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Teses_Monologos-->Marcas da memoria cultural nas crônicas de Xapuri-Acre -- 20/09/2010 - 16:53 (ALZENIR M. A. RABELO MENDES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Marcas da memória cultural nas crônicas jornalísticas de Xapuri – 1907 a 1917

MARIA ALZENIR ALVES RABELO MENDES

Dissertação de Mestrado em Letras, Linguagem e Identidade, apresentada à Banca Examinadora da Universidade Federal do Acre, para obtenção do título de mestre.
Orientadora: Profª Drª Olinda Batista Assmar.

© MENDES, M. A. A. R. 2008.
Ficha catalográfica preparada pela Biblioteca Central da Universidade Federal do Acre
M538m MENDES, Maria Alzenir Alves Rabelo. Marcas de memória cultural nas crônicas jornalísticas de Xapuri – 1907 a 1917. 2008. 119f. Dissertação (Mestrado em Letras – Linguagem e Identidade) – Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Universidade Federal do Acre, Rio Branco – Acre, 2008.

Orientadora: Profª. Dra. Olinda Batista Assmar

1. Crônicas, 2. Jornais, 3, História – Memória cultural, I. Título
CDU 801.8:070 (811.2)

BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Olinda Batista Assmar/ Orientadora/ UFAC
Professor Doutor Hildo José Motta Cosson/UnB
Professora Doutora Margarete Edul Prado DE Souza Lopes/UFAC

Rio Branco – Acre
2008

DEDICATÓRIA
À minha orientadora, Professora Doutora Olinda Batista Assmar, pelo muito que ela representa em meu percurso acadêmico, pelo incentivo, pela dedicação e, acima de tudo, pela amizade sincera.

AGRADECIMENTOS
Ao meu marido, João Manoel, e aos meus filhos, pela paciência e compreensão durante minhas “ausências” do convívio familiar.
Aos meus familiares, meus pais e irmãos, pelo apoio e pela colaboração.
Agradecimento especial à Professora Margarete Prado, por suas valiosas contribuições, pelas muitas vezes que cedeu material de sua biblioteca pessoal e pelas indicações de fontes que foram de suma importância, quando esta pesquisa ainda se encontrava em fase de esboço.
Aos Professores do Mestrado, pela dedicação, tolerância e pelo bom senso com que conduziram os mestrandos, durante todas as etapas do curso.
À Professora Luciana Marinho, pelas sugestões e correções desde a elaboração do projeto de pesquisa.
À Tereza Lima, bolsista do projeto Amazônia: os vários Olhares, pela correção e pelo prestimoso apoio na etapa final deste trabalho.
À Universidade Federal do Acre por possibilitar a realização desse mestrado em nossa cidade.
À CAPES e ao CNPq, pela concessão de bolsa de estudo, de fundamental relevância para que essa pesquisa fosse levada a termo.

EPÍGRAFE
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a possibilidade de crer que foi coetânea das duas primeiras vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram- se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Machado de Assis (1854)

RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre as marcas da memória cultural de Xapuri, através das crônicas publicadas nos jornais daquela cidade durante a primeira vintena de 1900. As crônicas são tratadas como documentos de uma época e se configuram como lugares de memória escrita, que permitem o conhecimento da formação histórica e cultural do espaço onde foram produzidas, sob a perspectiva da história social. Além das crônicas, foram selecionados outros textos do período considerado determinante dessa formação, particularmente, de 1907, marco inicial da circulação dos jornais naquela localidade depois da criação do Território do Acre, a 1917, ano do qual se coletou a última crônica, antes que o Acre fosse unificado pelo governo centralizado, em 1920. Essa pesquisa é de natureza bibliográfica e tem como fontes principais o acervo do projeto de pesquisa Amazônia: os vários olhares e os acervos públicos do Estado do Acre. Outras fontes fizeram-se necessárias para o estudo do contexto histórico e do corpus da pesquisa, com vistas a entrelaçar os saberes que contribuíram para os resultados alcançados: o delineamento dos aspectos fundamentais que marcam a memória escrita do lugar, através das crônicas que retratam os momentos mais importantes da fase, considerada heróica para a maioria dos escritores xapurienses. As primeiras crônicas são narrativas que evocam dois momentos principais da fundação do Acre: o desbravamento, narrado em tom laudatório e, às vezes, humorístico; e a Revolução Acreana, através da qual se deu a conquista do Acre pela luta armada, também narrada em tom laudatório. A segunda modalidade de crônicas é constituída de textos ensaísticos que problematizam a organização política e administrativa do Território militarizado, em uma demonstração clara da insatisfação dos mandatários locais com o regime imposto pelo governo federal; e a terceira tipologia é formada por narrativas líricas e reflexivas em tom crítico face à penúria que se instalou no Acre com a primeira crise da borracha e com a exploração sem precedentes dos seringais nativos, ameaçados de extinção. De modo geral, essas narrativas oferecem um painel sobre a luta dos “brasileiros do Acre” para se tornarem acreanos de fato e de direito frente à nação brasileira.

PALAVRAS-CAHVES: Crônicas, Jornais, História e Memória Cultural

ABSTRACT
This work is a study about marks of the cultural memory of Xapuri, through the chronicles published in periodicals of that city during the first group of twenty of 1900. The chronicles are dealt with as documents of a time and configure as places of memory written, that allow the knowledge of the historical and cultural formation of the space where they had been produced, under the perspective of social history. Beyond the chronicles, other texts of the considered period determinative of this formation had been selected, particularly, the years of 1907 - initial landmark of the circulation of periodicals in that locality after the annexation of the Acre to Brazil - to 1917, year of which if it collected the last chronicle of Xapuri, before the Acre was unified around a centered government, in 1920. This research have bibliographical nature and has as principal sources the quantity of the research project Amazon: the some looks and the public quantities of the State of the Acre. Other sources if had made necessary for the study of the historical context and the corpus of this research, aiming interlace the knowledge that had contributed for the reached results, which consist in the delineation of three basic aspects that mark the written memory of the place through three basic types of chronicles that portray the moments most important of that phase, considered heroic for the majority of the writers. The first ones are narratives that evoke two moments of the foundation of the Acre: the epic of the desbravamento in praise and, sometimes, humor tone, but where the profile of the conquerors, rustic or civilizadores, is constructed to the way, almost always, of a brave one; and the narrative of the conquest of the Acre for the seted fight, where the revolutionaries of Plácido de Castro are exalt. The second modality is the chronicle-assay that to blame the organization administrative politics and of the militarized Territory, in a clear demonstration of the unsatisfied to the local agent chief executives with the regimen tax for the federal government; e finally, the lyric and reflexivas chronicles in critical tone face to the shortage that if he installed in the Acre with the first crisis of the rubber and with the exploration without precedents of them you inject natives, threatened of extinguishing. In general way, these narratives offer a panel on the fight of the “Brazilians of the Acre” to become natives of Acre in fact and of right front the nation.

KEY WORDS: Chronicles, Periodicals, History and Cultural Memory.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1.0. O SURGIMENTO DA IMPRENSA ACREANA NO CONTEXTO BRASILEIRO
1.1. Início da imprensa no Brasil
1.2. A continuidade dos moldes nos primeiros jornais do Norte
1.3. A criação dos jornais em Xapuri

2.0 - O PERCURSO DAS CRÔNICAS
2.1. Origens e evolução: do registro à interpretação
2.2. Primeiros cronistas na Amazônia
2.3. Os viajantes no Acre
2.4. A crônica jornalística do Acre boliviano
2.5. Xapuri no contexto revolucionário e do movimento autonomista

3.0. MEMÓRIAS DO ACRE NAS CRÔNICAS DE XAPURI
3.1. Do fato ao relato dos autores ocultos
3.2. As primeiras crônicas
3.3. Reminiscências do desbravamento
3.4. Memórias da Revolução
3.4. Os cronistas cúmplices e as crônicas da crise
3.6. Autorias femininas ocultas

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

Neste trabalho, objetiva-se identificar as marcas da memória cultural, da fase formativa do Acre, através das crônicas dos jornais de Xapuri . Publicadas na primeira vintena do século XX, particularmente, dos anos de 1907 a 1917, quando o antigo Território do Acre ainda não se encontrava unificado, em torno de um governo central com sede em Rio Branco. Fato que resultou no esvaziamento de Xapuri e das demais sedes dos departamentos acreanos , devido à concentração das verbas e ao deslocamento dos eventos políticos e culturais para a recém-criada capital do Território.
Justifica-se a escolha do espaço em razão de as fontes históricas confirmarem a importância de Xapuri como berço do Movimento Autonomista no Vale do Acre e lugar onde teve início a Revolução Acreana. Essa cidade foi sede do Estado Independente do Acre, proclamado por Plácido de Castro após a rendição boliviana, e o maior centro econômico durante o primeiro Ciclo da Borracha. Cognominada “Princesinha do Acre”, Xapuri usufruía, dentre outros bens importados, da presença de intelectuais e grupos artísticos, orquestras, companhias de dança e teatro, vindos da Europa, o que a coloca entre as cidades fomentadoras da chamada cultura civilizada na selva amazônica.
Quanto à delimitação temporal (1907 a 1917), justifica-se em razão dos registros que comprovam o início e o fim da publicação de crônicas nos jornais de Xapuri. A primeira data, 1907, é referente ao ano em que foi fundada a imprensa naquela localidade com os jornais O Acre e o Acreano dos quais foram coletadas as primeiras crônicas. Já a segunda data, 1917, é a que marca o ano do qual se coletou a última crônica no período considerado, neste estudo, como sendo decisivo para a consolidação dos ideais autonomistas, que culminaram na criação do Estado do Acre.
Por se tratar de uma pesquisa de natureza bibliográfica, sua organização consiste, inicialmente, no levantamento e na leitura dos referenciais bibliográficos que alicerçam o estudo do contexto e do corpus. Para tanto, faz-se um entrelaçamento dos saberes advindos das Ciências Humanas, como: a História Nova e a Teoria da Literatura, que contribuem para o conhecimento mais aprofundado sobre o patronato e sobre a veiculação dos jornais no Acre, bem como para o resgate da memória e para o reconhecimento da identidade cultural dos acreanos.
A gênese dessa proposta do estudo encontra-se em outras pesquisas, realizadas na graduação em Letras na Universidade Federal do Acre (UFAC), onde esta investigação foi iniciada com bolsa do PIBIC/CNPq e teve continuidade após a graduação com bolsa de aperfeiçoamento em pesquisa, pelo PNOPG , também na UFAC. Em ambas as etapas, sob a orientação da Professora Doutora Olinda Batista Assmar, fundadora do Projeto de Pesquisa Amazônia: os vários olhares, e líder desse grupo, do qual foi adotada a linha de pesquisa literatura e memória cultural.
O acervo do referido projeto e o Museu da Borracha do Acre subsidiam a presente pesquisa por concentrarem a maior parte dos textos dos jornais antigos de Xapuri. Servem também de fontes de consulta álbuns, folhetos e outros materiais impressos da época, que complementam o estudo das crônicas e do contexto nelas representado.
Em consonância com o projeto maior, ao qual este está subordinado, pensa-se a produção literária como “parte do processo histórico total da sociedade”, repetindo aqui as palavras da mentora do aludido projeto. Segundo ela, “a essência e o valor estético das obras literárias e da sua ação são partes do processo geral de apropriação do mundo pelo homem mediante sua consciência” (Assmar, 2002, p.27-28).
Orientados por essa perspectiva, objetiva-se o alcance do conhecimento de muitos aspectos, até então, desconhecidos sobre a formação da sociedade acreana, sem obscurecer que ela se efetivou sob a égide da conquista da terra para fins lucrativos. Não obstante os motivos que moveram aventureiros, investidores e outros migrantes para a região, há que se reconhecer o valor da produção intelectual que muitos deles deixaram no Acre. E que esta produção compõe o acervo documental da memória escrita do lugar.
Pressupõe-se então que há um conhecimento que ainda permanece oculto nesses escritos, talvez porque seu suporte material, o jornal feito no Acre antigo, seja quase tão desconhecido dos acreanos e outros brasileiros, quanto o conteúdo dos gêneros textuais que comporta. Por tratar-se de uma produção destinada às páginas de jornal, e que em razão da sua transitoriedade, a matéria da crônica adquire um caráter também transitório.
Ainda assim, a crônica jornalística, incluindo aqui a acreana, configura-se como um dos lugares da memória escrita em que as experiências individuais ajudam a compor a memória coletiva porque dela se alimenta. É também de bom senso considerar que, à luz da historiografia contemporânea, os mais variados escritos, desde relatos de cunho particular a fragmentos de documentos de caráter público, ganham relevância porque são a escrita e a interpretação do indivíduo sobre os fatos do cotidiano no tempo. É, portanto, apoteose do documento e decadência do monumento, como bem ressaltou o historiador francês Jacques Le Goff.
E foi considerando o valor documental da crônica que se estabeleceu o critério de seleção dos textos analisados neste estudo. Sem, contudo, esquecer que, nela, como em outros escritos sobre a Amazônia, a experiência nem sempre prevaleceu sobre a fantasia, parafraseando aqui João Carlos de Carvalho (2005), em suas considerações sobre os discursos fundadores da Amazônia na escrita dos cronistas de viagem.
O foco do problema a ser estudado reside no estudo do caráter intrínseco da crônica, como fragmento da vida social, mantendo-se como ponto de intersecção entre a história e a memória, a notícia e a reflexão sobre ela. Embora a ênfase deva recair no plano intrínseco, o extrínseco torna-se imprescindível, de vez que ambos os planos se complementam, um não existe sem o outro. Interessa também o conhecimento sobre as origens sociais dos autores, seus posicionamentos políticos e suas relações com as forças dominantes.
O estudo do caráter extrínseco tem como horizonte questões acerca dos fatos representados nas crônicas, que tanto podem ser contemporâneos à escrita delas como evocados pelo escritor que os amplia ou os reduz pela linguagem. Por conseguinte tem-se preferência pelas crônicas histórico-reflexivas, aquelas que focalizam ou aludam a eventos em torno dos anos que antecederam e sucederam os períodos revolucionários. Porquanto, nelas, a temática central é a da descoberta e conquista do Acre, bem como a do anseio autonomista, frente às intervenções do governo brasileiro nas decisões políticas do Território.
O corpus selecionado, em sua maior parte, é constituído de crônicas identificadas somente pelo título da coluna onde estão publicadas e pelo pseudônimo que as assina. Algumas crônicas, porém, configuram-se como produção avulsa, intituladas, mas sem autoria, especialmente, quando o conteúdo delas é veiculado em tom mais crítico sobre os fatos contextuais da época.
Durante o levantamento do corpus, teve-se o cuidado de averiguar nas fontes históricas a relação existente entre o fato representado pelo cronista e o fato documentado pelo historiador. E mesmo tendo-se lido todas as crônicas coletadas dos jornais Xapuri, nem todas foram contempladas para efeito de estudo nesta dissertação. Algumas foram excluídas da análise por não se reportarem ao contexto da formação do Acre. Outras, por serem transcrições de jornais de outras localidades.
As crônicas da coluna “Nossos Antigos, bons burros e bravos” , por exemplo, foram excluídas porque os eventos narrados nelas não se dão no Acre, e sim no sertão nordestino. Ainda que seus personagens, os coronéis-do-sertão, sejam análogos aos “coronés” da borracha que povoam as crônicas do Zé do Barranco.
Para melhor estruturação deste trabalho, organizou-se o conteúdo em três capítulos, sendo o capítulo um destinado à contextualização sobre o surgimento da imprensa acreana no cenário brasileiro. Nesta parte do texto, faz-se uma explanação sobre como e sob que auspícios foram criados os primeiros impressos no Brasil colonial e republicano. A retrospectiva histórica tem por objetivo lançar luz sobre o percurso e os moldes em que foi construída também a imprensa no Acre.
No capítulo dois, a ênfase recai sobre as origens e evolução da crônica. E tendo-se como referência, entre outros estudos, o trabalho de Neide Gondim, em A invenção da Amazônia, publicado em 1994, faz-se uma abordagem de como, do século XVI ao XIX, os viajantes documentaram e divulgaram a Amazônia para outras partes do mundo por meio da crônica. Não deixando, porém, de frisar que os escritos daqueles primeiros cronistas diferem em estilo e conteúdo das crônicas jornalísticas xapurienses. Ainda no capítulo dois é feita a contextualização da chegada dos exploradores do látex às terras acreanas e da dominação brasileira sobre o Território no início do século XX.
O capítulo três constitui-se da análise das crônicas mais representativas sobre a descoberta e formação do Acre. Nessa parte do trabalho são postas em relevo as marcas da memória cultural traçadas na escrita dos cronistas, os quais delineiam o perfil moral e sócio cultural dos desbravadores dos rios e das selvas acreanas. O conjunto dos textos estudados amplia o conhecimento sobre outras motivações, além das econômicas, para a determinação e a persistência dos chamados “brasileiros do Acre” no combate às forças antagônicas que lhes pudessem expurgar da terra conquistada.
Ao se analisar as crônicas de Xapuri, são consideradas as nuances tipológicas comuns às modernas crônicas jornalísticas, que, como gêneros de opinião, prendem-se mais ao referencial de onde o cronista extrai os fatos. Para além dos gêneros informativos e opinativos, são também considerados aspectos criativos que transpõem a crônica para o âmbito do texto de imaginação que amplia o conhecimento sobre os seres e o espaço onde é produzida.
O resgate dessa memória destaca os registros que põem em relevo os traços da cultura local. Nesse particular, adverte Terry Eagleton (2005), que o significado da palavra cultura é amplo e, ao mesmo tempo, restrito, tanto no sentido antropológico como no estético. O autor considera que o significado de cultura, no sentido estético, é nebuloso, enquanto no antropológico abrange tudo, desde estilos de penteado, hábitos e até o modo como dirigir a palavra a um parente.
Com esse referencial é que se acata a noção de cultura sob a égide dos estudos culturais contemporâneos, para os quais todas as produções humanas estão englobadas na cultura. E esta está associada à memória que, por conseguinte, apreende o conjunto dos processos sócio históricos, mediante os quais os homens representam e interpretam o mundo. A memória é também apreendida nos escritos que se configuram em meios através do quais as gerações comunicam suas experiências a outras gerações.
Desse modo é que a crônica adquire o estatuto de gênero da memória escrita em que o coletivo e o individual confluem e são projetados do passado para o futuro como um legado. Buscar as marcas da memória cultural acreana nesse gênero encaminha o estudo em duas direções: mostrar a memória como instrumento revelador da cultura, identificando os possíveis diálogos, estabelecidos no interior dessa produção; e justificar os silêncios de algumas vozes e as razões destes em relação à cultura dominante.
Propõe-se, portanto, uma investigação de alcance cultural, considerando, de acordo com Antônio Cândido (1975), que as manifestações culturais escritas são um dos meios de construção identitária e que os fatores sócio-culturais marcam os momentos essenciais da produção. Por isso é que, no estudo dos elementos formais do texto, as técnicas de interpretação social são somadas à pesquisa do momento, a fim de estabelecer uma verdade que será muito mais documentária do que estética.
Trazer para o espaço da leitura as produções escritas do Acre é, sem dúvida, uma forma de integrá-las ao panorama social da época e garantir o diálogo permanente entre o presente e o passado, evitando, desse modo, o apagamento dessa memória. Espera-se, ao se concluir essa etapa da pesquisa, contribuir para o fortalecimento da identidade cultural acreana e para a construção de novas fontes de estudo para as gerações futuras.


