem de uma preocupação fundamental de Lukács com o capitalismo no século XX antes de ser simplesmente um estudo filosófico.
A Ontologia será, então, um longo projeto filosófico que abrirá espaço de reflexões sobre a realidade social muito grande. Trata-se de um estudo filosófico que tem por base indicar os caminhos teóricos pelos quais o marxismo deve percorrer para não sucumbir ao logicismo manipulador e também os caminhos metodológicos para trilhar um estudo do ser social que seja histórico sem ser historicista e ontológico sem ser a-histórico. Duas metas principais poderiam resumir o projeto ontológico de Lukács:
1) a de resgatar, contra o neopositivismo contemporâneo (e, de modo mais geral, contra uma herança que parte do “criticismo” kantiano), o princípio de que a análise do ser deve preceder a análise do conhecer, já que esse último é momento de uma totalidade mais ampla, ontológica, ou seja, da práxis social global; 2) e, ao mesmo tempo, a de conceber esse ser não como algo contraposto aos “entes”, não como uma essência inefável e irracional, como o faz Heidegger, por exemplo, mas como uma totalidade concreta e dinâmica, apreensível por uma racionalidade dialética. (Coutinho, 1995: 147)

Nessas metas fica muito claro os dois princípios metodológicos fundamentais para Lukács e para o marxismo: a prioridade do ser, a prioridade ontológica, em qualquer análise social e também o princípio metodológico da totalidade. É somente a partir destes dois princípios metodológicos que poderemos fazer uma análise social que resgate o fundo, o essencial, dos movimentos e das mediações concretos do ser social em suas diversas manifestações em formações sociais em diversos estágios de seu desenvolvimento.
É precisamente nesse sentido que Lukács interpreta a dimensão metodológica contida na “crítica da economia política” marxiana, ou seja, como um método de crítica ontológica, que implica um permanente recurso à totalidade e à história, com o objetivo de mediatizar os fatos empíricos, de retirar deles a aparência de fetiches isolados ou de “coisas” naturais. (Coutinho, 1995: 148)

Por isso o projeto ontológico de Lukács - que encontrou na Ontologia sua expressão mais acabada - é atualíssimo e serve como uma “arma teórica” dos marxistas contra a fragmentação e a reificação. Para Carlos Nelson a sua “fecundidade e atualidade” estão expressas claramente quando qualquer intelectual tenta sair da “fragmentação ‘pós-moderna’” e lutar em favor do “princípio metodológico da totalidade” como única forma de compreender o real, suas multiplicidades de formas e mediações e, a partir disso, transformar a realidade.
No entanto essa “arma teórica” que Lukács construiu para o marxismo contemporâneo como forma de compreender o real e seus movimentos tem pelo menos um grave problema apontado por Carlos Nelson: a falta de preocupação política de Lukács. Isso resulta de um menor detalhamento de Lukács na questão de algumas mediações fundamentais dentro da esfera social. Lukács
concentra suas análises ontológicas quase exclusivamente nas formas de práxis nas quais o sujeito (pelo menos no nível do imediato) é o indivíduo, como é o caso do trabalho abstraído de sua inserção num modo de produção concreto, da criação estética e científico-filosófica ou ainda da ação moral. Essa concentração se traduz num tratamento ontológico menos detalhado precisamente dos processos de interação social, ou em outras palavras, numa relativa subestimação das mediações que intercorrem entre o trabalho individual e as formas superiores de práxis, mediações fornecidas, por exemplo, pelo modo de produção, pela formação econômico-social, pela estrutura de classes, pela política, etc. (Coutinho, 1995: 154)

O resultado disso é que a práxis política aparece deficientemente tratada não recebendo “um tratamento autônomo satisfatório da especificidade da política enquanto esfera do ser social”. (id.: 155) O resultado final é uma pobreza política na obra de Lukács derivada de dois limites teóricos da obra lukácsiana: 1) uma prioridade do sujeito individual na análise ontológica da práxis em detrimento do sujeito coletivo e 2) um certo obejtivismo presente na obra de Lukács. Esse objetivismo muito provavelmente advém do fato de a Ontologia possuir um tratamento centrado na “ontologia das necessidades”.
Mesmo assim a construção teórica lukácsiana continua fundamental e ponto de partida para muitas indagações e construções teóricas sobre a atualidade.







Parte I

O Afastamento das Barreiras Naturais na Reprodução Social

1. Introdução

Como afirmamos anteriormente a Ontologia de Lukács é uma obra que pode ser comparada a uma “ruína”, a alguma coisa incompleta. E justamente assim é que esse texto veio aparecer: não revisado e muitas vezes absolutamente difícil de ser lido. Para dar conta de apresentar o texto lukácsiano recorremos a uma determinada forma de organização das categorias que poderíamos chamar de “exegética”, quer dizer, colocamo-nos na posição de comentadores de Lukács. Dessa maneira poderemos recorrer a todas as passagens que possam encadear a construção do texto no sentido de entender o afastamento das barreiras naturais.
Sendo um texto difícil os comentários devem ajudar a entender o processo de sociabilização do ser social e para isso é que tornamos a nossa apresentação a mais esquemática possível. Essa esquematização deve ajudar na leitura da Ontologia no sentido de se poder encontrar com maior facilidade o que Lukács pensou sobre dadas manifestações do ser social.
Para abordarmos o problema do afastamento das barreiras naturais como uma das tendências do ser social, usaremos uma determinada parte do capítulo da “Reprodução” da Ontologia. Nesta parte Lukács está se referindo ao processo de reprodução da sociedade como um todo e, nesse processo reprodutivo em seus complexos constitutivos, o que se pode perceber é uma constante especificação do ser social tornando-se mais plenamente social, mais puro, com categorias que especificam cada vez mais o ser social contra as outras formas de ser. Existe, então, um claro sentido de progresso que se expressa na superação de estágios ontológicos do ser social. As categorias ficam mais sociais e cada vez mais o ser social prescinde menos da base ontológica para a sua reprodução, para reproduzir os seus pressupostos. É necessário dizer que isso não implica uma ruptura com o ser da base - nunca superado pois senão romperíamos a unidade última do ser, ou como Lukács diria, a unitariedade última do ser social - mas um desdobrar das categorias que se encontravam lá e se desenvolveram de tal forma que um novo ser surgiu e se tornou mais pleno de si: o ser social.
O que veremos, então, é que nesse continuado processo de reprodução social em sua totalidade, o ser social específica-se, sociabiliza-se e manifesta esse afastamento das barreiras naturais em formações econômico-sociais mais plenamente sociabilizadas. Portanto não se trata de uma “mera abstração” filosófica desprovida de sentido histórico e metodológico: nas várias formações econômicas que se sucedem ao longo da história humana percebe-se essa tendência. Assim, o que Lukács estará constantemente fazendo como veremos é analisar a história do ponto de vista ontológico, quer dizer, recorrendo às categorias e complexos sociais que fundam o ser social e que se desenvolvem, se desdobram no tempo.
É bom avisar que isso não é uma teleologia como gostam de afirmar os críticos do marxismo: é o que Lukács chama de reconhecimento post festum das tendências históricas. Sempre que observamos o processo depois de ocorrido parece existir no mesmo uma tendência inexorável, uma teleologia que realmente não existe.

2. Pólo Singular da Reprodução e Totalidade

Na parte imediatamente anterior do capítulo sobre a “Reprodução” do ser social, Lukács já falou sobre a reprodução do homem como o pólo singular da reprodução. Analisando o pólo do indivíduo dentro da sociedade, Lukács tencionou nessa seção estabelecer um tertium datur em relação tanto ao “marxismo vulgar”, mecanicista, onde o indivíduo está submetido a leis como as leis da física, como em relação às concepções “liberal-burguesas” que valorizam excessivamente as “iniciativas individuais” (256-7) . Agora trata-se de analisar a totalidade da reprodução social mas sem que isso implique uma dicotomia completa no sentido de que as forças que atuam no indivíduo em nada podem se assemelhar com o que ocorre na totalidade do processo. Pelo contrário, a análise do desenvolvimento do homem no sentido de seu ser-para-si e da sua generidade consciente mostram que isso é o resultado das "interações entre a respectiva formação social e a possibilidade e necessidade do agir dos homens" (Lukács, 1981: 281) . Não existe uma "natureza humana" que determine a priori o agir dos homens, que em última instância faça o homem tender para este ou aquele caminho. O estado de coisas ontológico que aqui está em questão é a capacidade do trabalho ao mesmo tempo em que desperta forças produtivas que vão muito além das carências individuais, do suprimento das necessidades individuais, também "suscita no homem novas capacidades e novas necessidades" (281) que o homem deve responder com seu agir determinado no trabalho. Verificamos, então, um desenvolvimento extensivo e quantitativo dos produtos do trabalho do homem bem como intensivo e qualitativo.
Essas novas condições impostas ao homem pelo seu ambiente social jogam decisivamente para o afastamento das barreiras naturais. Como todos os seres vivos o homem é um ser que reage, que responde às condições que o ambiente lhe impõem. No entanto o homem como ser que trabalha "se diferencia de todos os outros seres viventes em quanto, não só reage ao próprio ambiente como todos os seres devem fazer, mas, indo além, na sua práxis deve articular em respostas estas reações" (281-82). É importante que se indique a diferença fundamental entre as reações que ocorrem na natureza orgânica que podem ser de natureza "físico-químicas completamente espontâneas" até aquelas com "um certo grau de consciência" da articulação de natureza social que "se apóia sobre a posição teleológica, que é sempre guiada pela consciência e, acima de tudo, sobre o princípio do novo, que está sempre implícito em quaisquer dessas posições" (282). Dessa forma o homem concebe mediações que possam interferir de alguma forma sobre esse ambiente social que vai sendo criado por ele. A "pergunta" do ambiente só adquire este caráter porque a "reação se articula, por tal via, em uma resposta" (282).
Este jogo de perguntas e respostas está na base do processo de especificação do ser social pois tal jogo pode se estender ao infinito e criar o novo. Este acaba levantando novas perguntas que não "surgem mais do ambiente imediato, diretamente da natureza, e são, ao invés, os tijolos com os quais vem a se construir um ambiente criado pelos próprios homens: o ser social" (282). A "estrutura pergunta-resposta" acaba por adquirir uma forma mais complexa afastando o homem de suas barreiras naturais ao desenvolvimento e intensificando a sua relação com a natureza por meio da sociedade como "mediação autocriada" (282).
Portanto o homem como ser singular de um processo é desprovido de uma determinada "natureza humana" e deve reagir ao ambiente criando respostas que acabam sendo articulações às perguntas de um ambiente progressivamente mais social. O que aqui se tencionou mostrar brevemente é o "nexo entre atividade humana e desenvolvimento econômico objetivo" (282), o papel do homem ao criar respostas através da sua práxis e como estas acabam sendo a conseqüência das perguntas que a sociedade como totalidade lhe impõem. Lukács constantemente insiste que o problema aqui reside em se determinar como tertium datur a relação do homem com a totalidade da sociedade, ou seja, não tomar as posições idealistas que elevam o homem a uma espécie de "demiurgo" histórico e, por outro lado, rejeitar também as conjecturas do marxismo vulgar que submetem o homem a um produto mecânico da determinações sociais.

3.Complexos Singulares e Totalidade

Devemos, agora, passar para um outro quadro de problemas dentro do processo de reprodução da sociedade como totalidade. São questões teórico-metodológicas fundamentais tanto dentro da exposição lukácsiana como para a teoria marxiana. Podemos, de um modo muito genérico mas não desprovido de fundamento, dizer que a questão relevante aqui é aquela referente à relação entre a totalidade e os complexos singulares que se inserem na mesma, como se articulam as duas realidade ontológicas. Fundamental para o marxismo, a totalidade é uma referência básica para entender como as diversas formações sociais são possíveis e possuem uma articulação imanente onde a perspectiva de se tentar compreender o desenvolvimento social sem que se recorra à totalidade processual e as relações da singularidade com a totalidade acabam por se enveredar por uma teia de considerações cujo final sempre nos parece o irracionalismo .
Citando Marx em a Miséria da Filosofia contra Proudhon, Lukács procura lembrar a prioridade que o todo adquire sobre as partes ao instaurar uma complexidade ontológica operante dos diversos complexos sociais: "Esta prioridade do todo sobre as partes, do complexo total sobre os complexos singulares que o formam, deve ser considerada absolutamente estabelecida, porque de outro modo - quer se queira quer não - chegar-se-á a extrapolar e tornar autônomas aquelas forças que, na realidade, simplesmente determinam a particularidade de um complexo parcial no interior da totalidade (...)" (284). Ao absolutizarmos um complexo singular tornando-o uma "força autônoma" não podermos entender a exata importância, dinamismo, função, etc. deste complexo no interior da totalidade, como ele interage com outros complexos para formar uma realidade social onde cada parte possui um determinado peso ontológico (pensemos em Weber que procura romper com o "absolutismo" do econômico). Tornando-se autônomo, absolutizado em sua singularidade e elevado a princípio operador e realizador das sociedades concretamente determinadas os complexos singulares e suas forças atuantes vão tornar "incompreensíveis as contradições e desigualdades do desenvolvimento que emergem das inter-relações dinâmicas entre os complexos singulares e, sobretudo, do lugar destes últimos no interior da totalidade" (284).
Devemos concluir que assinalar "prioridade metodológica ao coerente edifício gnosiológico ou lógico de um complexo parcial" pode ser perigoso e obscurecer as relações de força estabelecidas dos complexos entre si e destes com a totalidade perdendo, então, a noção de qual força deve determinar o quê. Lukács não deixa, evidentemente, de reconhecer que cada complexo tem a sua especificidade, a sua própria coerência interna que constitui a sua essência mas que esta especificidade é revelada pela posição que este complexo guarda em relação à totalidade e sua função ontológica dentro desta: "(...) tal especificidade, no plano ontológico, é determinada não somente por leis próprias ao complexo parcial mas também, e sobretudo, pelo lugar e pela função deste na totalidade social." (284).
Porém essa determinação do singular dentro do todo, a relação que a parte assume no desenvolvimento do todo nunca poderá ser uma "determinação formal", ou seja, um trabalho do pensamento que procura deslindar todas as leis, forças , dinâmica, historicidade, etc. do singular e só depois inseri-lo na totalidade. "Ao contrário, ela incide a fundo no edifício categorial, no desenvolvimento dinâmico de cada complexo parcial e, em muitos casos, modifica até as suas categorias mais centrais." (284) Portanto, fica explícita a concepção e centralidade da categoria da totalidade para Lukács. Na seqüência do texto o filósofo marxista ainda vai se referir, como exemplo, a Clausewitz ao tratar das questões referentes à guerra. O complexo bélico "se baseia, como todos os outros, em possibilidades econômico-sociais da sociedade na qual surge." (284) Porém a categoria da tática "exprime sempre de maneira específica o estado, a particularidade, deste complexo." (284) No entanto derivar desta especificidade da tática o "conceito militar superior de estratégia" é um erro e aí entra o autêntico senso filosófico de Clausewitz ao reconhecer o "caráter predominantemente político da estratégia, o seu ir além do nível técnico-militar" (284). Lukács vai, então, continuando o exemplo, advertir que derivar a estratégia do interior da tática é problemático bem como prolongar mecanicamente a tática do conceito de estratégia. "A heterogeneidade ontológica destas duas categorias, surgidas da relação da parte com o todo, é a única base real para entender corretamente esta relação tanto no plano teórico como no prático" (284).
Dentro de cada contexto social, de cada determinação social concreta, de cada totalidade expressa como uma sociedade e suas manifestações, temos relações específicas entre complexos e o funcionamento destes dentro da totalidade. Não deveríamos esquecer as palavras de Hegel, na introdução da Fenomenologia do Espírito, onde diz que a totalidade não é uma "noite em que todos os gatos são pardos". A totalidade é constituída de complexos onde, no plano ontológico, uns têm maior peso que outros, interagem quase em todos os níveis da realidade: isso é característico do ser social. Mas a totalidade só pode se expressar, como veremos a seguir, dentro do quadro de sociedades concretamente constituídas: cada complexo, então, vai adquirir suas formas próprias de manifestação. Como fica claro da leitura do texto da Ontologia, isso não significa que, no plano do ser social, no plano ontológico, não existam leis e tendências próprias, leis que atuam em todas as formações sociais. Exemplo disso é o constante afastamento das barreiras naturais e a formação de sociedades mais sociabilizadas. Portanto há complexos atuantes dentro do ser social que, articulando-se com o todo, desenvolvem-se e, não apenas modificam a totalidade em suas interações múltiplas, como levam à uma nova totalidade e especificam o ser social como ser mais plenamente social em suas categorias: são as tendências evolutivas. É quase desnecessário dizer que o complexo ao qual nos referimos de uma forma genérica e que pode nos permitir verificar a passagem de um a outro modo de produção é o complexo econômico e sua multiplicidade de forças e categorias atuantes. A crítica à prioridade desse complexo leva Weber, por exemplo, a negar a possibilidade de um determinado "curso objetivo" à história.
Para Lukács, então, o que é importante e fundamental do ponto de vista ontológico é ter presente o ser-precisamente-assim de cada relação, o ser tal qual se manifesta em sua dadidade ontológica e ao qual devemos nos ater para podermos perceber o funcionamento de cada relação no plano ontológico: "Jamais repetiremos suficientemente que nos problemas ontológicos deve sempre ser assumido como base de ser o ser-precisamente-assim dos objetos e das relações e que, por isso, no plano metodológico, as tendências niveladoras representam um grande perigo para o conhecimento adequado dos objetos reais" (285). E nesse ponto remete uma crítica à Hegel onde este, dada a situação da "miséria alemã", acaba por ter suas "geniais intuições" "deformadas e falsificadas pela sua logicização do ontológico" (285).
Aqui, então, Lukács resvala para uma discussão filosófica que apenas aparentemente não tem lugar em nosso trabalho. Mas dois momentos dessa pequena passagem serão importantes para nós: a crítica de Marx à "indecisão" de Hegel no que se refere ao espírito absoluto e as conseqüências dessa "indecisão", dessa "ambigüidade" hegeliana.
Em Hegel o espírito absoluto é aquele domínio específico da arte, da religião e da filosofia em contraposição ao ser objetivo da sociedade, do direito e do Estado. Porém ao se realizar, o espírito absoluto possui uma duplicidade: "por um lado ele é a máxima síntese espiritual, e isto se verifica realmente na história, mas por outro lado é uma objetivação que não pertence ao processo da realidade, que não é capaz de influir sobre ela" (286). Aqui surge a crítica de Marx em A Sagrada Família onde este apresenta o espírito absoluto só alcançando a consciência no filósofo, ou seja, a consciência do processo histórico só seria alcançado pelo filósofo de maneira "retardada", post festum e, portanto, sem possibilidade nenhuma de ação sobre a realidade. O desenvolvimento do espírito absoluto culminaria num processo absolutamente estacionário onde a história teria seu fim e o filósofo se contentaria com o saber.
A questão aqui é que, "o reflexo da realidade na consciência (ainda que filosófica)", não é um processo estacionário, "não é um acompanhante impotente da história material e, além disso, a reflexão filosófica sobre esta última, como indica já o exemplo de Marx, não é um simples fato que se verifica post festum" (286). Assim o reflexo da realidade na consciência não é uma instância da realidade desprovida de fundamento ontológico, não é uma parte inoperante da realidade, mero reflexo passivo. Por ter seu fundamento no próprio ser, pelo contrário, essa esfera da realidade tem sua própria maneira de fazer a realidade, de ser reflexo e momento atuante.
Dessa crítica de Marx podemos fazer a ligação com as conseqüências dessa "indecisão", dessa "ambigüidade" que reconhece no espírito absoluto "o ápice que coroa o processo global mas, simultaneamente, é eliminado do processo real" (285-6). A perda das dimensões ontológicas desta esfera da realidade, da esfera do espírito, da consciência, impossibilita também a ação teórica qualquer que ela seja sobre a mesma realidade e seu fundamento na razão: "Quando Scheler e, depois dele, Hartman vêem na ontologia uma hierarquia cujas formas mais elevadas são caracterizadas pela impotência a intervir no mundo real, eles, em outras condições históricas, quando se perdeu a fé na eficácia da razão, repetem em certo sentido aquela ambigüidade que estava presente na doutrina hegeliana do espírito absoluto" (286-7).
Portanto, a perda da "fé na eficácia da razão" é a base sobre a qual os múltiplos irracionalismos fazem aparecer as suas teorias e aos quais Lukács nunca deixou de debater e criticar. Podemos dizer que a Ontologia tem como uma das metas restabelecer, elucidar, a ontologia presente em Marx e, com isso, restaurar a dignidade da razão contra o irracionalismo que vai no sentido contrário ao marxismo e, em sentido político, constitui uma forma de luta contra a teoria marxiana e a classe trabalhadora14.
Por isso, a crítica que Marx remete a Hegel e que foi por nós exposta acima, tem ligação direta com as "sombras" da "ambigüidade" hegeliana. Não se trata de dizer que Scheler ou Hartman são irracionalistas, mas sim que a crítica de Marx é um "elogio à razão" e que a impossibilidade de ação sobre o "mundo real" é a base sobre a qual se levanta o irracionalismo como exacerbação daquela "ambigüidade" acima exposta. A concepção teórico-filosófica do marxismo assenta-se sobre a possibilidade da compreensão da realidade como instância fundamental da práxis revolucionária. Portanto o pólo da individualidade nunca será negado para aqueles que compreendem adequadamente a teoria marxiana. O que nunca existirá será o voluntarismo como possibilidade revolucionária15.
Para fechar a discussão devemos apenas acrescentar que esta "impotência" que se atribui à capacidade de intervir na realidade a partir da consciência, mesmo que finita, exprime não apenas a "falta de convicção em um desenvolvimento histórico imanente que teria em si, e explicitaria historicamente, a própria racionalidade" por parte do velho filósofo alemão "mas também um incorreto juízo de valor, falso no método e no conteúdo, acerca de situações apenas ontológicas" (287). Em Marx estão muito distintas as questões de ser daquelas de valor onde este último emerge do ser e das suas articulações concretas e depois se voltam para a mesma realidade: "se dele [do ser] se averigua as interações reais, sem preconceitos no plano ontológico, os valores são feitos realmente emergir da realidade e, depois, são feitos agir nela sem por isto corroer a autenticidade do ser puro." (287) No plano da pura objetividade ontológica o que importava para Marx eram "as grandes tendências evolutivas que o ser social, enquanto tal, desenvolve em si a partir de si, pela própria dinâmica do ser" (287).
Basicamente até aqui foram tratadas duas questões sem que adentrássemos de maneira direta no tema que sugere o título do capítulo. A primeira questão foi aquela referente ao homem como pólo singular da reprodução e como este é um ser histórico desprovido de "natureza humana" que reage ao ambiente de forma a articular em respostas suas reações; longe, portanto, das reações dos seres de natureza orgânica. As respostas articuladas que sugerem enfim as perguntas - pensemos no caso da física quântica, por exemplo; o átomo sempre esteve lá mas só quando foi possível um dado desenvolvimento social e da ciência é que as respostas passadas acabaram por chegar às perguntas sobre a natureza da matéria - dão origem ao novo. Este vai imprimir novas necessidades e novas respostas que vão levar a práxis humana a se desenvolver extensiva e intensivamente.
As relações que a parte apresenta com o todo, a interação dos complexos singulares entre si e dentro de uma totalidade, constituem o segundo grupo de questões. Assim discutiu-se o problema da totalidade já que a totalidade em seu processo de reprodução é a questão dessa parte da "Reprodução", porém uma totalidade que não pode ser compreendida como um todo homogêneo e sim constituída de complexos que se articulam, se exprimem um pelo outro, interagem, etc. Totalidade que, enfim, expressa-se em sociedades concretas e determinadas mas que ao mesmo tempo é um momento de expressão do desenvolvimento dos processos imanentes ao próprio ser social na sua constituição mais específica, mais social e sem rupturas. Paralelamente, no final, fizemos uma referência aos problemas derivados da "logicização do ontológico".

4. Sociabilização e Afastamento das Barreiras Naturais

O que está "no fundo" da discussão e que constitui o nosso específico objeto de estudo é o "processo genético da sociabilidade nas suas formas mais puras, cada vez mais nítidas, do processo ontológico que é colocado em movimento sempre que de um tipo de ser de natureza mais simples, surge outro mais complexo por obra de alguma constelação de circunstâncias ontológicas" (287). Portanto verificaremos as tendências evolutivas da constante sociabilização do ser social, o afastamento das barreiras naturais. "Trata-se de ver, portanto, como aqueles elementos categoriais da estrutura da sociabilidade, inicialmente isolados e dispersos que, como vimos, estão já ativos no trabalho mais primitivo, se multiplicam, se tornam cada vez mais mediados, se agrupam em complexos particulares e específicos, para fazer surgir pela interação de todas estas formas, sociedades em estágios determinados de desenvolvimento" (287-8). O afastamento das barreiras naturais que se faz acompanhar necessariamente pela constante sociabilização do ser social fixa-se em categorias mais explicitamente sociais em totalidades sociais determinadas, em formações sociais concretas.
Constatamos, então, uma tendência ontológica do processo histórico, o que significa dizer uma tendência da realidade, do ser e assim racional16. Trata-se de um processo de surgimento de formas mais complexas do ser sobre uma outra base. Isso significa que sobre uma outra forma de ser surgem formas mais complexas e mediadas guardando, no entanto, a unitariedade última do ser17.Uma série de circunstâncias ontológicas que podem estar ligadas ao desenvolvimento físico ou biológico faz desencadear um processo que transforma o ser de um grau ao outro num processo que é genético e imanente. O ser social, então, surge sobre a base necessária do ser biológico, as "formas mais complexas do ser se estruturam sempre sobre aquelas mais simples" (287). O surgimento do ser social se dá através da "mudança de função" de categorias ligadas ao ser da base, as categorias biológicas: "podemos dizer que o ser social significa sempre uma mudança de função das categorias do ser orgânico e inorgânico, e não pode jamais se destacar desta base" (287). As categorias específicas do ser social surgem e diferencia este da natureza orgânica e inorgânica mas sempre sobre a base anterior. O processo de trabalho é determinado em seus movimentos, em sua ação singular enquanto atividade de um ser biológico - o homem - despendendo energia para a execução do mesmo. Do ponto de vista biológico, porém, altera-lhe as funções: "O meio e o objeto do trabalho funcionam somente sobre a base imanente própria das leis naturais, das quais [porém] alteram as funções; no processo de trabalho não pode haver nenhum movimento que não seja, enquanto movimento, determinado biologicamente. Não obstante isto, no trabalho surge um complexo dinâmico cujas categorias decisivas - basta recordar a posição teleológica - são, frente à natureza, algo de radical e qualitativamente novo" (288). Em resumo: sem a base biológica não há ser social18.
Devemos agora passar para o que Lukács denomina de "princípios ontológicos deste desenvolvimento", ou seja, como se dá, como esse processo de sociabilização, de afastamento das barreiras naturais, realmente se realiza, como se concretiza através de um desenvolvimento que é o desdobramento do ser porém na história, na constituição de sociedades concretas. Aqui o filósofo marxista faz referência a "um duplo ponto de vista, ainda que unitário". Isso quer dizer que o surgimento de sociedades mais plenamente sociabilizadas e, portanto, mais complexas, deve seguir uma linha de desenvolvimento histórico que, por um lado, apreenda a totalidade das sociedades concretamente desenvolvidas: "o nosso percurso deve se endereçar sempre à totalidade da sociedade, por que apenas nela as categorias revelam a sua verdadeira essência ontológica"(289). Vê-se com clareza que o desenvolvimento global do ser social só é, em sentido ontológico, no plano do ser, corretamente compreendido quando direcionamos o desenvolvimento para a totalidade onde as categorias e complexos isolados adquirem forma concreta. Ainda que cada complexo tenha "um tipo próprio, específico, de objetividade", a consideração isolada de cada um pode "deformar as verdadeiras e grandes linhas do desenvolvimento global"(289). Cada formação social deve ser apreendida como totalidade para que se explicite a sua "essência ontológica", porém, uma totalidade aberta, ou seja, conectando-se à continuidade do desenvolvimento.
Então, por outro lado, "no centro de tais exposições devem estar o nascimento e as mudanças das categorias econômicas"(289). Isso significa dizer seguir o "movimento da essência". À medida em que se constitui como "reprodução efetiva da vida", o complexo econômico "se diferencia ontologicamente de qualquer outro complexo." Em sua instância individual, no pólo da singularidade do homem, a base ontológica insuprimível sobre a qual se levanta toda a reprodução social é a reprodução da vida biologicamente referida só que, em se tratando de ser social, uma reprodução biológica mediada pelo trabalho em seu contato com a natureza, portanto, o avanço em direção à generidade social. "Por isso a economia, enquanto sistema dinâmico de todas as mediações que formam a base material para a reprodução dos indivíduos singulares e do gênero humano, é o elo real que conjuga a reprodução do gênero humano e dos seus exemplares singulares"(289). O complexo econômico assume a forma do processo que nos interessa que é a "sociabilização da sociedade e, com ela, dos homens que na realidade a constituem na sua elementar natureza ontológica autêntica"(289).
Dessa forma podemos dizer que o desenvolvimento do complexo econômico e as suas categorias constituem o movimento do ser social em direção à uma maior sociabilidade. O "desenvolvimento das forças produtivas - em-si, conforme a sua essência - coincide com a elevação das capacidades humanas"(289). Aqui Lukács faz uma alusão à "dialética contraditória de essência e fenômeno neste processo." Isso quer dizer que, mesmo coincidindo com a elevação das capacidades humanas a manifestação social desta essência, do "movimento da essência", pode redundar em formas sociais estranhadas, pode "provocar um aviltamento, uma desfiguração, o auto-estranhamento dos homens"(290). No entanto não se pode esquecer que as manifestações, o mundo dos fenômenos, faz parte da realidade, articula-se dentro da realidade cumprindo uma função dentro da totalidade social. Podemos lembrar de Marx na polêmica com a religião pois, mesmo constituindo uma prática alienada dos homens, a religião é, ou seja, ela faz parte da ação dos homens e da relação desses com o mundo e com outros homens. Exemplificando um pouco apenas: o capitalismo é em sua essência uma formação econômica onde a elevação das capacidades humanas e o desenvolvimento das forças produtivas encontram suas formas mais sociais porém não excluem que a manifestação desse processo redunde nas mais perversas formas de estranhamento. A importância da percepção da dialética de essência e fenômeno reside na não estagnação da realidade, ou seja, torná-la impenetrável à ação humana diante das possibilidades objetivas que a ela se oferecem.
Quando Lukács, então, se refere ao "movimento da essência" está preocupado com o desenvolvimento deste complexo ao longo da história das diversas formações sociais que se constituem em totalidades articuladas e o afastamento das barreiras naturais como desenvolvimento das forças produtivas e elevação das capacidades humanas: "Falando, pois, aqui, da linha geral, segundo a qual o ser social se desenvolve, devemos sobretudo concentrar a nossa atenção sobre os caminhos e as direções ao longo dos quais se move esta essência real do ser social, nas suas mudanças social e historicamente determinadas"(289).
Assim duas posturas são assumidas, ou seja, Lukács afirma que "o nosso percurso deve se endereçar sempre à totalidade" e ao mesmo tempo ao "movimento da essência" constituída como as categorias que formam o complexo econômico. Isso significa que há uma ligação estreita entre um e outro patamar do ser social. A totalidade da reprodução social torna-se progressivamente mais social à medida em que as categorias do complexo econômico se desenvolvem extensiva e intensivamente. Enquanto uma categoria relaciona a sociedade como um todo articulado de complexos parciais, a outra marca o caráter de desenvolvimento do ser social.
Um outro fato a ser assinalado na linha de desenvolvimento geral "no domínio cada vez mais nítido das categorias especificamente sociais na estrutura e na dinâmica reprodutiva do ser social, o afastamento da barreira natural do qual falamos muitas vezes", é a objetividade de tal desenvolvimento, "o fato enquanto tal dos seus reflexos na consciência dos homens"(290) Aquilo que pode ser assumido enquanto "natureza" no mais das vezes indica "um choque entre um grau inferior do afastamento da barreira natural e um superior" pois, na verdade, "o deslocamento da naturalidade pura começa já com o ato do trabalho"(290) A sociedade pode se apresentar para o homem como uma "segunda natureza", porém o conteúdo dessa expressão não deve ser tomado como domínio de categorias do ser natural sobre o ser social já que aquelas são alteradas em suas funções pelo ser social e suas novas categorias, mas apenas em sentido metafórico. A intenção de Lukács, nesta como na passagem seguinte, é chamar a atenção para um conteúdo problemático. No caso o filósofo marxista está alertando àquilo que constantemente referimos como sociedades mais "naturais". Não se trata, então, de "naturalidade" mas de sociedades menos desenvolvidas no sentido da sociabilidade.
O outro conteúdo ao qual fizemos menção é que, ao lado do "fato ontológico da cada vez maior sociabilização", o desenvolvimento rumo à categorias sociais mais puras em sociedades mais complexas, temos o núcleo ontológico do desenvolvimento desigual, ou seja, a forma de desenvolvimento que "por força das coisas faz com que haja realizações precoces, num terreno social primitivo, que permanecem insuperáveis mesmo mais terde"(291). Lukács cita aqui o juízo de Marx sobre Homero e acrescenta que o filósofo comunista alemão "não se coloca jamais em contradição com a descoberta de fatos deste gênero, ao contrário, exatamente tal contraste entre a base econômica não desenvolvida e a insuperável criação épica constitui o fundamento para fixar teoricamente a desigualdade do desenvolvimento"(291) E, apesar de se evidenciar na arte, o desenvolvimento desigual abrange "todos os setores da cultura humana, teórica e prática". Abre-se, assim, um espaço dentro da totalidade. Mais que isso, porém, mostra-nos como o método ontológico deve proceder: analisar cada complexo em suas legalidades específicas e inseri-los em sua função ontológica dentro da totalidade e perceber que o desenvolvimento desta totalidade pode apresentar desigualdades que só a análise do complexo em sua especificidade poderá revelar. Trata-se de um jogo dialético, uma espécie de "vai-e-vem", de busca das conexões e articulações sempre tendo por base o ponto de vista do ser, o ponto de vista ontológico, onde se exclui tanto os juízos de valor como metodologias que trabalham com categorias apenas no plano lógico ou gnosiológico. A questão de fundo é que "o caráter ontológico objetivo do progresso, que se revela em tais casos, não é prejudicada por estas contradições, pelo contrário, elas sublinham ainda mais a irresistibilidade do movimento objetivo do ser social"(291)19.
Neste momento do texto o filósofo húngaro, então, passa a obordar o problema do afastamento das barreiras naturais, o processo de explicitação de categorias plenamente sociais, no contexto da reprodução social em sua totalidade, ou seja, como as sociedades determinadas se reproduzem, repõem seus pressupostos materiais porém avançando rumo à níveis de sociabilização menos "naturais". Deveremos seguir a linha de desenvolvimento social condutora da passagem de um modo de produção para o seguinte com base no complexo econômico e, dentro deste, o crescimento das forças produtivas. Assim, o mais importante para nós e que constantemente se repetirá em nossa reflexão mental de maneira implícita - quando não for explicitada - é qual a "ação que o crescimento das forças produtivas - mesmo se impregnadas por determinações naturais (por exemplo, o simples crescimento da população, que, porém, nem mesmo ela é mais simplesmente "natural") - exerce sobre a estrutura da sociedade no seu complexo", "quais conseqüências teria o desenvolvimento das forças produtivas sobre a estrutura e a dinâmica da sociedade"(292).
Dois caminhos, então, surgem na história dando origem a tipos diversos de formações sociais. Partindo da apropriação da terra por meio do trabalho como "a base da comunidade", nas palavras de Marx referindo-se à organização tribal, como o pressuposto sobre o qual se dá a organização da sociedade, direções diversas do processo de sociabilização levarão às formações asiáticas e seu modo de produção, por um lado, e das formações escravistas até as sociedades de classe, por outro.
Esse caminho do qual estamos partindo revela-nos o que tem se chamado de "natural". Sendo a terra a base da apropriação da vida, portanto, pressuposto da reprodução da sociedade, acaba se tornando divina, dádiva que os homens não encontram meios de produzir. "Com isso fica completamente esclarecido em que consiste a essência do "natural" em tais comunidades. Acima de tudo, consiste no fato de que é certamente o trabalho a força que organiza, e ao mesmo tempo, mantém os complexos que funcionam deste modo, mas um trabalho cujos pressupostos não são ainda produtos do próprio trabalho"(292). Porém a alusão ao fato dos pressupostos aparecerem como de origem divina revela o quão ontologicamente estas sociedades já estão afastadas da mera naturalidade como forma de organização do ser, como estas organizações já estão penetradas de trabalho humano e, portanto, nos "indica que objetivamente não podem mais ser mera natureza, que neles [os pressupostos] já está investido trabalho humano, sem que possa, todavia, ser corretamente compreendido pelo homem o como da sua dadidade”(292).
É a partir daqui que os dois caminhos irão se revelar como formas de sociabilização alternativas. Para as formações sociais que se sucedem na história o desenvolvimento significa os limites da reprodução ou então as alternativas que os limites impõem, etc. Em síntese, resta-nos saber sobre as formações sociais, "até que ponto tal ordem é capaz de se estabilizar, isto é, simplesmente de se reproduzir - mas, em sentido relativo, dentro de uma certa margem - e até que ponto, e em qual direção, de sua dissolução surgem tendências evolutivas que levam a novas formações"(292).

5. Modo de Produção Asiático

Iniciando por tal conjunto de questões, a "transformação da estrutura do comunismo primitivo"(295) receberá respostas diversas ao longo das determinações históricas das sociedades concretas. Assim, a simples reposição das estruturas sociais, a reprodução simples dos mesmos pressupostos materiais que constituem a base da troca orgânica do homem com a natureza, sintetizam o essencial do modo de produção asiático, ou seja, sintetizam "quais possibilidades derivam de sua imutável reprodução"(293). Citando Marx em O Capital, Lukács caracteriza o modo de produção asiático como comunidades de posse comum do solo onde há uma ligação direta de agricultura e artesanato e uma divisão fixa do trabalho. A produção é destinada às imediatas necessidades da comunidade jamais se transformando em mercadorias e independente da divisão social do trabalho. Portanto há uma ausência de circulação de mercadorias. Apenas um pequeno excedente se transforma em mercadoria por intermédio do Estado como cobrança de impostos. Quando tais estruturas produtivas são destruídas ou se ampliam, as novas estruturas se reproduzem segundo um plano de divisão do trabalho que exclui qualquer divisão técnica do trabalho. Se as vilas são grandes e há uma necessidade de maior produção para atender as necessidades de produção, então teremos mais de um ferreiro, mais de um oleiro, carpinteiro, etc. "A divisão do trabalho é ainda determinada predominantemente pelas necessidades imediatas do consumo, não produz novas necessidades que poderiam, por sua vez, agir sobre ela"(294). A divisão do trabalho é regulada por leis do costume, da tradição e, cada artesão particular, não conhecendo nenhuma divisão interna aos seus afazeres, sem nenhuma divisão técnica como já afirmamos, acaba por nos revelar uma organização social onde as forças produtivas mostram-se em baixo grau de desenvolvimento.
Essa estrutura na qual se organizam essas sociedades assemelha-se à reprodução de um organismo biológico, de um organismo vivo que se repõe de maneira análoga ao organismo originário. "Aquilo que mais impressiona em tal fenômeno é o contínuo repor das comunidades aldeãs, a sua extraordinária solidez na auto-reconstituição, concomitantemente à sua imunidade a profundas mudanças estruturais. De maneira que não há dúvidas que tais processos apresentam uma certa analogia com a conservação ontogenética nas espécies animais e suscitam a impressão que se trata de fatos naturais"(294)20. No entanto isto é apenas aparência já que uma desenvolvida divisão social do trabalho já ocorre nessas formações sociais inexistindo, no entanto, "aquela potência capaz de determinar os destinos dos homens, qual seja, uma intensa circulação das mercadorias que penetrasse todos os poros da sociedade"(294). Também a relação entre a base econômica e a superestutura estatal mediada pela renda fundiária assumindo a forma de imposto ainda que seja "regulamentada em sentido estático, sem aquelas complexas interações mediante as quais, em outras formações, elas se deslocam alternadamente, provocando dissoluções e progressos nos dois campos"(294), não apresenta nada de semelhante com as categorias naturais.
Isto nos dá a oportunidade de concluir a análise sobre o modo de produção asiático e o baixo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas abordando a relação que acima fizemos menção da base econômica com a superestrutura estatal. Relação que se dá através de um contato débil das duas esferas onde a base constituída pelo organismo produtivo simples insesantemente se reproduz e se reconstrói de forma idêntica e no mesmo lugar após a destruição sem vínculo algum com as "tempestades na região das nuvens da política", como diz Marx. Ainda segundo Marx, essa incessante reprodução "nos dá a chave para compreender o segredo da imutabilidade das sociedades asiáticas"(294). Por isso contrasta fortemente uma base estável frente a uma organização estatal - que se relaciona com a primeira sobretudo na cobrança de impostos, organização de exércitos contra os inimigos, etc. - instável ou, para concluir, segundo Lukács, "a peculiaridade destas sociedades, consideradas no seu complexo, é um perene repor da base, isto é, uma estabilidade dinâmica própria frente a uma instabilidade da estrutura estatal global, que freqüentemente assume forma catastróficas"(294).

6. Modo de Produção Escravista - Antiguidade Clássica

Num caminho totalmente oposto ao anterior temos o desenvolvimento das estruturas produtivas que ocorreram na Grécia e em Roma que se caracterizam, antes de mais, pela forma de trabalho que é o sistema escravagista. No entanto temos outras características que diferenciam radicalmente as duas formações.
Antes de mais, temos uma separação da cidade e do campo em tudo diferente daquela do Oriente onde a cidade participa do campo apropriando-se apenas da renda fundiária, portanto uma relação débil, fraca, onde não temos uma articulação orgânica das duas esferas. Diferente, então, da relação estabelecida nas sociedades grega e romana que se caracterizam pela forte presença da política desenvolvida sobretudo nas cidades, onde participar da política é ser um cidadão e para isso possuir terras: "aqui a existência do possuidor singular de uma parcela de terra é conexa à sua condição de partícipe da cidadania"(295).
A relação do homem singular com o campo deriva do fato de que este homem pertence a uma tribo porém não desfruta da posse da terra, não trabalha a mesma como propriedade coletiva, ao contrário, a terra é trabalhada como propriedade privada. Diz Marx a este respeito: "Como membro da comunidade o singular é proprietário privado"(295). Assim a terra é valorizada pelo trabalho do proprietário ao contrário do Oriente onde a valorização da terra do singular se dá através do trabalho comum.
Outro fato a destacar é que as "velhas formas da tribo são mais ou menos atenuadas ou rompidas pelas migrações, pelas ocupações, etc., pelo que no centro dos problemas da vida estão a conquista a ocupação e a sua defesa"(295).
Vai surgir uma forma de sociedade, então, "de longe mais social que no Oriente"(295). Uma sociedade em que a relação do proprietário com a sociedade em geral ocorre pela participação política e onde o trabalho pessoal sobre a posse, sobre a propriedade da terra, valoriza a mesma aumentando também a sua riqueza que é sustentada em termos de segurança externa pela guerra que é também princípio de ocupação e fonte de braços para o trabalho: escravos. Além disso, pelas próprias características, é um modo de produção que não se limitou à reprodução do mero existente, à simples reprodução como repor das condições de existência sem ampliação. Pelo contrário, trata-se de "uma forma que não teve necessariamente que se limitar à simples reprodução, à perpetuação do existente, mas na qual, ao invés, a ampliação, o avanço, o progresso são já dados a priori na dinâmica da reprodução da sua existência"(295).
Aqui, então, o filósofo húngaro questiona do ponto de vista ontológico, pensando o ser-precisamente-assim da sociedade e suas relações, quais as condições de reprodução ampliada de tal estrutura social, como é possível a ampliação da sociedade na sua reprodução, o aumento das forças produtivas, sem que isso resulte em crise e decadência de tal formação. "Há, porém, que se perguntar: qual é, neste caso, a relação que medeia entre estrutura da formação e dinâmica do movimento?"(296) Em outros termos indagamo-nos sobre quais os limites da reprodução em tal sociedade. Sintetizando as preocupações que por hora nos são caras, devemos pensar que "é intrínseco a esta formação se reproduzir de modo ampliado, avançar fortemente para além dos seus dados iniciais, mas as forças de tal modo despertadas podem prosseguir somente por um certo tempo ao longo do caminho demarcado pelas suas bases sociais e pelos seus pontos de partida, pouco a pouco são transformadas necessariamente em tendências destrutivas frente à estrutura que lhes deu vida"(296).
É importante observar, antes de darmos prosseguimento à nossa exposição, que o desenvolvimento da sociabilização só pode se expressar em sociedades determinadas, em formações sociais concretas, onde observamos o aparecimento de categorias mais específicas porém operantes no interior da sociedade em sua totalidade dinâmica. Já nos referimos a esse fato várias vezes. Aqui apenas alertamos que seria impossível para Lukács falar em sociabilização e afastamento das barreiras naturais se não fizesse, ao mesmo tempo, uma exposição das várias formações sociais e, dentro das mesmas, expor as formas e a manifestação das categorias que revelam um ser social mais desenvolvido, mais explicitado socialmente. Seria um trabalho inócuo e fora dos propósitos metodológicos do filósofo marxista abordar a sociabilização do ser social apenas percebendo o movimento das categorias em sua pureza deslocada da realidade do ser-precisamente-assim das relações, conexões, dinâmica, etc. Acabaria por resultar em um trabalho de interpretação lógica da realidade, construindo categorias conexas ao ser porém desenvolvidas apenas no pensamento. Ao expor a reprodução da sociedade em sua totalidade, Lukács revela-nos o procedimento metodológico correto do ponto de vista ontológico, ou seja, tomar o desenvolvimento das categorias que manifestam a essência e expressá-las dentro de uma determinada sociedade em suas múltiplas relações na totalidade dessa sociedade. Sobre isso já falamos e aqui mostramos as conseqüências e necessidade teórico-metodológico de tal procedimento.
Continuando a exposição, devemos, então, procurar determinar as causas da ruína de tal modo de produção a partir de seu próprio desenvolvimento, dos limites que se apresentam para a reprodução dessa sociedade.
O "momento decisivo" definidor da antiguidade clássica pode ser expresso em uma passagem de Marx de O Capital onde "esta forma de propriedade parcelar livre dos camponeses que trabalham por conta própria, como forma normal e dominante, constitui ... o fundamento econômico da sociedade nos melhores tempos da antiguidade clássica"(297). O desenvolvimento dessa sociedade, as forças internas a ela levaram ao seu declínio: "Todas as forças econômicas liberadas em tal sociedade levam, por fim, à sua inevitável, irremediável, decomposição"(297). A "desagregação da classe camponesa" e sua migração para as cidades constitui a base da antiga pólis onde o "florescimento econômico inicial dá vida a uma circulação de mercadorias muito difundida e a uma concentração de grandes patrimônios"(297). Este movimento duplo de aumento da circulação de mercadorias e aumento da riqueza individual na forma de patrimônios sintetiza a expansão, por um lado, do capital comercial e monetário e, por outro, "de uma forte expansão da economia escravista."
O capital comercial, "como potência econômica em si", constitui sempre o elo intermediário entre dois extremos, dois momentos que se interligam por um movimento de compra e venda. O capital comercial pode constituir grande fonte de acúmulo de riquezas mas, em si, ele não cria os pressupostos dos extremos da compra e da venda. Estes são criados por outras circunstâncias, por outra constelação de fatores e a interligação por meio do comércio revela-se orientada pelo valor de uso. Segundo Marx, em passagem citada por Lukács de O Capital, o capital comercial, no início, é o elo de dois extremos que ele não domina e de pressupostos que não cria, porém exerce "em toda parte uma ação mais ou menos desagregadora sobre organizações preexistente da produção, as quais, em todas as suas diversas formas, são principalmente orientadas em direção ao valor de uso"(297). A continuidade deste desenvolvimento, entretanto, "não depende mais dele." O capital monetário exerce efeitos idênticos ao do capital comercial em sua função desagregadora e destruidora das relações sociais e de produção assumindo "neste estágio das relações de trabalho", a forma da usura. Esta vai destruir, na antiguidade, a produção dos pequenos camponeses e desagregar a antiga pólis já que a usura vai destruir a riqueza dos pequenos proprietários na forma de empréstimos insolúveis e, portanto, comprometer a propriedade e a base política da cidadania na pólis onde "a propriedade das condições de produção por parte do produtor é, ao mesmo tempo, base das relações políticas, da independência do cidadão"(297) em passagem citada de Marx.
Estas duas categorias mais específicas da sociabilização, entretanto, exercem um poder de desagregação menor no seio da antiguidade e suas relações de produção. Não se quer dizer com isso que não exerçam papel nenhum como potências desagregadoras e como categorias que passam a atuar na imanência do ser social. Pelo contrário: "A circulação das mercadorias, portanto, sendo capaz de produzir sobre tais bases as primeiras, muito superficiais e primitivas, formas de sociabilização capitalista, termina por fim por destruir a estrutura social"(298). O que ocorre é que atuando de maneira mais profunda que as duas está o trabalho e as relações que este estabelece e, no caso, a expansão da economia escravista por nós assinalada como parte do florescimento da pólis naquele duplo movimento acima apontado.
Assim o problema em questão aqui é o "beco sem saída para a sociedade", para a reprodução das condições econômicas da mesma, que possui uma base de trabalho ainda muito "natural": "o centro social de todas as verdadeiras transformações, ou seja, o próprio trabalho e as relações sociais entre os homens que imediatamente dele derivam, é ainda muito pouco sociabilizado, é ainda muito determinado por categorias ‘naturais’ para tornar possível uma sua organização verdadeiramente social"(298)21. Tal modo de produção ainda pouco sociabilizado não tem condições de criar os pressupostos da sua forma de trabalho, quer dizer, não pode resolver os impasses criados pela expansão da economia escravista pois as condições de trabalho nesse modo de produção constituem uma espécie de unidade do homem com a natureza intocável, portanto, pela ação humana na forma de procedimentos operantes no complexo econômico: a esfera da guerra irá resolver este problema. Marx nos diz nos Grundrisse que "a unidade dos homens vivos e ativos com as condições naturais inorgânicas da sua troca material com a natureza, e por conseqüência, a sua apropriação da natureza"(298) constituem o ponto de partida para a compreensão da sociabilização da sociedade através do processo de separação da "unidade originária" que atinge sua forma mais plena apenas no trabalho assalariado das relações capitalistas. "Nas primeiras formações as forças sociais imanentes não conseguem ainda realizar tal separação"(298). O escravo, tal como posteriormente o servo, é tratado como "condição inorgânica e natural" como diz Marx, estando ao lado dos demais seres da natureza como pressuposto naturais, dados a priori da reprodução. As condições de desenvolvimento da economia escravista apresentam-se, então, muito limitadas: "Que estas condições objetivas e subjetivas de ser do trabalho - já existentes "in natura", não criadas pelos homens - abram possibilidades de desenvolvimento muito limitadas, é óbvio demais para que seja necessário se deter a discuti-lo"(298).
A única forma de aumentar o trabalho na condição de escravos é o aumento extensivo do número, da massa de escravos e isso só é possível pelas guerras de conquista para "aprovisionamento de material humano". Este aumento, por outro lado, mina a própria base militar das cidades-estados que são os camponeses livres e sua condição de cidadãos. "A expansão econômico-política destrói, portanto, as próprias bases e assim se encontra cada vez mais em um beco sem saída"(298). A ação do capital monetário e do capital comercial apenas aumenta a ação destrutiva de tal movimento que vai encontrando seus limites, "mas o momento predominante é constituído pela barreira insuperável que a economia escravista erige ao desenvolvimento complexivo"(298) como acima já adiantamos.
O caráter ainda pouco sociabilizado desse modo de produção revela-se para nós, portanto, evidente ao considerarmos o seu processo de trabalho, as condições de troca do homem como a natureza que se dá através de uma parte da sociedade considerada como um objeto, um ser da natureza física: o escravo. O desenvolvimento dessa economia acaba por criar suas próprias contradições no momento em que, ao se ampliar, destrói os pressupostos da pólis. Por outro lado já aparece algumas categorias mais sociais como o capital monetário e o capital comercial que revelarão sua potência econômica plena apenas na formação capitalista.