1.0. O SURGIMENTO DA IMPRENSA ACREANA NO CONTEXTO BRASILEIRO

1.1. Início da imprensa no Brasil

O contexto em que a atividade de imprensa foi criada no Acre, não difere muito do que ambientou os primeiros serviços tipográficos em outras partes da Amazônia brasileira, assemelhando-se das condições em que também funcionou imprensa nacional, do Brasil colônia . No que tange aos homens das letras, foram-lhes dadas atribuições de tradutores e intérpretes das idéias de um patronato que, quase sempre, transformou-os em porta-vozes do poder.
A cultura letrada e seus instrumentos de difusão estão historicamente atrelados à busca de autonomia econômica e política, patenteadas nas descobertas de novas fontes de riqueza, no desenvolvimento das tecnologias e no alargamento das relações comerciais nas possessões conquistadas e dominadas pelos povos mais desenvolvidos e patrocinadores do saber.
O avanço tecnológico expandiu a busca de novas fontes de matéria-prima para a Amazônia e agilizou a descoberta das aplicações úteis do látex para a indústria mundial em amplo crescimento no final do século XIX e início do século XX. Fez também com que, em pouco tempo, as áreas produtivas dessa matéria-prima se tornassem lugares de confluência dos muitos grupos advindos das mais diversas nacionalidades.
Durante a chamada “corrida pelo ouro negro”, a necessidade de exploração do látex para a indústria internacional foi o móvel que aproximou os viajantes dos nativos sul-americanos, resultando em trocas materiais e culturais entre eles, mesmo que tais trocas tenham se dado em condições de desvantagem para os habitantes dos trópicos. Pois muitas comunidades nativas foram massacradas e tiveram seu patrimônio espoliado em decorrência da ação exploradora, acomodamento de especuladores e de outros migrantes na região.
Mesmo que não se possam minimizar os danos causados pelos novos ocupantes das terras acreanas, não se pode por em dúvida que foi por meio deles que os chamados bens culturais da civilização foram disseminados na terra recém-descoberta. No Acre e em outras partes da Amazônia, a cultura letrada foi inserida por meio dos viajantes europeus, os quais eram ou representavam cientistas e investidores que vislumbravam êxito nos experimentos e negócios com as novas fontes de matéria-prima.
Há que se lembrar que nem todos os viajantes eram movidos por meras razões aventureiras e ou lucrativas. A história registra que muitos migravam pela necessidade extrema de sobrevivência, a exemplo dos nordestinos que se deslocaram para o Norte brasileiro no final do século XIX e início do século XX, período em que, no Nordeste, ainda eram causticantes os resquícios da grande seca de 1877.
Outra razão para a demanda de novas levas migratórias rumo ao Norte tinha sua origem no desejo de libertação política e religiosa. Sendo esta a aspiração de judeus e demais falantes de língua árabe, em maioria, sírios e libaneses oprimidos, que vieram para o Brasil durante a desestruturação do império Turco. Os que compunham esse grupo rumavam para a Amazônia como estivessem em busca da terra prometida, onde livres pudessem, além de lutar por uma vida digna, exercer o credo de seus antepassados sem medo do preconceito e da perseguição.
A história registra que a primeira corrente migratória de judeus para a Amazônia brasileira foi motivada, em primeiro lugar, pelas possibilidades de enriquecimento antecipadas pelo Decreto de 1814, que ampliou as relações comerciais entre o Brasil e outras nações. Em segundo lugar, pela liberdade de culto autorizada no Tratado de Aliança e Amizade em 1810.
Esses migrantes, atraídos por uma campanha internacional do governo brasileiro, vislumbraram na Província do Grão-Pará uma nova vida, assim registra o documentário: “Judeus na Amazônia”. Trabalho produzido pelo jornalista Henrique Veltman e pelo fotógrafo Sérgio Zalis, para o Museu da Diáspora da Universidade de Tel-Aviv, Israel .
Ao chegarem à nova pátria, um bom número de judeus empenhou-se na atividade comercial. Outros se dedicaram aos serviços escrituração do comércio. É possível que, a exemplo dos judeus que se instalaram no Recife, por ocasião das invasões holandesas, muitos dos que migraram para o Norte tenham também se incumbido dos primeiros serviços gráficos nesta região. Abre-se aqui um parêntese para lembrar que a atuação de judeus no campo das letras, no Brasil, remonta ao início do século XVIII.
Nelson Werneck Sodré (1999) registra que a instalação da primeira tipografia particular em solo brasileiro deu-se ainda em 1706, por iniciativa de comerciantes membros de uma comunidade judaica no Recife. E que, por imposição da Coroa, essas oficinas foram fechadas. Somente depois do Tratado de Aliança e Amizade, os judeus puderam se expandir no setor comercial e cultural. Cessadas as perseguições, a imprensa de caráter privado logrou se desenvolver e se estender da metrópole (Rio de Janeiro) para as regiões mais longínquas, como a Amazônia.


1.2. A continuidade dos moldes nos primeiros jornais do Norte

A inauguração da imprensa na região Norte deu-se com a criação da Gazeta do Pará, em 1821, referencial histórico que, no Brasil, demarca um período de livre expressão das idéias por força de um decreto de D. Pedro I, que extinguiu a censura prévia aos impressos. Embora fundados sob os auspícios da liberdade e com recursos privados, os periódicos da região Norte, em quase nada diferiram da Imprensa Régia, nos moldes da Gazeta do Rio de Janeiro. Os jornais da época, com exceção do Correio Braziliense , do maçom Hipólito da Costa , funcionavam como porta-vozes da administração oficial. Fora algumas notas do comércio, noticiavam somente os fatos considerados importantes, da vida social de pessoas influentes.
Esse modelo também influenciou a imprensa amazonense. De acordo com a Associação Brasileira de Imprensas Oficiais, nos dados colhidos pela Imprensa Oficial de Macau , o Amazonas foi um dos primeiros Estados a imprimir o seu Diário Oficial, ainda no século XIX. Este veículo, como os demais da época, tinha como missão principal a divulgação dos atos do Governo, incluindo os atos do Legislativo e do Judiciário.
A editoração dos primeiros jornais na região Norte, assim como em outras regiões brasileiras, contou com recursos tecnológicos importados da Europa. O Diário Oficial do Amazonas, por exemplo, funcionava com impressoras importadas da Alemanha , pelos idos do primeiro Ciclo da Borracha, responsável pela inserção da região no mercado internacional e pela adequação de suas cidades ao modelo de urbanização europeu, em voga no Brasil da época.
Nas capitais dos dois Estados em desenvolvimento da Amazônia brasileira, Pará e Amazonas, a imprensa oficial estabeleceu-se quando Belém e Manaus, suas respectivas capitais, vivenciavam a Belle Époque, financiada pela economia gumífera, no final do século XIX e início do século XX. Período em que ocorreu a expansão das relações comerciais entre os países europeus e americanos. Nesse âmbito, pode-se afirmar, sem dúvida, que a borracha foi o elemento propulsor do desenvolvimento econômico e que este possibilitou a inserção da região na era da modernidade.
Não obstante, até o final daquele século, tanto no Norte como nas outras regiões do Brasil, a imprensa não se ocupava com as causas das pessoas comuns. Nos primeiros periódicos, a manifestação de uma voz não oficial excetuava-se aos dotados de pendores literários, isso quando se prestavam aos interesses dos mandatários.
Não se pode, contudo, obscurecer que, durante o movimento pela emancipação do Brasil, jovens intelectuais brasileiros, educados na Europa, e membros da Maçonaria pulverizaram os ideais liberalistas através da imprensa. A difusão de suas propostas políticas deu-se, porém, em um discurso ornado característico do nacionalismo literário do período pós-independência e pré-republicano (Cândido, 1975).
Na imprensa nacionalista, o texto literário e o jornalístico não se distinguiam um do outro, tal era a falta de delimitação de seus espaços e a indefinição da linguagem usada. Luís Roberto Cairo (2001) lembra que a tradição literária no Brasil se explica pelo fato de a imprensa estar entregue, desde o início, a uma elite formada por homens de letras. As pessoas que exerciam o jornalismo eram as mesmas que faziam a literatura. Isso fez com que se operasse uma simbiose entre as duas atividades.
Sodré (1999) avalia de forma negativa a não dissociação entre uma atividade e outra. Para ele, essa mescla fez com que o jornalismo fosse confundido com a literatura, até mesmo nas chamadas informações sociais. A linguagem carregada de emotividade chega a se confundir com a que é usada pelos namorados. Esse jornalismo caracterizou, pelo menos, os primeiros cinqüenta anos da imprensa brasileira. Contudo, não se deve minimizar a sua importância como um instrumento para a construção da memória escrita da cultura nacional.
Somente ao término do século XIX, a imprensa começou a se voltar para a discussão dos problemas da República, principalmente, para as questões referentes às deformidades decorrentes do sistema escravagista, já extinto. Essa atitude, porém, não significou o fim do modelo jornalístico anterior, persistindo, pois, uma relação muito estreita entre o jornalismo, a política e a literatura.
No início do século XX, a imprensa republicana passou a ter um sentido crítico e cívico ao participar da construção do processo político e econômico do país. E por força da expansão capitalista, essa imprensa aderiu ao modelo empresarial proposto pelo crescimento da industrialização, que promoveu o aprimoramento das tecnologias da Revolução Industrial.
No contexto da modernização do país, emergiu uma nova ordem social nas cidades, definida como modernidade, marcada pela mecanização e rapidez nos procedimentos, exigindo agilidade nos serviços e requerendo, cada vez mais, a utilização racional dos espaços. E na esfera da imprensa não podia ser diferente.
A urgência da informação rápida e em espaços visíveis foi uma das razões para a eliminação dos adornos, vinhetas, fios e enfeites que contornavam as colunas dos jornais. Com essas mudanças, os espaços foram mais valorizados e a notícia passou a ocupar o lugar que lhe era devido nos jornais. Estes passaram ser mais um produto de consumo de uma massa de leitores da classe alta e média.
Segundo Juarez Bahia (1990), a imprensa começava a assumir o caráter de empresa e como tal deveria primar pela difusão da notícia, ser mais informativa que doutrinadora. Fato que não ocorreu logo nos primeiros anos do século XX. Segundo esse autor, ocorreu uma atitude de dubiedade em que se fundiam a informação e a doutrinação na maioria dos periódicos. Retrocessos à parte, a imprensa e a indústria editorial evidenciaram um crescimento significativo devido, principalmente, ao aumento do número de pessoas alfabetizadas, que contribuiu para a ampliação do universo de leitores e para o desenvolvimento da vida intelectual no país.
Depois da primeira vintena de 1900, proliferaram muitos jornais de facções políticas com a finalidade de influenciar o público leitor e alcançar setores diversificados da sociedade, enfocando, assuntos de natureza filosófica, religiosa, artística e educacional.
Naquele início de século, o Acre, apesar de ser uma região desconhecida para a maioria dos brasileiros, viu surgir e desaparecer muitos jornais, assim como ocorria nos grandes centros do país. Não obstante, a curta e restrita circulação desses periódicos, eles configuram-se como lugares de memória escrita. E oferecem um painel sobre o tempo e o lugar em que foram produzidos, bem como representam as idéias, os interesses e as formas de organização da sociedade que se formava no Acre da época.