7. Diferença entre formação asiática e da antiguidade

A formação econômica da antiguidade revela profundas diferenças com o modo de produção asiático, um desenvolvimento do ser social profundamente diferente. Antes de mais "temos um forte progresso da sociedade em termos tanto extensivos como intensivos que, todavia, justamente quando parece alcançar seu apogeu sob todos os aspectos, começa a revelar esta sua problematicidade produzindo crise em todos os campos"(299). Esta crise é muito longa e não quer dizer o esfacelamento completo e definitivo da formação tão logo se manifestem. Não é do "dia para a noite" que a formação social e o modo de produção correspondente declinam inevitavelmente para o seu fim. Somente post festum podemos perceber com nitidez que os sinais revelados em determinada conjuntura eram os sinais da ruína defintiva, da crise estrutural da formação escravista. Na consciência dos homens os sinais da decadência só aparecem muito mais tarde. A consciência, em qualquer formação historicamente determinada, pela sua própria determinação ontológica de ser reflexo da realidade e finita diante do ser infinito e construído pela síntese de infinitas determinações ontológicas, só pode perceber a decadência quando esta já é evidente e já em grau avançado de destruição. Ainda existem "períodos de florescimento" que parecem "superações da situação fundamental da crise" e que, tanto no plano objetivo quanto no subjetivo, não revelam a magnitude da crise. "Somente em estágios relativamente tardios a desagregação econômica se apresenta como inequívoca decadência em todos os campos da vida"(299). E isto só vai ocorrer quanto, do ponto de vista econômico, "a economia escravista começa já a impulsionar, a partir da própria desagregação, com a necessária espontaneidade, os primeiros elementos daquele ordenamento do trabalho, e daquele modo de trabalhar que, em seguida, após muitas passagens catastróficas, formarão a base da via de escape, do novo estágio, isto é, do feudalismo"(299). Porém as formas da "via de escape", a ascensão do escravo e rebaixamento do camponês, nas palavras de Weber, só são percebidas depois, "somente post festum pode ser interpretado como movimento em direção a uma via de escape." No momento histórico, na imediaticidade da história, isso não se apresenta evidente constituindo apenas "a passagem da crise aguda a um lento processo degenerativo": "Apenas com o esfacelamento e a ruína do império romano durante as invasões bárbaras, devido aos novos impulsos que as característica das tribos germânicas dão às novas sociedades que nesta ocasião vão surgindo, tal movimento se revela ser germe do futuro"(299).
Além da manifestação clara das contradições que a reprodução ampliada cria no seu processo evolutivo revelado como progresso e que constitui os limites da reprodução nessa formação, limites que mostram o grau de sociabilização ainda pouco explicitado, como acima foi analisado, outras diferenças ocorrem.
Dentre estas diferenças podemos nos referir também ao fato de que o "desenvolvimento europeu se diferenciou do asiático também porque nele se nota a presença de diversas formações sucessivas, derivantes uma da outra, cuja sucessão exibe uma continuidade histórica, um se dirigir ao progresso"(300). Deve-se atentar bem a esse conceito de progresso pois o mesmo já foi idolatrado e mistificado como criticado e execrado. Para Lukács progresso quer tão somente dizer superação de graus ontológicos, uma etapa de maior sociabilização do ser social em relação a outra, um momento de maior complexidade do que outro do ser social. Outra observação a se fazer é que com essa "continuidade histórica", esse "se dirigir ao progresso", não se está querendo conceder nada às posturas teleológicas como aquelas tão velhas conhecidas dos marxistas da sucessão que vai do comunismo primitivo até o socialismo como necessidade: "(...) tendências [teleológicas] similares pairam mesmo nas posturas de alguns marxistas, segundo os quais, por exemplo, o caminho que, da dissolução do comunismo primitivo, através da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, leva ao socialismo, seria, na sua necessidade, de algum modo, pré-formado (e portanto conteria alguma coisa, ao menos, de criptoteleológica)"(300).
Não devemos "conceder absolutamente nada à teleologia conferindo valor de ser a abstrações apenas lógicas"(300). A compreensão adequada do processo consiste em apreender o ser-precisamente-assim das relações, das conexões, das categorias e complexos na sua operacionalidade funcional dentro da totalidade. Não se trata de compreender uma categoria ou retirá-la da realidade e, posteriormente, movimentá-la no plano lógico e voltar para a realidade. Dessa maneira vamos deformar o processo social em sua natureza ontológica. As categorias mudam de função no contexto histórico-social, interrelacionam-se de maneiras diversas, porém de forma causal e "não porque determinadas em primeiro lugar no plano lógico: dependem, ao contrário, do ser-precisamente-assim do respectivo ser social, do ser-precisamente-assim dos seus efeitos dinâmicos"(300). Nos contextos históricos concretos há sempre legalidades sociais "constituídas por uma necessidade concreta do tipo ‘se...então’, e para saber se este ‘se’ existe, e em caso afirmativo, em que contexto, com qual intensidade, etc., necessita-se referir sempre não a um sistema construído de necessidades econômicas (lógicas ou interpretada logicamente), mas ao ser-precisamente-assim da totalidade daquele ser social na qual estas legalidades concretas agem"(300). O "próprio ser-precisamente-assim é uma síntese realizada no real", quer dizer, é constituído e determinado pelas múltiplas legalidades e articulações da realidade, pelas "várias necessidades ‘se...então’ dos vários complexos ontológicos e das suas interações"(300).
Conceber, então, a diferença entre as duas formações tanto na imanência da reprodução de cada uma e, no caso da antiguidade clássica, a reprodução ampliada que leva a mesma a um "beco sem saída", como o sentido de progresso que existe nesta última, é atentar para sentidos que são adquiridos depois, post festum, como para a ausência de qualquer teleologia no processo. Deve-se atentar, isto sim, para as legalidades do ser-precisamente-assim das categorias e complexos sociais em suas articulações.

8. Feudalismo

Tendo considerado anteriormente o processo pelo qual a economia da antiguidade clássica acaba por se dissolver, encontrando limitações à sua reprodução, é necessário que atentemos agora para a formação econômica que se desenvolve posteriormente àquela, ao sistema feudal.
Não se pretende estabelecer, evidentemente, uma relação lógica entre as duas formações, quer dizer, ao considerar "o desenvolvimento romano-tardio da pólis em decomposição e a sua economia escravista como um tipo de período preparatório, não desejamos, em absoluto, instituir entre as duas coisas nem uma conexão lógica nem uma dependência histórico-filosófica"(301). A agricultura romana revelava-se decadente surgindo a ordem germânica fundada nas migrações. A "absoluta acidentalidade" do encontro dessas duas ordens econômicas históricas é bastante atenuada se tem presente o fato de ter havido "reais interações recíprocas" entre as duas ao longo de séculos. Lukács nos lembra a história das "contínuas invasões dos celtas e em seguida dos germanos na Itália", enquanto, por outro lado, "as tentativas colonizadoras dos romanos que tiveram êxito na Gália e falharam, substancialmente, na Alemanha"(301) nos mostra o contato que existiu efetivamente entre as dois modos de organização social. "Por isso, do ponto de vista do ser-precisamente-assim tanto de Roma quanto dos povos germânicos, a pura acidentalidade deste movimento na prática se atenua um pouco e surge como uma inter-relação tornada historicamente necessária na qual algumas tendências, que levam para além da economia escravista, na realidade se encontram e confluem como realidade"(301).
Portanto as tendências da desagregação da economia escravista já encontrava formas de organização da produção e da sociedade em sua inter-relação histórica com outros sistemas como a organização tribal germânica. No plano do ser-precisamente-assim das conexões e legalidades isso se revela como uma possibilidade objetiva de superação da escravidão mesmo que os "traços `naturais " desta com a servidão pareçam evidentes em especial nos momentos tanto do início como, mais caracteristicamente, nas crises finais onde se tenta restaurar a servidão.
Tal como a formação econômica da antiguidade baseada no trabalho escravo, a formação feudal também encontrou seus limites, ou seja, "não poder incorporar no próprio sistema os movimentos progressivos produzidos por ela mesma, os quais, pelo contrário, terminam por arrebentá-la e destruí-la"(302). No entanto, como veremos logo adiante ao falar do papel das cidades, o feudalismo "não veio a se encontrar numa via totalmente sem saída, como foi característico da antiguidade em dissolução"(302). O feudalismo subordina a cidade ao campo, ao contrário da antiguidade, mas, por outro lado, o progresso econômico que o feudalismo realiza através de seu desenvolvimento diz respeito às cidades. Ademais, o feudalismo se distingue pela elevação da produtividade do trabalho o que permite uma elevação do padrão de vida do camponês frente ao escravo. O escravo, como objeto de um senhor, fato consumado pela "natureza", trabalha com instrumentos que são inteiramente do senhor bem como a sua pessoa formando, como já vimos, uma unidade cujo produto aflui em sua totalidade para seu dono o que impede a elevação da produtividade: "Daqui o primitivismo, a infecundidade econômica deste modo de exploração, a impossibilidade de aumentar, dentro de seu âmbito, a produtividade"(302). O servo, mesmo sofrendo uma pressão extra-econômica como a "garantia última da passagem da possibilidade econômica à realidade", tem melhores condições de reprodução da sua vida: uma vez que se fixe o tributo a ser pago (a pressão extra-econômica) ele pode melhorar as condições de trabalho em seu terreno com seus próprios instrumentos havendo, então, um aumento da produtividade. Há uma possibilidade, pelas próprias características da organização feudal, de elevar o padrão de vida pela ampliação genérica dos produtos do trabalho. O servo não destina toda a sua produção ao seu senhor feudal o que permite uma certa separação e autonomia entre trabalho e instrumentos do trabalho. Novas possibilidades se abrem.
A formação feudal, então, é progressivamente superior à antiguidade no que se refere ao afastamento das barreiras naturais e, conseqüentemente, à penetração das categorias sociais no âmbito da totalidade social, ao adensamento das categorias sociais. Esta sociabilização se expressa em relações de trabalho menos "naturais" e mais sociabilizadas.
Esta forma de organização da sociedade encontra seus limites "que são aqueles da estrutura global da própria formação, e se situam exatamente onde outros momentos de sociabilização se cruzam e se opõem às tendências nela encontradas"(302). Portanto o momento de crise coincidirá com o momento em que outras formas de sociabilização irão se apresentar. Deve-se atentar bem que os limites estão precisados na estrutura da formação, que a crise será desencadeada a partir dos elementos próprios da formação e que novos momentos de sociabilização serão articulados como forma de solucionar e superar a crise podendo ou não significar um progresso. Novamente devemos chamar a atenção para a metodologia ontológica: nada deve ser concedido a uma teleologia histórica - às vezes escatológica - e sim centrar-se no ser-precisamente-assim das relações, legalidades, etc22. No caso do feudalismo o cruzamento das novas possibilidades com a crise se encontra na "relação entre cidade e campo, extremamente importante para a estrutura de qualquer formação"(303).
Na pólis da antiguidade havia uma supremacia desta sobre o campo e toda a vida cultural, política e social passavam pela cidade-estado. A decadência desta mina suas próprias bases econômicas (os camponeses livres) e torna a pólis parasitária. Na formação do medievo as cidades são subordinadas ao campo como nos indica a estrutura do trabalho que é a corporação de ofício, típica forma feudal de divisão do trabalho. Entretanto a ampliação dos mercados frente à antiguidade leva a um processo de desagregação caracterizado pela mudança da renda fundiária da terra para que os proprietários possam concorrer com as grandes fortunas das cidades. "O desenvolvimento da produção, do comércio, das trocas, etc. em seguida [à ampliação dos mercados] retroage sobre o setor central da economia feudal: a ‘época de ouro’ da servidão da gleba termina nos séculos XV e XVI, quando há uma exploração cada vez mais desenfreada dos camponeses com a transformação da renda fundiária em renda em dinheiro, que é o meio através do qual os senhores feudais buscam fazer frente à concorrência dos patrimônios urbanos, dando objetivamente, desta maneira, uma contribuição notável ao solapamento do sistema feudal"(303). Como nos diz Lukács, aqui está o momento de crise aguda do feudalismo onde se provoca uma segunda servidão ou, "por meio da acumulação originária", liquida-se "todo o sistema".
O antagonismo provocado entre as cidades e o campo na forma de interesses diversos atravessa todo o período medieval: "Todo medievo é atravessado por uma luta pelo lugar das cidades no sistema feudal"(304). As cidades italianas e hanseáticas são prova histórica disso. Entretanto, ao contrário da antiguidade, as cidades medievais não se tornarão "parasitárias" em relação ao campo. Serão, isto sim, o núcleo inicial e momento de sociabilização de uma nova forma de produção, o sistema capitalista. Elas "preparam" a nova ordem mas não podem "fundar de forma duradoura a nova sociedade." A associação das cidades é o momento onde germinam as tendências da monarquia absoluta que, "com base no temporário e relativo equilíbrio entre feudalismo e capitalismo, vem a ser a forma típica de passagem e preparação à constituição definitiva do segundo em um sistema que penetra toda a sociedade"(304). A cidade como centro da indústria terá, então, "êxito em desdobrar em realidade as possibilidades dinâmicas que estão na sua base"(304).
Tal como quando falamos da antiguidade e o "centro social de todas as verdadeiras transformações", quer dizer, o trabalho e as relações que os homens estabelecem entre si na esfera da produção, também na ordem feudal a forma de trabalho é muito importante. Em especial o trabalho desenvolvido nas cidades onde se prepara a nova ordem econômica da sociedade. Aqui a expressão da subordinação da cidade ao campo revela-se, como já dissemos, no trabalho da corporação e, portanto, uma forma não capitalista de produção. A corporação "impedia que a força de trabalho se tornasse mercadoria, ou seja, representa uma temporária interrupção naquele processo que tendia a colocar em uma via puramente social a organização do trabalho, o crescimento e a apropriação do mais-trabalho excedente à reprodução do trabalhador em contínuo desenvolvimento para a mais-valia"(304). Quando nesta forma de trabalho, imposta pelo campo à cidade como característica da ordem feudal, penetrar o capital comercial e monetário, teremos a desagregação do sistema econômico feudal: "o capital comercial (e o capital monetário) na formação feudal age analogamente a como agiu nos estágios precedentes"(304-5). Porém aqui a função desagregadora não é única e acaba por se constituir em um momento de transição impulsionando a ordem capitalista diferentemente da antiguidade onde estas categorias solapam a base econômica do sistema. Na gênese da própria manufatura o capital comercial é fundamental ampliando o mercado por meio do intermediário-comprador (Verlegaer) que exige uma maior produtividade para suprir tais mercados. Assim "o capital comercial, no processo de nascimento das formas capitalistas de organização do trabalho, assume uma função ao menos parcialmente propulsora", desagregando e construindo, mas constituindo-se, no processo de fundo, em "apenas um momento de passagem, um episódio"(305). Só quando penetrar na própria esfera produtiva a lógica do capital e seu momento superior de sociabilização, teremos a nova organização social plenamente operante: "Quando na produção penetram a fundo as categorias sociais específicas do ser social, tem-se - naturalmente após lutas violentas, após longas e complicadas passagens - a hegemonia definitiva do capital industrial. O capital comercial e o monetário se tornam simples momentos do seu processo reprodutivo"(305).
Vamos perceber que do ponto de vista ontológico, através do desenvolvimento das categorias do ser social e a função que estas vão exercer dentro da totalidade, torna-se possível compreender tanto as próprias categorias, sua função e sua sucessão, como o processo de sociabilização e afastamento das barreiras naturais. Acima isto foi esclarecido pelo movimento do capital comercial que desagrega a totalidade da ordem feudal ao mesmo tempo que fundamenta a passagem para o capital industrial onde este, ao penetrar toda a sociedade, constitui uma formação de pleno domínio das categorias sociais como veremos adiante.

9. Capitalismo

Chegamos aqui à formação econômica mais especificamente social diante das outras formações que até agora foram analisadas, ou seja, o capitalismo. Lukács inicia a análise deste modo de produção pelo processo de trabalho, ou seja, pelo momento da troca orgânica do homem com a natureza, o momento de gênese de todas as formas e conteúdos sociais ou, como já insistimos mais de uma vez, "o centro social de todas as verdadeiras transformações"(298). Na formação capitalista a sociabilidade maior e mais explicitada do processo de trabalho é a primeira constatação que marca um contraste irretocável em relação às outras formações: o trabalho como categoria fundamental do ser social encontra-se sociabilizado plenamente.
Antes porém devemos atentar para a diferença decisiva da apropriação da mais-valia no sistema capitalista, ou seja, a diferença do "poder de dispor do mais-trabalho" de forma mais explicitamente social em relação à escravidão e à servidão. Nesta duas últimas formas de realização do trabalho podemos dizer que na "escravidão decide a violência pura e esta permanece, também na servidão da gleba, a garantia de que o encargo do mais-trabalho será realizado"(305). Somente no capitalismo podemos notar um recuo da coerção física direta e explícita no processo de trabalho. Renunciar à violência é uma contingência ontológica necessária de uma ordem social que se explicitou mais plenamente em sentido social garantindo que todas as necessidades sociais possam ser supridas pelo mercado onde o próprio trabalhador também é uma mercadoria: "A renúncia - sempre relativa - à violência na vida cotidiana capitalista depende sobretudo do fato de que normalmente ela perdeu toda naturalidade e, por isso, tudo o quanto é importante para a vida pode ser obtido apenas no âmbito da circulação de mercadorias"(306). Não se quer dizer com isso que a violência esteja excluída do capitalismo. Ela apenas não é evidenciada no processo de trabalho que, no entanto, para se tornar o que é hoje foi necessário todo o período da acumulação primitiva onde a violência explicitava-se em toda a sua potente aura de "ferro e fogo" produzindo a separação gradativa do trabalhador e seus instrumentos de trabalho. O final do processo é a mercadoria força de trabalho. Assim: "Uma mudança, um desenvolvimento em direção à determinação social (econômica) da relação de trabalho se verifica somente com o capitalismo, onde a força de trabalho do operário se torna uma mercadoria que ele vende ao capitalista, cedendo-lhe assim também o poder de dispor do mais-trabalho"(305).
É por isso que ao verificarmos essa evolução da escravidão ao trabalho assalariado podemos, junto com Lukács, afirmar: "Quando tal processo é visto desta perspectiva da ontologia do ser social, da escravidão ao trabalho assalariado se torna evidente a linha evolutiva de cada vez maior sociabilização, a superação constante da barreira natural"(306).
Mas tomar em bases gerais essa linha evolutiva não nos esclarece muita coisa a respeito da concretude da sociabilização do processo de trabalho e, portanto, do modo de produção capitalista como expressão genérica dos produtos desse trabalho. É necessário as linhas gerais históricas desse desenvolvimento bem como esclarecer alguma coisa mais sobre a relação de trabalho dentro do modo capitalista de produção.
Sobre este último ponto podemos dizer: "Por um lado, a própria relação de trabalho sofre, no âmbito do capitalismo, um desenvolvimento que lhe dá cada vez mais uma fundação social; por outro, o próprio capitalismo, sobre a base do trabalho assalariado, revoluciona o processo produtivo em sentido lato, isto é, o torna precisamente cada vez mais social"(306). Ou seja, desde o contrato de trabalho que tem como base a livre contratação de compra e venda da mercadoria força de trabalho sem coerção física até a penetração de tecnologias mais avançadas no âmbito da produção elevando a produtividade do trabalho e as forças produtivas desencadeadas pela ciência, percebemos o domínio social mais explícito das categorias sociais no processo de trabalho e sua expressão genérica no próprio modo de produção capitalista23.
Quanto à historicidade do processo de trabalho na sua ascensão às formas mais sociabilizadas da produção capitalista devemos perseguir aquela linha concreta de evolução que vai da corporação à manufatura, "a primeira forma significativa do trabalho capitalista"(306).
Assim temos na corporação, como já falamos acima, uma forma de divisão do trabalho que a ordem feudal impôs ao trabalho na cidade impedindo que o trabalhador se tornasse uma mercadoria. O trabalhador devia dominar todos os momentos da produção, conhecer todas as sutilezas e artimanhas do produto que fabricava, as técnicas e a arte de produção da mercadoria. Essa relação quase mística do trabalhador com o produto - do ponto de vista romântico ou ultra-romântico - era a chave da forma de trabalho desalienada para muitos intelectuais do final do século passado, a superação do estranhamento do processo de trabalho fragmentário da moderna indústria. E de fato a "corporação conhecia a divisão do trabalho apenas dentro de estreitos limites. No fundo, cada trabalhador, ao menos no período de florescimento, devia ser educado a dominar de todos os pontos de vista e perfeitamente o tipo de produção que cabia à sua corporação"(307). Apenas isso não significava a chave para a comunidade... Segundo Marx, quando uma divisão ocorria dentro da corporação devido a um avanço das forças produtivas caracterizado empiricamente pela complexidade da execução de um produto na sua especificidade técnica, então a corporação cindia-se em outras corporações ou subespécies. Mas não havia a reunião em uma mesma oficina: "Neste caso evidencia-se o caráter ainda ‘orgânico’, ‘natural’, da divisão do trabalho nas corporações"(307), o caracol ainda unido à conha como diria Marx.
"A primeira divisão do trabalho verdadeiramente capitalista no âmbito da empresa, a manufatura, representa uma ruptura radical com esta matriz"(307). E isto pode ser mostrado através de duas características do processo de trabalho típico da manufatura. A manufatura, por um lado, pode parecer uma forma de cooperação ao reunir em um produto a síntese de múltiplos trabalhos individuais. Porém esta "é uma forma antiqüíssima e ainda ‘natural’" porque, em geral, é simplesmente a síntese quantitativa das forças de trabalho singulares, o seu crescimento quantitativo exatamente através da síntese"(307). Cada trabalhador que realiza a parcela do trabalho em seu todo reúne suas forças no produto final. "Na manufatura, ao contrário, um processo de trabalho unitário, que antes era realizado por trabalhadores singulares, é fragmentado em operações parciais qualitativamente diferentes entre si. Atribuindo em seguida a cada trabalhador uma só destas operações como sua única e constante tarefa, por um lado pode ser bastante diminuído o trabalho socialmente necessário para fabricar todo o produto, por outro lado o trabalhador, que na corporação era capaz de realizar vários trabalhos, se reduz a um limitado virtuoso capaz de realizar apenas alguns gestos sempre repetidos"(307). Assim é um produto que possuía em seu plano empírico na linha produtiva da corporação uma complexidade de operações, de técnicas, de tempos desiguais em cada parte do seu todo, que vai ser fragmentado, dividido em tantas operações quantas forem possíveis e quantas permitirem as forças produtivas do momento em que isso ocorre. A partir daí cada trabalhador realiza a parcela que se requer dele no todo desse produto e que lhe é exigido pela oficina, portanto, exterior à sua teleologia do produto. O homem começa a não dominar mais a produção.
Isso nos coloca, então, na segunda característica da manufatura que a torna a primeira forma de produção capitalista no âmbito do processo de trabalho e que a distancia da corporação. Queremos dizer com isso que a teleologia do trabalho, a finalidade a qual se destina todo processo de trabalho e que o trabalhador singular põe em movimento ao conceber o produto final e a maneira de se chegar ao mesmo por meio de técnicas e instrumentos que vão se articulando com a matéria e proporcionando o produto tal qual se imaginou ou resolvendo problemas que apareçam e chegando a um produto diferente, essa posição teleológica não é mais singular, não é mais o homem singular como produtor que a coloca em movimento: ela é dada pela oficina. O produto delineado em todas as suas sutilezas, artimanhas, proporções, técnicas, qualidades, etc., é a partir de agora concebido por quem dirige a produção e os trabalhadores são parcelas da oficina e devem executar rigorosamente cada medida, usar cada ferramenta, não mais criando ou modificando o produto para atingir os efeitos que deseja e sim produzindo cada parte do produto de forma perfeita a ser encaixada com a parcela que advém de outro trabalhador para que o final seja um produto sem defeito. Essa “virada” é fundamental e constitui um entrelaçamento no tempo com a maquinaria. A posição teleológica só pode vir por inteiro no trabalho e com a manufatura temos o rompimento da teleologia do trabalho como atributo do trabalhador: "com a divisão manufatureira do trabalho há uma virada qualitativamente significativa: já que o produto final pode surgir somente como resultado da combinação de operações parciais repetindo-as continuamente, a verdadeira posição teleológica se desloca àquele que dirige a produção." O processo é, então, exterior ao trabalhador. E Lukács conclui referindo-se ao operário singular: "As posições teleológicas realizadas pelos operários singulares se tornam meros hábitos, simples routine (reflexos condicionados), e existem, portanto, apenas de maneira fragmentada, entorpecida"(308).
A partir desse momento já está preparada a passagem para a grande indústria e a máquina cuja característica básica, como falaremos em breve, é a completa desantropomorfização do processo de trabalho.
Antes é necessário afirmar que a máquina como desenvolvimento da manufatura não é um simples aperfeiçoamento técnico ou um desenvolvimento linear da mesma, trata-se de reestruturar a produção manufatureira sobre um novo processo de trabalho pois o padrão econômico da manufatura era limitado. Em outros termos trata-se de perguntar quais as causas que levaram à reestruturação do trabalho na manufatura e, então, encontrar como resposta os limites econômicos desta e não um simples desenvolvimento técnico necessário. Sobre este ponto Lukács faz a seguinte referência: "Para nós, é importante apenas salientar, contra a moderna fetichização da técnica, que o impulso a tal passagem vem, acima de tudo, dos limites econômicos da produção manufatureira"(308)24. Estes limites por sua vez encontram-se nas próprias capacidades humanas, na própria capacidade do homem em produzir cada vez maiores quantidades de produtos que devem se transformar em mercadorias: são os limites do mais-trabalho. Isso significa que a capacidade humana de produção limita o desenvolvimento econômico da manufatura em sua extensividade, limita o seu crescimento. Por isso "a máquina foi inventada e introduzida para romper as barreiras da força de trabalho, da capacidade humana de trabalho"(308). Com isso pouco importa se a força motriz seja humana, ou o vapor, ou qualquer outra que seja: "Marx sublinha o fato que o aspecto primário não é que a força motriz pode ser não-humana, mas que o instrumento é usado de maneira nova"(308). Essa nova maneira é a máquina-ferramenta, quer dizer, as ferramentas operacionalizadas em um mecanismo que faça mais que os limites do corpo humano, que possa produzir um número maior de operações no mesmo tempo que o trabalhador faz duas ou três: trata-se de criar um mecanismo com "mil braços"25
Esse processo por nós descrito é um desenvolvimento do trabalho rumo a uma maior sociabilização. É o primeiro momento da história do homem em que uma máquina passa a operar como peça fundamental da produção e subvertendo o ritmo humano de trabalho. A sociabilização como processo contínuo ao afastamento das barreiras naturais se expressa claramente na superação dos limites do ser humano em sua substância física e psíquica. O filósofo húngaro conclui esta passagem dizendo que "a máquina é certamente uma continuação da manufatura, porque ‘desnatura’ posteriormente o trabalho, mas implica também num salto em relação a ela já que, organizando o trabalho de modo ainda mais ‘desantropomorfizado’, rompe radicalmente as barreiras físico-psíquicas que são dadas com a existência do homem como ser vivo concretamente determinado (e portanto limitado)"(309).
A desantrpomorfização é um reflexo da realidade que tem como base o conhecimento da natureza no seu em-si e nada tem em comum com o problema do estranhamento, como adverte Lukács neste momento do texto. Isso deve ficar claro para que se apreenda a especificidade do processo de trabalho sob o domínio da máquina. Não existe uma função de estranhamento da máquina: a máquina é um mero instrumento de trabalho que rompe os limites humanos no seu em-si; o uso capitalista da máquina é que produz o estranhamento, a desconexão do homem e seu produto do ponto de vista da apropriação privada do mais-trabalho. Podemos lembrar a percepção clara e precisa de Marx neste momento não confundindo de modo algum a concepção socialista com luddismo que não percebe que "(...) em si [a maquinaria], é uma vitória do homem sobre a força da Natureza, utilizada como capital submete o homem por meio da força da Natureza; em si, aumenta a riqueza do produtor, utilizada como capital o pauperiza etc."26 A desantropomorfização "é simplesmente aquele tipo de reflexo da realidade (e o seu uso na práxis) que a humanidade se tem criado para conhecer esta última no seu ser-em-si com a máxima adequação possível"(309). O processo de trabalho submetido ao uso da máquina é um processo de desantropomorfização pois os ritmos humanos de trabalho são modificados. Não é mais o trabalhador da corporação ou mesmo o da manufatura que determina o ritmo da produção mas será sim uma máquina. A manufatura permanece, em certo sentido, ligada ainda à corporação no que se refere a esse ritmo: a base objetiva, material, do processo de trabalho da manufatura ainda é "simples", ou seja, é o indivíduo e sua capacidade física limitada. O ritmo da produção depende da habilidade dos trabalhadores. Na afirmação de Marx: "Uma vez que a habilidade artesanal continua a ser a base da manufatura e que o mecanismo global que nela funciona não possui nenhum esqueleto objetivo independente dos próprios trabalhadores, o capital luta constantemente com a insubordinação dos trabalhadores."27 A maquinaria será a vitória do capital sobre essa insubordinação à medida em que a posição teleológica social do capital pode impor, agora, o seu ritmo de trabalho, ao contrário do que ainda acontecia na manufatura que, apesar da posição teleológica exterior ao trabalhador, não podia dar-lhe o ritmo de produção que desejasse. Com a máquina o processo de trabalho se torna desantropomorfizado e "passa por um crescimento qualitativo em direção à sociabilidade"(310).
Antes de concluirmos esta passagem sobre o processo de trabalho sob o jugo do modo capitalista de produção é necessário acrescentar uma rápida passagem cheia de conseqüências mas que Lukács não se atem no momento. Com a transferência socialmente determinada das posições teleológicas do trabalhador singular para o processo global de trabalho, retirando-lhe substância da ação, não apenas como trabalhador de uma linha de produção, mas como trabalhador que produz valor, estas posições teleológicas vão aumentar e influir cada vez mais sobre a vida dos homens revelando traços mais característicos ainda da sociabilização: "Enquanto conseqüência geral deste desenvolvimento [da utilização da máquina e sua exterioridade teleológica], a sociabilização se revela também pelo fato que as posições teleológicas, a priori puramente sociais, que não são dirigidas imediatamente à troca orgânica dos homens com a natureza mas ao contrário tencionam influir sobre outros homens a fim de que eles realizem por si as posições teleológicas singulares desejadas, aumentam tanto de número como de peso"(310). Isso indica, então, uma maior complexidade da sociedade capitalista revelada pela sua sociabilização. Um maior número de posições teleológica secundárias - aquelas destinadas a influir sobre outros homens e não as posições teleológica primárias que trata da imediata produção do homem (falaremos sobre isso adiante) - é parte integrante da sociabilidade capitalista mas que foi construída como fato ontológico desta forma específica, ou seja, a ruptura do trabalho do homem singular em seu posicionamento teleológico é parte fundamental da reprodução capitalista. Para que a reprodução prossiga foi e é necessário que houvesse a separação do homem e seus produtos e, portanto, enquanto diminuía a percepção de construção do mundo pelo homem singular, diminuía o contato com a totalidade imediatamente trabalhada, aumentava por outro lado os trabalhos fragmentários e referidos apenas dentro de uma totalidade social caracterizada entre outros fatos pela sociabilização como um número maior de posições teleológicas secundárias, como uma quantidade maior de trabalho acumulado em nosso dia-a-dia e ao qual não temos acesso. Um trabalho acumulado que se manifesta como uma maior divisão social do trabalho e a posterior divisão técnica deste. Por isso o dia-a-dia se revela mais fenomênico, mais cheio de mercadorias e distante da compreensão humana na sua imediaticidade. Estamos diante de uma fenomenologia atual28.
Até aqui falamos do processo de trabalho e como o capitalismo e suas forças econômicas específicas elevam a sociabilidade desse processo. Agora, o texto lukácsiano adentra para uma série de considerações sobre o capitalismo do ponto de vista de sua maior sociabilidade. Assim, nas páginas que se seguirão, trataremos de ver uma série de características do modo de produção capitalista no seu aspecto de maior sociabilização do ser social, de explicitação de categorias mais especificamente sociais. Nas palavras de Lukács: "Uma reviravolta tão importante na sociabilização do ser social não pode, como é óbvio, se apresentar como fenômeno isolado"(310). Portanto deveremos "nos deter sobre alguns aspectos que, se bem que não sejam capazes de iluminar o contexto global na sua totalidade dinâmica, lançam todavia uma certa luz sobre alguns dos seus momentos"(310). Deveremos nos deter sobre outros complexos da sociabilidade capitalista.
Para fins de maior organização e facilidade tanto de exposição como de leitura, enumeraremos cada uma das passagens do texto do filósofo húngaro em suas respectivas considerações sobre as características da sociabilidade capitalista.