1.3. A criação dos jornais em Xapuri

No Acre, os serviços de imprensa tiveram início no contexto turbulento da Revolução Acreana, logo nos primeiros anos do século XX, quando grupos opostos, vindos de diferentes partes do Brasil e do mundo, disputavam a dominação sobre o local. Muito embora tal intenção fosse velada sob o argumento de libertar os habitantes da região do jugo boliviano e fazer do Acre um Estado autônomo, incorporado à nação brasileira.
Os grupos de especuladores eram compostos por civis, militares, clérigos, leigos, artistas; por pessoas rudes e por intelectuais de várias profissões como engenheiros, médicos, advogados e professores. Enfim, por pessoas com ou sem nenhuma titulação, de orientação política e religiosa diversificadas.
E que, quando não contribuíram de forma direta para a construção da memória escrita do período fundador do Acre, contribuíram com a disponibilização de recursos materiais para a criação e manutenção dos jornais. Além de que, das vivências de muitos deles, rechearam-se os escritos dos fazedores da memória escrita do Acre. E esta foi feita por meio dos periódicos, mesmo que a existência deles deva-se a causa nem sempre de interesse dos que tomaram o Acre por pátria adotiva. É de conhecimento histórico que a imprensa era porta-voz de dois grupos mandatários: os que representavam o poder aquisitivo do coronelismo da borracha e os que se firmavam no cenário político sob a chancela do governo brasileiro.
Abre-se aqui um espaço para a relevância da Maçonaria, no que tange à criação da imprensa no Acre. Maçons residentes na região, a exemplo da ação de seus co-irmãos do período pró-independência e instauração da República, exerceram forte atuação na vida política e cultural através dos jornais, seu principal meio de difusão de idéias.
Em Xapuri, os primeiros boletins e pequenos informes locais, bem como documentos do comércio, foram impressos na gráfica da Loja Maçônica Igualdade Acreana, onde também foi confeccionado o primeiro periódico da cidade, o jornal O Acre, em 1907. A referida loja maçônica cedeu por muito tempo seus equipamentos para a impressão dos muitos outros jornais que foram criados no local já sob domínio brasileiro.
Embora o marco inicial da ação dos maçons na imprensa acreana date do ano de 1907, a presença da Maçonaria no Vale do Acre já era fato desde 1903. Ano em que se realizou uma sessão solene a bordo do navio Rio Tapajós, ancorado no Porto de Xapuri, segundo relata o jornalista Juraci Xangai, em matéria publicada no jornal Página 20, de 02 de março de 2006, por ocasião do centenário da Maçonaria no Acre. Na referida sessão, estiveram presentes mais de 50 pessoas de um grupo seleto, formado por obreiros, seringalistas e outras pessoas ligadas ao comércio.
No artigo citado, consta que os maçons comprometidos com o seu tempo e sua pátria ajudaram a construir o Acre, desbravaram rios e florestas e se revoltaram contra o esbulho que seria promovido pelo Bolivian Sindicate sobre as riquezas regionais. Ainda com base no texto de Juraci Xangai, os maçons participaram ativamente da Revolução Acreana, bem como de vários feitos da vida administrativa do Acre.
Para ilustrar, citam-se aqui algumas funções exercidas pelo primeiro venerável mestre da Maçonaria no Acre, o cearense Francisco de Oliveira Conde , homem culto, conhecedor do grego, esperanto e tupi-guarani. Francisco Conde foi tenente-coronel comandante do 5º Batalhão de Infantaria da Guarda Nacional, promotor de justiça, governador do Território, nomeado pelo presidente da República, de 1954 a 1955. Homem bem instruído, ele exerceu atividades culturais, tanto no âmbito da imprensa, na redação do jornal O Acre, como no ensino, tendo contribuído para a fundação do Colégio Acreano, o mais tradicional estabelecimento de ensino do Acre.
Em âmbito nacional há que se destacar o nome de maçons ilustres simpatizantes da causa do Acre e que até se empenharam em busca de uma resolução pacífica para a chamada “Questão do Acre” . Não são poucas as fontes históricas que citam a participação efetiva dos maçons na “Questão”. Dentre eles merecem deferência o jurista e político renomado Rui Barbosa e o Barão do Rio Branco.
O primeiro defendia, tanto na imprensa como no senado, a idéia de que o Acre era possessão brasileira. O segundo é mencionado como o “hábil diplomata” no artigo “Tratado de Petrópolis”, do jornal o Acreano, de 24 de novembro, de 1907, por ter intermediado as negociações que puseram termo à disputa sobre as terras em litígio, as quais passaram definitivamente para o domínio brasileiro.
Na histórica “Questão do Acre” havia dos pólos. De um lado, encontravam-se os que advogavam a causa em favor dos muitos migrantes, de diferentes regiões do Brasil, que fizeram do Acre sua nova pátria, os chamados “brasileiros do Acre”, para quem a autonomia imediata do Acre, como um Estado independente, era o ponto fulcral. A maioria deles, comerciantes, donos de casas aviadoras, banqueiros e seringalistas, promoviam a defesa de sua causa ancorada no capital internacional que movia a economia do extrativismo.
Do outro lado, postavam-se os representantes do governo federal, homens de patente militar, nomeados para funções administrativas e posteriormente judiciárias, mandados para a região, a pretexto de garantir a paz e a soberania brasileira no Acre, embora também munidos pela força bélica.
E em ambos os grupos, encontravam-se os intelectuais do Acre, que faziam um jornalismo amador, mais opinativo do que informativo, não se distanciando do tipo de jornalismo praticado nas metrópoles brasileiras do final do século XIX. Os redatores dos primeiros jornais acreanos perfilavam-se conforme as alegações da causa que diziam defender na disputa pelas terras do Acre .
Interesses à parte, deve salientar-se que esses grupos inseriram e movimentaram a cultura letrada no Acre, quando neste a floresta ainda se encontrava quase em estado bruto. Em um cenário que contrastava com as cidades brasileiras em processo de desenvolvimento, onde por força da modernização da imprensa, os jornais, cada vez mais, tornavam-se produtos de consumo, alargavam seu enfoque e ocupavam-se, também, das questões que interessavam aos diversos extratos sociais de seus consumidores.
No Acre, porém, dadas as circunstâncias de produção, circulação e patronato, esse instrumento de cultura de massa esteve, principalmente durante os dois grandes Ciclos da Borracha, a serviço e ao alcance de poucos leitores. Dentre eles, sobrepõem-se os seringalistas, os comerciantes (financiadores da imprensa) e os enviados pelo governo brasileiro: militares imbuídos da manutenção da ordem e, ao mesmo tempo, designados para funções administrativas e jurídicas. Das especificidades desse público leitor é que se pode atribuir a recorrência dos assuntos na pauta dos jornais dirigidos por e para cada grupo organizado em torno da “causa do Acre”, conforme os interesses de cada um deles.
Esses fatores respondem pelo distanciamento do fazer jornalístico acreano do que já era praticado nas regiões onde os jornais assumiam o caráter de veículos noticiosos, cuja função imediata devia se prestar ao registro dos fatos do cotidiano, com a descrição objetiva dos eventos, tratados de forma imparcial. Ainda que tal imparcialidade não passasse de uma vontade de isenção, uma vez que a própria escolha do que devia ser ou não publicado já implicava uma tomada de posição.
É oportuno registrar que as atividades tipográficas e a veiculação de jornais no Acre são anteriores à anexação do Território ao Brasil. No ano de 1901 foram instaladas as oficinas do jornal El Acre , em Puerto Allonso, cidade considerada ponto estratégico para o estabelecimento do domínio boliviano sobre as terras acreanas. Mas sua permanência no local foi tão curta quanto a dos representantes daquele país no Acre, os quais rendidos pela Revolução de Plácido de Castro e seus seringueiros, em 1903, se retiraram da região.
O primeiro exemplar do jornal El Acre foi publicado no dia 20 de outubro, de 1901, em Puerto Allonso, atual município de Porto Acre, local onde os bolivianos instalaram um posto aduaneiro, a fim de arrecadar impostos dos brasileiros sobre a venda dos produtos extrativistas. Fato que gerou a revolta dos acreanos, ou melhor, dos “brasileiros do Acre”, como eram conhecidos os brasileiros envolvidos na questão, desencadeando os movimentos de reação por parte dos comerciantes e seringalistas.
Esses movimentos culminaram na Revolução Acreana que deu aos brasileiros o domínio sobre as terras em disputa. No entanto, para o desapontamento dos revolucionários, estas não foram reconhecidas pelo governo do brasileiro como um Estado da federação, tal qual desejavam os partidários de Plácido de Castro. Tampouco foram anexadas ao Amazonas ou ao Pará, Estados que também pleiteavam a posse da Acre.
À revelia dos acreanos, o Acre foi anexado ao Brasil na condição inédita de Território Federal. Essa medida, mesmo não tendo respaldo na Constituição Brasileira vigente à época, efetivou-se após a assinatura do Tratado de Petrópolis, que propôs indenização à Bolívia, pelas terras perdidas, e pôs termo à questão das fronteiras, em 1904.
Do surgimento do El Acre, em 1901, até o ano de 1907, quando os jornais O Acre e o Acreano passaram a ser editados, não há material comprobatório, tampouco fontes precisas, que indiquem a existência de atividade jornalística em Xapuri, ou em qualquer outra cidade do Vale do Acre nesse período. Consta apenas, no Catálogo de Periódicos Raros da Biblioteca Nacional Digital, o registro de “O Acre, órgão patriótico” , de 1902. Ressalve-se que sua edição não era feita no Acre, e sim na capital da República, Rio de Janeiro.
Somente a partir de 1907 é que, conforme o levantamento feito na Fundação Cultural do Acre Garibaldi Brasil, no Museu da Borracha do Acre e no CDIH (Centro de Documentação e Identificação Histórica) da UFAC, os jornais voltaram a circular nas principais cidades do Vale do Acre .
De acordo com Olinda Batista Assmar, Iracilda Bonifácio e Gleysson Lima (2007), no estudo que realizaram sobre os editoriais do século XX no município de Rio Branco, a imprensa local inicia-se em 1908, com a criação do jornal O Rio Acre. Segundo o referido estudo, não foi localizado nenhum outro periódico com data anterior a do surgimento do jornal O Rio Acre, nos acervos consultados. Portanto, a referência que se tem quanto à edição de jornais no Vale do Acre, sob o patrocínio de brasileiros, é o ano de 1907, quando foram fundados os periódicos O Acre e o Acreano, ambos com formato de 0,m38 de altura por 0,m25 de largura.
O jornal O Acre era editado, quinzenalmente, em prensa de mão e tinha a chancela da Loja Maçônica Igualdade Acreana , fundada em Xapuri em 1906, mas que esteve atrelada à Maçonaria do Estado do Amazonas até o ano de 1933. Vale lembrar que a atuação na Maçonaria na imprensa acreana não se limitou ao período revolucionário, tampouco ao Departamento do Alto Acre. Estendeu-se também aos outros departamentos. Em Sena Madureira, por exemplo, em 1908, com o aval da Loja Maçônica Fraternidade e Trabalho, um periódico sob o título O Jornal veiculava as idéias do Partido Republicano do Alto Purus e os interesses dos seringalistas.
Os redatores do jornal O Acre eram afinados com os ideais de liberdade da Maçonaria. E mesmo sendo pessoas pertencentes a um grupo de ex-combatentes da Revolução Acreana, eram regidos por um sentimento de dever e fidelidade ao governo federal. Logo se colocaram publicamente em contraposição aos partidários da autonomia imediata do Acre e da criação de um Estado independente.
Dentre eles, citam-se os ex-combatentes: Capitão Justo Gonçalves da Justa , que ocupou o cargo de tabelião interino do Segundo Termo da Comarca do Alto Acre, sediada em Xapuri, e o Tenente-Coronel Francisco Conde, primeiro venerável da Maçonaria no Acre e que exerceu a função de adjunto de promotor público do Departamento do Alto Acre.
A circulação do jornal O Acre ocorreu de 24 de junho, de 1907 a 01 de outubro de 1908. E segundo estampava a edição de 16 de março, de 1913, o veículo era “completamente imparcial” e aceitava “independente de pagamento, qualquer artigo tendente aos interesses do Território do Acre, assumindo a sua redação o compromisso de publicar na integra, a realidade dos fatos, dentro dos limites da moral” (Jornal O Acre. 16 de março, de 1913, p.01).
Em sua página de abertura, trazia como slogan a frase: “Orgão dos interesses acreanos”. Na prática, contrariamente ao que indicava seu texto inicial, o jornal O Acre não reservava uma única coluna para tratar dos problemas cruciais que martirizavam os “acreanos” extratores do látex. Isolados nas matas na lida árdua de seringueiros, mateiros, comboieiros e outros trabalhos braçais que os expunham diariamente às feras e febres, solitariamente a morrerem à míngua enquanto produziam riqueza para o patrão e seus financiadores.
As condições de vida, atividades diárias e dificuldades desses “acreanos” raramente eram mencionadas em um ou outro artigo esparso. O seringueiro, quando muito, era citado como sendo “rude e laborioso... constante, a golpear a árvore de onde obtém o precioso líquido que tantas cobiças há despertado” (O Acre, 06 de Agosto, Xapuri, 06 agosto 1907, ano I, n.º 04), ou nas crônicas humorísticas em que é tratado como alguém capaz de se unir ao indesejado regatão turco para “fazer mal ao patrão”, vendendo àquele, peles de borracha por preço abaixo do custo, conforme relata o cronista Zé do Barranco, em sua coluna intitulada “Riscados” (O Acre, 11 de março, de 1913, p. 02).
A menção ao seringueiro, feita pelo cronista, se dá para a louvação pelo seu trabalho “hercúleo” no enriquecimento da nação ou para divertimento do leitor, que poderá rir da fala do homem simples que sobrevive no interior da selva e da sua maneira de lidar com a constante falta de dinheiro. Razão que o levava a realizar transações em que pagava dívidas com sernambi de caucho, em vez de sernambi de seringueira, ou empenhava a própria mulher como garantia perante o fiador, assunto de que trata uma das crônicas humorísticas do Zé do Barranco (O Acre. 20 de abril, de 1913).
O jornal O Acre não colocava em sua pauta os problemas cruciais dos extratores do látex, como a exploração da mão-de-obra, as condições desumanas de trabalho e habitação, as doenças que os afligiam, a constante exposição às feras, somados ao desamparo por parte das autoridades.
A primazia era dada aos temas históricos, à exaltação dos heróis e às datas cívicas nacionais: 07 de setembro, dia da Independência do Brasil, e 15 de novembro, dia da Proclamação da República, e outras datas que fossem significativas para a instigação do espírito patriótico que devia orientar e disciplinar o anseio dos defensores da autonomia imediata do Acre.
Em segundo plano, situam-se as datas comemorativas da história do Acre: 06 de Agosto, início da Revolução Acreana, 17 de novembro, Tratado de Petrópolis. Estas intitulam uma série de artigos redigidos quase em tom declamatório, como se tivessem sido feitos para serem lidos em alguma solenidade pública. Textos dessa natureza são freqüentemente encontrados tanto no Jornal O Acre como no Acreano, primeiro e segundo periódicos de Xapuri, respectivamente.
O Acreano, embora não tendo regularidade em suas edições, circulou por um período mais longo do que seu antecessor. E em alguns momentos, chegava a ser editado semanalmente com quatro ou seis páginas . Em outros, no entanto, mensalmente, chegando a ficar mais de um ano sem nenhuma publicação. Suas colunas eram dispostas na horizontal e na vertical, padrão aceito também por outros periódicos da mídia nacional da época.
Em sua primeira aparição, que se deu de novembro de 1907 a setembro, de 1910, o jornal Acreano esteve sob a direção do médico e ex-combatente na Revolução Acreana Joaquim da Cunha Fontenele, auxiliado pelo também ex-combatente Major Antônio da Silva Rabelo. Depois de alguns meses sem edições, o periódico voltou a circular por um curto período de tempo, outubro de 1911 a junho de 1912, do qual foram localizados apenas oito números.
O jornal Acreano apresentava-se como “genuíno representante dos habitantes da Região”. A princípio, com o subtítulo de “Orgão do Club Político 24 de Janeiro”, uma sociedade organizada em prol da autonomia imediata do Acre, formada por seringalistas, comerciantes e outros representantes das praças do Estado do Amazonas e do Pará. Posteriormente, passou a estampar o subtítulo: “Orgão do Partido Autonomista Acreano”, que se opunha aos membros do Partido Construtor Acreano, fundado pelo revolucionário Coronel Rodrigo de Carvalho, que se aliara aos que se diziam defensores da autonomia do Acre, porém, somente no momento “oportuno”.
O grupo partidário da “autonomia oportuna” era composto também por maçons, magistrados e militares da antiga Guarda Nacional. Dentre eles, figura o poeta cearense e um dos pioneiros da imprensa acreana, o Tenente-Coronel e também Juiz de Direito, Antônio Bruno Barbosa , secretário do partido e redator dos jornais Correio do Acre, fundado no ano de 1910, Alto Acre, de 1913, e do Commercio do Acre, de 1915.
O “Club Político 24 de Janeiro” era dirigido por seringalistas e ex-combatentes da Revolução Acreana: Coronel José Plácido de Castro, o líder do movimento, Simplício Costa, que atuou também como vice-presidente da Associação Comercial de Xapuri, em 1912, e o Coronel Antônio Antunes de Alencar. Este, além de ser proprietário de um vasto seringal na região de Xapuri, era também dono do jornal Acreano e prefeito interino do Departamento do Alto Acre.
A manutenção do jornal Acreano era feita com recursos provindos da venda das assinaturas, anual e semestral, e dos recursos angariados junto aos comerciantes e seringalistas, e outros membros do “Club 24 de Janeiro”, que a exemplo de Plácido de Castro e Antônio Antunes Alencar reivindicavam a emancipação do Acre. Desse modo, os assuntos veiculados nesse jornal eram a expressão das idéias e aspirações de um dos grupos que disputavam a posse e o mando na região.
Os líderes da Revolução, seringalistas e comerciantes eram freqüentemente referenciados como cidadãos beneméritos, tidos em alta consideração pelo povo do Acre. O coronel Antônio Antunes de Alencar, fundador do jornal, era tratado com distinção como sendo o “prestimoso chefe (...) amigo verdadeiro, dedicado e sempre cheio de condescendência para todos que o procuram (...) alvo de todas as simpatias, senhor de todas as afeições e árbitro de todas as vontades (Jornal Acreano. Homenagem Merecida. 31 de dezembro, de 1908. p. 01).
Após um intervalo de um ano e dois meses sem publicar nenhuma edição, o periódico reapareceu (em 1911), sob a direção dos Senhores Manoel Vasconcelos e Jaime Memória. Com o soerguimento da campanha autonomista, noticiada também na imprensa do restante do País, em especial, na do Amazonas e Pará, o periódico passou a veicular mais expressamente, a defesa da emancipação imediata do Acre, a começar pelo novo subtítulo, “Orgão do Partido Autonomista Acreano”.
A pesquisadora Marta Renata da Silva Freitas, em sua pesquisa sobre o projeto gráfico e retórico dos jornais de Xapuri (In: Assmar, 2002), afirma que o jornal Acreano, não se limitava à mera informação, assumia também posição crítica diante dos fatos, que eram narrados detalhadamente, atendendo à meta principal do jornal que era informar a população sobre os acontecimentos ocorridos em Xapuri e em outros lugares.
O jornal dispunha de agências em outras localidades, tanto dentro do Território do Acre como nos vizinhos estados do Amazonas e Pará. Essas agências tinham por finalidade difundir as informações locais a nível regional. No Pará, seu agente era o historiador e bacharel em Direito, Henrique Jorge Hurley, natural do Rio Grande do Norte que, como tantos outros intelectuais de sua época, ele migrou para a Amazônia, onde exerceu várias funções ao mesmo tempo.
Na capital do Estado do Amazonas, Manaus, o jornal Acreano era representado pelo senhor Paulo Gerechter, mencionado em nota jornalística, por ocasião de um concerto em Xapuri, como sendo também um pianista de mérito conhecido, de “finas qualidades de um perfeito virtuose” (Jornal Acreano. 03 de maio, de 1909, p.03).
No próprio periódico, consta que havia um agente também em Xapuri, o senhor J. Assumpção . Havia agentes até em lugares mais distantes, como no Rio Iaco, onde ficava o senhor José Celeste de Pontes, e no Seringal Montevidéu, nas redondezas de Xapuri, onde o comerciante Samuel Bastos era o agente responsável. Fato esse que demonstra haver pessoas letradas também nas regiões mais isoladas das sedes dos seringais, do contrário não haveria razão para colocar agentes nas brenhas.
Ainda conforme a pesquisa feita por Marta Renata, mesmo o jornal Acreano tendo primado pela notícia e não tendo reservado grande espaço para a literatura, a linguagem usada era bem construída, as notícias simples do cotidiano eram feitas, quase sempre, com um toque poético. A notícia sobre a chegada de um mandatário à cidade de Xapuri era dada em tom laudatório, com adjetivações valorativas que tinham como finalidade a exaltação das qualidades dos representantes políticos, dos comerciantes, patrocinadores dos jornais e, principalmente, dos defensores da autonomia do Acre.
Para os redatores do jornal Acreano, no texto intitulado “Tratado de Petrópolis”, as datas cívicas “devem sempre ser recordadas ao povo, para despertar-lhe o sentimento de amor, dedicação e entusiasmo pelos seus grandes homens” (Jornal Acreano. 24 de novembro, de 1907, p. 02). A ênfase às chamadas “datas gloriosas da Pátria” e aos “vultos nacionais” era uma herança da imprensa nacional dos tempos posteriores à emancipação do Brasil.