1. Posse e Propriedade

É quase que uma evidência constatar que a propriedade e posses materiais tornam-se mais especificamente sociais no capitalismo. Na verdade a sociabilidade maior da propriedade, desligada de atributos "naturais", é um requisito para a própria dinâmica do sistema capitalista que requer a transformação de todos os objetos em mercadorias, submetidos à circulação das mesmas e única forma dessas se tornarem capital - não é possível existir capital sem a esfera da circulação.
"As primeiras posses, ou seja, as primeiras propriedades do homem são mais ou menos ‘naturalmente’ ligadas à sua pessoa: a herança, mesmo sendo já uma categoria social pura, dado que é em geral ligada à família, conserva por muito tempo algo desta sua constituição originária"(310-11). O homem e sua propriedade permanecem ligados, especialmente o camponês. Em muitos lugares, ainda hoje, é possível observar a cultura de apego à "terra" como uma espécie de ligação mística. Mesmo uma casa de origem familiar, em uma civilização urbana, guarda um resquício com esse contato "natural" da casa como extensão do homem.
A partir do Renascimento "a escrituração dos livros contábeis fez que o patrimônio do indivíduo singular, sem cessar de ser sua propriedade, adquirisse uma figura independente dele, autônoma, social"(311). Como descreve Lukács, a casa comercial, o negócio, surgem nesse momento e daí acaba-se por chegar à sociedade por ações. Portanto a "posse e a propriedade adquirem uma figura social cada vez mais explícita"(311).

2. Circulação de Mercadorias

A circulação de mercadorias no modo de produção capitalista foi tornada universal e tal fato produz como conseqüência a "irreprimível" sociabilização do ser social já que penetra a fundo a própria produção. Lukács destaca dois momentos do processo de circulação de mercadorias. Antes de mais nada a simples troca de mercadorias já é, em si, um processo muito mais social e que requer um certo grau maior de sociabilidade que a satisfação imediata das necessidades criando os valores de uso. Um equivalente geral entre as mercadorias faz-se necessário e penetra o corpo da sociedade: "Não há dúvida que já a simples troca de mercadorias é uma forma mais social que a satisfação direta da necessidade mediante o trabalho criador de valores de uso. Depois quando alcança um determinado nível de generalidade, a troca produz o próprio elo específico de mediação social, o dinheiro, cujo desenvolvimento do boi, etc. ao ouro e até ao papel moeda nas suas formas diversas e sempre novas é universalmente conhecido"(311). Quanto à transformação histórica do equivalente geral procurando acompanhar a sociabilização e a dinâmica explicitada pelo ser social em seu desenvolvimento, hoje podemos perceber quase que o crescente desuso do próprio papel moeda e a progressiva substituição pelo talão de cheques e deste pelo cartão de crédito. O dinheiro torna-se algo não palpável e figura apenas como um número informatizado como sendo de minha posse. Em termos bem atuais, o dinheiro torna-se “virtual”. Esse percurso acompanha a dinâmica global do capitalismo.
O segundo momento dessa sociabilização apresenta-se com o desenvolvimento da circulação de mercadorias no âmbito do capitalismo que tem, nesta, um momento necessário da realização do capital que é, entretanto, gestado na produção. Esse desenvolvimento da circulação de mercadorias no capitalismo, extremamente ampliada e diversificada, apresenta "uma nova forma, socialmente mais mediada, na circulação de mercadorias: a taxa média de lucro"(311). Todo ato de troca é social, como o filósofo húngaro trata de nos lembrar, sendo o preço uma figuração monetária, uma expressão empírica de uma categoria - portanto, abstrata - plenamente social que é o tempo de trabalho socialmente necessário. Entretanto, no capitalismo, a circulação de mercadorias é gestada na produção e isso torna a troca mediada pelo lucro que é uma explicitação do mais-trabalho apropriado de maneira privada. Não se trata apenas do preço como elo entre os pontos M-D-M. A taxa média de lucro passa a ser a garantia que no final exista algo mais que apenas o dinheiro colocado, ou seja, D-M-D : isso é capital. Assim "desde que com o desenvolvimento do capitalismo o centro realmente operante da troca de mercadorias é constituído pelo preço de custo acrescido da taxa média de lucro, todo ato, mesmo como ato singular, é determinado pelo desenvolvimento global, pelo nível geral de toda a economia, é inserido no contexto global desta como ato conclusivo de um movimento puramente social"(311).
Diante da mediação da taxa média de lucro podemos perceber a determinação dos atos mais singulares de troca quando se sabe que a possibilidade dessa taxa é a livre migração do capital entre os diversos setores da economia. O quadro de domínio da taxa média de lucro "posteriormente se concretiza e revela traços ulteriores do poder crescente da sociabilização quando nos relembramos do pressuposto econômico deste domínio da taxa média de lucro: a possibilidade para o capital migrar livremente de um setor a outro da economia"(311-12). Essa possibilidade de migração livre desde que atendido o pressuposto necessário da taxa média de lucro, acaba por se interpor nos atos mais cotidianos de nossa existência singular no que tange à nossa relação com a circulação de mercadorias, ou seja, a troca29. Cada ato singular de troca tem como pressuposto essa migração do capital e seu poder crescente de penetração em todos os espaços sociais: "(...) as leis globais e complexas do movimento global do capital determinam como princípios últimos o ser-precisamente-assim de todo ato singular na vida econômica, determinam a existência econômica de cada homem"(312). Não é necessário explicarmos mais o poder de sociabilização que tal fato produz já que atos singulares são determinados por movimentos globais do capital entre os diversos setores da economia30.

3. Grande Indústria e Bens de Consumo: Marx e o Capitalismo Moderno

Dando seqüência a uma argumentação que fazia anteriormente sobre a negação do capitalismo e a teoria marxiana que foi distorcida pela dogmatização, Lukács procura inscrever a compreensão do moderno capitalismo pela teoria de Marx. O filósofo húngaro coloca nesses termos o problema: "(...) as novas tendências de desenvolvimento do capitalismo, não as é difícil compreender com o método marxiano"(313). E realmente, mesmo o fato de falar "capitalismo moderno" parece uma mistificação despropositada já que a essência geral do problema foi esboçada anteriormente: com a taxa média de lucro como mediação entre a produção e a circulação de mercadorias, o espaço está aberto para a liberdade do capital migrar de um setor para outro da economia. Daí deriva a questão evidente para se entender o "místico capitalismo moderno": a ampliação da penetração do capital em todos os setores da economia. Não há nenhum segredo insondável que necessite os augúrios dos céus para que se compreenda a natureza do desenvolvimento contemporâneo do capitalismo. Nas palavras de Lukács "a diferença qualitativa entre o capitalismo dos tempos de Marx e o moderno" pode muito simplesmente se caracterizar da seguinte forma: "no período em que Marx trabalhou, a grande indústria capitalista produzia sobretudo meios de produção; aqui entram naturalmente as minas, a eletricidade, etc. Quanto à produção de bens de consumo, a grande indústria mecanizada se limitava a fornecer as matérias-primas importantes (indústria têxtil, moinhos, açucareira, etc.), quanto à sua laboração posterior, diretamente ligada ao consumo, permanecia ainda entregue em larga medida ao artesanato e às pequenas empresas; a mesma coisa acontecia para aquilo que concerne a maior parte dos assim chamados serviços"(313).
A partir do final do século XIX todos esses setores foram penetrados pela lógica do capital, houve "um poderoso e rápido processo de avanço do capitalismo que colocou nas mãos da grande indústria todos estes setores"(313). Todos os setores da economia e mesmo da vida é penetrado pelo capital. Verificamos diariamente que todos os objetos que nos rodeiam e tomam parte de nossa vida como mercadorias, são formas postas no mundo pelo mágico poder do capital. Não se trata de simples desencaixe das relações sociais como quer Giddens (Giddens, 1991), distanciamento entre os homens, mas uma distância articulada pelo capital. Mesmo o terreno da cultura, como sabemos e Lukács nos lembra, passa a fazer parte do círculo do capitalismo como os jornais, revistas, arte, etc. Quanto aos jornais é curioso até lembrar que os pequenos jornais desaparecem e só grandes empresas jornalística sobrevivem com a conseqüente dissolução dos conteúdos e homogeneização que se quer imparcial para atender um público cada vez menos diferenciado e crítico.

4. Desenvolvimento Maior da Mais-Valia Relativa

Continuando a descrição das tendências novas que o capitalismo desenvolveu e que revelam cada vez mais a sua maior sociabilidade - a "primeira formação com tendência interna para uma sociabilidade pura"(314) - em relação aos modos de produção anteriores e que acabavam por lhes impor limites à reprodução e ao desenvolvimento inerentes, podemos constatar que o capitalismo apresenta cada vez mais um maior predomínio da mais-valia relativa, aquela apropriação do mais-trabalho que conta com o desenvolvimento de tecnologias e processos de trabalho que diminuam o tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução o que, evidentemente, deixa um espaço maior para a apropriação de mais-valia mesmo diminuindo o tempo de trabalho do trabalhador e aumentando o seu salário. A mais-valia absoluta, aquela extensiva, adquirida através do aumento quantitativo da jornada de trabalho, vai perdendo o seu espaço, tornando-se objeto histórico que foi, no entanto, importante na manufatura e mesmo nos primeiros tempos da indústria mecanizada, a grande indústria, onde o trabalho infantil era empregado. Assim, "em termos puramente econômicos, observamos que no modo de apropriação do mais-trabalho vai pouco a pouco adquirindo cada vez mais espaço a apropriação da mais-valia relativa em relação à absoluta"(314).
Isso foi possível não só através do desenvolvimento de técnicas e processos produtivos mais sofisticados elevando as forças produtivas do trabalho, o que tornaria a argumentação feita pelo filósofo marxista um fetichismo da técnica que ele denuncia constantemente no texto de "A Reprodução". A luta sindical da classe operária foi fundamental, portanto, a consciência de classe desenvolvida como luta de classe foi determinante pois para o capitalista não seria inconveniente algum manter a mesma jornada de trabalho com maior apropriação do mais-trabalho31.
Mas o desenvolvimento rumo à mais-valia relativa também encontra a sua legalidade no desenvolvimento do consumo de massa: a mais-valia relativa "não chega a se tornar a categoria dominante enquanto não surge objetivamente um interesse econômico da classe capitalista como um todo para o consumo da classe operária, que é o que, justamente, sustenta o desenvolvimento por nós delineado em largas pinceladas: uma produção de massa, organizada em moldes capitalistas, daquelas mercadorias que constituem as necessidades cotidianas das grandes massas"(314). Esse novo desenvolvimento do capitalismo, de predomínio quase exclusivo da mais-valia relativa, não seria possível sem trabalhadores que são "consumidores dotados de poder aquisitivo". O trabalhador precisa de tempo livre para consumir.
Lukács aqui faz uma crítica ao que se chama de "capitalismo popular" como "frase vazia" e insiste em avaliar a questão com "sobriedade econômica" e constatar, então, que "a mais-valia relativa, de uma forma ou de outra, permite elevar a cota de mais-valia quando aumenta o salário e diminui a jornada de trabalho"(315)32. Para nós a crítica pode também enveredar para a solução típica das nossas esquerdas e que, na verdade, são soluções social-democratas, ou seja, a tão falada distribuição de renda que pode muito bem significar mais "dinheiro no bolso" sem que se rompa com a lógica do capitalismo e seu processo de estranhamento. Uma evidência da necessidade do capitalismo hoje é que os trabalhadores estão cada vez mais, diante do desemprego que ronda seus lares, dispostos a trabalhar por salários menores. A distribuição da riqueza na forma de conquistas sociais sindicais em relação à jornada de trabalho e à salários mais elevados - este último principalmente - não garantiu que o capitalismo não permanecesse com sua lógica intrínseca, quer dizer, dispor dos trabalhadores quando bem entender. Na relação de forças hoje, com a sofisticação das técnicas produtivas, a "reengenharia", etc., bem como o recuo socialista, tem ganhado as forças capitalistas.
Para concluir, devemos lembrar junto com Lukács, o capítulo VI não incluído em O Capital sobre o processo de trabalho e dizer que é apenas na mais-valia relativa que o trabalho é realmente submetido ao capital: "Apenas o predomínio da mais-valia relativa transforma, segundo Marx, a submissão formal do trabalho ao capital em submissão real"(315).

5. Controle Capitalista

A expansão do capital pelo planeta e sua lógica transformadora e irreversível de relações sociais pode, no entanto, ser hoje paliativamente controlada. Isso quer dizer que é possível um maior grau de previsibilidade do capitalismo e, portanto, controlar crises que possam afetar a economia.
A singularidade de ação dos capitalistas leva a uma unidade do processo que se constitui no ser-em-si do capitalismo mas que não pode jamais tomar a consciência do ser-para-si do mesmo processo: "A unidade de tal processo global [do capitalismo] chega portanto a um ser-em-si que, primeiramente, não possui nenhuma possibilidade de desenvolver por si mesmo um ser-para-si e a respectiva consciência"(316). Essa unidade, segundo Marx - que ontologicamente a conhecemos em sua operacionalidade prática -, exprime-se de maneira clara nos processos de crise. Assim a unidade ontológica do processo de produção capitalista existe como "tendência objetiva" necessária do ser social na sua concreção mas que só é claramente posta para a consciência nos momentos de crise: "nas crises vem a se exprimir a unidade dos momentos da produção capitalista tornadas reciprocamente independentes"(316).
Portanto o que aparece aqui como algo muito claro para a economia capitalista é a maior possibilidade de controlar situações de crise mas nunca romper a barreira do ser-em-si do capitalismo. Mesmo porque não é essa disposição que está em jogo. Os controles macroeconômicos da sociedade capitalista são usados na tentativa de manipular as tendências e evitar crises. Veremos à seguir isso.
O que é muito importante para nós aqui é que a sociabilização do ser social sob o domínio do sistema produtor de mercadorias levou à possibilidade de evitar crises, manipular a ação social, etc. Mas não rompeu a barreira ontológica do ser infinito perante a finitude da consciência, base de toda ontologia. E nesse processo de sociabilização a tentativa do controle capitalista por meio de recursos racionais e científicos deve por vez desmistificar o mito da possibilidade de controle total sobre a sociedade em seu fazer econômico. É isso que Lukács deixa claro: “Todavia, no interesse da clareza teórica, é necessário precisar que o objetivo real de tais conhecimentos não é o ser-em-si da totalidade do processo sócio-econômico enquanto tal, mas apenas o interesse do capital global em cada situação concreta. Neste caso, portanto, não é que o processo global objetivo possa ser conduzido ao seu ser-para-si mediante o conhecimento adequado, pode-se somente colher neste modo melhor que no passado o seu decurso espontâneo e usá-lo praticamente” (317).
Assim a realidade da reprodução capitalista é inevitável: o maior controle sobre as leis da economia capitalista garantida pela sociabilidade do ser social (pois no modo de produção capitalista as bases sociais são plenamente sociais) não pode jamais evitar o seu ser-em-si de se manifestar. Mesmo porque não é esse conhecimento que se pretende, o conhecimento da totalidade, mas só o interesse prático da reprodução global. Novamente se repete a fórmula da consciência finita diante da infinitude da realidade.
Neste ponto convém apenas um breve comentário que Lukács alude à economia da ex-URSS. Não é nosso interesse neste momento devido ao tema desse trabalho desenvolver esse assunto mas é importante deixar assinalada o comentário de Lukács sobre a economia soviética.
Ao dar seqüência às questões sobre o limite do controle social capitalista sobre o ser-em-si da sociedade produtora de mercadorias, Lukács diz que é difícil precisar os limites da sociedade capitalistas em sua reprodução, em seu ser-em-si. Dizendo que é apenas possível colher melhor hoje que no passado a espontaneidade do processo capitalista, o filósofo húngaro nos diz que “o limite objetivo é hoje difícil de se tornar concretamente visível porque a sua verdadeira oposição ontológica, a economia socialista planificada, até agora não se realizou jamais de forma adequada” (317).
Observe que os processos de controle capitalistas que implicariam um controle consciente, uma maior possibilidade de se teorizar os limites do capitalismo seriam até possíveis se o desenvolvimento histórico tivesse construído em seu processo ontológico gerador de categorias o oposto da categoria capital e da sociedade capitalista que é a sociedade planificada. Portanto a teorização dos limites práticos do capital são difíceis pois não se produziu de forma adequada a sociedade oposta. Então Lukács expõem uma breve digressão dos problemas teóricos envolvidos nesse processo e como a história acabou colocando os problemas teóricos ao sabor dos ventos da hora o que gerou “um voluntarismo e subjetivismo burocráticos, um praticismo dogmático que transformava continuamente em dogmas os diversos argumentos do momento” (317).33

6. Manipulação

A sociedade capitalista em sua extrema complexidade social gera muitas formas fenomênicas de se apresentar ao homem em sua singularidade. Uma das forma pelas quais a sociedade capitalista se apresenta é a manipulação como forma social de garantir a reprodução do capital.
No item anterior vimos como a moderna sociedade capitalista lança mão de artifícios reguladores para controlar a reprodução e evitar crises gerais do capitalismo.34 As considerações de Lukács sobre a manipulação vão no mesmo sentido. Isso significa dizer que mesmo que a manipulação crie um consumo de mercadorias para ampliar as capacidades produtivas do capitalismo, não vai alterar a essência do sistema que é uma determinada propensão à crises cíclicas e os limites da própria sociedade produtora de mercadorias. Dessa forma a concepção básica de Lukács é a de que tal como o controle capitalista não pode mais do que afetar perifericamente as atividades da sociedade capitalista sem jamais atuar sobre o ser-em-si do capitalismo, a moderna manipulação social jamais pode afetar o ser-em-si da sociedade capitalista.
É por isso que logo que o filósofo húngaro encerra as considerações sobre o controle capitalista fazendo algumas considerações sobre o socialismo e seus problemas teóricos, aborda o problema da manipulação que, em termos ontológicos, estaria no mesmo nível do controle capitalista, nunca atingindo o fundo do ser social. “Devendo, contudo, conforme o caráter ontológico destas considerações, nos ater ao ser do presente, não podemos deixar de tocar brevemente em um momento particular do moderno capitalismo: o problema da manipulação”(318).
É bom acrescentar que fica muito claro a partir destes dois problemas abordados, que Lukács estava muito atento aos problemas atuais do capitalismo e tentou levar esses problemas para um debate dentro das categorias ontológicas de análise do capitalismo. Ele percebe, assim, a importância que estas questões têm para a sociedade capitalista atual e procura mostrar o lugar ontológico destas novas formas de atuação capitalista: a manipulação e o controle social operam apenas de maneira fenomênica nunca atingindo o ser-em-si da sociedade.
A manipulação nasce, assim, da “necessidade de fazer chegar massas de mercadorias ao consumo de muitos milhões de compradores singulares” transformando-se, em seguida, “numa potência que sepulta toda vida privada”(318-19). O filósofo húngaro adverte logo em seguida o caráter de suas considerações: “não pretendemos avaliar a situação daqui derivada em termos de Kulturkritik”(319). Portanto suas considerações serão tão somente voltadas aos problemas ontológicos daqui derivados.
Após, então, mostrar questões já abordadas entre essência e fenômeno citando a passagem de Marx onde aparece o erro destruidor de todo o luddismo que vê na máquina um inimigo, quando a máquina é em si uma potência produtiva cientificamente elaborada, Lukács volta-se para o em-si da manipulação que é “mediação entre produção em massa de bens de consumo (e serviços) e a massa dos consumidores singulares. Sendo necessário informar sobre a qualidade, etc. das mercadorias, tal sistema de mediação é economicamente indispensável neste estágio da produção. Dadas as características do capitalismo moderno, porém, estas informações terminam por se tornar exatamente uma manipulação, a qual pouco a pouco se estende a todos os setores da vida e, sobretudo, ao político”(319-20).
Dentro desse quadro ontológico a manipulação vai operar de duas maneiras sobre o ser social:
1) encerrar o homem em sua particularidade: “a manipulação e o consumo de prestígio a ela conexo, expulsaram o máximo possível da vida cotidiana dos homens o impulso para a generidade e, acima de tudo, a tendência a superar a própria particularidade; o seu principal alvo objetivo é exatamente o de fixar, de tornar definitiva, a particularidade em cada homem objeto da sua ação”(320).35
2) tornar o homem, nessa particularidade, uma particularidade abstrata: “em conexão com tal movimento [o anterior], a particularidade assim isolada adquire um caráter abstrato, um caráter - em definitivo - nivelador; a imediata e imediatamente sensível particularidade da vida cotidiana cai cada vez mais sob uma abstratividade superficial e imediata, por sua essência fixa e imóvel, mesmo se em contínua mudança no mundo fenomênico. A afinidade ontológica com o método do neopositivismo desta prática destinada a plasmar a vida cotidiana é tão evidente que não há necessidade de nos deter a demonstrá-la”(320).
Mas Lukács coloca mais uma questão (sempre tratando do assunto em sentido ontológico): “Porém, quer isto dizer que a manipulação já se tornou uma fatalidade, algo inevitável para a vida humana?”(320) Aparece aqui novamente a comparação com a máquina. A máquina opera na produção econômica transformando e revolucionando as formas produtivas enquanto a manipulação age na esfera da circulação: “A diferença de fundo é que a máquina figura na própria produção, revolucionando-a, enquanto a manipulação é, do ponto de vista econômico, uma categoria determinada pela circulação, ou seja, como diz Marx, pela troca ‘considerada na sua totalidade’”(320).
Vemos a ênfase sempre presente, então, sobre o momento produtivo como aquele que articula o todo social. Isso não quer dizer que troca e produção não interajam e uma agindo sobre a outra modifique os conteúdos e formas de atuação. Mas sempre aparece claro para Lukács qual é o momento predominante da sociedade, a determinação social em sua complexidade: “É verdade, como vimos no momento oportuno, que a troca e a circulação interagem com a produção e que esta última constitui o momento determinante de tal interação”(320-21).
Para Lukács fica sempre claro que dentro da reprodução social o momento econômico, o momento da troca orgânica do homem com a natureza, sempre constitui a prioridade ontológica do ser social.36 É por isso que ele pode concluir sobre o caráter ontológico da manipulação sobre o homem: “Certamente a manipulação exerce, com meios grosseiros ou refinados, uma pressão permanente sobre o indivíduo, mas o seu fundamento é constituído por uma sanção que opera apenas nas relações inter-humanas e não, ao contrário, no plano econômico geral, sócio-global. Por isso, mesmo como indivíduos é possível dela se defender, contanto que se esteja disposto a sofrer determinadas conseqüências das próprias ações, a correr um certo risco”(321).
Prova disso é o fato de mesmo enquanto indivíduos que buscam uma elucidação sobre o ser social e suas articulações podemos visualizar e compreender os efeitos e as causas da manipulação. Isso mostra, então, que a manipulação, apesar de sua força crescente e arrebatadora, não constitui parte da essência social. É apenas um momento do processo capitalista que pode ser revertido pela própria ação do indivíduo em suas ações particulares.
Estes dois últimos itens que encerram a exposição sobre o capitalismo como modo de produção mais sociabilizado acabam deixando muito claro uma série de questões muito importantes para Lukács. Primeiro é que a consciência humana, o pensar, pode tentar abarcar o ser social, mas nunca pode conseguir a possibilidade de controlar esse ser pois o ser é sempre infinito e o pensar é finito: é, como já dissemos, a tese de toda ontologia. É por isso que o método dialético aparece como o método mais racional possível diante disso pois é um método dinâmico que vai se aproximando aos poucos da compreensão do real; por meio de tentativas e erros, o método dialético tenta se aproximar da realidade cada vez mais como a única maneira de se obter o pleno conhecimento das “engrenagens” (categorias) básicas do ser social.37
Outra questão que aparece para Lukács é que o controle capitalista e a manipulação são formas sociais que operam no nível da aparência sem tocar nunca a essência da sociedade capitalista, o em-si do ser social concretizado enquanto sistema produtor de mercadorias. Isso ocorre devido a sociabilização do ser social que alcançou um estágio de poder se olhar como produtor de seus próprios fundamentos não naturais. Mas esse “olhar” os seus próprios fundamentos não atinge o nível do essencial.
Também - apenas para reforçar o que já foi dito -, Lukács está sempre trabalhando as questões enquanto problemas ontológicos sempre fugindo de considerações morais ou éticas. É evidenciado essa sua posição quando ele faz a análise da manipulação e a sua crítica sempre enquanto problema ontológico e não de Kulturkritik.

10. Conclusão

Nos últimos parágrafos do capítulo sobre a reprodução que abordamos, Lukács irá fazer uma conclusão sobre a trajetória até aqui estabelecida. Uma trajetória histórica sim mas sempre com os olhos voltados para as categorias essenciais que estruturam o ser social em cada estágio do seu desenvolvimento. Assim o filósofo húngaro vai mostrar uma comparação final entre o modo de produção capitalista e os modos de produção anteriores.
“Após haver acompanhado este desenvolvimento do ser social em direção a uma sociabilidade cada vez mais pura, mas também cada vez mais complexa, cada vez mais rica em mediações, podemos dizer que o critério decisivo para que o movimento assuma esta direção é a reação ao crescimento das forças econômicas”(322). Portanto é a articulação entre os diversos complexos sociais em sua totalidade com o desenvolvimento econômico do ser social que torna a sociabilidade cada vez mais pura no ser social. Lukács então volta a afirmar a prioridade ontológica38 do complexo econômico dentro do ser social e é o desenvolvimento desse complexo que eleva a sociabilidade do ser social à estágios mais e mais desenvolvidos.39
“As relações de produção asiáticas não conhecem, estrito senso, nenhum progresso sob este aspecto, ainda que, em ligação com isto, possuam uma capacidade aparentemente ilimitada de se regenerar (a qual, não casualmente, termina quando ali penetra o capitalismo). A antiguidade e o feudalismo têm, como vimos sob vários ângulos, a capacidade de desenvolver até um certo ponto as suas potencialidades econômicas imanentes. A partir desse estágio, todavia, o aumento da riqueza se volta contra as bases da formação, a desagrega, o movimento à frente se converte em um beco sem saída do ponto de vista econômico-social. Os motivos concretos são diferentes nas duas formações, apenas deste ponto de vista são análogos, e consistem no fato que ambos têm condições reprodutivas que ainda podem ser definidas como “naturais”, à medida em que, no plano da sociedade, têm pressupostos dados “do exterior”, que se encontram já “prontos”, de maneira que o seu processo de reprodução não pode reproduzir os próprios pressupostos, pelo contrário, termina por destruí-los”(322).
Fizemos essa longa citação que fala por si só e não precisa de explicação: a reprodução social especificamente sociabilizada, afastada de suas barreiras naturais, consegue reproduzir os pressupostos de sua continuidade. A antiguidade e o feudalismo não podem fazer isso e por isso encontram barreiras em sua continuidade reprodutiva. “O capitalismo é a primeira formação na qual tem lugar, e em medida crescente, uma tal reprodução dos próprios pressupostos”(322). Em seguida Lukács cita Marx onde este observa que o capitalismo em seu processo reprodutivo produz as suas próprias condições de existência. Diz ainda que O Capital descreve essa reprodução do processo de produção e dá como exemplo da sociabilidade mais pura da formação capitalista a reprodução simples (a reprodução ampliada “fixa ainda mais solidamente” a sociabilidade). Portanto é a específica sociabilidade do capitalismo o que o “distingue de todas as formações precedentes”(322).



















Parte II

O Conceito de Irracionalismo


1. A Ideologia como Categoria da Ontologia de Lukács

Muito já se falou sobre ideologia e sem dúvida este é um dos conceitos mais debatidos e controvertidos do marxismo, das ciências sociais e da filosofia. Não se pretende aqui fazer um sumário das acepções do termo ao longo de sua história. Nem mesmo introduziremos uma conceituação nova. Apresentaremos - a título de introdução - a forma como Lukács pensa a ideologia como categoria fundamental dentro do ser social e ganha um papel destacado dentro de sua Ontologia compondo um capítulo todo da segunda parte da obra. Isso mostra-se importante à medida que vamos pensar as tendências irracionalistas como manifestações ideológicas e, portanto, manifestações da consciência que pretendem influir sobre outros homens e conduzi-los a agir de determinada maneira dentro da sociedade. Não se trata, então, da questão de “falsa” ou “verdadeira” consciência mas sim da atuação prática de um conjunto de conceitos, da força prática que a ideologia tem.
A ideologia possui uma função dentro do ser social, na constituição ontológica deste. Ela operacionaliza determinadas formas de manifestação do ser social originando sua coesão ou degradação, suas apreensões ou negações da ordem, suas polarizações classistas, etc. Podemos dizer que ela expressa o “estado da consciência” num dado momento do desenvolvimento do ser social. Por isso é que em Lukács ela assume a posição ontológica de momento ideal do ser social. É por isso que ela deixa de ser uma contraposição à ciência na forma de “falsa” ou “verdadeira” e se torna parte essencial no funcionamento do ser social. Mais ainda, essa expressão consciente de determinado estágio do desenvolvimento do ser social, quer dizer, o estágio alcançado pelas forças produtivas, não é apenas uma expressão vazia, “reflexo” imediato da realidade: é uma interação com a realidade na forma de respostas à problemas postos pela sociedade. Muitas vezes sendo bastante complexa e tendo um desenvolvimento com relativa autonomia dentro do ser social40 a ideologia nunca deixa de ser uma resposta humana a dados problemas que a sociedade colocou dentro de um contexto histórico e essas respostas ao mesmo tempo que são condicionamentos sociais interagem no fim, em círculo, sobre a própria sociedade buscando influir sobre outros homens. Nunca será um conhecimento desinteressado, desligado da sociedade, um saber “ingênuo”: será sempre uma manifestação consciente da sociedade, será sua ideologia.
Dado este pequeno esclarecimento podemos recorrer a ajuda de Mészáros:
A ideologia, como forma específica de consciência social, é inseparável das sociedades de classe. Ela se constitui como concscência prática inescapável de tais sociedades, vinculada à articulação dos conjuntos de valores rivais e estratégias que visam ao controle do metabolismo social sob todos os seus principais aspectos. Os interesses sociais, que se revelam ao longo da história e que se entrelaçam de modo conflituado, encontram suas manifestações no plano da consciência social na grande diversidade do discurso ideológico, relativamente autônomo ( mas, de forma nenhuma, independente), com seu poderoso impacto sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social (Mészáros, 1993: 11).

Nesta definição de Mészáros percebemos que a ideologia não é uma manifestação social isolada ou pertencente apenas ao território frio e gelado da lógica e da gnosiologia. Trata-se de um complexo ativo e dinâmico dentro do ser social e mais, dentro dos conflitos deste ser nas sociedades de classe. Cumpre uma função ontológica fundamental na regulação desta sociedade em suas multifacetadas manifestações e articulações: política, direito, arte, educação, religião, ciências, filosofia, valores, cultura, etc. Não se trata de um simples discurso como objetividade científica ou não: é uma manifestação que se envolve de alguma forma dentro dos conflitos sociais, cumprindo função ontológica dentro das sociedades de classe. Como destaca Mészáros, trata-se de consciência prática. Separar as manifestações da consciência da sociedade das quais são expressão é um absurdo tão grande como conceber ideologia como “falsa” consciência.
Mais adiante Mészáros vai insistir sobre os conflitos sociais e a tomada de posição diante das ideologias das classes em conflito, quer dizer, a consciência prática da sociedade diante dos conflitos classistas. Assim
as ideologias conflitantes de qualquer período histórico constituem a necessária consciência prática, através da qual as mais importantes classes da sociedade se relacionam e até mesmo, de certa forma, se confrontam abertamente, articulando sua visão da ordem social correta e apropriada como um todo abrangente (Mészáros, 1993: 12).

A ideologia além de ser um necessário complexo dentro da articulação do ser social manifestando-se como consciência prática das classes em conflito, também busca a abrangência social, busca influir na sociedade como um todo para que uma posição seja majoritária, quer dizer, hegemônica.
Para os fins aos quais tencionamos ainda abordar o problema da ideologia antes de nos envolvermos com o problema do irracionalismo, deveremos verificar alguns traços ontológicos desta categoria.
Continuaremos os argumentos de Mészáros para mostrar que a ideologia não é uma questão de “falsa” consciência. A ideologia tem uma função vital dentro do aspecto ontológico do ser social determinando as posições que cada indivíduo ou grupo social assumem na reprodução econômica da sociedade em que estão envolvidos. Toda formação social tem um conjunto de ideologias que justificam ou negam a ordem, tentam mantê-la ou destruí-la.
Ester Vaisman sintetiza dessa forma a posição de Lukács sobre a função da ideologia dentro do ser social e o momento de sua geração:
Lukács sustenta, assim, que a ideologia, bem determinada e compreendida, possui uma caracterização ampla que ultrapassa os limites vulgarmente atribuídos a ela. Do ponto de vista ontológico, ideologia e existência social (em qualquer nível de desenvolvimento) são realidades inseparáveis. Ou seja, onde quer que se manifeste o ser social há problemas a resolver e respostas que visam a solução destes; é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo de operações (Vaisman, 1989: 419).

É perfeitamente compreensível a oposição que Lukács assume contra uma concepção de ideologia que se volta apenas ao plano das determinações lógicas e gnoseológicas. O real existe e deve ser apreendido e transformado pela poderosa ação da ideologia que constitui importante complexo do ser social. A ponderação de uma concepção de ideologia que se limita à questão da teoria do conhecimento é caminhar no sentido de uma teoria social que não se quer, em momento nenhum, revolucionária. Por sua vez a ideologia agindo como momento de transformação é parte fundamental do processo de revolução de qualquer formação social, é um complexo social prático. Assim
o real existe, o real tem uma natureza e esta existência e esta natureza são capturáveis intelectualmente. E, na medida em que é capturável, pode ser modificada pela ação cientificamente instruída, ideológica e consciente conduzida pelo homem, Postular, desse modo, a ontologia é resgatar a possibilidade de entendimento e transformação da realidade humana. Em suma, é colocar o fato de que o real não é, afinal de contas, uma ilusão dos sentidos e que nossa subjetividade pode se objetivar na conquista da realidade. Daí porque o interesse de Lukács pela ideologia no contexto de sua última obra (Vaisman, 1989: 409).

Pensando desta maneira e concebendo a ideologia como elo fundamental no entrelaçamento das articulações do ser social é que Lukács irá sistematicamente negar o critério gnoseológico e buscar “a conexão ontológica deste fenômeno com o ser social, refutando, dessa forma, o critério gnoseológico como adequado para a determinação das manifestações ideológicas” (Vaisman, 1989: 410).
Na seqüência de seu artigo, Ester Vaisman demonstra o entrelaçamento da ideologia com o trabalho e a fundamentação ontológica daquela. É assim que a ideologia tem como sua base ontológica as posições teleológicas secundárias muito diferente das primárias. Estas encontram-se na categoria do trabalho e visam a transformação de um objeto material em objeto para o homem, a transformação de alguma coisa natural em objeto modificado pelo homem: é a famosa posição teleológica do trabalho que encontra-se já em Marx. A ideologia, para Lukács, tem a sua base nas posições teleológicas secundárias que buscam influenciar outros homens com a necessidade de adequação, ordenação, revolucionamento, etc. de uma dada formação social em determinado estágio produtivo. “Ou seja, a ideologia, em qualquer uma de suas formas funciona como o momento ideal, que antecede o desencadeamento da ação, nas posições teleológicas secundárias” (Vaisman, 1989: 416). Vemos aparecer, então, a conceituação que acima desenvolvemos sobre a função eminentemente prática da ideologia com o seu locus ontológico nas posições teleológicas secundárias. O ser prático que é o homem responde às necessidades que a natureza e que a história lhe colocam na forma de alternativas através do máximo esforço de síntese e desenvolvimentos nos mais variados campos espirituais e que tendem a ser postas a influir sobre outros homens das formas mais variadas e indeterminadas possíveis. Estas elaborações sintéticas fazem parte de uma totalidade que reflete o estágio do desenvolvimento das forças produtivas. Esclarecendo:
A concepção lukácsiana de ideologia tem como ponto de apoio fundamental a noção do homem como um ser prático, característica primordial do ser social posta já no ato de trabalho, na posição teleológica e no desencadeamento de causalidades que o envolvem. Ontologicamente, essa noção implica o fato de que este ser prático age a partir de decisões entre alternativas; ser que, não sendo abstratamente independente das necessidades que a história lhe coloca, reage a essas necessidades empregando produtos espirituais que são constituídos, de forma não linear, em função dessas mesmas necessidades (Vaisman, 1989: 416).

Não é possível aqui seguir toda a exposição sobre a fundamentação ontológica sobre a ideologia, suas relações e articulações dentro do ser social, etc. A intenção deste capítulo se afasta deste problema. Mas era necessário um esboço, ainda que breve, da concepção de Lukács sobre ideologia para apoiarmos a nossa argumentação a seguir sobre o irracionalismo. Entenderemos o irracionalismo e suas características de uma maneira bem prática, como uma ideologia que busca conceber de uma determinada maneira a sociedade e, mais que conceber, influenciar essa mesma sociedade em determinadas direções históricas como forma de manter a reprodução social.

2. O Conceito de Irracionalismo

Talvez um dos conceitos mais problemáticos para ser usado seja o de irracionalismo. Lukács usou este conceito para definir e apresentar um determinado estado do desenvolvimento sócio-econômico alemão e sua respectiva manifestação ideológica. Aquela filosofia que após 1848 se transformou não apenas em mera especulação sobre o mundo mas que era na verdade uma resposta a alguma forma de desenvolvimento da sociedade alemã acabou revelando sua artimanha ao reverter um estado em que a filosofia queria “transformar o mundo”. Essa filosofia do pós-1848 queria sim ser uma resposta à “transformação do mundo” e uma resposta conservadora. Dentro do seu quadro filosófico ela acabou mostrando-se uma explicação irracional do mundo contra a filosofia hegeliana. Ao ganhar popularidade apenas torna-se mais combativa: não é ideologia por ganhar popularidade, já é ideologia ao ser filosofia.
Mesmo dando essa síntese muito sumária, não fica mais fácil dizer o que é que Lukács chama de irracionalismo. Além de problemático, como veremos que o próprio filósofo húngaro reconhece, é um conceito que faz muitas pessoas “torcerem o nariz”. Raramente as manifestações intelectuais sobre O Assalto à Razão deixam de ser passionais. Um julgamento sem que se admire ou repudie de imediato é muito difícil. Mesmo assim resolvemos tocar um pouco nesta “ferida” e trazer o conceito de irracionalismo para poder explicar algumas manifestações ideológicas atuais. Isso confere a esta dissertação um caráter de novidade. Este último capítulo representa algo inédito se bem que ainda muito incipiente. Mas de qualquer forma achamos interessante retornar a este conceito visto haver manifestações dispersas no meio acadêmico sobre a “irratio dominante”.
Não procuraremos explicações para o repúdio ou adoração de O Assalto à Razão. Com certeza estas ocupariam mais uma tese completa. Aqui vamos apresentar apenas dois aspectos. O primeiro referente ao próprio conceito de irracionalismo, que, como já dissemos, é problematizado pelo próprio Lukács. O segundo relaciona-se com o fato de Lukács não ter sistematizado o irracionalismo, quer dizer, apresentado seus aspectos mais marcantes. Na verdade o que pedimos seria uma “didatização” do conceito, ou melhor, precisá-lo sistematicamente conferindo-lhe um caráter mais acabado o que não estava nos planos de Lukács naquele momento. O momento era para pôr em evidência onde determinadas concepções filosóficas, políticas, geográficas, sociológicas, etc. levaram a humanidade.
Estes dois aspectos aparecem dispersos pelo próprio livro O Assalto à Razão. Assim, para quem lê o livro, perceberá as comparações que Lukács faz entre os filósofos que encaminham sua obra filosófica para as sendas das manifestações ideológicas irracionais e a filosofia explicativa da racionalidade do real, do real como obra social e passível de transformação pela ação humana. O segundo aspecto será abordado no próximo item deste capítulo onde procuraremos traçar algumas características do irracionalismo. Quanto ao conceito de irracionalismo é o que veremos aqui.
A leitura das partes introdutórias de O Assalto à Razão leva-nos a perceber que a conceituação do que é irracionalismo é bastante complicada e não envolve aspectos de fácil definição. Como já dissemos, a leitura da obra e a descrição lukácsiana do conteúdo da filosofia de cada pensador ou corrente filosófica e o seu respectivo caráter ideológico, já que resposta social, é que permite descobrir o que é irracionalismo. Para falarmos do conceito de irracionalismo usaremos as partes introdutórias visto não ser a nossa intenção aquela de Lukács: descrever a trajetória do irracionalismo na filosofia alemã, em especial, e na filosofia e demais ciências, no geral.
Assim a cientificidade do termo é colocado em questão pelo filósofo húngaro ao perceber que as tendências irracionais manifestam-se com constância dentro das formações sociais como resposta à lutas condicionadas no interior daquelas. As crises filosóficas são socialmente condicionadas e tendem a uma expressão bem típica que é o irracionalismo:
Portanto, toda crise importante do pensamento filosófico, como luta socialmente condicionada que é entre o que nasce e o que morre, provoca do lado da reação tendências que poderíamos designar com o termo moderno de “irracionalismo”. É duvidoso, no entanto, que o emprego deste termo com caráter geral resulte conveniente do ponto de vista científico (Lukács, 1972: 84).

Perceba muito bem a última frase. Lukács tem plena consciência do problema que representa, conceitualmente, o uso deste termo; ele mesmo o coloca entre aspas. Não é casual que isto aconteça: reflete a dúvida do filósofo húngaro. Isso é que mais faz estranhar aqueles que tão intensamente criticam a obra: Lukács mesmo se coloca em dúvida, deixa isso aberto e entrega-se, então, às críticas.
Na passagem imediatamente anterior a esta vemos claramente a dificuldade de precisar o conceito, de apurá-lo, de “acertar o alvo”. A prova disso é que ela está entre parênteses após Lukács expor a diferença entre agnosticismo e irracionalismo o que marca uma relativização da sua exposição, uma dificuldade em apurar o conceito. Vejamos:
Com o que nos limitamos, claramente, a assinalar os dois pólos extremos, pois no plano real da filosofia, sobretudo na época do imperialismo, encontramo-nos com as mais variadas transições entre o agnosticismo e o irracionalismo, nas quais, não poucas vezes, o primeiro se troca no segundo; e isto, sem ter em conta que, por razões que haveremos de encontrar freqüentemente, quase todo o irracionalismo moderno se apóia, mais ou menos, na teoria do conhecimento própria do agnosticismo (Lukács, 1972: 83)41.

Muito fácil perceber a dificuldade que Lukács encontra de mostrar uma definição e uma especificidade para o que é irracionalismo.
Essa dificuldade se expressa também no fato de que não se pode contar uma história do irracionalismo. Não podemos dizer que existe uma unidade histórica do irracionalismo já que esse tipo de tendência filosófica acaba se apresentando ao longo do desenvolvimento social como resposta específica para cada época, para cada arranjo particular das classes e grupos sociais em disputa. Dessa maneira
o irracionalismo, ainda que se o descubra, ou algo semelhante a ele, nas mais diferentes épocas de crise de formações sociais muito distintas, não pode ter uma história única e coerente da mesma maneira como podemos falar da história do materialismo ou da dialética (83).

Como expressão ideológica que é, o irracionalismo vai aparecer em cada momento histórico se revestindo de elementos diversos. Será a resposta a alguma crise social e cultural que se encaminha na imanência da própria sociedade. Mais uma vez isso nos demonstra o problema de esclarecimento do conceito de irracionalismo. Porém, apesar desta aparente fragmentação conceitual, o irracionalismo aparece, dentro de cada momento histórico, dentro de cada formação social onde aparece como resposta ideológica, com uma unidade própria. Convém citarmos uma longa passagem de Lukács onde todos esses pontos podem aparecer de forma bem clara.
Nas páginas deste livro nos esforçaremos para demonstrar que o desenvolvimento do irracionalismo não revela em nenhuma de suas etapas uma qualidade essencial “imanente”, como se uma colocação dos problemas ou uma solução troussessem necessariamente consigo a outra, pela força da dialética interior do movimento filosófico. É importante deixar claro, pelo contrário, como as diferentes etapas do irracionalismo nascem como outras tantas respostas reacionárias aos problemas colocados pela luta de classes. O conteúdo, a forma, o método, o tom, etc., de suas reações contra o progresso social nos determina, portanto, aquela dialética interna e privativa do pensamento, senão que os dita, pelo contrário, o adversário, as condições de luta que à burguesia reacionária vem impostas de fora. Convém reter isto como princípio fundamental que preside o desenvolvimento do irracionalismo. O que não significa que o irracionalismo, dentro deste marco social assim determinado, não mostre uma unidade ideal (8).

Depois daquela passagem onde Lukács fala do problema em conceber uma cientificidade para o irracionalismo o autor aborda algumas particularidades históricas do moderno irracionalismo. Então, o emprego geral do termo poderia dar uma
falsa sensação de que o moderno irracionalismo aspira a criar: a sensação de que existe uma trajetória irracionalista única na história da filosofia. De outra maneira, e por razões que em seguida exporemos, o irracionalismo moderno responde a condições de existência tão específicas, determinadas pelas características da produção capitalista, que um termo global envolveria facilmente o perigo de misturar as diferenças específicas e de modernizar inadmissivelmente velhas tendências filosóficas que nada ou pouco têm a ver com as do século XIX (84).

Cada época histórica possui a sua variante do fenômeno irracionalista. Isso não significa que cada época histórica tenha o “seu irracionalismo”. Já vimos que a resposta de Lukács a isso é bem diferente: em momentos de crise social há sem dúvida uma possibilidade de surgir respostas irracionais aos problemas que a sociedade em seu todo coloca, como atualmente. Na época do fascismo a grande característica é um irracionalismo que penetre às massas, inclusive a classe trabalhadora (64-5)42.
Dois motivos condutores permearam esta nossa apresentação: a dificuldade de estabelecer uma definição para o irracionalismo apesar de ser uma tendência muito clara dentro da filosofia como demonstra o livro de Lukács e, como conseqüência disso, a historicização do termo, quer dizer, o irracionalismo como uma tendência que penetra diferentes etapas filosóficas e se transforma numa resposta para cada época específica. Quanto a este último só nos cabe ainda dizer que a própria busca das raízes históricas do irracionalismo é infundada, a busca de raízes filosóficas para esta manifestação não encontra antepassados.
(...) as raízes filosóficas do irracionalismo indica por si a falta de fundamento desta busca de antepassados a que tão pomposamente se dedicam os representantes modernos desta corrente: a tendência fundamental da filosofia, desde o século XVI até a primeira metade do XIX, foi, vista em seu conjunto, um veemente impulso de avanço, um enérgico impulso à conquista intelectiva da realidade toda tanto da natureza como da sociedade (89-90).