Segundo a pesquisadora Carla Siqueira , a imprensa brasileira passou a reforçar essa tendência desde o advento do primeiro aniversário da Proclamação da República, em 1890. Data a partir da qual, os jornais da época deram relevância os nomes que compõem a memória do feito patriótico. Dentre outros nomes são recorrentes as inserções de: Barão de Rio Branco, Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Campos Sales, Ruy Barbosa, Nilo Peçanha, Assis Brasil.
Os citados beneméritos são também com freqüência reverenciados nos jornais de Xapuri, especialmente nos textos comemorativos da data máxima para os republicanos que faziam questão de alardear os feitos do novo regime até mesmo no recém-conquistado Território do Acre.
No artigo “15 de novembro. Ave!”, o autor Júlio Montenegro afirma que foi somente após a implantação da república que houve a integração entre as várias regiões brasileiras e a valorização de seus produtos. Diz o escritor que “A goma elástica ... a mais larga fonte de riqueza do país, estava até então quase que escondida e esquecida ... nas, outrora, impenetráveis, longínquas e monstruosas florestas da Amazônia” (Jornal Acreano. Xapuri, 15 novembro, de 1907, p.2 e 3).
Na imprensa xapuriense, os promotores desse novo Brasil “figuram bem merecidamente na resenha dos fatos da propaganda e proclamação da república Brasileira”, conforme artigo publicado no jornal O Acreano, de 15 de novembro, de 1909, em uma explícita manifestação de concordância com o discurso em voga nos meios de comunicação da época.
Em 1910, o jornal Acreano teve sua tiragem interrompida a primeira vez, “capitulou com armas e bagagem, sem dar satisfação a seus assinantes, porque ninguém mais nele confiava”, conforme expressa uma carta satírica, com o pseudônimo feminino de “Chica Thereza Noronha” , publicada no Correio do Acre de abril, de 1911. Além da possível desconfiança dos leitores, pode-se apontar como outra causa para a derrocada do Acreano a relação de dependência econômica entre a imprensa e a empresa extrativista. Se os coronéis da borracha retirassem o patrocínio, os jornais que lhes serviam de porta-vozes saíam de circulação.
Para a “autora” da carta, o seringalista Neutel Maia, a quem ela cita textualmente: “já estava cansado de marchar na Folha”, uma referência ao jornal Folha da Empreza, da cidade de Rio Branco, sede do antigo seringal “Empreza”, de propriedade desse seringalista. E embora se trate de uma carta satírica e sem autoria reconhecida física e juridicamente, pode-se deduzir que, pelo menos, no caso de Neutel Maia, ele era, ou sentia-se, explorado por um dos dirigentes do periódico por ele patrocinado. Nas palavras de “Chica Thereza Noronha”, ele, Neutel Maia, “resolveu cortar certas despesas que já não lhe convém agüentar, o mesmo está estafado de engordar o meu parente Noronha, que é uma sanguessuga impossível”. Mesmo conhecedora da avidez de seu suposto parente, a pseudo-autora afirma que não deseja a falência daquele periódico. Segundo ela, “para não ver seu parente Nelson Noronha na vagabundagem”. O que permite conjecturar que, na ausência de quem bancasse as despesas dos jornais, os “intelectuais” da imprensa acreana ficariam no ócio.
No entanto, antes de encerrar a missiva, “Chica Thereza” reproduz versejando a informação que lhe confiara um anônimo visitante: “Certo jornal lá da Empreza,/ Morrerá por todo este ano,/ Como quebrado morreu/ O jornaleco Acreano” (Correio do Acre, 23 de abril, de 1911).
A falência do Acreano e de outros jornais da época não se deve talvez somente à falta do patrocínio direto da empresa gumífera, mas também à falta de assinaturas. Estas se eram escassas em outras partes do país, muito mais deviam ser em um lugar quase primitivo como era o Acre nos primeiros anos do século XX.
Em outra missiva, “Chica Tereza Noronha” reporta-se a outro aspecto que representava um obstáculo a mais para a difusão dos jornais e por conseqüência para a aquisição de assinaturas: a dificuldade de acesso para os que residiam fora do espaço das pequenas cidades sedes dos seringais. Ela se queixa de que no seringal São Pedro, de onde ela postava sua missiva, era “raro me vir às mãos um jornal” (Correio do Acre, 03 de fevereiro, de 1911).
À escassez de assinantes e à retirada do capital da empresa privada, os jornais foram deixando de serem porta-vozes dos comerciantes e seringalistas para tornarem-se instrumentos a serviço do poder público. Representado, no Território do Acre, por militares, nomeados pelo governo federal para as funções de mando no âmbito administrativo e jurídico: intendentes, prefeitos, delegados, juízes, promotores, e outras funções. Porém, por se incluírem no grupo dos “defensores da autonomia oportuna”, por estarem imbuídos da “famigerada” cobrança tributos e manutenção da ordem, tais servidores públicos eram considerados pelos defensores da autonomia imediata do Acre, como sendo promotores da vilania e da desordem, contra “os brasileiros do Acre” ou “acreanos” por opção.
Em matéria publicada no próprio jornal Acreano, quando veio a público sua última edição, em 1912, há outra possível razão para o fechamento desse periódico, embora o autor não faça uso do termo “fechamento”, já que apenas menciona “suspender a publicação”, usando como justificativa a truculência do comandante da Companhia Regional, que com seus com seus soldados teriam agredido brutalmente um dos seus redatores, além de ameaçarem colaboradores e outros redatores.
É necessário considerar que o período era de crise política e econômica, ocasionada pela frustração dos autonomistas em seu propósito de tornar o Acre um Estado independente e pela queda na exportação da borracha. O contexto permite inferir que o grupo mantenedor do periódico vivenciava os efeitos negativos da crise. Segundo o cronista Zé do Barranco, do jornal O Acre (27 abril, de 1913), o desânimo dos acreanos, tinha como “causa real, certa, indiscutível... a quebradeira que nos assoberba”, e não causas ambientais e climáticas, com diziam alguns, orientados pela idéias deterministas ainda vigentes.
Contudo, a própria crise fez com que novos jornais fossem fundados a fim de torná-la de conhecimento público aos que possivelmente viessem a ter interesse na problemática. Semelhante ao que acontecia nos centros movimentados do país, os embates políticos, cuja motivação e ênfase se davam nos interesses comerciais e econômicos, impulsionaram a proliferação e o desaparecimento de inúmeros periódicos em um curto período de tempo no Acre.
O grupo do jornal O Acre, apesar de ter ficado por quase quatro anos inativo, de 1909 a 1913, sem que se saibam as razões desse retiro, retornou à praça em 1913, e no mesmo ano suas edições cessaram definitivamente. Seu desaparecimento coincide com o surgimento de outro periódico, também de curta duração, o Alto Acre que circulou, semanalmente, de 1913 a 1914.
Antes, porém, de o jornal O Acre sair de circulação e de o Alto Acre ser editado, existiram em Xapuri mais dois jornais, fundados pelos defensores da autonomia acreana: o Pró Acre , criado em 1910, com a finalidade de reivindicar a autonomia imediata do Território, cuja capital deveria ser a cidade de Xapuri. E o Correio do Acre, criado pelos representantes do governo federal, que defendiam a emancipação acreana somente quando fosse conveniente para a nação.
O Correio do Acre teve circulação de 1910 a 1913 e se apresentava como “Orgam dos partidários da opportuna”, ou seja, dos defensores da autonomia do Acre no momento apropriado segundo os ditames da União. O periódico era apresentado ao público como um jornal que “está ao lado dos oprimidos e do direito”. E manifestava oposição clara aos que integravam o “orgam dos precipitados”, denominação dada pelos redatores do Correio aos partidários do Coronel Antunes Alencar, os “alencaristas”, que tinham como porta-voz, em Xapuri, o jornal Acreano, e em Rio Branco, a Folha da Empreza.
As edições do Correio do Acre eram impressas em tipografia própria e dispunham de iluminação à eletricidade, rara para a época e local, e em máquina de recente fabricação, da marca Alauzet Express, a vapor. Vale aqui observar que foi a partir da chegada de maquinários modernos ao Brasil que os parques gráficos foram renovados, não sendo mais praticados trabalhos tipográficos artesanais. A imprensa brasileira começava, então, a se pautar por uma linha de produção técnica e empresarial. No Acre, o Correio do Acre representava esse avanço, já era vivenciado nas metrópoles do sul do país.
O Correio do Acre foi dirigido inicialmente pelo advogado provisionado, Coronel Manuel Pereira Leitão Cacela, pelos maçons, Major Cícero Mota e pelo Tenente-Coronel Bruno Barbosa. Posteriormente, sua direção passou para o também maçom e Tenente-Coronel Francisco Conde, que havia sido um dos redatores do já extinto O Acre. Esses dois jornais possuíam espaços reservados para os informes da Maçonaria.
No caso do Correio do Acre, além da coluna intitulada “Columna Maçônica”, havia colunas para assuntos específicos. Em sua página de abertura, a coluna “Litteratura” veiculava transcrições de textos poéticos de autores renomados e publicações inéditas de pessoas residentes no Acre. Na “Parte Forense” eram noticiadas as decisões da justiça acreana e nacional. Na coluna “Notas e Factos” publicavam pequenas notas sobre fatos do cotidiano local das pessoas comuns. E em “Prazer no Lar”, os eventos da vida social dos mandatários e de outras pessoas consideradas importantes.
Esse jornal, que se apresentava como partidário e conservador, opunha-se à campanha pela autonomia imediata do Acre, promovida pelo “Club 24 de janeiro”, fundado por Plácido de Castro e seus simpatizantes. Na primeira página da edição de sete de setembro, de 1910, o jornal estampava o ponto de vista de seus redatores sobre a campanha autonomista iniciada pelos membros daquele clube político.
Na concepção dos redatores do Correio do Acre, a campanha da autonomia imediata deu origem à formação de “um partido sem orientação política segura, nem programa definitivo, cuja propaganda tinha a autonomia imediata para o Acre pela revolução, implantando o desrespeito à autoridade e à lei” (Jornal Correio do Acre. 07 de setembro, de 1910). Fato que, para os patriotas corporificados nos militares, gerou a repulsa contra alguns dos engajados no movimento.
A repulsa maior direcionava-se aos autonomistas, mencionados no Correio do Acre como “alencaristas”, os quais se perfilavam em torno do “grande chefe”, o seringalista e proprietário do jornal Acreano, Coronel Antônio Antunes Alencar. Antecipe-se que este foi colocado entre os suspeitos, pela família de Plácido de Castro, de participar da trama que culminou no assassinato de seu ex-companheiro de combate e líder da Revolução Acreana.
Em 1913, o Correio do Acre cessou suas atividades, que foram retomadas, quinze dias depois de seu encerramento, pelo jornal Alto Acre. A confecção deste se deu com o corpo redacional, o maquinário e nas oficinas do jornal extinto. Seu redator chefe era o maçom e Tenente-Coronel da Guarda Nacional, Antônio Bruno Barbosa, que se encontrava em Xapuri desde 1907. Bruno Barbosa, como muitos outros homens que fizeram imprensa no Acre, acumulava várias funções. Além de escritor, advogado e militar, foi o terceiro juiz nomeado da Comarca de Xapuri.
Diferente do Correio do Acre, o jornal Alto Acre não trazia em sua estampa nenhum slogan ou texto que o identificasse expressamente como um órgão partidário. Entretanto, um de seus diretores era o intendente de Xapuri, o Sr. Silvino Coelho de Souza , e seu redator chefe era Antônio Bruno Barbosa. Ambos eram membros do “Partido Constructor Acreano”, que se apresentava como legítimo representante da ordem instaurada, o que permite depreender que o Alto Acre, assim como seu antecessor, veio a público como mais um meio de comunicação atrelado ao poder governamental militarizado.
Ressalve-se que, embora seus membros estivessem sob a tutela do poder constituído, não deixaram de receber críticas de seus adversários. É o que se vê no artigo “Lendas”, publicado no jornal Acreano, sob a assinatura de alguém que se apresenta somente com o nome Clynio . O autor demonstra não depositar confiança nas propostas de um “Partido que constrói? ... Quê? A contradição? A leviandade? A tão perigosa maneira de se impôr aos fracos...”. Ele frisa que o vocábulo “construção” está estreitamente ligado a grandes feitos e não se coaduna com a construção de “Feudos na imaginação (...) Césares na vontade dos outros!” Para ele, “Antes construir... mutás do que querendo passar por... construtor de... Lendas” (Jornal Acreano. Sem data).
O autor condena os construtores de lendas, compreendidas aqui como as propostas do governo federal para os acreanos, comparando-as a algo mais nocivo do que a prática abominável do “mutá”, que resultava inevitavelmente no atrofiamento e na morte da preciosa árvore fonte de riqueza local.
A crítica, publicada no jornal Acreano, ao partido dos redatores do Alto Acre torna mais evidente que este periódico tinha sua razão de existir para a defesa dos interesses do governo central, sendo o principal deles, a permanência do Acre na condição de território federativo, mesmo contra a vontade dos acreanos. Em suas colunas, não raro, são encontradas notas de aplausos às medidas governamentais como, por exemplo, o pagamento dos altos impostos sobre a produção do Acre, a pretexto de cobrir o gasto feito pela União com a indenização paga à Bolívia.
O jornal Alto Acre criticava com veemência todos os que se manifestavam contra as medidas tributárias adotadas pela reforma. Na coluna de crônicas intituladas “Fitas”, assinada por K. Listo , o autor satirizava os seringalistas e comerciantes que se recusavam a aceitar a tributação imposta a eles, tanto pela administração local como pela federal. O colunista refere-se a esse grupo como “patriotas fiteiros”, em uma alusão aos defensores da autonomia imediata (Jornal Alto Acre. 26 de junho, de 1913).
A atitude do cronista revela seu distanciamento dos problemas geradores da insatisfação daqueles autonomistas representados por ex-combatentes, dos seringalistas e comerciantes locais. Para estes, a cobrança de impostos em quase nada contribuía para o desenvolvimento do Acre, visto que, da arrecadação feita somente uma quantia irrisória retornava para região. E mesmo assim, os recursos recebidos, não eram suficientes para atender as necessidades mais urgentes dos moradores das margens dos rios e dos seringais.
Em 1914, o Alto Acre foi extinto logo após a saída de Silvino Coelho da Intendência de Xapuri. No ano seguinte, surgiu o semanário Commercio do Acre, sob a direção de Romeu Ferreira e Rubens Taumaturgo , fundador do “jornalzinho” literário O Paladino, que circulou de 1913 a 1915. Como colaboradores, o Commercio do Acre contava com o Pe. Franklin Gondim, o Dr. Antônio Meira, bacharel em Direito e responsável pela escrituração do comércio local, Stellio Amics e o Capitão Baxir Chaul, ex-combatente do exército de Plácido de Castro. Serviam-lhe também de respaldo, a experiência dos escritores dos jornais que o antecederam, como dos maçons e militares Bruno Barbosa, Cícero Mota e outros, que tiveram atuação nos periódicos extintos Acre, Alto Acre e Correio do Acre.
No subtítulo, “Orgam Independente”, o Commercio do Acre trazia aos leitores um slogan que é reiterado na redação inicial da primeira edição: “Nosso jornal é, antes de tudo, independente, material e moralmente, de qualquer credo ou opinião, de qualquer conveniência” (11 de junho, de 1915, ano I, nº 01, p. 01). Para o corpo redacional, a postura da imprensa deve ser sempre mesma, em qualquer lugar onde a atividade se faça presente, ou seja, “uma voz que brada em nome do povo, pela justiça e pela lei”.
Na prática, no entanto, o slogan não se coadunava com a realidade, visto que, no plano econômico, ou material (usando os termos do redator), seus recursos eram provenientes do comércio, de casas aviadoras, mercearias, bares, hotéis, restaurantes e outros estabelecimentos. Dessa forma, o Commercio do Acre não poderia arvorar-se de independente, posto que no patronato da imprensa, os acordos ou o estabelecimento de regras estavam sempre incluídos. No plano político, ou “moral”, a julgar pela ênfase dada ao pagamento dos tributos aos cofres públicos, não se pode considerar válida sua argüição de órgão independente, já que se colocava como porta-voz do poder.
Em um artigo publicado, por ocasião do sétimo de aniversário da morte de Plácido de Castro , o autor do texto, Antônio Alves Filho, enaltece-o, citando-o como o “grande patriota acreano”, por haver colocado o Acre “na qualidade de um contribuinte superior para os cofres da União” (Commercio do Acre. 15 de Agosto, de 1915). Seu conceito de patriotismo tinha como referência o cumprimento rigoroso das leis instituídas, ainda que para isso, os acreanos fossem submetidos à exploração pelo governo central.
Os moldes do Commercio do Acre eram orientados pelos do Commercio do Amazonas, criado em 1904, que, por sua vez, alinhava-se ao modelo do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, fundado ainda no século XIX. Diferente de seu inspirador, que teve continuidade no decorrer do século XX, o Commercio do Acre, assim como muitos outros periódicos acreanos da época, não teve longa duração. Sua edição foi interrompida em 1918, em um período marcado pelo agravamento da primeira Crise da Borracha, que se iniciou por volta de 1912, e pela conseqüente decadência dos seringalistas e comerciantes. Marcado também pela intensificação dos conflitos em torno do movimento autonomista em todo o Território do Acre.
Não obstante as adversidades do período, o Commercio do Acre foi o jornal que teve maior permanência e número de edições na primeira vintena do século XX, somando um total de 186 edições. Um ano antes do fechamento das oficinas, a direção do periódico havia comemorado a proeza de mantê-lo em atividade ininterrupta. Nas palavras de seus redatores: “Jornal nenhum, neste Departamento, conseguiu, até hoje, publicar-se assim, por dois anos civis, sem interrupção, pelo contrário com números extraordinários” (Jornal Commercio do Acre, 11 de junho, de 1917, ano III, p. 01).
Uma das razões razão para a existência desse cenário talvez se deva ao fato de a abertura de jornais na região ter sido forjada nas relações que envolviam a disputa pela posse do Acre e pela legitimação da “causa dos brasileiros do Acre”, explicitada no movimento autonomista, tanto por parte dos que defendiam a autonomia imediata, como dos que argüiam por uma autonomia no momento oportuno para o governo federal.
Em ambos os casos, a motivação foi originada em interesses econômicos, mascarados em pretensões patrióticas, para as quais a jovem imprensa republicana tão bem se prestava. No recém-integrado Território do Acre, não havia de ser diferente, uma vez que, ao longo da história, os jornais sempre acompanharam o curso dos acontecimentos em quase todos os locais onde houvesse, ainda que escassas, as condições de instalação de serviços tipográficos.
Na imprensa acreana, não raro, encontram-se textos em que é patente a preocupação com os destinos da economia local e com a defesa da autonomia político-administrativa do Acre, conforme observam os historiadores Waldir Calixto, Josué Fernandes de Souza, José Dourado de Souza (1985).
Nos anos iniciais, as razões que movimentavam a circulação das notícias eram alheias aos interesses dos mais pobres que, embora constituíssem a maior parte da população, não opinavam sobre as questões que lhes diziam respeito. Os trabalhadores do látex, em especial, entranhados no interior da floresta, pouco ou nada sabiam sobre as decisões tomadas nas sedes dos seringais e na capital da república, mesmo quando a questão em pauta lhes era de interesse imediato e ou tornavam-se de conhecimento público, via imprensa.
Uma das questões que dizia respeito aos seringueiros era a que tratava da disputa pela supremacia sobre as terras do Acre. E nesta, a causa primeira não era o usufruto da terra como um bem de onde tiravam o mínimo sustento, mas a defesa pleiteada por grupos poderosos, pela liberdade absoluta de explorar a região, ao máximo, e extrair dela todas as riquezas até ao ponto de esvaziá-la. Esses aspectos eram sempre velados aos que se encontravam isolados nas “colocações”, sendo-lhes parcial e “disfarçadamente” revelados somente quando a soberania nacional era ameaçada.
As disputas pelas terras do Acre eram também disputas por questões de fronteiras territoriais não bem definidas pelos Tratados que antecederam ao Tratado de Petrópolis. Disputas à parte, uma motivação comum aproximava os grupos rivais: a apropriação da riqueza gerada pelo extrativismo, principalmente, o gumífero.
Não surpreende, portanto, que ao resgatar a memória da formação do Acre, através dos jornais, constatam-se posicionamentos ideológicos divergentes, e até mesmo, textos de teor ofensivo, nos embates travados por meio da escrita entre os defensores da autonomia acreana. Há, porém, que se levar em conta a existência de um caráter quase doutrinário nos jornais que a defendiam, tal como ocorria no Correio Braziliense, do maçom Hipólito da Costa, quando, no período colonial, ele se lançou na defesa da autonomia dos brasileiros.