Torna-se manifesto o caráter geral da filosofia para Lukács nos momentos históricos de ascensão da burguesia.


3. Características do Irracionalismo

Após abordarmos a dificuldade de estabelecer o conceito de irracionalismo vamos apresentar algumas das características dessa corrente filosófica muito irregular, que surge vez ou outra, camaleônica, que se metamorfose muito e apenas cumpre seu papel muito claro de evitar a “transformação da realidade” quando a crise apresenta-se evidente. Para essa etapa ser concluída procuramos juntar características dispersas do irracionalismo através da leitura de O Assalto à Razão tornando a exposição o mais sistemática possível.
É necessário, antes de mais nada, distinguir muito claramente todo o conteúdo da filosofia reacionária burguesa da sua forma específica imperialista que é o irracionalismo. Nestes termos é que Lukács abre seu livro:
Não pretende este livro, de modo algum, ser uma história da filosofia reacionária e, menos ainda, um tratado que estude seu desenvolvimento. O autor sabe perfeitamente que o irracionalismo, cuja aparição e cuja expansão até chegar a converter-se em corrente dominante da filosofia, exposta nesta obra, não é senão uma das tendências importantes da filosofia reacionária (3).

Não podemos confundir as formas de manifestação da filosofia reacionária, comprometida com os interesses de conservação e de expansão da burguesia, com o irracionalismo que vai crescendo até se tornar a ideologia dominante da burguesia imperialista acossada e posta em xeque pelo desenvolvimento do movimento operário e da sua filosofia de sustentação: o materialismo histórico. A partir da caracterização do irracionalismo é que desenvolveremos alguns argumentos posteriores para mostrar a fundamentação de tendências irracionais atualmente.
Surgindo nas tendências românticas, o irracionalismo se desenvolve como uma manifestação filosófica até ser a resposta da burguesia ao movimento operário que cresce rapidamente: o irracionalismo é a “resposta mais característica e mais razoável do pensamento reacionário aos grandes problemas da época nos últimos cento e cinqüenta anos”(3). Ou seja, o irracionalismo é um desenvolvimento da filosofia que procura responder aos impasses do capitalismo em seu momento de franca expansão imperialista pelo mundo, pondo sob seu ordenamento e controle os pontos mais distantes do planeta. Portanto dentro da perspectiva assinalada acima, o irracionalismo encontra seu desenvolvimento em épocas históricas determinadas. Devemos apenas lembrar que a filosofia é uma manifestação ideológica e está associada ao desenvolvimento das forças produtivas. É impossível pensar um desenvolvimento filosófico distante das realizações materiais da sociedade e isso também Lukács deixa claro desde o início: não é possível pensar uma filosofia como história das idéias ou das personalidades, é
o desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimento social, o desenvolvimento da luta de classes, o que coloca os problemas da filosofia e assinala a esta os caminhos para sua solução. E os contornos fundamentais e decisivos de uma filosofia, qualquer que ela seja, não podem pôr-se de relevo senão sobre a base do conhecimento dessas forças motrizes de ordem primária (3).

Antes de adentrarmos na caracterização do irracionalismo convém marcarmos a fase histórica de seu aparecimento de maneira bastante sucinta. Como dissemos acima, o irracionalismo é uma corrente filosófica que surge das tendências românticas. E seu desenvolvimento vai muito longe, além dos marcos do século XIX:
As posições irracionalistas e mitologizantes de crítica à burguesia - ou antes, a certos aspectos da vida burguesa - têm sua origem nos inícios do século passado, na reação romântica ao surgimento do capitalismo e seu posterior desenvolvimento nas várias formas de “filosofia da vida”, que vão de Kierkgaard aos modernos existencialistas (Coutinho, 1966: 176)

Mas o que vai acontecer e se revelar aos poucos são as contradições da sociedade burguesa:
A concretização da sociedade burguesa põe a nu a contradição que permanecia latente no período de ascensão revolucionária da burguesia: a que se verifica entre o grande humanismo clássico e a realidade prática da economia capitalista. A luta por uma comunidade humana autêntica e por um homem total e harmonicamente desenvolvido - que estava implícita no pensamento e na arte da burguesia revolucionária, do Renascimento à cultura clássica alemã - revela seu caráter utópico e ilusório. O indivíduo passa a ser um mero instrumento das forças econômicas reificadas, em uma sociedade dilacerada pela luta de todos contra todos em busca do lucro e das vantagens egoístas. A razão, o conceito de que o real é racional e pode ser objetivamente conhecido, transforma-se em um instrumento ideológico de justificação do existente, da realidade alienada e vazia (...) (Coutinho, 1966: 176)

Portanto o que vemos surgir aos poucos é o progressivo divórcio entre a sociedade burguesa revolucionária e suas necessidades de derrubara as barreiras do feudalismo com a classe operária nascente que queria dar prosseguimento ao revolucionamento da sociedade. A revolução social avança até onde é possível e depois finda-se como consolidação da classe detentora do capital. A esta agora interessa a estabilidade social para a reprodução econômica. No mesmo texto de Carlos Nelson Coutinho fica bem assinalado a representação desse fato histórico e econômico no campo intelectual:
A honestidade e a sinceridade dos grandes artistas e pensadores do período revolucionário, que não hesitavam em apontar os aspectos contraditórios e a alienação nascente do capitalismo (Hegel, Balzac, etc.), fundavam-se na convicção utópica de que o triunfo dos ideais burgueses seria verdadeiramente o triunfo da razão e do humanismo, de que a democracia e a fraternidade haveriam de triunfar no futuro, apesar dos desvios que eles julgavam temporários e acidentais (Stendhal). Com o triunfo definitivo da sociedade capitalista, desaparecem para sempre estas esperanças utópicas e, com elas, a sinceridade e a honestidade dos ideólogos da burguesia. O humanismo clássico, que em dado momento representou realmente os interesses da totalidade do povo, torna-se cada vez mais uma vulgar caricatura: sob esta forma degradada, ele passa a ser uma ideologia diretamente a serviço de interesses de classe mesquinhos e imediatos (basta pensar no caráter que as palavras “democracia” e “liberdade” têm hoje na propaganda da reação internacional). Falando sobre a revolução européia de 1848, na qual revelou-se claramente a traição da burguesia aos seus antigos ideais humanistas, Marx disse com justeza: Les capacités de la bourgeoisie s’en vont (Coutinho, 1966: 182-83).

A partir desse momento temos a burguesia à frente não apenas do seu único e exclusivo triunfo, de sua vitória econômica e social prestes a consolidar as bases sociais do capitalismo, de consolidar as tendências ontológicas do capital, mas também consolidar sua ideologia, seu triunfo no campo das idéias: aí o irracionalismo começa a surgir com força maior e definitiva.
Voltando à nossa argumentação sobre a relação entre a filosofia e as forças produtivas - após o rápido histórico de surgimento do irracionalismo na história da burguesia e européia - podemos dizer que, sendo então a filosofia uma manifestação ideológica fundamentada sobre as bases materiais de organização da sociedade, sobre as bases materiais de reprodução da sociedade e sua cisão entre classes sociais distintas, deriva uma das teses centrais do livro do filósofo húngaro, qual seja, não existe ideologia ingênua: “Uma das teses fundamentais deste livro é que não existe ideologia ‘ingênua’”(4). Isso significa dizer que não existe forma alguma de pensamento e manifestação que não guarde relação com fatos sociais e a realidade como um todo. As posições assumidas, as opiniões tomadas, nunca são destituídas de um sentido social que as conduza em um ou outro campo de expressões ideológicas dentro do contexto das lutas de classe e das contradições da sociedade. Por exemplo, uma posição observadora, descritiva da realidade social, de constatação e que expressa apenas o estado atual do capitalismo sem perceber sua estrutura de fundo - como a concentração cada vez maior e mais rápida do capital em megaempresas, o papel geopolítico e econômico dos chamados “blocos econômicos”, a globalização como processo de exclusão com fundamentação neoliberal e conservadora, etc. -, suas contradições e seu sentido ontológico, é uma posição comprometida com a preservação de uma ordem social de progressiva exclusão e na qual, mesmo os movimentos sociais mais organizados, têm uma possibilidade de ação muito limitada já que seu sucesso político, sua aceitação social estão condicionados à fragmentação em que se encontram. Caso um desses movimentos rompessem esse isolamento - impossível na própria essência de um movimento social como veremos adiante - buscando para além de sua intenção inicial as soluções dos problemas que os mesmos cobram, a limitação apareceria clara na forma da totalidade do modo de produção capitalista que para ser enfrentado precisa de um sujeito universal. Pensemos no caso dos movimentos ecológicos que, por mais progressistas que possam ser, sempre encontram como suas limitações a crescente reprodução social capitalista e sua lógica destrutiva.
Lukács deixa claro como o irracionalismo se caracteriza como a filosofia reacionária do imperialismo: “as diferentes etapas do irracionalismo nascem como outras tantas respostas reacionárias aos problemas colocados pela luta de classes”(8). Não se trata simplesmente de pensamento destituído de base social, ou melhor, não existe forma de pensamento ou filosófica que fique adejando sobre a sociedade, como já insistimos muito na primeira parte deste capítulo, mas sim que toma parte nos problemas da sociedade e procuram dar respostas aos diversos problemas desta. Dentro do quadro da filosofia irracionalista que Lukács estuda, podemos citar o exemplo da filosofia de Schopenhauer que cumpriu um importante papel após 1848: combater a perigosa filosofia hegeliana e seus seguidores em busca da “transformação do mundo”(v. p. 162).
Deixamos já bem claro que não é nossa intenção aqui uma exposição exaustiva do irracionalismo. Tentaremos sim uma caracterização do irracionalismo da forma mais sistemática possível. Isso pode nos ajudar a perceber porque algumas concepções atuais podem ser consideradas como irracionalistas. Um salto histórico é o que estamos fazendo pois Lukács tratou a história e o desenvolvimento da filosofia e tendências irracionais desde o século XIX até a chegada de Hitler ao poder. Posteriormente, no “Epílogo” de O Assalto à Razão, abordou o problema do irracionalismo no período conhecido como Guerra Fria onde os conflitos velados da geopolítica bipolar eram a base de uma ideologia apologética direta. Dizemos “salto” pois é o que deveríamos fazer: falar do irracionalismo como tendência ideológica atual pós-Guerra Fria, principalmente no aspecto da apologia direta do sistema capitalista. Seria muito importante, então, uma nova trajetória para pensar o irracionalismo hoje e as concepções que tentam explicar a sociedade neste final de século. Esta caracterização ideológica da Nova Ordem Mundial como irracionalista seria não só fundamental como também muito mais abrangente do que aqui nos propomos fazer. Aqui apenas procuramos dar uma explanação geral de como podemos ver a manifestação do irracionalismo hoje com o uso de bem poucos exemplos. É na verdade um guia de estudos futuros.
Podemos começar a caracterização do irracionalismo por uma citação de Lukács onde vai aparecer o tema da liberdade individual e marca a primeira característica deste corrente filosófica. Comentando a filosofia de W. James, Lukács nos apresenta um aspecto que, se estivesse sendo escrito hoje, nos daria um quadro bem atual da visão de mundo da globalização e seus aspectos ideológicos:
(...) um dos serviços mais característicos que esta filosofia apresenta à burguesia reacionária consiste precisamente em oferecer ao homem certo “confort” no que diz respeito à concepção de mundo, a ilusão de uma liberdade total, a ilusão da independência pessoal e da dignidade moral e intelectual, em uma conduta que o vincula em todos e cada um de seus atos à burguesia reacionária e o converte em servidor incondicional dela (19).

Esta liberdade caracterizada por uma total desvinculação dos processos sociais como se fossem uma realidade distante é uma profunda característica da concepção de liberdade e individualidade que se forja no mundo dos megablocos econômicos. Os processos sociais e a profunda realidade do ser social em seu desenvolvimento aparecem para o indivíduo como algo que não lhe diz respeito quando na verdade são processos fundamentais à vida: se o conteúdo da individualidade é marcado por uma multiplicidade quase infinita de fatores, a forma dessa individualidade é marcada por uma multiplicidade de fatores da realidade social em sua totalidade. Isso nos lembra muito a liberdade do existencialismo e seu conceito de liberdade absoluta. Observe:
Mas o irracionalismo e o solipsismo ontológico que fundam o existencialismo satreano comprometem medularmente o conceito de liberdade: o irracionalismo estatui a liberdade como algo metafisicamente absoluto, e aquele solipsismo impõe que o ato livre só adquira sentido para o seu próprio agente. Assim, “a noção sartreana de liberdade torna-se... completamente irracional, arbitrária e incontrolável”. Aliás, para o existencialismo, “a liberdade é, com efeito, um dado humano absoluto: não pode nem se constituir, nem se perder” (Netto, 1978: 21- as citações são de Lukács do livro Existencialismo ou Marxismo?).

Referindo-se na seqüência à Bergson, Lukács novamente nos esclarece sobre alguns dos princípios norteadores do irracionalismo como “a aversão à objetividade e à racionalidade” que posteriormente acaba se revelando como tomada de “posição decidida contra o progresso social” (21). Parece que estamos novamente próximos de um texto escrito hoje já que percebemos semelhanças com aquilo que atualmente é chamado de “fim da história”. No “Epílogo” tão controvertido do livro do filósofo húngaro, haverá um breve esboço das características do irracionalismo no pós-guerra. Como já dissemos, o que tentamos é uma caracterização, ainda que breve, de alguns traços ideológicos da Nova Ordem Mundial como irracionalista e as peculiaridades desse irracionalismo.
Essa aversão ao progresso deve ainda ser referida junto ao capitalismo alemão e seu atraso (que representaria uma comparação muito instigante para a sociedade brasileira) e o papel do Estado para “equilibrar aquela insana e mortífera racionalidade representada pela economia capitalista, etc., etc.” O capitalismo alemão apresenta um “destino” irracional que apenas o Estado está em condições de solucionar e ordenar. É por isso que em
todas estas concepções encerra-se, como se vê, uma atitude polêmica frente ao conceito geral burguês de progresso, próprio às democracias ocidentais; rechaça-se a idéia de que o desenvolvimento do Estado e da sociedade, rompendo com as formas feudais e sua crescente adaptação às exigências do capitalismo (basta referir-se à sociologia de Herbert Spencer), representem um progresso (51).

Deve-se fixar que para Lukács progresso não é um conceito moral que se deva ter aversão como a destruição de nossas sólidas bases valorativas e que sempre representam uma posição conservadora quando tomadas do ponto de vista moral e negativo.43 Progresso em Lukács é uma categoria ontológica de superação de etapas ontologicamente menos sociais para outras mais sociabilizadas. Assim os modos de produção e a passagem de um modo de produção para outro como inevitável progresso da sociabilidade humana são uma manifestação muito clara do que é progresso. Quando instituições sociais e políticas modificam-se para se adaptar a uma nova ordem produtiva isso significa um progresso. O desenvolvimento da forças produtivas é um progresso ainda que possa levar a um esfacelamento social pela contradição das relações de classe.
Outra característica típica do irracionalismo é a atitude espiritual diante do mundo, o pessimismo e a atitude contemplativa que se contenta com a fruição do mundo, despreocupadamente e de maneira desprendida da realidade, perdendo contato com a objetividade. Assim Lukács chama a atenção para o fato de que antes da Primeira Guerra a atitude contemplativa do irracionalismo era uma postura na qual o indivíduo podia se contentar com o fato de ser um espectador sem tomar contato com a realidade, sem que essa atitude interferisse nos destinos sociais. O indivíduo sentindo
assegurada sua própria existência, no material e no social, espiritual e humanamente, aquelas atitudes filosóficas [contemplativa e pessimista] podiam manter-se no plano puramente teórico sem chegar a influir essencialmente na conduta, na posição interior da vida dos interessados (68).

A atitude de contemplar ou de se desprender da realidade ou até mesmo de fragmentá-la, como se o indivíduo pudesse ser etéreo, altivo e superior à realidade, é típica também da pós-modernidade.
Porém esse pessimismo irracionalista vai tomar os rumos que influem no plano epistemológico e destroem a objetividade do mundo criando, então, as características do método filosófico do irracionalismo, sua apologia da impossibilidade do conhecimento. Desde Schopenhauer até Nietzcshe
assistimos a um processo no qual o pessimismo irracionalista vai minando e destruindo a convicção de que existe um mundo exterior e objetivo e que o conhecimento imparcial e consciente deste mundo pode oferecer a solução a todos os problemas provocados pelo desespero. O conhecimento do mundo vai convertendo-se aqui, de forma cada vez mais marcante, em uma interpretação do mundo progressivamente arbitrária (70).

Daí surgem as concepções do “milagre do gênio criador” que pode retirar ou elevar a humanidade para longe da mediocridade social e moral na qual se encontra. Mas convém assinalar que nem todo pessimismo é irracionalista, podendo ser uma atitude espiritual negativa diante da realidade plenamente conhecida, uma atitude realista, que vislumbra a realidade mas não tem a menor perspectiva para com ela. É interessante chamar a atenção para o fato de que vive-se uma atitude de prostração ou mesmo apatia diante dos problemas sociais do capitalismo globalizado, especialmente após a derrocada do socialismo real. Diante dessas atitudes de conduta interior, não podemos deixar de salientar a sua interferência no plano teórico onde muitas vezes acaba-se por deixar de lado um conhecimento da realidade como o marxismo alegando - mesmo entre socialistas ou teóricos de “esquerda” - ser uma análise social muito “relativa” ou, de forma abertamente reacionária e apologética, uma forma de conhecimento social esclerosado e morto”. Com facilidade vemos hoje muitos grupos de intelectuais ou de políticos considerados de esquerda pondo em dúvida a existência de “esquerda” e “direita”. A atitude e a postura espiritual e intelectual diante da realidade é uma determinação tanto material como ideológica e a apatia ou pessimismo gerados pela globalização não podem ser postos para nós como amarras que nos impossibilitem de pensar a realidade de forma radical.44 A atitude pessimista não pode ajudar-nos em nada se o nosso objetivo é ir para além do capital, se é mais do que “interpretar a realidade”, é “transformá-la”.
O pessimismo irracionalista converte os problemas da objetividade em problemas de limites do conhecimento. É claro que o conhecimento tem seus limites próprios no fato ontológico básico de que o ser é infinito enquanto o pensamento e a capacidade de cognição do ser são finitos. Mas no local em que o irracionalismo petrífica o conhecimento, onde “tropeça com estes limites”, pode muito bem ser resolvido pelo pensamento humano em outras formas de se aproximar da realidade ao invés de declará-la impossível de conhecimento: é o caso da dialética.
Vejamos uma passagem mais ou menos longa de Lukács sobre a dialética:
O que Hegel esclarece aqui, a luz de um exemplo que encerra uma importância de princípio, constitui um dos problemas centrais do método dialético. Chama ao “reino das leis” “a imagem quieta do mundo existente ou manifesto”. Daqui que - para referirmo-nos apenas de passagem ao mais importante de seu raciocínio - “o fenômeno seja, portanto, frente à lei, a totalidade, pois encerra a lei, mas algo mais também, a saber: o momento da forma que se move a si mesma” [Hegel, Enciclopédia,§ 231]. Hegel destaca aqui os momentos lógicos mais gerais que formam a tendência mais propulsora do método dialético: o caráter aproximativo do conhecimento dialético. E Lênin, que descobre este aspecto decisivo do método dialético - nele, naturalmente, da dialética materialista que não tropeça já com os limites idealistas da dialética hegeliana -, sublinha energicamente a importância daquelas palavras de Hegel que acabamos de citar: “É - disse - uma excelente determinação, notavelmente acertada (a da palavra ‘quieta’). A lei toma o quieto e, por isso, a lei, toda lei, é sempre estreita, incompleta, aproximativa [Lênin, Cadernos Filosóficos] (77-8).

A atitude filosófica do irracionalismo acaba “equiparando entendimento e conhecimento” e descobrindo a solução para os problemas dos limites do conhecimento no plano do “suprarracional”, da intuição, etc. (77) O irracionalismo desenvolve seu próprio método filosófico. Enquanto o método dialético chama a atenção para a própria multiformidade e infinitude do real e para as inevitáveis contradições e limitações do conhecimento que advêm de sua incapacidade de poder acompanhar passo à passo as transformações e desenvolvimentos da realidade, o irracionalismo transforma o conhecimento e a possibilidade de conhecer a realidade em impossibilidade absoluta e insolúvel, numa atitude solipsista.
Estes esclarecimentos nos permite já pontuar um pouco mais a relação geral, metodológica, entre irracionalismo e a dialética. Sendo a realidade objetiva, por princípio, mais rica, mais multiforme e mais complexa do que pode chegar a ser os conceitos melhor desenvolvidos do nosso pensamento, daqui se desprende que são inevitáveis as colisões do tipo que acabamos de assinalar entre pensamento e o ser. Com o que, nos momentos em que avançam tumultuosamente o desenvolvimento objetivo da sociedade e, sob sua ação, a descoberta de novos fenômenos naturais, existem grandes possibilidades de que o irracionalismo converta este progresso, por meio de sua mistificação, em um movimento regressivo (78).

O desenvolvimento da ciência e da tecnologia em novas e sucessivas descobertas, o domínio cada vez mais evidente sobre os fenômenos naturais, etc. são uma manifestação muito clara do funcionamento prático do método dialético. No que se refere às ciências humanas isso também é verdadeiro sendo possível aproximar-se de uma compreensão das transformações sociais, dos fenômenos produtivos, das forças sociais que operam as transformações, etc. Os critérios de avaliação dessa aproximação são muito diferentes daqueles das ciências naturais porém é possível conhecer tendências gerais do desenvolvimento social, é possível conhecer leis básicas do ser social. Quando Engels, diante do túmulo de Marx, pronuncia a famosa frase de que enquanto Darwin descobriu as leis do desenvolvimento biológico, Marx descobriu as leis do desenvolvimento social, ela tem profundo significado: é necessário entender as leis e tendências básicas do ser social caso contrário viveremos pela história como fantasmas sem rumo.
Assim o método dialético procura o máximo possível da razão, não despreza a possibilidade de conhecimento do real. Através de um incessante processo de avanço e recuo e novos avanços vai se aproximando do real, vai captando a realidade em seus momentos de desenvolvimento. O irracionalismo nega-se a operar o trabalho do intelecto de aproximação da realidade: a realidade não pode ser conhecida.
É importante que acrescentemos neste ponto onde fazemos referência ao método filosófico do irracionalismo, que esta forma filosófica - portanto ideológica - reveste-se de uma característica toda peculiar para se engrandecer no campo filosófico: o irracionalismo quer se colocar como uma “terceira via”, nem materialista e nem idealista.
Lukács cita uma passagem sobre a filosofia de Jacobi chamando a atenção sobre a “terceira via”. Jacobi
em contraste com muitos irracionalistas posteriores nos quais vemos como o problema aparece obscurecido constantemente por suas artimanhas pseudo-materialistas pelos intentos de encontrar uma “terceira via” filosófica além da insuperável contraposição entre materialismo e idealismo (97).

A filosofia irracionalista faz propaganda de si mesma mostrando-se como uma forma “alternativa” entre materialismo e idealismo. Vemos com facilidade como essa filosofia surge em momentos de crise tentando solucionar um dos problemas fundamentais da filosofia. E sua solução é uma propaganda declarada ao se mostrar contra qualquer um dos pólos: na verdade está assumindo uma posição bem próxima da política.
Vamos encontrar esta tentativa da “terceira via” num autor que entrou em voga na academia, que tornou-se “moda” no Brasil nos últimos anos: Anthony Giddens. Na “Introdução” de seu livro Capitalismo e Moderna Teoria Social encontraremos claramente formulada esta questão bem como as intenção do autor inglês:

Marx, tal como os dois autores mais recentes [refere-se à Weber e Durkheim], propunha-se acabar com a divisão filosófica tradicional entre idealismo e materialismo e a confusão entre essa dicotomia clássica e a crítica “materialista” do idealismo empreendida por Marx tem contribuído para obscurecer as verdadeiras divergências que opõem a doutrina de Marx à sociologia “acadêmica” ou “burguesa” (Giddens, 1994: 22).

Antes de mais nada fica claro que o autor quer em Marx uma “terceira via” e que em Marx o problema dessa dicotomia não era fundamental. Não se trata somente de “divisão filosófica tradicional” mas de uma verdadeira oposição; não se trata de uma “divisão” simplesmente didática como faz pensar o autor, mas de uma questão fundamental para a filosofia. Não queremos nos deter aqui mas outros problemas estão implícitos nesta passagem. Pouco antes Giddens crítica Engels como criador de um marxismo que seria “adotado como filosofia oficial da União Soviética”. É comum chutar Engels como “cachorro morto” e querer resgatar Marx para diluir seu pensamento. Daqui surge o segundo problema: querer aproximar Marx de outros autores. É o que Giddens faz aqui mostrando que entre Marx, Weber e Durkheim não há tantas diferenças e por isso o sociólogo inglês procura uma “terceira via” em Marx. Já falamos na “Introdução” desta dissertação que para Lukács existia em Marx uma filosofia total.
No que se refere ao campo das classes sociais e da luta de classes, o irracionalismo luta decisivamente contra a classe trabalhadora. Hoje podemos perceber que essa luta se reveste de novas formas que se mesclam entre si: não mais existe classe trabalhadora (a “não-classe” de Gorz é um exemplo), o capitalismo venceu, as classes devem se harmonizar e a história acabou. Juntando todos esses elementos podemos ter a clara noção de que forma o irracionalismo atua hoje: minando as bases de toda possível forma de organização social e toda possibilidade de mudança. Mas isso é novo? Não e agora podemos retornar à Lukács. É característica do irracionalismo lutar contra a classe trabalhadora:
Agora bem: em que consiste o caráter específico do irracionalismo moderno? Consiste, antes de tudo, em que nasce sobre a base de produção capitalista e de sua luta de classes específica, primeiro dentro do marco da luta progressiva da classe burguesa contra o feudalismo em torno do Poder e, mais tarde, nas condições de sua luta defensiva e reacionária contra o proletariado (84).

As formas de luta vão se alterando, mas a forma básica de luta de classes permanece por mais que se queira esconder isso negando a divisão da sociedade, negando, como hoje, que o sistema produtor de mercadorias não tem divisão distinta de classes sociais. O caráter novo do atual irracionalismo, da “irratio dominante” nas palavras de Ricardo Antunes, é que uma apologética direta (característica do irracionalismo já no período da Guerra Fria) e triunfalista se põe vitoriosa e nega a existência de classes à medida em que o sistema reprodutor cada vez menos precisa de trabalhadores visto o tremendo avanço das forças produtivas no pós-guerra. Afirmamos novamente: as formas do discurso mudaram porém a luta de classes continua marcando a divisão do ser social. Irracionalista hoje, pois rompe-se o vínculo de uma análise que perceba as contradições, as dificuldades e a totalidade do sistema capitalista45. Mais adiante voltaremos a falar sobre a apologia direta atual que se soma às teorias do fim da história.
A tentativa de compreender a história e suas leis imanentes, as tendências de desenvolvimento do ser social, aparecem hoje também liquidadas. Em duas frentes podemos dizer que se opera a liquidação da história como racionalidade da compreensão do agir humano: na teoria do fim da história que se prefigura como ideologia do “capitalismo vencedor” e na concepção da impossibilidade de compreender a história como totalidade, ou seja, o discurso ideológico pós-moderno do fim das “grandes narrativas” nas quais estaria inserido o marxismo.
Se bem que as duas concepções estejam imbricadas diretamente, medularmente unidas e operando ideologicamente, vamos dissociá-las para um melhor entendimento. No primeiro caso, como já dissemos, vamos remeter para o final onde trataremos da questão apologética onde o fim da história é a apologia atual do capitalismo com o final da Guerra Fria. No segundo devemos dizer que essa característica de remeter a totalidade histórica ao fragmento, de esquecer as “grandes narrativas”, é fenômeno típico do irracionalismo. Mais à frente a questão do fragmento ganhará outro contorno quando falarmos dos movimentos sociais como negação das classes sociais, como uma tentativa de negar a ação efetiva das classes no atual estágio do capitalismo. No momento devemos notar que a tentativa de destruir a razão histórica não é nova e já se revela no fato de a ideologia irracionalista ir frontalmente contra o progresso como anteriormente já caracterizamos. Aqui, no entanto, aparecem as teorias reacionárias que se opõe às tendências da Revolução Francesa. Lukács coloca dessa maneira a questão:
Bem entendido que, ao falar do histórico, o leitor não deve deixar que encubra o seu horizonte essa teoria burguesa decadente que se empenha em limitar de antemão o histórico, concebendo-o simplesmente como o “único”, o que só sucede “uma vez”, quer dizer, como o oposto a toda lei e, portanto, como algo que é, em certo modo, por natureza, irracional. De imediato veremos que essa construção do histórico surgiu como uma oposição reacionário-legitimista frente à Revolução Francesa e foi assimilada pela teoria e prática da ciência burguesa (Ranke, Rickert), à medida que a própria burguesia ia encaminhando-se mais e mais até a reação (100).

Um pouco adiante, ainda na mesma página, Lukács compara claramente a oposição entre as duas formas de pensamento, entre as duas ideologias e fica claro o caráter antagônico entre as duas. Assim “os pensadores a que estamos nos referindo nada têm em comum com tais tendências [irracionalistas].” Em Rousseau, Vico, Haman ou Herder sempre se encontrará tendências comuns, por mais diferente que cada um seja:
(...) a todos era comum a preocupação de pesquisar a sujeição do processo histórico a leis, do progresso histórico-social, de descobrir e reduzir a conceitos a razão na história e, sobretudo, a razão imanente à história humana, a razão implícita no próprio movimento da história em seu conjunto (100).

A consideração do “único”, como Lukács deixa claro, é impermeável, em sua essência, em sua propriedade, a toda racionalidade: o “único” não pode ser submetido à leis e por isso é irracional.
Ao contrário de pesquisarmos a história em sua imanência racional, descobrindo e deslindando seus fios entretecidos que nos remetem ao conhecimento dela em sua totalidade e, ainda mais, apontando tendências e possibilidades históricas, teóricas e práticas, não, as concepções ideológicas vigentes que se propagam com facilidade pelo mundo globalizado recorrem a explicações que têm como base de sua visão de mundo o fragmento, o tempo cortado em pedaços, o “tempo espacializado”, o fim das “grandes narrativas” e até mesmo a vida privada, íntima, como o substrato mais fundamental da história. Essa negação não quer enxergar o seu próprio irracionalismo, sua falta de aporte teórico em leis e tendências do desenvolvimento humano. Quanto à vida íntima, à vida privada, não se quer perceber que o indivíduo empiricamente colocado no fluxo do tempo não é o objeto da história mas sim uma manifestação das tendências históricas do desdobramento dos complexos que formam o ser social. O indivíduo age mas é penetrado pela história, pelo ser social em sua totalidade complexiva.
Nos pensadores que Lukács considera, ao tentarem descobrir imanências da história e refleti-las na consciência, outra forma de pensamento se manifesta:
O que nos interessa é, unicamente, destacar a tendência dialética fundamental, que em todos eles [os pensadores considerados] vai em direção ao desenvolvimento da história dos homens, das sociedades humanas, à base de seu próprio movimento, dos atos e dos sofrimentos dos mesmos homens, esforçando-se por captar a razão, quer dizer, a sujeição a leis do movimento que aqui se produz. (...) O importante é, simplesmente, esclarecer a tendência fundamental do pensamento que, desde Vico até Herder, desemboca na dialética histórica. (...) A trajetória que vai de Vico até Herder é uma trajetória de desenvolvimento, de enriquecimento e refinamento da razão, nada diferente daquela que começa com Descartes ou Bacon (103).

A razão consiste, então, em perceber que o movimento histórico se produz através de determinadas tendências e leis; que por trás de toda complexidade há determinadas motivações que pode nos garantir a compreensão da história como um todo em que há tendências fundamentais e permanentes. E mais: que nos é permitido compreender a história, a realidade e “transformá-la”46.
Há que se considerar também uma outra característica típica do irracionalismo muito evidente hoje em dia mas que se manifesta desde o período da Guerra Fria: a apologia direta do sistema capitalista. De todas as características que até aqui traçamos do irracionalismo, esta é a que melhor define o atual estado ideológico em que vivemos. A apologia direta da ordem capitalista já era um traço muito marcante do período do confronto ideológico, político, econômico e militar da Guerra Fria que atualmente é retomado com euforia e incorporando ainda outros elementos anteriormente caracterizados. É o caso do discurso ideológico do “capitalismo vitorioso” que se tece juntamente com a ideologia do fim da história: a história chega ao fim pois o sistema capitalista demonstrou ser o mais eficaz para resolver conflitos políticos e sociais (aqui então se pressupõe um modelo político de democracia: um “fascismo de mercado”47) bem como resolver crises econômicas. Apologia e fim da história juntos. Nesta “massa ideológica” encontramos, então, a apologia como manifestação do irracional, o final do progresso e as classes sociais perdendo toda a centralidade no processo de ação e transformação da realidade. Portanto, o discurso dominante incorpora uma série de elementos irracionalistas para justificar o atual estágio do capitalismo globalizado, pretensamente “vitorioso”, que mostra, apesar de todas as festas e otimismo, sinais de rupturas, ainda que muito pequenos, dos seus alicerces48.
Lukács expõe esta questão da apologia direta da ordem capitalista no “Epílogo” de O Assalto à Razão. Ali podemos ler a seguinte passagem:
Tudo isto explica porque as condições econômicas, sociais e políticas dos Estados Unidos têm que gestar necessariamente uma ideologia em cujo centro aparece a defesa franca e aberta do capitalismo e da “liberdade” capitalista. Portanto, considerado do ponto de vista filosófico-metodológico, o papel dirigente da ideologia norte-americana no campo da reação, que hoje é já uma realidade, significa uma ruptura com aquele método que em seu desenvolvimento alemão temos chamado de apologia indireta do capitalismo. Método que veio por terra como ideologia dominante ao cair Hitler para dar passagem novamente à apologia direta do regime capitalista (623).

Estamos lendo uma passagem escrita em 1953 mas que se encaixa perfeitamente, com todas as nuances, para o ano de 1998! A apologia direta da ordem capitalista na época era “já uma realidade”. Para nós ela virou mais que uma realidade e transformou-se em consenso ideológico com direito à status de “verdade eterna”. É o que acontece com o discurso neoliberal49 que se apresenta quase sem oposição, verdadeiro consenso. Poucas vozes se manifestam e, como dissemos acima, apenas alguns sinais muito tênues de ruptura começam a aparecer. A apologia direta, assim, é uma característica do capitalismo durante a Guerra Fria que hoje, voltamos a afirmar, apenas se amplifica. Na época da Guerra Fria, porém, Lukács dizia que o irracionalismo não desempenhava o papel que representou anteriormente, no período que antecede a II Guerra Mundial. O “irracionalismo puro e simples não desempenha hoje [no período da Guerra Fria quando Lukács escrevia o livro] o papel central e predominante que desempenhou no período de organização da segunda conflagração mundial” (73). Esse papel “puro” refere-se a certas características de conteúdo das ideologias onde procura-se sustentar a apologia direta baseado em interpretações da realidade social do capitalismo amparado em dados e manifestações sociais que nos parecem bem claros. Exemplo disso é a análise dos movimentos sociais que sem dúvida existem e representam novas forças na luta de classes. Porém esse novo conteúdo é analisado com o amparo de uma forma, ou seja, um método que não desconsidera o método marxiano de análise. Veremos isso no próximo item. Aqui apenas mostramos que o “hoje” referido por Lukács parece se ampliar até agora.
Voltando: o que Lukács quis dizer com aquela passagem “tudo isto...” que acima citamos?
“Tudo isto...” ao qual o filósofo húngaro remete refere-se à “liberdade” democrática norte-americana. Uma democracia do capital monopolista. Ao contrário da Alemanha, não houve necessidade nos Estados Unidos de se romper com a forma democrática: “A constituição dos Estados Unidos foi desde o princípio, ao contrário da constituição da Alemanha, uma constituição democrática”. E logo em seguida acrescenta:
E a classe dominante havia conseguido ali, especialmente no período imperialista, manter em pé as formas democráticas de tal modo que se pôde assegurar com os meios da legalidade democrática uma ditadura do capital monopolista tão vigorosa ao menos como a que Hitler lograva com seus procedimentos tirânicos (622).

A máquina democrática norte-americana pode funcionar facilmente sem problemas e sem ter que recorrer aos métodos de Hitler. A apologia do capitalismo converte-se em apologia da liberdade, pois conjuga-se a liberdade democrática formal com a dominação econômica dos grandes monopólios industrial-financeiros.50 Tudo se prepara, já na Guerra Fria, para a atual Pax Americana.51
Por isso, antes de chegar à passagem que citamos para ilustrar as novas formas do irracionalismo no período da Guerra Fria, e que hoje torna-se ainda mais hipócrita e demagógica com o aparecimento do neoliberalismo na década de 70, Lukács conclui:
Fácil é, pois, compreender, à vista de tudo isso [uso da imprensa, rádio, gigantescos gastos eleitorais convertendo a democracia em mercado...] que os monopólios capitalistas dos Estados Unidos não têm por que lançar mão, para seu uso interno, nem poderiam tão pouco empregá-los, de recursos equivalentes aos de um “fascismo alemão” ou uma “democracia germânica”. Para eles, o sistema ideal da economia segue sendo o capitalismo e a “liberdade democrática” o arquétipo da organização do Estado e do regime de governo. Mas há muito tempo que o mundo, fora dos Estados Unidos, como os norte-americanos mais perspicazes e honrados, se vêm dando conta de como essa “liberdade democrática” pode ir-se convertendo gradualmente em um sistema de coação fascista, sem necessidade de implantar nenhuma classe de transformações formais (623).

Há, portanto, uma profunda continuidade entre as formas apologéticas do período da Guerra Fria com as de hoje com o agravante de que o capitalismo aparece e procura se mostrar como vencedor impostando um tom triunfalista maior. Outros elementos do irracionalismo aparecem aqui mesclados - como o fim da história, a apologia dos movimentos sociais e a inoperância das classes, o fim das “grandes narrativas” e até o misticismo e os fundamentalismos religiosos e étnicos - para compor o discurso ideológico atual que encobre as profundas distorções sociais do mundo globalizado. A apologia direta do período geopolítico da bipolarização do mundo que Lukács traz no “Epílogo” de sua obra, portanto, baseia-se em uma democracia formal garantida como a verdadeira “liberdade humana”.

* * *

Para tornar mais fácil visualizar de uma forma esquemática as características daquilo que pode ser chamado de irracionalismo, vamos colocá-las abaixo, pontuando-as para se atentar bem ao que foi falado. Neste ponto deixaremos, então, mais sistematizada a exposição.52
• o indivíduo tem liberdade total e esta seria a autêntica liberdade. A liberdade do eu confunde-se muito com as tendências que observamos de pura introspecção, de “mergulho” no eu como a única realidade possível de conhecimento (veja-se como exemplo os filmes, a literatura, a cultura de um modo geral). Esse individualismo irracionalista pode ser comparado com a valorização crescente por parte das ciências sociais do singular como é o caso dos movimentos sociais;
• o progresso não existe, como ocorre também no discurso pós-moderno;
• o tom pessimista de se encarar a realidade social é outra forma de manifestação que evolui até ganhar seu método filosófico;
• quanto ao método filosófico, o irracionalismo se caracteriza pelo solipsismo já que a realidade é impossível de ser conhecida. Portanto o irracionalismo nega a dialética e o materialismo histórico e a constante aproximação da realidade como a única forma de conhecê-la e transformá-la. Só a dialética pode deslindar as teias da realidade para entender os movimentos e tendências dessa mesma realidade;
• a busca da “terceira via” como conseqüência do método filosófico do irracionalismo e sua propaganda ideológica;
• o desaparecimento das classes sociais que se manifesta hoje. O irracionalismo exposto por Lukács tem como marca a luta contra as classes trabalhadoras e sua filosofia que é o materialismo. A negação das classes hoje é uma forma de luta contra as classes trabalhadoras: muda-se apenas a forma de luta mas a negação é a mesma. Procura-se esconder os antagonismos de classes da ordem social privilegiando o sistema produtor de mercadorias. Nesta característica começa a mescla com outras tendências irracionalistas como o fim da história e a apologia direta da ordem;
• a história não tem racionalidade, não tem leis e nem totalidade: é um processo de fragmento e onde a única verdade é o empírico. Aqui está um dos pontos mais caros aos pós-modernistas: não existe mais “grandes narrativas”, a história humana não pode ser vista a partir de uma totalidade e um conjunto de leis e tendências;
• a apologia direta é uma conquista irracionalista do pós-guerra no período da bipolarização geopolítica do mundo. No entanto esta tendência foi muito bem “acolhida” pelo atual discurso da Nova Ordem Mundial.

É muito interessante terminarmos esta parte dizendo que a questão do irracionalismo é muito mais do que apenas um problema teórico e de cunho intelectual. Lukács tinha a clara noção de que as respostas dadas aos problemas sociais pelo irracionalismo constituiam forte obstáculo à classe operária e à sua luta por uma nova sociedade já que o irracionalismo volta-se justamente contra a classe operária visto ser uma ideologia reacionária. Por isso finalizamos este ítem com uma citação do filósofo húngaro mostrando que esta questão é fundamental para as massas:
Para as massas, o problema do racional ou do irracional é, todavia em maior medida que para os intelectuais, um problema verdadeiramente vital e não um problema teórico simplesmente. Os grandes progressos do movimento operário, a clara prespectiva que se abre ante as vitoriosas lutas pelo melhoramento de sua situação e pela derrota previsível do capitalismo têm levado a classe operária a ver em sua própria vida e em seu próprio desenvolvimento histórico um processo racional e regido por leis; todas as lutas diárias coroadas de êxito, todo passo dado para fazer frente à reação (por exemplo, nos dias da lei contra os socialistas), vão fortalecendo na classe operária esta concepção de mundo, vão ensinando a desprezar de uma altura superior a propaganda, naquele tempo religiosa e irracionalista, do campo reacionário (65).

Mesmo hoje, quando o estranhamento atinge o trabalhador em seu lar e aí também chegando as ideologias, é fundamental para a classe-que-vive-do-trabalho saber de que lado está cada posição teórica e cada ideologia que nunca são ingênuas.

4. Tendências Irracionalistas Atuais

O capitalismo neste final de século tem nos apresentado dimensões novas. Tanto no seu aspecto estrutural quanto ideológico - portanto também cultural - novos fenômenos têm se revelado. A necessidade que o sistema capitalista tem de se reproduzir, de expandir a sua lógica garantindo sua “vida”, é fenomenal. Sua capacidade de revolucionar suas bases produtivas e ativar forças produtivas antes inimagináveis é extraordinária. Em fração muito pequena de tempo no contexto histórico, mudanças profundas ocorrem que fariam até mesmo Marx, acostumado à percepção de tendências do capitalismo à frente dos outros como demosntra o Manifesto Comunista, surpreender-se com o que ocorre hoje. Em nosso país é muito fácil peceber isso hoje, talvez mais fácil do que em qualquer outro lugar do mundo. A penetração do capitalismo global tanto em sua lógica, forças produtivas, bem como produtos de consumo direto e as poderosas imagens que criam uma “segunda realidade”, faz que muitos trabalhadores abandonem seus postos de trabalho e não mais voltem: é o fantasma do desemprego estrutural. Numa outra ponta esse processo faz que muitos percam a orientação de suas próprias vidas: trata-se, então, de um problema moral e ético. É a condição existencial de pessoas que até bem pouco tempo estavam vivendo em um país rural e agora percebem as modificações gigantescas como se suas vidas tivessem sido aumentadas. O aspecto social mais grave deste fato é a exclusão social ou a ampliação rápida e massiva do exército industrial de reserva. Não é incomum encontrarmos, então, a crítica ou a apologética dessa sociedade sustentadas com muita paixão, com cores e matizes muito fortes.
Essas rápidas mudanças geram, como dissemos, seus aspectos ideológicos. Um desses aspectos com características muito marcantes é o discurso da pós-modernidade. Adiantando as considerações que faremos a seguir, podemos dizer que este discurso oferece os traços bem marcados do que vimos chamando de irracionalismo. A base material do discurso pós-moderno é o capitalismo atual em sua fase de dinâmica global. Seus novos ritmos de acumulação, suas forças produtivas despertadas da robótica e da micro-eletrônica, sua nova flexibilidade produtiva, são alguns pontos que conferem fundamentação material para as formas ideológicas recentes.
Para traçarmos alguns aspectos das condições sociais e econômicas do capitalismo no final do século XX, usaremos como base o livro de David Harvey sobre a condição pós-moderna. Isso pelo fato de que a tese central desse autor é, por um lado, que as mudanças operadas no capitalismo não são suficientes para dizermos que o capitalismo e sua lógica reprodutiva tenham se extinguido. As regras básicas da acumulação continuam as mesmas. Na superfície do sistema podemos considerar que um novo momento da “compressão tempo-espaço” esteja ocorrendo. Porém isso não nos permite admitir que estejamos vivendo uma mudança para “alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova” (Harvey, 1994: 7). Pelo contrário, a sociedade capitalista apóia-se sobre a lógica do capital que continua operando suas contradições. Apenas tem se produzido alterações no sistema de acumulação no intuito de tornar o capital mais dinâmico e flexível. A estrutura do sistema continua a mesma mudando as formas de produzir o excedente econômico. Por outro lado Harvey sustenta, no correr de seu livro, que a condição pós-moderna é fruto dessa nova dinâmica de acumulação do capitalismo no intuito de evitar uma crise de superacumulação. Assim a pós-modernidade aparece como condição cultural do capitalismo sob a marca da acumulação flexível.
Essa acumulação flexível é uma condição histórica importante do capitalismo no final do século pois tem gerado profundas interpretações e distorções na forma mesmo de compreender a substância do social. Distorções pelo motivo muito simples de que os fenômenos que se têm manifestado são de tal natureza em sua rapidez que há uma enorme dificuldade em conseguir compreender a totalidade do mundo. A imagem que podemos fazer é de uma enorme agitação e entrelaçamentos sociais, políticos e econômicos na superfície de um lago que continua em suas profundezas sem nenhum abalo. O próprio ataque frontal pós-moderno contra as concepções de totalidade estão, de uma forma ou de outra, inseridos neste contexto. A dinâmica do atual patamar de acumulação impede que se compreenda a totalidade. Há uma dificuldade maior em perceber a totalidade do sistema produtor de mercadorias. Mas isso é uma questão mais delicada. Essa posição pós-moderna é uma verdadeira postura ideológica com traços muito claros de irracionalismo. As condições materiais e sua representação na compressão do tempo-espaço fundamentam uma crise de concepções da totalidade. Mas a postura que um sociólogo, filósofo, cientista político, economista, etc. assumem diante dessa base condicional é uma postura ideológica: “não há ideologia ingênua”. Não mais recorrer à totalidade é uma renúncia ideológica típica de concepções da sociedade e sua sociabilização que abandonaram a razão. Já falamos disso atrás e aqui procuramos apenas indicar as condições sociais de produção desse aspecto ideológico, nunca esquecendo que uma teoria social é uma resposta à sua época, nunca está isenta de vida social e por isso é sempre uma ideologia.
Harvey insiste em seu livro que sendo a pós-modernidade uma condição histórica, possuindo razões fundamentadas na história para a sua existência, podemos então explicá-la historicamente. O abandono do materialismo histórico seria absurdo pois é possível o uso do mesmo para interpretar essa nova realidade cultural. Se a pós-modernidade como discurso que se opõe à modernidade surge em um determinado momento de acumulação, em um novo patamar de acumulação do capitalismo, é possível usar então essa “metateoria” chamada materialismo histórico para explicar esse momento. Em um dos capítulos da parte quatro de seu livro (“O pós-modernismo como o espelho dos espelhos”), Harvey deixa isso muito claro. No entanto, no capítulo seguinte, o autor vai mais além: tanto a modernidade como a pós-modernidade são momentos culturais, respostas culturais ainda que antagônicas dentro do capitalismo. São, por isso construções ideológicas. É possível analisar as duas realidades culturais como dois momentos ideológicos de um mesmo sistema, quer dizer, o sistema produtor de mercadorias para usarmos um termo de Kurz.53
Com a sua ajuda [a idéia de que ambas são respostas ao capitalismo em momentos diferentes de acumulação] podemos dissolver as categorias de modernidade e do pós-moderno num complexo de oposições que exprime as contradições culturais do capitalismo (Harvey, 1994: 305).

Portanto o capitalismo está sempre produzindo oscilações culturais na forma de perceber a realidade e, nesse caso, “a rígida distinção categórica entre modernismo e pós-moderno desaparece sendo substituída por uma análise do fluxo das relações interiores do capitalismo como um todo” (id. ibid.).
Todo o discurso cultural da pós-modernidade de fim do materialismo histórico como teoria (aliás “metateoria”) incapaz de explicar as novas particularidades sociais, a impossibilidade de uma teoria que busque a totalidade quando o mundo está cada vez mais fragmentado, a negação da noção de progresso, etc. são caracteristicamente irracionalistas como já expusemos anteriormente. O que vamos esclarecer agora é que há uma fundamentação histórica dentro do sistema capitalista para a ocorrência desta resposta cultural. Se as características da condição pós-moderna são uma clara resposta irracionalista às condições econômicas, políticas e sociais do estágio atual de desenvolvimento das forças produtivas em que vivemos, ela tem um fundamento. Um novo estágio de desenvolvimento social e econômico requer respostas novas por parte de todos, desde o homem comum expressando suas opiniões cotidianas até o filósofo, o sociólogo, etc., as quais nem sempre são aquelas que apreendem a essência dos processos sociais: essa é a característica da condição pós-moderna como irracionalismo de nossa época já que se recusa ao uso da razão histórica.
A condição pós-moderna é produzida em sua instância material por uma série de condições históricas que dão origem a um novo padrão de acumulação capitalista. A grande fluidez de nossos tempos, a incerteza das condições sócio-econômicas, um agitado estado de presente eterno (a esquizofrenia é uma das características da atitude pós-moderna) onde a tensão nunca se revela, as próprias cadeias da vida intersubjetiva como os valores, tudo transparece a condição pós-moderna de um novo padrão de acumulação da economia capitalista.
Harvey faz uma distinção entre o sistema fordista de acumulação e a acumulação flexível. Em seu livro a permanente ligação da acumulação flexível com a condição pós-moderna é não só clara e evidente como percorre todo o livro. Entre 1945-1973 a acumulação capitalista se caracterizou por “(...) conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico” que “pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano” (119). O fordismo tinha como base uma rigidez dos aspectos produtivos e sua consubstanciação em grandes massas de produção. Rigidez que se expressaria empiricamente com a construção de grandes instalações industriais ao contrário do que podemos perceber hoje: pequenas instalações, com alta mobilidade - podendo se transferir rapidamente para mercados de força de trabalho mais lucrativos (“baixos salários”) - e muitas vezes “terceirizados”onde monta-se uma parte do produto que se juntará com outras partes em outro lugar para sair o porduto final. O ideal fordista só podia ser completado por uma capacidade crescente do Estado em financiar a demanda. O fordismo só se completaria, então, com o Welfare State. A rigidez produtiva do fordismo seria baseada numa fórmula social que garantiu um padrão de acumulação durante trinta anos, que garantiu um avanço técnico-científico quase nunca imaginado54. Era a fórmula fordismo-keynesianismo (Welfare State)-sindicalismo controlado. Muito eficaz para desenvolver a economia capitalista e enfrentar a Guerra Fria55.
Após 1973 um novo padrão de acumulação começa a se anunciar, um padrão mais flexível, um padrão de acumulação baseado num fluxo mais rápido de capitais. Essa nova força acumuladora de capital vai fazer romper as engrenagens da produção fordista em suas mais variadas instâncias. Dentro da produção temos a flexibilidade do modelo toyotista. O Welfare sendo minado em suas bases por um discurso neoliberal de ausência do Estado na economia , corte de gastos, etc. que chega perto da insanidade quando pensamos, por exemplo, o Brasil onde um Estado que nunca existiu (socialmente) ainda vai diminuir. No campo do processo de trabalho a heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora - nas palavras de Ricardo Antunes - gerando uma onda inconsequente de fim do mundo do trabalho, de “adeus ao proletariado” e tantas outras manifestações que minam ou querem destruir as bases de compreensão da sociabilidade humana56. É como se a diminuição do trabalho fabril determinasse o fim da sociabilidade humana baseada no trabalho como elo de ligação social, como categoria ontológica básica que determina a elevação social do homem a uma plenitude e pureza do ser social cada vez mais específico e mais social. É o que Lukács chama de afastamento das barreiras naturais.
Dentro da acumulação flexível uma nova dinâmica do capital e do emprego é, então, implantada. Um mundo fluido surge diante de nós:
A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais (148).