2.0 - O PERCURSO DAS CRÔNICAS

2.1. Origens e evolução: do registro à interpretação

A pesquisa com as crônicas exige que se faça antes de qualquer análise uma retrospectiva sobre o percurso desse gênero, de suas origens historiográficas à sua evolução para a literatura e para o jornalismo, resultando no hibridismo literário, próprio às modernas crônicas destinadas às colunas dos jornais. Nestes moldes, configuram-se as crônicas jornalísticas de Xapuri, do início do século XX, nas quais não se distingue nitidamente os liames que separam o literário, do histórico, uma vez que, como um gênero híbrido, nele, mesclam-se traços dos gêneros historiográficos, criativos e jornalísticos.
Das modalidades dos gêneros jornalísticos, as crônicas de ensaio, as líricas e humorísticas são objetos de sondagem nesta pesquisa. Isso porque, principalmente, a crônica de ensaio possibilita múltiplos enfoques sobre os fatos de um dado tempo, tanto no plano da pretensa objetividade histórica, como no plano da subjetividade literária, das quais a imprensa tem feito uso, quer seja no intuito de informar, quer seja no de doutrinar.
A palavra crônica tem suas origens no grego e significa a personificação do tempo, ou “khronos”, que quer dizer “um tempo atrás”. Davi Arrigucci Júnior, no ensaio “Fragmentos sobre a crônica”, explica que o gênero “implica sempre, a noção de tempo, presente no próprio termo” e que esse vínculo de origem “faz dela uma forma do tempo e da memória, um meio de representação temporal dos eventos passados” (1987, p.51).
Filiada à noção de registro dos fatos ordenados em sucessão temporal, a crônica tende para os gêneros históricos, porém, não sendo propriamente história, é aberta às manifestações do espírito, mais próprias da escrita literária. E dessa união decorre seu hibridismo, não no sentido pejorativo, mas como reconhecimento das vicissitudes dessa forma de registro, focada no modo como o autor se relaciona com os eventos de uma época e nos sentidos que ele lhes atribui.
No entanto, a crônica, assim como a carta e o ensaio, dos quais preserva os traços narrativos e reflexivos, tem recebido o status de gênero menor, devido à indefinição de seus contornos, argumenta a crítica mais conservadora. O preconceito estético, porém, não interfere na simpatia que lhe reserva o leitor que encontra em suas poucas linhas, lazer e conhecimento. Pois, no curto espaço de uma narrativa breve, reflexiva ou humorística, condensam-se as memórias escritas de sociedades e indivíduos, de origem nobre ou comum, em tempos diversos. É na configuração da crônica que, até mesmo, os fatos miúdos do cotidiano e os atos dos seres anônimos ganham importância, é também onde os seres que jamais foram contemplados nos grandes tratados de história podem ter foro equivalente aos das camadas privilegiadas.
Alguns estudiosos ocupam-se do gênero “crônica” como uma correspondência de teor informativo, cujo repertório prioriza o fato concreto, marcado em sua sucessão temporal. Nesta concepção, a crônica se estabeleceu em Portugal durante a Idade Média, ao tempo da escrita dos nobiliários.
No trânsito para a Idade Moderna, porém, com a difusão dos ideais humanistas, os assuntos, nela tratados, já não constavam de mera descrição ou narração objetiva dos eventos. Incluíam também a reflexão e o julgamento do autor, imprimindo no documento uma dualidade que o situou entre os liames da história e da literatura. A interpretação dos fatos, as inflexões do espírito evidenciam-se mais nitidamente nas crônicas que compõem a chamada literatura dos viajantes, produzida durante a expansão marítima.
Na história da Literatura Brasileira, a crônica surge como um gênero literário híbrido, desde os registros do “achamento” da nova terra às crônicas de costumes, publicadas nos jornais da era romântica (Coutinho, 1997). O surgimento da crônica moderna corresponde à fase da fundação da imprensa nacional, no final do século XIX, e coincide com o surgimento de uma literatura também de cunho nacional.
Nessa fase inicial, os redatores e colaboradores da imprensa exerciam dupla função, eram ao mesmo tempo escritores de gêneros informativos/opinativos e de gêneros opinativos/ criativos. Na primeira condição, informavam e opinavam sobre a realidade e, na segunda, opinavam e criavam, sugerindo outras realidades.
No patamar das obras histórico-literárias, situam-se as crônicas de costume do período romântico-realista, publicadas no suplemento dominical do jornal carioca do século XIX, o Correio Mercantil . As obras filiadas ao romance folhetinesco retratam a vida de pessoas populares e da pequena-burguesia carioca do primeiro e segundo reinado. Pormenorizam os tipos humanos, os modismos, as datas festivas, os valores, as normas, institucionais ou não, e fornecem um panorama sobre os modos de vida da sociedade brasileira nos seus momentos de constituição. Retratam também as categorias profissionais, a forma de hierarquização dos grupos sociais, fazem enfim uma representação do Brasil do século XIX.
No final daquele século, a crônica já havia se consolidado como um gênero literário cultivado pelos escritores da imprensa periódica. O relato dos acontecimentos da vida coletiva ou do mundo particular do cronista ampliou seu universo. E conforme observa o estudioso do jornalismo brasileiro, José Marques de Melo, em Jornalismo e literatura: a sedução da palavra, a crônica passou do campo da história e da literatura para a esfera do jornalismo (Melo, 2002).
E como gênero que veicula e se alimenta do transitório, a crônica jornalística está sujeita à efemeridade, palavra que deriva de efêmero, de origem grega, e remete aos “efemérides”, primeiros relatos oficiais sobre os jogos olímpicos, as guerras e outros fatos da vida coletiva. Destarte, a crônica sobrevive à notícia, graças ao seu poder de transfiguração do real, sem se desprender dele. O hibridismo do gênero permite que o cronista, livre das normas do jornalismo, aborde os temas como convêm às divagações do próprio espírito, comunicando e documentando sem a pretensão de fazê-lo e sem a obrigatoriedade do método, construindo juízo de valor sem a “intenção” de doutrinar.
Na evolução da crônica, as nuances literárias são apresentadas sob a forma de comentário, ou de relato curto, sobre um episódio recortado de um tempo passado, não muito distante do tempo do relato, aproximando-se do conto pela apropriação dos elementos que o estruturam. Todavia, o evento narrado nela é quase sempre a experiência do cotidiano mais próximo ao escritor, configurando-se em uma segunda história, filtrada pela memória individual, conforme observa o historiador Jacques Le Goff (2003).
A escolha de um foro social, porém, não exclui a abordagem dos assuntos de foro íntimo, ou os fatos da lembrança particular do indivíduo. Nessa instância, encontram-se os elos entre a crônica jornalística, de tom político e ou humorístico, com a literatura de introspecção e de reflexão sobre os dilemas humanos em suas miudezas.
Nos jornais do Brasil, essa literatura teve seu status elevado, no percurso do século XIX ao XX, por Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e muitos outros escritores consagrados, por meio dos quais o gênero cronístico moderno chegou ao público. E dada a sua flexibilidade, passou das páginas dos jornais às dos livros, consagrando-se como um gênero situado entre o literário e o jornalístico. Porém, jamais perdendo seu vínculo com o tempo, uma vez que, o sentido cronológico é pertinente ao termo, segundo adverte Arrigucci (1987).
A tipologia mais própria ao jornalismo tende para um estilo pautado na leveza e concisão, na escolha de conteúdos mais objetivos do que sugestivos. Entretanto, como o cronista é um intérprete do seu tempo, essas escolhas não o impedem de subjetivar a realidade e interferir nela, reconstruindo-a ou moldando-a ao seu próprio juízo. Às vezes, em tom austero, noutras, carregado de lirismo, ou com humor reflexivo.
A crônica jornalística no Brasil, afirma Afrânio Coutinho (1999, p.23), “exerceu sensível efeito sobre o progresso e o refinamento da vida social brasileira”. Para o estudioso, a crônica mantém uma relação mais direta entre o autor e o leitor, ao contrário dos chamados gêneros narrativos maiores, como a epopéia e o romance. De modo geral, ela se presta tanto ao registro dos fatos pitorescos da vida urbana, como das cenas anedóticas e até trágicas, porém tratadas com leveza.
Pesa contra a crônica dos jornais, a constatação de que, fora do contexto em que foi publicada, ela perde no quanto pode comunicar ao leitor de outra época. Este, não raro, encontra dificuldade em estabelecer relação entre os assuntos tratados no texto e os eventos históricos, ali aludidos. Ressalve-se que, quando o nível da narração e descrição objetiva é extrapolado, a crônica alcança o estatuto da arte e permanece no tempo, atualizando-se nas múltiplas possibilidades de leitura que a linguagem literária oferece. Essa particularidade do gênero requer que no estudo das crônicas se estabeleça o elo entre os fatos observados e os evocados pelo narrador, possíveis de serem localizados no tempo. Essa medida amplia o valor da crônica como documento e instrumento revelador da identidade cultural coletiva e lugar de memória social (Le Goff, 2003).


2.2. Primeiros cronistas na Amazônia

O surgimento da crônica na Amazônia remonta ao período em que a imprensa e, por conseqüência, os jornais não existiam na região. Remete ao século XVI, ao tempo da escrita das cartas dos viajantes e de outras narrativas memoriais dos europeus no Novo Mundo, salienta a pesquisadora Neide Gondim (1994). O teor desses relatos, assim como o da Literatura de Viagem do Quinhentismo, atendia quase sempre aos objetivos dos agentes financiadores da empreitada. De modo que, seus enfoques se concentraram ora nos aspectos geográficos, paisagísticos e climáticos do local, ora nos seres que o habitavam.
Pelo que se depreende das leituras sobre os registros escritos da e na região Amazônica, a crônica foi uma forma de documentação muito usada pelos primeiros exploradores, que imprimiram nos relatos de viagens uma visão subjetiva sobre a região e seus habitantes. Uma visão que corresponde mais ao imaginário europeu medieval, do que a um espaço habitado por humanos de diferentes complexidades culturais e por outros seres vivos comuns. Os europeus trouxeram consigo as noções de um inferno povoado de animais fantásticos, ou de um paraíso edênico de rios abundantes e riquezas infinitas, onde a humanidade encontraria refrigério para seus males (Gondim, 1994).
O historiador Márcio Souza (1994) chama a atenção para as crônicas dos séculos da conquista da Amazônia. Segundo ele, a literatura desse período pode ser chamada de impressionista, por não distinguir o relatado do observado e por se construir, quase sempre, numa louvação desenfreada da natureza, descrita como exuberante e utilitária, abrindo as portas à sua exploração econômica.
As crônicas, às quais se refere Márcio Souza, distanciam-se na temática e na representação do lugar, das que servem de objeto para este estudo, ou seja, as crônicas jornalísticas de Xapuri. Nestas, a tônica recai sobre o tempo do desbravamento e da conquista do Acre. E alcança o cotidiano das sedes dos seringais acreanos, onde os homens das letras são partícipes, observadores e intérpretes das idéias de uma pequena elite “endinheirada” pela borracha, ou dos grupos militarizados imbuídos da administração pública do local.
Enquanto os cronistas brasileiros, do período da conquista do Acre, concentravam-se na reflexão dos fatos em uma ambientação verossímil ao momento e ao espaço da escrita, os cronistas estrangeiros, da conquista da Amazônia, extasiavam-se com a descrição extraordinária da paisagem, entremeando o registro dos fatos reais com os imaginários.
E foi por meio dessa memória escrita que chegou ao chamado mundo civilizado o conhecimento de havia um universo inexplorado de riquezas inesgotáveis. Fato que moveu investidores para feitos desmedidos na tentativa de alcançar também os tesouros “ocultos”, relatados nas lendas do Hombre Dorado e das amazonas . Não foram poucos os que se aventuraram em encontrar a “cidade do homem que se banhava em ouro. Nem mesmo os relatos sobre as tragédias da “caça” ao ouro impediram que inúmeras expedições fossem realizadas .
A expedição de Gonzalo Pizarro, em 1540, que singrou o Dulce Mar em 1542 e batizou o grande rio de “Amazonas”, por analogia às lendárias guerreiras gregas , não objetivava somente romper o monopólio português das especiarias, visava também encontrar o ambicionado reino do El Dorado (Souza, M, 1994). O cronista dessa empresa, frei Gaspar de Carvajal, com sua narrativa fantasiosa, influenciou muitos outros, até mesmo os expedicionários cientistas.
O pesquisador francês Charles de La Condamine, em sua “Breve Narrativa das Viagens através do Interior na América do Sul”, publicada em 1745, relatou o resultado de seus estudos como quem escreveu sob inspiração e não como o apanhado da observação direta. Sua narrativa,assim como as de outros viajantes, revela o deslumbramento do pesquisador com a natureza, fascinante e ao mesmo tempo atemorizante, frisa Mary Louise Pratt (1999).
A expressão desses sentimentos dependia do ângulo para onde devia se mover o foco do cronista, posto que, era orientado por sua formação religiosa e pelas determinações dos fomentadores da expedição . O relato podia assim tender para a intensificação dos conceitos bíblicos, sobre inferno e paraíso, ou para a exacerbação das riquezas da região.
Condamine, mesmo nos moldes das crônicas “maravilhosas” dos jesuítas, inaugurou a era das narrativas de viagens científicas na Amazônia, propagando o conhecimento sobre a geografia local, os costumes dos nativos e as doenças tropicais. A notoriedade desse cientista viajante deu-se com os estudos sobre a borracha da hevea brasiliensis, a seringueira, árvore originária da Bacia Amazônica, de onde é extraído o látex. Seu interesse pelo assunto foi despertado durante a convivência com os índios, circunstância em que pode observar que eles confeccionavam utensílios para uso doméstico com a resina extraída dessa árvore.
A notícia sobre o produto despertou o interesse da comunidade científica. E após a descoberta de sua vulcanização, pelos ingleses e americanos , a borracha passou a ser usada em escala industrial. Por meio da técnica, a goma elástica foi aperfeiçoada, multiplicando as aplicações do látex que, ainda no século XIX, se tornou um produto de largo uso comercial.
A demanda da borracha, se por um lado ofuscou a busca pela lendária cidade de ouro, por outro, ocasionou a chamada corrida pelo “ouro negro” da Amazônia, produto impulsionador do desenvolvimento tecnológico mundial e um dos sustentáculos da economia brasileira até as duas primeiras décadas do século XX.


2.3. Os viajantes no Acre

A descoberta do látex como nova fonte de riqueza fez surgir também uma nova expectativa de enriquecimento rápido e ampliação capitalista para os muitos aventureiros e investidores atentos às novidades noticiadas pelos viajantes. E como ocorreu a propagação da notícia sobre o El Dorado, ocorreu também a propagação da notícia das “árvores que choravam leite”. Brasileiros e estrangeiros, por meio de cartas e jornais colocaram a região no topo das notícias, resultando em uma corrida rumo às áreas mais produtivas do látex.
Em decorrência disso, antes que o século XIX chegasse ao final, no Acre, ou Áquiri , as terras antes habitadas por indígenas e onde se concentravam os mais produtivos seringais da Amazônia, já estavam povoadas pelos muitos grupos de aventureiros e investidores, cujo maior interesse focava para a indústria gumífera.
Nessa nova leva de viajantes, diferente do que se deu em outras partes da Amazônia, os aventureiros não vinham somente do Velho Mundo, nem em busca das “drogas do sertão”, ou da “cidade de ouro”. Vinham em busca de outro tipo de El Dorado: das abundantes árvores que “choravam leite” nos vastos seringais a Oeste da Amazônia.
Entre os migrantes, o número de brasileiros oriundos dos sertões nordestinos, em maioria do Ceará, era significativo. Para escaparem da fome, eles vislumbravam um chão novo, onde fossem compensados das agruras das secas e do modelo excludente recém implantado no Brasil, à revelia do ideal de “Igualdade”, um dos lemas apregoado pela imprensa liberal que propagandeou a República.
O modelo excludente validou, na prática, o “despatriamento” dos mais pobres e dos remanescentes da monarquia. Enfim de todos os que se tornaram incômodos à “república dos bacharéis” , ou “república da bucha ou dos maçons”, isso porque grande parte desses bacharéis e outros idealizadores do regime eram militares e ou maçons. Estes, devido à cisão que se deu entre a Maçonaria e a Igreja, passaram a ser repudiados pelos católicos mais conservadores, os quais se mantiveram fiéis ao regime obsoleto. Desse modo, os católicos não simpatizantes da “república dos bacharéis” aumentaram o rol dos desprestigiados pelo novo regime.
Os nordestinos, católicos por tradição, e outros excluídos da possibilidade de emprego nas fábricas ou nas lavouras do Sul do país, seguiram em busca da atividade extrativista, que movimentava o mercado internacional, em demanda por matéria-prima para o desenvolvimento dos novos processos tecnológicos em curso, principalmente para indústria automobilística.
No conjunto dos recém-chegados ao Acre, encontravam-se também pessoas vindas de nações em conflitos, como os sírios e libaneses, expurgados do domínio turco. Estes migrantes fizeram do Acre sua pátria por adoção, como também o fizeram os chamados “brasileiros do Acre”, os quais se encontravam em busca de um novo solo pátrio que lhes garantisse, se não o enriquecimento, ao menos, os meios de sobrevivência. Por essas e muitas outras razões, em pouco tempo, a terra recém-descoberta tornou-se a nova “terra da promissão” para muitos brasileiros e estrangeiros das mais diversas origens: espanhóis, portugueses, alemães, sírios, libaneses e judeus, de diferentes lugares.
O maior número desses migrantes, em especial, daqueles que executavam as tarefas mais pesadas, era de pessoas com pouca ou nenhuma instrução escolar, fáceis de serem manejadas por umas poucas “cabeças” habilidosas para a dominação e para o mando, porém todas, unidas por uma única finalidade: ganhar muito dinheiro e usufruir dele em outros lugares. Alguns exerciam o mando pelo quanto detinham em poder aquisitivo, outros ganhavam destaque e o respeito dos mandatários, tornando-se seus aliados, pelo quanto significavam em sua qualificação profissional ou simplesmente por representarem o saber escolarizado.
Os considerados intelectuais disseminavam-se nos vários outros grupos que gozavam de alguma forma de prestígio e acomodavam-se conforme os interesses que os moviam para a região. Somente em raríssimos casos, eles se incluíam no grupo dos extratores do látex, e de outros trabalhadores braçais .
Os migrantes, os “despatriados”, brasileiros e estrangeiros, fizeram das “tierras non descubiertas” bolivianas sua nova pátria, ainda que apenas temporariamente. É consenso entre os historiadores que os novos habitantes do Acre não tinham planos de se estabelecerem na região. Apesar de ter caráter transitório, a ocupação do Acre logo se constituiu em contendas entre os “brasileiros do Acre” e os bolivianos (Rancy, 1986). Estes últimos, embora fossem proprietários de direito, não haviam tomado posse da região que, pelos tratados hispano-portugueses , pertenciam à América espanhola. Entretanto, a Bolívia não dispunha de recursos para empreender a exploração e o assentamento nas terras acreanas, consideradas de difícil acesso e, por isso, eram até então consideradas como “terras não descobertas”.
A corrida pela borracha fez com que banqueiros e outros grupos poderosos, tão logo tomassem conhecimento das ricas e não exploradas terras bolivianas, empreendessem esforços para arregimentar braços com vistas à apropriação da região. Fato gerador de contendas acirradas, levadas a termo somente depois da Revolução Acreana, quando as terras, conquistadas pelos soldados-seringueiros de Plácido de Castro, foram compradas, via negociações diplomáticas, e incorporadas ao Brasil como território federativo, para o desagrado dos mandatários da borracha que pleiteavam a criação de um Estado autônomo.
A reivindicação dos autonomistas, segundo Francisco Pereira Costa (2005), centrava-se em dois aspectos fundamentais: econômico e político. O primeiro era respaldado no potencial que o Acre tinha de se auto-sustentar. Pelas cifras anuais, o Território contribuía para a nação com uma receita maior do que a de dezesseis Estados do Brasil juntos e apresentava elementos financeiros capazes de garantir seu desenvolvimento em um curto período de tempo.
O segundo argumento da luta pela autonomia era fundamentado na necessidade de uma base política de sustentação que fosse escolhida pelo povo. A inexistência dessa base caracterizava-se em uma exclusão no cenário nacional, que resultava do fato de os habitantes do Território do Acre não poderem usufruir dos direitos políticos amplos comuns aos habitantes dos Estados federativos (Costa, F., 2005).
Essas questões foram o “carro-chefe” da produção jornalística do Acre nas décadas iniciais de sua formação, mas dos embates travados nos jornais locais, o que teve mais duração e repercussão, tanto no âmbito local e regional, como no nacional, foi o que se deu em favor da autonomia acreana. Para seus defensores, libertar o Acre da administração direta do governo federal significava também livrar os acreanos da espoliação sobre o produto extrativista. Isso faria com que a tributação arrecadada retornasse em investimentos para o local. Além do que, na condição de Estado, o Acre elegeria seus representantes locais e teria voz no congresso nacional.


2.4. A crônica jornalística do Acre boliviano

A crônica, em sua hibridez, presta-se à escrita da memória individual e à escrita que se configura em uma forma de preservação da memória social, filtrada pelo tempo presente, ainda que sua matéria-prima se situe no passado e dele elabore o conteúdo histórico, transformado pela subjetividade do escritor. Não sendo mera casualidade a extrapolação do campo da história pelo cronista que, ao interpretar a memória coletiva, emite juízo de valor, comunicando ao mundo a sua mundividência, embora intencionando atender apenas as exigências circunstanciais de registrar os fatos.
A primeira crônica publicada em solo acreano data do período revolucionário, compreendido entre 1901 e 1904, e encontra-se em língua espanhola. Esse documento foi editado no jornal El Acre, veículo oficial de difusão das propostas bolivianas para com as terras do acre, litigadas por brasileiros e estrangeiros após a descoberta das múltiplas utilidades da borracha nativa.
A crônica do El Acre se enquadra entre aquelas em que se busca resgatar aspectos da memória histórica da formação do Acre, no período em que se deram as disputas que resultaram na incorporação do Acre ao Brasil. Como um registro dos momentos que antecederam à Revolução, essa crônica ajuda a compor o cenário da época. E a entender as razões que levaram os homens da imprensa a montar uma tipografia no meio da floresta, em um ambiente onde a maioria das pessoas não sabia ler e tampouco se esperava encontrá-las afeitas à leitura de jornais. Portanto, carece de uma leitura também dos fatos que motivaram a criação do periódico El Acre naquele ambiente rústico.
A história registra que a partir do último qüinqüênio do século XIX, o Congresso Nacional Boliviano passou a organizar sua administração com vistas “a ocupar seus territórios coloniais”. Após a insurreição, a qual culminou na expulsão do jornalista espanhol Luiz Galvez, do seu pretenso império sediado em Porto Acre (ou Puerto Allonso, como queriam os bolivianos), Dom Lino Romero, Delegado Nacional no Acre, instalou no ano de 1900 uma mesa coletora de renda na outrora “terra de Galvez”, Porto Acre.
De seu posto aduaneiro, às margens do rio Acre, a delegação boliviana ditava ordens aos habitantes do Acre e controlava toda a circulação de mercadorias, com o aval do governo brasileiro. Este, além de dar trânsito livre às navegações bolivianas nos rios da Amazônia e a instalação de aduaneiras em suas margens, eximiu-se de agir em prol dos muitos brasileiros que desbravavam a região à quase meio século.
Os altos impostos cobrados sobre a borracha revoltaram os seringalistas que se sentiram lesados, pois a tributação especificada pela Bolívia era muito acima dos valores cobrados pelo Brasil através do Estado do Pará, que também tinha interesse nas terras do Acre. Como se não bastasse o chamado imposto de capitação, sobre a importação de mercadorias, a Bolívia também cobrava imposto sobre a exportação de borracha, e caso não fossem pagos em espécie, os brasileiros eram obrigados a prestar dois dias de serviço público àquela nação, conforme registra João Craveiro Costa (1973).
A tirania sobre os “brasileiros do Acre” fez com que os seringalistas passassem a planejar um movimento de reação ao domínio boliviano. A suspeita de mais uma “insubordinação” fez com que a Bolívia enviasse tropas para o Acre, a fim de garantir sua soberania no local. Ao mesmo tempo em que a delegação boliviana dava demonstração de que reprimiria com violência qualquer ato de hostilidade, por parte dos brasileiros, ela demonstrava que precisava da adesão dos estrangeiros residentes nos povoados. Embora estes, a exemplo dos falantes de língua árabe, dedicavam-se mais às atividades comerciais do que ao trabalho extrativista.
Era também necessária a adesão dos não residentes no Acre, mas que tivessem interesse na “Questão”. Bem como era preciso encontrar um meio de sensibilizar os intelectuais da imprensa, e até mesmo angariar a simpatia de possíveis aliados brasileiros, principalmente, de Belém e Manaus, onde os jornais noticiavam os fatos com assiduidade e, não raro, com simpatia ao domínio boliviano.
A criação de um periódico oficial da delegação que veiculasse para o público alvo a “Questão do Acre” sob a ótica boliviana, e não somente sob a ótica dos “brasileiros do Acre”, era mais que oportuna: era um instrumento em defesa da soberania nacional daquele país. Nesse contexto, em 1901, foram instaladas na aduana de Porto Acre as oficinas do jornal El Acre, com a finalidade de fazer chegar aos chefes da “insubordinação” acreana e aos interessados na “Questão do Acre” as deliberações da Bolívia sobre a região, na forma mais apropriada aos interesses daquele país.
O texto em discussão está localizado na terceira página, na coluna intitulada também de “Crônica”. E abaixo do título da coluna encontra-se a indicação do órgão que o jornal representa: a “Aduana Nacional Del Aquiry”. Antes mesmo de se iniciar o texto, localizam-se os anúncios sobre as últimas cotações da borracha no mercado, que variava de conforme a qualificação de cada produto .
Depois desse anúncio comercial, são informados ao leitor o nome do local e a data em que o texto foi escrito: “08 de outubro de 1901”. Em seguida, o cronista situa o espaço geográfico onde o jornal está instalado: no posto aduaneiro de Puerto Allonso (Porto Acre). Somente após as saudações e dos primeiros informes é feito o registro da data de edição do jornal: “20 de outubro de 1901”, indicando que os assuntos ali registrados referem-se a fatos ocorridos nas semanas, ou meses, que antecederam a publicação daquele periódico.
As saudações são seqüenciadas pela apresentação do programa político do governo boliviano, em consonância com sua finalidade do veículo. Sobre as intenções da Bolívia para com os acreanos, o cronista esclarece que:
Nuestra programa sencillo y patriótico, queda explicarlo en el prospecto – Servir unica y exclusivamente los bien entendidos intereses de la región acreana, hacerla conocer en el interior y exterior de la República: à la vez que familiarizar à los moradores del Acre¸ con nuestras costumbres nacionales; demostrarles la bondad de nuestras leyes é instituciones; y en una palabra: “bolivianizar el Acre” (Jornal El Acre. 20 de outubro de 1901, ano I).

O cronista se dá a conhecer ao leitor na primeira pessoa do plural, em um “nós” que não admite a manifestação da liberdade criadora, tampouco a reflexão particular sobre os fatos que registra por cumprimento do dever profissional. Nessa atitude subserviente ele prioriza os interesses políticos de sua nação, a Bolívia, sobre o território acreano. Área que, pelos marcos definidos no Tratado de Ayacucho, de 1867, pertencia àquele país, embora, jamais havia lhes pertencido de fato.
Esse escritor, consciente do distanciamento entre os habitantes e os donos, de direito, do Acre, propõe torná-los conhecidos uns aos outros, mas, preferencialmente, familiarizando os acreanos com os costumes da Bolívia. Essa referência explícita ao desconhecimento da soberania que aquele país deveria ter exercido sobre a região em litígio, demonstra que a Bolívia ainda não havia se dado a conhecer como proprietária legal do Acre. Muito embora aquela possessão já se estivesse habitada por milhares de brasileiros e estrangeiros desde o século XIX. Portanto, faz sentido se anunciar para os inquilinos e tentar convencê-los do seu “pátrio poder”.
Observa-se que há uma tentativa de coibir a reação dos revoltosos contra a ação boliviana, encarada como abusiva pelos “brasileiros do Acre”. Entretanto, a linguagem do cronista dá outra entonação ao texto, no sentido de “apaziguar” os ânimos dos exaltados. Afinado com a ideologia da conquista, que deveria ser disseminada a serviço de sua pátria, ele usa de palavras sedutoras nas promessas aos moradores do lugar, ou seja, “servir exclusivamente aos interesses da região acreana”, demonstrando-lhes a bondades de suas leis e instituições.
No jornal El Acre, o espaço destinado à crônica corresponde ao de uma seção informativa em que são publicados, semanalmente, os registros dos eventos diários, como: a movimentação fluvial, trazendo produtos de primeira necessidade, remédios e outros congêneres, bem como os membros da delegação boliviana, militares, médicos e outros servidores para prestar serviço na alfândega de Porto Acre.
Os feitos do governo boliviano no Acre são colocados em evidência, pelo escritor, como a construção de casas e outros imóveis, descritos sempre como sendo de primeira qualidade, a fim de acomodar os membros da delegação naquele espaço que, para o cronista, era considerado como um lugar aprazível para se viver:
Desde la llegada del Batallon 3º de Linea (…) se han aumentado más de 12 edificios bien construidos y llenos de la mayor comodidad, el aire que se respira és puro, por gran desmonte que en pocos días han verificado los soldados de esta guarnición, con el entusiasmo que se nota de dia en dia l .

Os fatos, considerados de maior importância são demarcados temporalmente e descritos com precisão: dia, mês, ano, local; com quem, para que e para quem. Observa-se, pela preocupação com o registro cronológico dos fatos, que o sentido atribuído à palavra “crônica”, no jornal El Acre, correspondia ao que era dado pelos cronistas régios, para os quais a datação em ordem seqüencial dos acontecimentos era de fundamental importância. Naquele tipo de registro, assim como na crônica desse jornal, o relato é “matéria memorável” que se presta à representação de uma época, é por isso um “lugar de memória” atravessado pelos fatos do cotidiano, onde se inscrevem o individual e o coletivo (Nora e Le Goff, 1993).
Outro aspecto que chama atenção, na crônica do El Acre, é a listagem da delegação boliviana, cujos membros são identificados de acordo com a função que cada uma deles exercia no contexto da disputa pelas terras do Acre. O cronista apresenta-os, nominalmente, sob a justificativa de que o público deve tomar conhecimento dos componentes do poder no exercício de suas funções constituídas, nas esferas militar e civil:
Delegado Nacional Teniente Coronel Manuel Canseco,
Secretario Doctor José M. Aponte.
Id. Tesorero don César Rivera.
Cirujano y Farmacéutico Julio Villanueva.
Auxiliar Néstor Leaño.
Intendente Teniente Coronel H. Ibanez.
Comisario Mayor don Claudio
(…)
1º Jefe del Batallon 3 de Línea Teniente Coronel H. Ibanez.
2º Id. Comandante Casimiro Miranda. (El Acre. 20 de outubro de 1901, ano I, n.º 01).

A listagem dos nomes é uma das muitas formas de preservação da memória sustentada na escrita, como um recurso que permite o registro da informação e sua transmissão através do tempo. Os fatos citados são dispostos obedecendo à cronologia dos acontecimentos, tal como era a finalidade de gênero nos seus primórdios: registrar os fatos e suas circunstâncias ordenando-os cronologicamente. Essa forma de marcação em muito se aproxima dos tratados de onomástica dos povos asiáticos, fundados na idéia de que, segundo Le Goff (2003), nomear é conhecer e registrar é um meio de permanência e continuidade na história.
A escolha e a ordenação dos assuntos, bem como o tratamento que lhes é dado pelo cronista, em muito se aproxima dos Annali Maximi , de Roma, no início da era cristã, onde os cronistas relatavam por escrito os feitos mais relevantes do ano. E dos Acta Diurna Populi Urbana , espécie de mural popular, afixados nos lugares públicos, que forneciam informações sobre assuntos de interesse do povo: nomeações, divórcios, vitórias na guerra. E outros fatos do cotidiano: vendas e locações, perda de objetos, jogos e espetáculos.
A memória coletiva, no texto em foco, sobrepõe-se à memória individual, uma vez que as experiências cotidianas não se referem ao sujeito da escrita, que se mantém no anonimato, mas aos outros agentes da comunidade boliviana instalada no Acre.
O jornalista comporta-se como alguém que não está autorizado a manifestar suas idéias, tampouco conduzir sua lente para os focos de seu interesse particular. Direciona o foco de sua atenção para ângulos previamente escolhidos a fim de dar visibilidade aos feitos e às intenções das forças dominantes, neste caso, o governo boliviano no Acre. Por conseguinte, não pode ater-se às miudezas do cotidiano das pessoas comuns, as quais, sequer, são mencionadas.
O jornal El Acre, cumprindo de sua missão de veículo oficial, disseminava a plataforma política da Bolívia, tornando-a ser reconhecida como soberana sobre aquela gente sem pátria. Entretanto, passada a fase das apresentações polidas, o jornal passou a publicar ameaças aos acreanos, por meio de um decreto de Dom Lino Romero, que “marcava o prazo improrrogável de seis meses, a contar de 1º de maio [de 1902], para o registro dos processos de medição e demarcação dos seringais. Quem o deixasse de fazer, findo aquele prazo, perderia os direitos de proprietários” (Costa, J., 1973, p. 58).
Esse fato motivou os seringalistas a reagir contra o governo boliviano. Pois se nenhuma medida fosse tomada, os brasileiros ficariam sem o direito de permanecer na terra, que seria devolvida à Bolívia para as negociações que lhe conviesse fazer com outros locatários, menos com os que haviam ocupado a área até então. Embora muitos seringais já estivessem demarcados e em processo de legitimação da posse pela expedição de títulos fornecidos pelo governo do Estado do Amazonas, Estado ao qual o Acre era geralmente citado como se fosse pertencente a ele. Entretanto, pelas normas recém-implantadas, haveria perda total dos investimentos feitos pelos desbravadores do Acre.