Diante desse quadro errático e fugidio, complexo, instável e inflado só resta, segundo Harvey, a busca de valores tradicionais como a família, a religião e o Estado. Nos dois primeiros casos podemos dizer que uma tendência à inflexão sobre o eu e à introspecção é o que ganha forma. No último acaba surgindo um leque de tendências de cunho étnico que vai na direção oposta à globalização: é o renascimento de nacionalismos e xenofobia. Mais que isso, não se trata apenas de busca de segurança. Trata-se também de uma busca de explicação do mundo, uma espécie de visão de mundo que aparece cada vez mais ligada à religião e ao “místico”57. Diante de tantas tendências, de tantas incertezas e relativizações de valores o mais fácil é o recuo ao ser da religião ou da família, ou do Estado. Constata muito bem Harvey que esta tendência apresenta semelhanças com o movimento nazista. Aliás é muito mais coerente com o atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas capitalistas a busca individual numa imediaticidade empírica (é o singular do qual falaremos adiante) do que uma tentativa racional de elaborar a fenomenologia cultural de nossa época. O inumerável acúmulo de novas informações gerando uma carga gigantesca de novos conhecimentos, novas disciplinas e novas profissões provocando uma maior divisão social do trabalho, traduz-se na complexidade de um mundo que nos parece de todo estranho. Uma explicação mística ou religiosa do mundo é muito mais fácil pois só se precisa do próprio eu para conseguir o pleno conhecimento numa experência mística. Busca-se um ser longe da razão histórica: é a ontologia irracional de nossos tempos.
Mas as mudanças produzidas pela acumulação flexível não alteraram a forma social capitalista. Com a emergência do novo padrão de acumulação não surgiram mudanças na estrutura da “vida político-econômica” (119). Neste ponto Harvey recorre a Jameson caracterizando a pós-modernidade como lógica cultural do capitalismo avançado. Para nós é uma lógica cultural irracionalista. A ordem capitalista permanece, o sistema de acumulação, a lógica destrutiva, etc. são os mesmos. Neste momento de transição pode-se afirmar que
muito embora as atuais condições sejam muito diferentes em inúmeros aspectos, não há dificuldade em perceber que os elementos e relações invariantes que Marx definiu como peças fundamentais de todo modo capitalista de produção ainda estão bem vivos e, em muitos casos, com uma vivacidade ainda maior do que antes, por entre a agitação e evanescência superficiais tão características da acumulação flexível (175-6).

O capitalismo continua sendo um sistema gerador de acúmulo de riquezas e de exclusão social e ainda não sumiu de seu horizonte um terrível e eterno fantasma: a superacumulação.
A acumulação flexível caracteriza-se por uma tentativa de reverter o problema através de uma organização financeira e do crédito bem como rearranjos temporais e espaciais da produção além de um novo controle do trabalho (184). Sobre este ponto voltaremos mais à frente.
A partir da acumulação flexível salta aos olhos a condição pós-moderna. Já dissemos que esse itinerário é o fundamento da exposição de Harvey. Com isso ele já se coloca numa posição de análise materialista histórica do pós-modernismo. Mas existe uma mediação importante para fazer esta passagem entre o fundamento material da pós-modernidade e a própria condição cultural: a compressão do espaço-tempo.
“Nesse sentido, é instrutivo ver que Toffler, num momento bem ulterior da compressão do tempo-espaço, faz eco ao pensamento de Simmel, cujas idéias foram moldadas num período de trauma semelhante há mais de setenta anos” (259). Quem lê O Choque do Futuro não pode deixar de perceber questões que parecem muito evidentes para nós brasileiros dos anos 90. A ampliação da produção e os incontáveis objetos que rondam nossa existência como fantasmas, a transitoriedade e a impermanência, a velocidade dos conhecimentos, enfim toda uma gama de processos e materializações que tornam as distâncias muito curtas. As próprias situações sociais, as pessoas, locais, coisas que compõe uma determinada situação, tornam-se muito variáveis e rápidas, como Toffler expõe em seu livro. O mundo parece encolher.
Essa compressão do tempo-espaço gerou uma série de respostas que rumam em sua maioria para o irracionalismo. Harvey classifica essas respostas em quatro grupos e poderemos rapidamente perceber que todas primam por desviar-se do fundamento racional da compreensão da realidade como totalidade que se estrutura materialmente. Uma delas refere-se ao esquecimento, à impossibilidade de ação, ao mundo fora de controle: o desconstrucionismo. Uma outra resposta diz respeito à negação da complexidade. Outra ainda, e essa muito cara a nós, é aquela que nega a possibilidade da grande narrativa. Por fim uma última resposta no sentido de construir uma linguagem capaz de apreender e dominar a compressão do tempo-espaço: “Com efeito, a hiper-retórica dessa ala da reação pós-moderna pode decair na mais alarmante irresponsabilidade” (316). Ou seja, a apreensão da realidade não é uma questão de método filosófico e sim um problema de linguagem.
Porém podemos considerar ainda que alguns autores de esquerda assimilaram muito bem a pós-modernidade. Ao perceberem as mudanças sociais por que passava e ainda passa a sociedade capitalista, estes autores aderiram a respostas pós-modernas para as novas tendências que se verificaram num sentido ou de negação do proletariado ou do materialismo histórico. Aqui estão tanto Aronowitz quanto Gorz. No terceiro capítulo da última parte de seu livro (intitulado “A crise do materialismo histórico”), Harvey fala dessas tendências que tentam ser uma resposta a novos padrões sociais. O discurso da pós-modernidade que poderia ser empregado para fins radicais acaba se tornando o próprio algoz da esquerda. A nova esquerda, ao rejeitar vários aspectos da velha, ao se esforçar por se distinguir radicalmente da velha, acabou abraçando aspectos que tendiam a desestruturar a própria esquerda. Isso fica claro:
Mas, ao fazer esse movimento [abraçando aos movimentos sociais], a nova esquerda tendia a abandonar a sua fé tanto no proletariado como instrumento de mudança progressista como no materialismo histórico enquanto modo de análise (320).

Ricardo Antunes, em seu livro que é uma resposta direta a Gorz58 - como fica evidenciado com todas as letras em sua apresentação -, mostra-nos uma análise onde os movimentos sociais sem dúvida nenhuma aparecem, porém sem jamais ofuscar ou substituir a relação de classes que existe na forma capitalista. O trabalho torna-se fragmentado, heterogêneo e complexo mas as classes sociais não desaparecem. A “classe-que-vive-do-trablho”, como diz Antunes, continua aumentando e o seu estranhamento vai na mesma direção.
Neste ponto gostaríamos de procurar um enfoque um pouco mais próximo do autor francês citado por Harvey, André Gorz, e seu livro polêmico: Adeus ao Proletariado. Apresentaremos vários pontos de divergência teórica e metodológica que é o preço bem caro que Gorz paga por aderir ao discurso da pós-modernidade e se lançar a uma crítica tão veemente à “velha esquerda”. Aliás essa crítica muito forte à “velha esquerda” faz com que o autor tente se distinguir tanto da mesma que não mais vemos nele, por um lado, uma crítica sóbria (sobriedade que tem sido virtude muito rara atualmente), e, por outro, uma crítca marxiana das condições do capitalismo atual.
A base do discurso e da abordagem de André Gorz é o surgimento de novos sujeitos sociais. A velha esquerda deve ser criticada pois privilegiou apenas uma determinada classe social destinada à revolução: o proletariado. Esses sujeitos novos são expressos em termos muito claros pelos movimentos sociais. Mas, como já falamos acima no caminho de Harvey, abraçando aos movimentos sociais como sujeitos de uma nova transformação da sociedade o que o autor em questão faz é minar o materialismo histórico e seu método. Ao invés de privilegiar a instância da ontologia social que busca a totalidade da transformação social, Gorz recorre a uma base social que prima pela fragmentação. O fragmento surge como a força produtiva que realiza a verdadeira peculiaridade do ser social, ou seja, apenas no capitalismo e o desenvolvimento incessante das forças produtivas o ser social se torna pleno quase totalmente despojado de suas barreiras naturais. É o afastamento das barreiras naturais que já falamos.
Esse fragmento não apenas responde pela ineficácia social prática dos movimentos sociais como autênticas formas de luta para a transformação social de fato, como ainda vai contra o próprio método marxiano onde a categoria da mediação é fundamental. Aliás uma das principais categorias que Marx herda de Hegel é a categoria da mediação. Uma totalidade nunca é um todo absoluto, um todo onde as partes se perderam, se diluiram. Não é “uma noite onde todas as vacas são pretas” na alusão à Hegel. A totalidade é um complexo de complexos onde existem mediações que compõe o quadro da realidade, que dão forma e substância à realidade. A ligação entre o indivíduo e a totalidade, entre o singular e o universal é feita pela mediação do particular. O indivíduo deve buscar seu mais profundo ser individual no gênero humano do qual faz parte. Mas para alcançar sua identidade individual no gênero humano não se pode simplesmente dar um salto mortal, um salto que converta de um só golpe o indivíduo em gênero: esse salto é possível apenas na moral. Mas esse “salto” pode ser feito, ontologicamente, por uma “passagem”, uma mediação: as classes sociais. Apesar de importante, o surgimento das manifestações sociais por meio de movimentos específicos nunca terão o poder de mediação que tem a classe social. Os movimentos estão mais próximos do singular e o estão ainda mais que os sindicatos. E o todo não pode ser “movido” pelo singular: é necessária uma mediação, o particular. Mas qual deverá ser esse particular? Veremos adiante59.
Abordagem muito clara disto pode ser encontrada no livro já referido de Ricardo Antunes, no segundo ensaio do apêndice (“Indivíduo, classe e gênero humano: o momento da mediação partidária”). O estranhamento é uma desidentidade entre indivíduo e gênero humano como aborda Ricardo Antunes. Para haver a ligação entre a singularidade do indivíduo e o universal que é o gênero humano é fundamental, é necessário a mediação que no caso é o elemento ontológico das classes sociais. Segundo Lukács em nenhum gênero natural aparece uma divisão como aquela dentro do ser social que é constituída pelas classes sociais. Os sindicatos e partidos são elementos dessa mediação. Porém, segundo Ricardo Antunes, os sindicatos são mais contingentes e os partidos mais globalizantes, como se os partidos estivessem mais próximos de abarcar a totalidade: o particular está no partido. É verdade, entretanto, que existe uma séria crise partidária a ser enfrentada diante de um quadro de novas dimensões sociais que os partidos de esquerda devem abarcar que são os movimentos sociais e a heterogeneidade do trabalho que a institucionalização partidária acabou esquecendo. Essa crise deve ser resolvida caso se queira um partido revolucionário que deve ser crítico às formas ideológicas dominantes. Os partidos devem, então, abarcar as novas dimensões sociais dentro de seus quadros sem todavia burocratizar aquilo que tem a possibilidade de organizar os trabalhadores em torno do partido crítico. Isso não quer dizer, por outro lado, que deva se dar o fim dos sindicatos, dos partidos e adeus às classes sociais e, em especial, à classe trabalhadora, ou a “classe-que-vive-do-trabalho”. Os movimentos sociais têm sua importância, porém privilegiar seu fragmentarismo em detrimento da classe é recorrer a uma ideologia irracionalista que faz a apologia da ordem estabelecida já que a mudança é impossível tendo em vista o sujeito social que aqui é posto como motor da mudança. Um sujeito fragmentado não pode mudar uma totalidade. Na busca de uma especificidade do concreto, de um sujeito que seja mais “visível”, acaba-se recorrendo a um pedaço do real tão diminuto que jamais conseguirá abarcar a racionalidade da totalidade prática. Quer dizer que a transformação social não sairá dos movimentos sociais.60
Pretendemos agora mostrar algumas das teses defendidas por Gorz. O método de exposição consiste em comentar algumas passagens do livro Adeus ao Proleteriado à luz do que dissemos acima sobre o irracionalismo.
A tese geral de Gorz é que a sociedade pós-industrial gerou uma diminuição da classe operária tradicional e que isso acrreta uma série de mudanças estruturais de grande significado. Os partidos políticos entram em crise, os sindicatos desaparecem ou se tornam ineficientes e a própria classe perde seu sentido. Os novos sujeitos sociais são os movimentos sociais que se prendem a questões muito mais próximas da realidade social.61 Em linhas gerais já fizemos as críticas a essa tese acima ao mostrar como isso implica uma aproximação da singularidade. Parace-nos que o autor francês esqueceu o método marxiano.
Sua linha de argumentação básica, então, é que com o fim do trabalho fordista surge um trabalho parcelar. Com isso o indivíduo ganha mais autonomia, melhor dizendo, surge uma autonomia individual que antes não aparecia no “proletariado-exército” de Marx (Gorz, 1982: 38-43). Com o fim de um padrão de trabalho a sociedade adquire novas formas de organização que estão ligadas à individualidade. Devido à fragmentação, complexificação e heterogeneidade dessas novas formas, também novos núcleos políticos tornam-se importantes ou talvez até mais importantes do que os tradicionais. Daí o autor falar em “não-classe”. É uma forma mais fácil de enfrentar os problemas que a realidade impõe: como a complexificação e heterogeneidade do trabalho o transfromaram em uma nova obscuridade, ao invés da busca desse esclarecimento, descobre-se um outro conceito que tente dar conta do real. Mas esse enfrentamento simplificado com a realidade não deixa de ser uma resposta teórica à realidade, logo é uma ideologia, e não existem ideologias ingênuas. Por isso qualquer que seja a resposta, ela assume uma posição, ela revela alguma coisa sobre o fundamento ideológico do autor. O trabalho torna-se mais complexo mas não significa que desapareceu e nem mesmo a sociedade em que o mesmo está inserido, a sociedade produtora de mercadorias que acumula de forma desigual os frutos da produção. O desaparecimento das classes só é possível quanto a produção capitalista em suas relações tiver se alterado. A “não-classe” não dá conta de explicar o processo social e ainda reveste-se da fragmentação típica do pós-modernismo irracionalista62.
Falar de “não-classe de não-trabalhadores” é uma falta de sutileza conceitual para captar as metamorfoses ocorridas no mundo do trabalho, em primeiro lugar. Conceituar corretamente, com o máximo de precisão, é fundamental quando isso é a base do trabalho intelectual. Dessa forma, Gorz vê-se impossibilitado de captar com precisão as transformações que ocorreram nas últimas décadas no mundo do trabalho, reflexo de um novo perfil de acumulação de capital. Isso não está em desacordo com a sua assimilação da pós-modernidade. O autor acaba abraçando uma tendência irracionalista. Claramente pode ser sentido o seu descompasso quando ele estabelece que algumas mudanças devem ocorrer no mundo das classes e dos partidos já que o mundo do trabalho mudou. Porém não nos esclarece que essa mudança vem de um novo momento sócio-econômico, de uma nova base de acumulação de capital e qual é essa base e ainda indicar que essa base de acumulação é cada vez mais ampliada atingindo hoje a escala global.
Uma segunda crítica que podemos estabelecer a essa sua conceituação de “não-classe de não-trabalhadores” é uma continuidade da primeira no sentido de que Gorz paga um preço à sua adesão ao discurso pós-moderno. Esse preço é a sua queda na inércia do poder individual negando a história, ou melhor, inércia da singularidade. No final da primeira parte de seu livro (“Para além do socialismo”), vemo-nos diante de um autor desesperado, um desespero irracionalista: a abolição da história e das classes sociais. Então o autor fala do fim da “ética de acumulação” através de um projeto de liberdade pela “subjetividade absoluta” (p. 93). O capitalismo e seu padrão global de acumulação não é mais um desenvolvimento histórico das forças produtivas em sua tendência social de crescente sociabilização (afastamento da barreiras naturais) e crescente globalização da sua lógica: agora é uma questão de “ética” a ser resolvida pela mudança de uma mentalidade mesquinha e acumuladora a partir de um divã de psicólogo.
Vamos encontrar ainda outros problemas na argumentação de Gorz. Baseado nas mudanças do mundo do trabalho o autor vai propagar, já no prefácio de seu livro, que a redução do tempo de trabalho é fundamental para reestruturar a sociedade, que com o tempo livre o homem pode voltar à autoprodução (14). Porém o autor não percebe que apenas reduzir o tempo de trabalho não significa a mudança radical da sociedade. Significa apenas que um novo padrão de acumulação se efetua e se expande. Mesmo porque há uma observação fundamental a se fazer: não é a classe trabalhadora que está querendo reduzir a jornada de trabalho mas é o desenvolvimento de novas técnicas produtivas que têm forçado essa redução e mais, a exclusão de muitos trabalhadores com a eliminação dos postos de trabalho. Não é o trabalhador que quer trabalhar menos, é o capitalista que assim o deseja. A redução do tempo de trabalho seria o começo de uma nova sociedade se fosse o contrário. Pelo mundo, aliás, tem ocorrido acordos entre empresas e sindicatos para reduzir o tempo de trabalho junto com os salários. Dessa forma, para os sindicatos, as demissões são evitadas como é o caso, por exemplo, da Volkswagen alemã. O conceito de liberdade para Gorz é a vida fora do trabalho:

A reconciliação dos indivíduos com o trabalho passa pelo reconhecimento que, mesmo submetido ao controle operário, o trabalho não é e nem deve ser o essencial da vida. Deve ser apenas um de seu pólos (19).

A vida fica dividida em momentos: ela só começa fora do trabalho! Gorz pensa estar anunciando uma novidade: o trabalho não é o essencial da vida mas sim uma parte fundamental da mesma e do próprio ser social. Grande descoberta! Mas afinal, Marx já não falava a mesma coisa ao se referir ao homem completo, que pela manhã é pescador ou caçador e à noite crítico de arte? Esse não é o verdadeiro ideal humanista que o humanismo marxista resgata? 63 Sua própria forma de definir trabalho na abertura do livro (p. 9) é reveladora de suas intenções: o trabalho é uma forma de tortura. Assim o trabalho vai se tornar em Gorz um dos pólos da vida compartimentada como acima dissemos. Não se revela aqui a dimensão ontológica do trabalho. A vida cheia de sentido não pode se realizar só no trabalho mas também nele. Como base ontológica da sociabilização, apenas a redução do tempo de trabalho não basta pois não foi modificada a apropriação desse trabalho. Também a redução do tempo de trabalho não basta para encontrar uma vida de liberdade e cheia de sentido pois as novas formas de estranhamento estão investidas também na esfera do consumo, ou seja, no momento em que o trabalhador vive a sua “liberdade” (Antunes, 1995: 129).
Logo depois volta à questão, por nós já abordada, da “não-classe”. Mas agora mostrando qual a missão dessa “não-classe”, a sua “salvação”:
A não-classe dos refratários à sacralização do trabalho, em contrapartida [ao movimento operário tradicional], não é um “sujeito social”. Não tem unidade nem missão transcendentes e, portanto, não tem concepção de conjunto da história da sociedade. Por assim dizer, é sem religião nem Deus, sem outra realidade além daquela das pessoas que a compõem: enfim, não é uma classe, mas uma não-classe. E é exatamente por isso que ela não tem nenhuma virtude profética: não anúncia uma sociedade-sujeito por meio da qual os indivíduos estavam integrados e salvos; ao contrário, remete os indivíduos à necessidade de salvarem-se eles mesmos e de definirem uma sociedade compatível com sua existência autônoma e seus objetivos (20).

Na seqüência Gorz fala dos movimentos sociais com missão redentora. Eles são a “negação da ordem, do poder, do sistema social, em nome do direito imprescindível de cada um sobre sua própria vida”. A “salvação” só pode vir do indivíduo e o que se salva é a existência. O individualismo como marca do irracionalismo aparece claramente em Gorz. Seu livro é escrito, inclusive, em pleno momento em que as “virtudes” neoliberais estão sentando nas cadeiras políticas das potências capitalistas hegemônicas: Tatcher na Inglaterra (1979) e Reagan nos Estados Unidos (1980)64. Isso é sintomático pois o livro não representa uma crítca a essa triste corrente mais pobre e milhões de vezes mais hipócrita que a original “mão invisível”. Pelo contrário, o livro encaminha-se num ambiente ideológico que é o mesmo: a negação do socialismo e da capacidade político- teórica da totalidade. Sintomático pois nesse ambiente ideológico a postura assumida revela qual tendência o próprio autor tem. Não se tratava nesse período de defender a “construção do socialismo” como foi o caso de Lukács nos anos 30. Uma nova conjuntura se revelava com a evidente exaustão do modelo soviético. Mas isso não significa abandonar o método teórico marxiano: aqui se revela o posicionamento ideológico do autor, tal como Harvey postula ao dizer que Gorz toma partido no discurso pós-moderno.
Na citação fica clara uma crítica à concepção de totalidade bem como ao agente político investido da totalidade-prática que é a classe trabalhadora. A “não-classe” não tem “religião nem Deus” e sua realidade é apenas a “das pessoas que a compõem”: é o elogio da singularidade. Não existe uma coesão da classe, um “princípio” orientador de sua ação. A única missão da “não-classe” é salvar sua própria vida, salvar sua existência e sua individualidade. Numa sociedade globalizada pela lógica produtiva e financeira do capitalismo no seu máximo gigantismo o poder do indivíduo é muito menor que o da formiga tentando derrubar o elefante. Menor até, pois o indivíduo tem consciência e esta é o abrigo das ideologias e do estranhamento que criam uma barreira ainda mais forte para a ação revolucionária. A consciência é abrigo da salvação pelo eu de Gorz...
A totalidade também desaparece do horizonte de Gorz e de sua “não-classe”: essa “não tem concepção de conjunto da história e da sociedade”. Quando se desaparece com a totalidade desaparece-se também com a possibilidade de transformação da realidade.
Neste ponto Gorz diz que devido à crise do movimento operário, o marxismo também está em crise: “O marxismo está em crise porque há uma crise do movimento operário. Rompeu-se, ao longo dos últimos vinte anos, o fio entre desenvolvimento das forças produtivas e desenvolvimento das contradições de classe” (25). A crise do movimento operário reside na diminuição numérica do operariado tradicional mas isso em hipótese nenhuma tem ligação direta com uma crise do marxismo, seja por falta de uma resposta ou por falta de buscar uma resposta. Muito menos essa diminuição implica que tenha havido uma ruptura do materialismo histórico: não há mais ligação entre o desenvolvimento das forças produtivas e as contradições de classe. Com isso o autor quer dizer que não mais existem classes sociais.
Uma outra forma de se demonstrar a “sedução” que o autor tem pela singularidade reside na comparação que faz de Marx e Hegel. Primeiro podemos dizer que é uma comparação esquemática, procurando fazer aquela inversão direta de Hegel para Marx, tentando “pôr Hegel de pé” com uma simples inversão de métodos. É muito mais que isso já que é necessário perceber as continuidades e rupturas de Hegel para Marx nos caminhos da filosofia alemã. Diga-se de passagem que um dos poucos filósofos do século XX que tinha essa capacidade de transitar da filosofia clásica alemã para o marxismo era Lukács.
Depois, essa “sedução”, tem todas as formas do irracionalismo individualista e o medo do indivíduo perder o seu sentido. Vejamos:
Reconhece-se aí a matriz da dialética marxista. Da dialética hegeliana, Marx conserva o essencial, a saber: a idéia de um sentido da História independente da consciência que dele têm os indivíduos e que se realiza, tenham eles ou não tal consciência, através de suas atividades (29).

Esse “adeus” que Gorz deu ao proletariado por conseqüência inevitável do desenvolvimento das forças produtivas da alta tecnologia do século XX tem como sujeito revolucionador da sociedade o indivíduo. Este sim é eficiente. O proletariado tradicional perdeu o sentido. Para Gorz não só perdeu o sentido como ainda destrói aquela autonomia que poderia levar à libertação. Toda tentativa na forma da individualidade de emancipação, “cada proletário que espera se safar sozinho solapa a capacidade que teria o proletariado, se todos os seus membros se unissem, de enxotar a burguesia do poder e de pôr fim à sociedade de classes” (47). O proletariado faz a mesma coisa que o capital: destrói a autonomia dos indivíduos. “Assim a ideologia do movimento operário tradicional valoriza, perpetua e, se a ocasião se apresentar, arremata a obra iniciada pelo capital: a destruição da capacidade de autonomia dos proletários” (49).
Devemos lembrar ainda que a obra de Gorz se encaixa naquela linha de argumentação que vê a destruição do trabalho como destruição do trabalho concreto, da capacidade vital de produção, enfim, da dimensão ontológica do trabalho.
(...) Portanto, quando se fala da crise da sociedade do trabalho, é absolutamente necessário qualificar de que dimensão se está tratando: se é uma crise da sociedade do trabalho abstrato (como sugere Robert Kurtz, 1992) ou se se trata da crise do trabalho também em sua dimensão concreta, enquanto elemento estruturante do intercâmbio social entre os homens e a natureza (como sugerem Offe, 1989; Gorz 1982 e 1990 e Habermas, 1987 entre tantos outros) (Antunes, 1995: 76-77).

O que procede daí, entã,o é a destruição do trabalho como fundamento ontológico da sociabilidade humana, como categoria fundante do ser social e do seu desenvolvimento no contínuo processo de afastamento das barreiras naturais.
A obra de Gorz que tomamos por base para estabelecer alguns esclarecimentos críticos é assim permeada por concepções que desestruturam qualquer mudança social por meio dos partidos políticos e do movimento operário tradicional. Sua linha geral de argumentação é aquela que já nos referimos da “não-classe” e dos seus caminhos para estabelecer um novo padrão social. Mas um novo padrão baseado na crítica à “ética da acumulação”? Deixamos de falar em sentido ontológico para falar em sentido moral... Apesar de propor uma forma alternativa ao movimento operário tradicional para haver uma mudança dessa “ética da acumulação”, a conclusão a que se chega no final do livro é que as propostas não têm solidez, não há como enfrentar as forças produtivas do capital quando este não mais precisa de trabalhadores. As reflexões de Gorz nos levam a concluir que as mudanças sociais ocorridas no capitalismo impedem a ação da “classe-que-vive-do-trabalho”.
Ao vislumbrarmos tudo isso, ao vislumbrarmos um mundo onde os conflitos étnico-religiosos estão se reacendendo junto com os movimentos nacionalistas numa clara resposta à instabilidade e incerteza econômica atual, onde a resposta à falência do movimento operário tradicional, dos sindicatos e dos partidos é o apelo de “salvação” da existência e busca da autonomia, onde se reacende o irracionalismo, só podemos concordar com o filósofo húngaro: “socialismo ou barbárie”.







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