2.5. Xapuri no contexto revolucionário e do movimento autonomista

A cidade de Xapuri , situada na confluência dos rios Xapuri e Acre, teve importância relevante na história da formação do Acre, como sede dos melhores e mais produtivos seringais nativos da região. Ela serviu de cenário para as primeiras reuniões estratégicas nos levantes pela anexação do Acre ao Brasil, quer sob o domínio boliviano, que vigorou até a Revolução Acreana de 1902, quer sob o domínio brasileiro, depois de cessada a questão com a Bolívia.
Nesse contexto, além da importância nos planos econômico e cultural, Xapuri tem significação política, tanto para a anexação do Acre ao Brasil, como para a consolidação do movimento autonomista. Tal manifestação da vontade do povo teve sua expressão maior na eclosão dos sentimentos de insatisfação, dos seringalistas e comerciantes do Vale do Acre, com a administração autoritária e espoliadora do governo federal no Território.
O espírito de insatisfação, somado ao de inquietação, levou os mandatários dos Vales do Acre a reagiram à administração imposta pela União e a buscarem alternativas para superarem as crises, política e econômica, que se instauraram após a anexação do Acre ao Brasil e ao fim do monopólio brasileiro da borracha.
Os eventos que antecedem e os que sucedem a essa fase são representados nas crônicas de Xapuri do período histórico delimitado neste trabalho, ou seja, as duas primeiras décadas do século XX, contempladas nos jornais da cidade. Além desses eventos, as crônicas tratam também de fatos ocorridos no passado, durante os primeiros anos do desbravamento do Acre, ainda no século XIX. São, portanto, crônicas que resgatam, não somente a memória de Xapuri, mas também a memória da exploração e da conquista do Acre.
A cidade entrou para a história do Acre, não somente como um pólo econômico e cultural, também por ter sido a cidade onde teve início a Revolução Acreana. Os jornais comemoram com orgulho o fato de que naquele pequeno lugar “foram presas as primeiras autoridades bolivianas”, documenta o jornal O Acre de 06 de agosto, de 1907.
Xapuri era uma espécie de “cidade livre”, conforme salienta Leandro Tocantins (1979, vol., II). Isso porque, além da inexpressiva presença militar boliviana, no local, seus moradores mantiveram-se indiferentes à república de Galvez, preferindo acatar as decisões do governo brasileiro. Não obstante essa aparente indiferença, os fundadores de Xapuri já se encontravam empenhados na causa por um “Acre brasileiro” desde a primeira rebelião dos seringalistas no Acre, em 1899, quando se posicionaram contra a entrada de estrangeiros nos assuntos relativos à região em disputa.
Naquela ocasião, os seringalistas se organizaram em um bloco denominado “Comissão Garantidora dos direitos Brasileiros” contra as medidas impostas pelo espanhol Luíz Galvez Rodrigues de Arias, que havia se proclamado imperador do Estado Independente do Acre, sob o patrocínio do Estado do Amazonas e do Pará. O movimento de oposição ao governo de Galvez foi reprimido com a prisão dos membros dessa Comissão.
No período revolucionário, que vai de 1900, data da publicação do “Manifesto dos Chefes da Revolução Acreana ao venerando Presidente da República Brasileira, ao povo brasileiro e às praças do comércio de Manaus e do Pará”, a 1904, quando se deu a anexação do Acre ao Brasil, os mandatários xapurienses também já se faziam presentes, organizando-se contra o jugo da Bolívia e de seus aliados.
A delegação boliviana, ao perceber a ação dos brasileiros em seus territórios, passou a criar estratégias “aliciadoras” de brasileiros. Algumas delas, além da fundação do jornal El Acre, incluíam a criação de um conselho municipal, com membros escolhidos através de eleição, a descriminação de lotes de terras para brasileiros e a mudança do nome da cidade Xapuri para Mariscal Sucre.
Tais estratégias estavam em desenvolvimento quando, por meio dos jornais de Manaus, os seringalistas mais influentes do Alto Acre, Vitorino Maia, Antônio Antunes Alencar, Dr. Francisco Teixeira de Magalhães Filho e Antônio Gonzaga da Igreja , tomaram conhecimento de que o Acre seria arrendado a empresários ingleses e norte-americanos, mediante o Bolivian Syndicate. Por iniciativa do seringalista Antônio Antunes Alencar, o Conselho Municipal foi extinto, em julho de 1902, dando início a mais uma ação contrária ao domínio estrangeiro pelos representantes brasileiros do Alto Acre.
Apoiados pelo então governador do Estado do Amazonas, Silvério Néri, a quem também interessava o domínio sobre a região, os seringalistas e seus seringueiros receberam treinamento militar do Coronel José Plácido de Castro , para lutarem pela posse do Acre. E na madrugada de 06 de agosto, de 1902, Xapuri entrou para a história como a cidade onde teve início a Revolução Acreana . E foi eleita capital do Acre Meridional até 1903, ano em que, pela terceira vez, o Acre foi proclamado Estado Independente pelos mandatários do Alto Acre, os quais aclamaram Plácido de Castro chefe supremo das forças revolucionárias, cujas bases militares foram estabelecidas em Xapuri.
Dessa feita, a proclamação da independência do Acre tinha o aval do então presidente da República, Rodrigues Alves, e do Ministro do Exterior, Barão do Rio Branco. Ambos, por coincidência ou não, eram maçons, assim como muitos outros nomes de ilustres que participaram e deram suas contribuições para a formação do Acre.
Após sair da condição de capital do Acre Meridional, com a organização administrativa do Território pelo Decreto nº 5.188 de abril, de 1904, que dividiu o Acre em departamentos (Alto Acre, Alto Purus, Alto Juruá), Xapuri voltou à condição de povoado até 22 de agosto do mesmo ano. Data em que foi elevada à condição de vila, pelo prefeito do departamento do Alto Acre, Coronel Rafael Augusto da Cunha Matos, e teve como primeiro intendente, nomeado pelo governo federal, o coronel Gentil Noberto . Este havia sido ajudante de campo de Plácido de Castro na Revolução, mas acabou por se aliar às forças do exército brasileiro.
A instalação municipal se deu em 07 de março, de 1913 e teve por intendente, também por nomeação, o Sr. Silvino Coelho de Souza , fundador do jornal Alto Acre, veículo oficial dos interesses da Intendência e que foi extinto tão logo seu fundador saiu da posição de mando. Mas as primeiras eleições municipais aconteceram somente depois da unificação do Território, na intendência do seringalista José Soares. Em 1921, foram eleitos setes vogais para representar o povo xapuriense.
A formação do povo de Xapuri é bastante heterogênea: brasileiros, turcos, sírios e libaneses , portugueses, italianos, alemães e japoneses. Entre esses migrantes, os brasileiros figuram em primeiro lugar. Em segundo, os sírios e libaneses. Denominados quase sempre de “turcos”. E diferentes da maioria dos brasileiros, eles não se concentravam na extração do látex, e sim na atividade de comércio, regateando pelos rios em pequenas embarcações. Devido à facilidade com que seus pequenos barcos avançavam pelos rios, mesmo nos períodos de estiagem, os regatões serviam de elo permanente entre os habitantes das densas florestas e a civilização.
Não obstante sua importância, o comércio que praticavam era proibido pelos seringalistas, por ser concorrente com o das casas aviadoras. Já para os seringueiros, que se sentiam explorados pelos patrões, os “turcos” representavam uma alternativa na aquisição de bens de consumo em troca da borracha. Além disso, eles integravam o pequeno rol dos que conheciam o saber letrado na região. Dado que se verifica, neste estudo, nos registros escritos, assinados ou aludidos a autores de origem ou falantes de língua árabe, habitantes ou passageiros em Xapuri.


3.0. MEMÓRIAS DO ACRE NAS CRÔNICAS DE XAPURI

3.1. Do fato ao relato dos autores ocultos

O passado e o presente se comunicam e permutam-se em contribuições para o estabelecimento de culturas fortes, em que a memória e a identidade convergem para garantir a continuidade dessas culturas no tempo. Os fatos sociais, ao mesmo tempo em que representam a formação cultural, étnica e a consciência de cada membro, representam também a memória da coletividade porque nela se realizam e interligam as memórias particulares.
Dada a multiplicidade de enfoques e a extensão que este trabalho teria, caso fossem exploradas todas as categorias narrativas da crônica, é que se dá prioridade aos personagens, na sua relação com o espaço e com seus contemporâneos. Dado que, como advoga Antônio Cândido, em A personagem de ficção (1998), é o personagem quem conduz o leitor, fazendo-o “mergulhar” nos fatos e acompanhando-o nas incursões às demais estruturas ficcionais.
Segundo esse autor, a ficção é o lugar onde é possível se defrontar com seres humanos em ampla medida transparentes, vivendo ou não situações exemplares, integrados ou em confronto com valores morais, éticos, religiosos e políticos da sociedade à qual pertencem. É também na ficção, ainda segundo Antônio Cândido, o lugar em que o ser vivo encontra-se harmonizado ao ser fictício. E por pertenceram a um passado, os personagens adquirem mais força realizadora do que se estivessem no presente (Cândido, 1998).
Nas crônicas xapurienses, os fatos evocados e recriados centram-se na descoberta e na conquista da “nova terra”, suas potencialidades econômicas e belezas paisagísticas, no contexto da Revolução Acreana e do primeiro ciclo da borracha nos seus momentos principais: auge e declínio econômicos. Nelas, os fatos históricos e os imaginários imbricam-se ao ponto de não se dissociar e os seres da inventividade do autor dos seres que, de fato, compuseram o universo real.
Essas crônicas, além de serem textos de forte sentido crítico, revelam a existência de vínculos entre o escritor e os eventos que ele narra. Não raro, com boa dose de humor sobre os mandatários do Acre, aos quais ele poupa da exposição direta ao público, como também protege a si mesmo de retaliações, por meio de alusões e da criação de tipos literários, recorrente na figura do grotesco “coronel-de-barranco”.
Até mesmo nas crônicas líricas, não passa despercebido ao leitor a estreita relação entre o escritor, os fatos e os seres do tempo da escrita. Talvez, deva-se a esse forte apelo crítico, o uso freqüente de pseudônimos pelos escritores, com exceção dos textos de autoria do escritor paraense Farias Gama , que assina com nome próprio a coluna de crônicas e artigos “Acreanadas”, de 1916.
Em maioria, as crônicas chegavam ao público assinadas por um autor que se ocultava sob pseudônimo. Recurso, quase sempre, relacionado à postura de discordância ou concordância dos autores com os agentes da defesa de um Acre que devia ser mantido como Território, subordinado ao governo central, ou com os agentes da defesa de um Acre emancipado, o mais rápido possível. Exemplo disso encontra-se nos pseudônimos do tipo: Zé do Barranco, da série de crônicas, publicadas na coluna intitulada “Riscados”; Zé Ferino, da coluna “Palestras”, e Zelinha (sugestivo de Zé Linha ou Zé da Linha), com as crônicas da coluna “Cinema”.
O autor que assinou com o pseudônimo Zé do Barranco indica em seus textos, por meio do detalhamento do cenário e de fatos pitorescos do lugar, que ele residiu em Xapuri. Cita as ruas, o Teatro Variedade, as picuinhas entre seringalistas, seringueiros e autoridades locais, além de chamar atenção para fatos comuns da época em todo o Acre, como, por exemplo, a falta de mulheres e de crianças, a pouca circulação de dinheiro em espécie, o uso exacerbado de promissórias nas negociações e o comércio paralelo praticado pelos regatões turcos em concorrência com os seringalistas.
O Pseudônimo, Zé do Barranco, alude a alguém que vive nos barrancos, na encosta dos rios a observar o que se passa em volta. E é bom lembrar que, na Amazônia, originariamente, as populações se estabeleciam às margens dos rios, por serem os meios de acesso mais viáveis a outras localidades. O cronista que assinava com esse pseudônimo, possivelmente, era mais um dos tantos habitantes para os quais os barrancos eram seus pontos de chegada, permanência e saída do lugar.
Um escritor contemporâneo do Zé do Barranco é o que se assina com o pseudônimo Zé Ferino. Nome composto pelo adjetivo ferino, que qualifica quem é feroz ou quem ofende, embora a ofensa deste “Zé” se dê de forma indireta, pois ele jamais se enuncia como autor das anedotas que conta, nas quais sempre alude ao Acre. Já o pseudônimo Zelinha, ou Zé Linha, pode estar relacionado à atividade de escrita, bem própria ao labor do cronista/jornalista.
Há ainda, K. Listo, pseudônimo que pode ser sugestivo de “cá listo”, podendo significar, de acordo com a crítica que o autor faz dos mandatários locais, que o cronista estava atento aos fatos da vida política, “cá” em Xapuri, listando os possíveis desmandos ou atos impróprios aos representantes do lugar.
No jornal Commercio do Acre, há o pseudônimo Chico Xisto, da coluna “Bagatelas”, de 1915 a 1917, que aponta para uma autoria de alguém que residia em Xapuri, assim como os demais citados até aqui, neste trabalho. Chico Xisto, além da menção aos fatos no espaço local, escreveu também sonetos, em que faz gracejos com o tipo físico dos colegas de imprensa. Neles, o autor brinca com a magreza do engenheiro agrônomo Aquiles Peret ; com a altura do Major Cícero Mota e com a gordura do Juiz Bruno Barbosa. Na coluna “Bagatelas”, porém, nem todos os textos se configuram no gênero cronístico, porque alguns são pequenos informes sobre os assuntos da semana.
Chico Xisto e Farias Gama, além de usarem um veículo de informação comum aos dois (o jornal Commercio do Acre), situam-se em um mesmo período histórico, ou seja, 1916 e 1917, e tratam dos problemas referentes à época da escrita: as conseqüências da crise da borracha, a falência dos barracões, a escassez de mercadorias no comércio local, o endividamento dos seringalistas e o descaso do governo federal que, segundo esses cronistas, só se voltava para o Acre para dele extrair as gordas somas dos impostos. Outro aspecto que merece atenção é o fato de que, embora o contexto fosse desanimador, esses autores sabem tirar bom proveito da situação, elaboram suas crônicas com lirismo e, às vezes, com humor.
Vale aqui fazer um lembrete: apesar da investigação minuciosa nos acervos históricos do Acre, em busca de desvelar os verdadeiros nomes ocultos nos pseudônimos, pouco êxito foi alcançado. A não ser a abertura de possibilidades para conjecturas, uma vez que se pode inferir, pela semelhança de estilos entre os vários pseudônimos, que uma única pessoa publicava, simultaneamente, no mesmo jornal com nomes diferentes.
Os primeiros cronistas podem ter usado de vários nomes fictícios diferentes, como possivelmente o tenham feito também os demais escritores. Zé do Barranco e Zé Ferino (do jornal O Acre) podem ser nomes inventados por algum intelectual que, apesar de promover o riso, caricaturizando os mandatários do Acre, eram simpáticos à causa defendida por estes. Zelinha (do Correio do Acre) e K. Listo (do Alto Acre), podem ser criações de um ou de vários militares a serviço da Intendência. Todavia, qualquer afirmação, que se pretenda fazer sobre a autoria desses e de outros pseudônimos, não passará de especulação, ficando, por isso, válida como autoria dos textos os nomes fictícios adotados pelos escritores.
Sobre esse aspecto, é bom lembrar que o uso do pseudônimo era uma prática recorrente entre os escritores brasileiros do final do século XIX e início do século XX. Machado de Assis, por exemplo, ao tratar de assuntos polêmicos, assinava seus textos sob vários pseudônimos, entre outros, citam-se: Dr. Semana, Souza Barrados e Malvólio.
Havia também casos em que vários escritores usavam o mesmo pseudônimo para publicarem textos em estilos literários que estivessem em orientação oposta às tendências da época. Para efeito de exemplificação, com a ascensão da escola realista e dos modismos literários que a seguiram, como o naturalismo e o parnasianismo, alguns escritores, juntos, passaram a adotar um nome em comum para suas produções de matriz romântica, ou de outra qualquer.
Ilustrativo disso é o caso do pseudônimo Victor Leal, que foi atribuído, pelos biógrafos e estudiosos da literatura, aos escritores contemporâneos do realismo: o romancista naturalista Aluísio Azevedo, o contista e dramaturgo Coelho Neto, e o poeta parnasiano Olavo Bilac, os quais se protegiam de possíveis críticas às suas produções “fora de época” por trás de um nome inventado.
Não foram poucos os escritores que se valeram do pseudônimo também como recurso para garantir a expressão do pensamento e exercitar a escrita dos chamados gêneros menores, como a sátira, a literatura de cunho erótico e até mesmo a crônica. Ademais, era preciso escapar às possíveis retaliações do poder político e às críticas de uma parte do público mais conservador. Há também que se considerar que, no início do século XX, o número de profissionais da imprensa era bastante reduzido e por isso, como forma de diversificar as colunas, os escritores/jornalistas diversificavam as autorias por meio do pseudônimo.
No caso de Xapuri, verificou-se que o maior uso de pseudônimo se deu nos primeiros jornais, de 1907 a 1913, anos em que os escritores escreviam sobre a memória do desbravamento e ao mesmo tempo construíam uma memória para o futuro sobre os problemas políticos e administrativos do Acre federal. Nas duas situações, os cronistas são intérpretes da realidade, porém, sob a ótica do poder. Portanto, a escrita deles reflete mais as idéias dos grandes grupos dominantes, dos quais eles eram integrantes, ou meros porta-vozes, do que mesmo a expressão de suas convicções pessoais.
As crônicas memorialistas evocam fatos da primeira etapa formativa do Acre, a chamada fase heróica. Fase em que, segundo a maioria dos cronistas, dominaram a região os rudes e destemidos desbravadores, nominados somente por “coronéis”, os quais foram os esteios dos movimentos revolucionários pela conquista e posse da terra, que se deram na segunda metade do século XIX e alcançaram o primeiro decênio do século XX.
Os fatos dessa época, e um pouco anterior a ela, compõem as crônicas de Xapuri, ora como eventos testemunhados pelos narradores, ora como evocações do passado, que servem de matéria para as crônicas do Zé do Barranco (da coluna “Riscados”), e do Zé Ferino (da coluna “Palestras”), do jornal O Acre. Nelas, os cronistas dão um tratamento dual aos fatos representados: entre o histórico e o humorístico.
Esses dois autores também tematizaram os fatos que se situaram na segunda fase formativa do Acre, marcada pela crise do extrativismo gumífero, que se intensificou com o fim do monopólio da borracha. Zé do Barranco dá conta da insatisfação declarada dos seringalistas e comerciantes, quanto ao estado de coisas vigente. Da instabilidade provocada não só pela crise da borracha e falência dos coronéis, como também dos problemas em torno da segunda e da terceira reforma do Território que permanecia sob o mando de militares nomeados pelo governo federal.
O segundo cronista, Zé Ferino, diferindo um pouco de Zé do Barranco, volta-se para assuntos mais gerais e que dizem respeito a outras partes do Brasil e do mundo. Exemplo disso são os avanços na aviação que se encontrava em fase de desenvolvimento; as ações da polícia para conter o jogo do bicho nos Estados do Pará, Ceará e Rio de Janeiro, e a problematização, freqüente na imprensa, sobre as atribuições de um jornalista, bem própria àqueles tempos em que a imprensa brasileira passava por um processo de modernização e adequação aos moldes internacionais.
Na fase da crise da borracha, têm-se também as crônicas dos jornais Correio do Acre, constituído, em maioria, por militares e maçons, e as crônicas do jornal Alto Acre, periódico que defendia os interesses da Intendência. Deste último, têm-se as crônicas da coluna “Fitas”, de K. Listo, em que os fatos do cotidiano e da vida política são também tratados com toque de humor.
O autor enfatiza os problemas da administração municipal, entremeando-os aos pequenos fatos da vida social da pequena elite das margens dos seringais: a participação delas em eventos culturais como na organização de peças teatrais e nas festividades religiosas. O foco principal dessa série diz respeito aos que se intitulavam autonomistas, mas que se esquivavam de pagar os impostos municipais.
Já as crônicas da série “Cinema”, de Zelinha , de 1912 a 1913, do jornal Correio do Acre, diferem um pouco das demais, pela forte carga subjetiva das impressões do escritor, na sua relação com o ambiente social da cidade de Xapuri. Essas crônicas, a que se pode chamar de líricas, ambientam-se nos bailes da Casa Branca, nas quermesses do mês de maio em uma igreja construída de improviso na praça municipal, nas festividades da entrada da primavera, organizadas pelas famílias mais influentes do local.
Na escrita de Zelinha, observa-se também sua percepção do ambiente natural, das noites de verão que ele considera mornas, no céu “diluído na névoa” onde “o luar espiritualizava toda paisagem, dando às árvores o aspecto de fantasma”. Também não passa despercebida ao cronista a visão da confluência dos dois rios, Acre e Xapuri que margeiam a cidade e que, segundo ele são: “águas irmãs que tiveram a mesma origem e no mesmo destino, envolvidas, como oferenda consoladora da natureza a esta região” (Jornal Correio do Acre, 25 de outubro, de 1912). Além das impressões elencadas, suas crônicas revelam um acentuado grau de romantismo bucólico e poético, denotando, assim, a sensibilidade e um estado de espírito do autor que, em última análise, poderia ser traduzido numa palavra: poesia.
Em contraponto, os cronistas que surgem a partir de 1915, são mais engajados com a causa dos acreanos e com a vida dos munícipes. Em sua produção escrita, a ênfase recai nos eventos contemporâneos à sua produção escrita, principalmente nas crônicas que tratam dos problemas referentes à administração dos departamentos, ao mau uso da verba federal pelos administradores e aos atos abusivos dos que deveriam zelar pela ordem pública e garantir os direitos dos indivíduos.
Esses escritores, ao darem primazia aos fatos do tempo da escrita, constroem uma memória sobre o lugar para as gerações futuras, memória essa que é marcada pelo olhar de um cronista partícipe e crítico de sua época.


3.2. As primeiras crônicas

As crônicas de Xapuri em muito diferem das crônicas dos primeiros viajantes na Amazônia. A começar pelo seu suporte material, os jornais, que as tornavam, e ainda as tornam, objetos de apreciação para todos quantos tivessem e que ainda possam ter acesso elas. São, portanto, de caráter público, escritas por pessoas que se dispunham a colaborar com os periódicos locais, ou por aquelas que com gosto para as letras, fosse dado espaço na imprensa para suas opiniões e reflexões sobre os fatos da época. Desse modo, casualmente, construíram uma escrita que se configura como um lugar de memória do tempo formativo do Acre Território.
As crônicas dos viajantes eram, quase sempre, escritas pelo documentador oficial das expedições exploratórias e tinham por finalidade dar informações precisas sobre os episódios da viagem e as descobertas da empresa. Essas narrativas têm como traço caracterizador a descrição, enquanto as crônicas em estudo, embora também retratem o ambiente, são mais opinativas do que descritivas. E, longe de terem por finalidade o mero relato informativo, são a expressão e a reflexão sobre os fatos da época que representam.
Quanto ao modelo, essas crônicas não destoam do modelo usado pela grande imprensa no início do século XX, quando foi especificado um espaço para cada modalidade de texto nos jornais. Embora, no caso da crônica, seu gênero não tenha especificação definida nem pelo seu grau de informação, nem pela sua literariedade, conforme observa Welliton Pereira (2004), mas por suas possibilidades de múltiplas leituras e de adaptabilidade às circunstâncias e ao seu suporte material.
As crônicas jornalísticas xapurienses, do primeiro e segundo decênio de 1900, têm como marcas principais da memória coletiva acreana: a tematização dos eventos que ocorreram durante a fase da exploração e conquista do Acre, a luta para torná-lo um Estado autônomo sob o domínio brasileiro, e as questões em torno desse assunto, como: a sensação de “despatriamento” dos mandatários “brasileiros do Acre” que se sentiram traídos e injustiçados pelo governo federal após a anexação do Acre ao Brasil.
A crônica-ensaio e a crônica-lírica são, portanto, as tipologias que se adequam melhor à proposta deste trabalho quanto à perspectiva de abordagem do texto. Na primeira tipologia, o autor faz comentários sobre os fatos da vida social e política, ou de algum episódio histórico, que ainda mereça a atenção do leitor, ou para o qual o leitor deve ser convidado a prestar atenção. Não, porém, sem imprimir em seu registro algo que o descaracterize como uma produção meramente jornalística ou acadêmica. O modo como o cronista constrói seu relato do fato, do qual ele pode ter participado, ou não, é o que dará à crônica-ensaio um cunho argumentativo, reflexivo e, às vezes, humorístico.
Dentre os textos mais subjetivos, tem-se a crônica-lírica, cuja carga sentimental, no trato das questões cotidianas e linguagem mais elaborada, em muito se aproxima da prosa poética. Nelas, o autor expressa sua sensibilidade para com o mundo em volta, o ambiente natural ou as paisagens urbanizadas. Sua sentimentalidade aflora às pequenas sutilezas quase imperceptíveis à maioria das pessoas, como na tonalidade do céu, um perfume que se exaure, ou um som indefinido.
Em relação aos temas mais importantes, nas crônicas de Xapuri, destacam-se: a conquista do Acre, a traição do governo brasileiro para com os ideais dos defensores da autonomia imediata do Acre e o repúdio ao modelo que anexou o Acre ao Brasil. Estes são os temas que marcam a memória acreana, principalmente nas narrativas dos jornais mantidos pelos autonomistas e pelos comerciantes locais, a exemplo dos periódicos: O Acre, Acreano, Correio do Acre e Commercio do Acre. Nessas crônicas, são recorrentes as críticas e a insatisfação dos autonomistas, remanescentes da Revolução Acreana, para com a forma autoritária como o governo brasileiro procedeu para por termo à “Questão do Acre”.
A condição de território federal, imposta pela República, deixou o Acre desprovido de “preceito e regulamentação constitucional, pois não era o Acre Estado nem Província, era uma propriedade da União, portanto sem autonomia nenhuma”, observa Francisco Pereira Costa (2005, p. 92-93). O estudioso argumenta que essa condição era incompatível com o que defendia a primeira Constituição republicana que garantia o princípio da autonomia às províncias transformadas em Estado.
O governo brasileiro, além dessa ação arbitrária, considerando também que não havia fundamento na Constituição brasileira para a criação de territórios sob a tutela da União, não reconheceu as patentes da tropa acreana e enviou tropas federais para a região. A força federal chegou ao Acre, comandada pelo General Olímpio da Silveira. Militar reconhecido em todo o território nacional pela devassa que fez em Canudos a mando da República, sob a alegação de que seus moradores, liderados pelo guia espiritual, Antônio Conselheiro, eram monarquistas, não se sujeitavam ao novo regime e representavam, portanto, perigo à ordem vigente.
A presença desse general e de seus comandados devia impetrar temor aos revolucionários e a outros que ousassem contrariar as decisões do governo federal. Este, representado pelos militares, como se não bastasse ter-se apoderado de armas, munição e víveres da tropa de Plácido de Castro, mandou prender os combatentes e arrancar-lhes os distintivos, conforme documentado por João Craveiro Costa, no histórico documento que elaborou sobre A conquista do deserto ocidental (1973).
O fato, somado à tributação sobre a borracha, que era acima das taxas cobradas sobre outros produtos nos estados federativos, aumentou o sentimento de traição e revolta dos revolucionários. E motivou a organização de um grupo formado por seringalistas, comerciantes, médicos, farmacêuticos e agrimensores, dentre outros, para continuarem a defesa dos propósitos da Revolução. Propósitos esses que são trazidos à memória dos acreanos nas crônicas comemorativas sobre o episódio da conquista do Acre pela força armada. Para exemplificar, serão citadas algumas crônicas e cartas do primeiro periódico que circulou em Xapuri, o jornal O Acre.
Na edição do dia 06 de agosto, de 1907, data em que a cidade de Xapuri completava cinco anos que havia sido tomada de assalto pela tropa de Plácido de Castro, a data é relembrada como “Dia imorredouro”, em que o Acre se transformou “em palco de lutas sanguinolentas, onde acreanos e bolivianos dia a dia iam se gladiar“ (Jornal O Acre, 06 de agosto, de 1907, ano I, nº 04).
Em meio às palavras de louvor à data heróica e a seus agentes, o autor traz à memória o fato de já terem se passado cinco anos, desde o início da “vitoriosa Revolução Acreana” e que, apesar de “centenas de cadáveres insepultos”, metáfora da dívida que o Acre ficou a dever para a União, somente se via “uma, e outra cruz, solitária, à beira de um caminho, como recordando ao viandante o esquecimento, o abandono, depois do sacrifício até a morte”.
Percebe-se em suas palavras que, ao seu senso patriótico, interpõe-se um sentimento magoado, porém, esperançoso de que um dia os revolucionários viessem a ter o reconhecimento da nação pelas vidas sacrificadas, já que para o autor do texto, “o fim era dignificente”.
E apesar do pouco caso das autoridades brasileiras para com o episódio do Acre, o cronista devota louvores à Xapuri, porque, segundo ele, naquela cidade, “foram presas as primeiras autoridades bolivianas”. O tom laudatório, no entanto, começa a declinar quando ele traz à tona a decepção dos chefes revolucionários que viram seus projetos desmoronarem sob o domínio do governo brasileiro:
o pacto formado pelos chefes desse patriótico levantamento, depois de seu início, recebeu o batismo de sangue em a Volta da Empreza, uma idéia única, grandiosa, dominava a todos os combatentes que nesta cruenta luta se empenharam: - ‘Verem que a rúbida estrela do pavilhão revolucionário se transfigurasse mais tarde, banhada que foi pelo sangue de tantos brasileiros, em uma mais clara, branca, despojada por completo de sua veste de guerra e que entrasse a fazer parte da constelação que orna o Pendão Nacional’.
Ë essa idéia por todo país aplaudida, e essa esperança que alimentavam, num engano d’alma, os acreanos (...) ruiu por um simples sopro ao simples mal entendido do governo do país onde nascemos. (Jornal O Acre. Seis de agosto. 06 de agosto de 1907, ano I, n° 04).

O autor também se refere às expectativas frustradas dos revolucionários que, após expulsarem as autoridades bolivianas e vencerem suas tropas, não viram o Acre ser incorporado ao Brasil como um Estado Federativo, e sim como território subordinado à administração direta da União. Situação que foi mantida, mesmo contra a vontade dos acreanos, de 1904 a 1962, quando a borracha já não rendia mais lucros aos cofres da nação.
O sentimento de traição dos revolucionários é tema da crônica “Primeiro Lustro”, publicada também no jornal O Acre, de 1907, ao mesmo tempo em que veio a público o texto comentado anteriormente. Nela, são citados os nomes dos chefes da Revolução: “Plácido de Castro e José Galdino de Assis Marinho e outros”, que, conforme explicita o narrador, depuseram as autoridades bolivianas que exerciam jurisdição em Xapuri, tendo sido dado assim “o primeiro passo para a reivindicação deste pedaço da Pátria, que por deliberação de um Governo mal orientado havia entregue à nação vizinha para ser comprado mais tarde”.
A frustração demonstrada na crônica intitulada “Seis de Agosto” torna-se bem mais evidente na crônica “Primeiro lustro” que, pelo título, parece se tratar de um texto escrito por ocasião das comemorações do primeiro aniversário da Revolução Acreana, mas que foi levado ao conhecimento do público leitor somente em 1907, época em que a cidade de Xapuri já dispunha de um jornal.
Os fatos evocados pelo cronista parecem situar-se em um tempo mais recente ao da escrita e, talvez, por isso, o sentimento de mágoa pela traição da pátria brasileira, a que se referem como madrasta é bem mais evidente. Para o cronista, os revolucionários foram traídos por obedecerem às ordens do governo federal, pois:
ao prepararem a queima do último cartucho, acodem ao chamado da Mãe Pátria, como o filho traquinas, que pressuroso e obediente corre ao chamado carinhoso, indo atirar-se nos braços da mãe-madrasta, em cujas saias de barras enlameadas oculta o látego aviltante e repulsivo, para castigar aos filhos-enteados, satisfazendo com sarcástico riso vingança ignóbil, contra inocentes, culpados unicamente por guardarem respeito e obediência àquela que consideram mãe legítima. (...) A Pátria, como uma madrasta inexorável, só requer desta região o suor honroso do seu povo, gota a gota, sem procurar saber que esse suor é vertido na luta pela vida, removendo obstáculos, abrindo caminhos e afrontando intempéries, sem dar-lhe uma compensação sequer (Jornal O Acre. Primeiro Lustro, 06 de agosto de 1907, ano I, n° 04).

A queixa dos revolucionários vai além da mágoa pelo não atendimento da criação do Estado do Acre. Estende-se também aos desdobramentos negativos para o território, em decorrência da cobrança exorbitante de impostos que não retornavam em investimento para os acreanos, mesmo pagando os mais altos tributos cobrados no país, atingindo o valor de 37,5% da produção local.
No jornal Acreano, instrumento dos autonomistas do “Club Político 24 de Janeiro”, na crônica “Tratado de Petrópolis”, o escritor, ao lembrar a data comemorativa em que o Acre foi incorporado ao Brasil, parece mais atender uma exigência da época do que homenagear seus benfeitores: o Barão do Rio Branco e Assis Brasil, diplomatas que intermediaram os acordos entre Brasil e Bolívia. O autor da crônica, protegido pelo anonimato, sutilmente ironiza o feito:
As vantagens que esse acordo veio trazer aos dois países, conquanto já estejam produzindo ótimos frutos, só mais tarde poderão ser devidamente apreciadas e então, embora à coroa de louros de Rio Branco não seja possível acrescentar mais florões, ver-se-á, contudo, que o hábil Diplomata foi também um profundo e previdente financeiro.
E nós do Acre, nós que ao grande chanceler tanto devemos já e mais deveremos ainda, não deixaremos nunca de enviar-lhe nesse dia memorável a mais entusiástica saudação. (Jornal Acreano. 24 de novembro de 1907, p.02)

A menção ao Barão do Rio Branco como “um profundo e previdente financeiro” é uma alusão aos gastos que o governo brasileiro alegou ter feito para “comprar” o Acre da Bolívia . Gasto que resultou no endividamento dos acreanos para com a União, no valor de dois milhões de libras esterlinas mais os gastos com a construção da estrada madeira-mamoré. Sob a justificativa de compensar tais despesas, o Acre devia ficar submetido ao seu credor, no caso, à União, até quitar o débito contraído nas negociações mediadas pelo Barão do Rio Branco.
No entanto, segundo os historiadores, mesmo quando o Território do Acre já havia retornado aos cofres federais mais do que o dobro da alegada dívida, não pôde fazer usufruir da almejada emancipação, antes que o mercado internacional tivesse perdido o interesse pela matéria prima da região, a borracha, o que relegou o Acre ao esquecimento também por parte do governo brasileiro.
Em uma “Carta Aberta”, publicada no jornal O Acre, ainda em 1907, o autor que se apresenta sob o pseudônimo “Um e Um” e endereça a missiva ao Major Leôncio Moreira, combatente na Revolução Acreana, atribui a exploração sobre os acreanos à “ambição dos grandes, à ira surda dos despeitados”. E com o mesmo sentimento de traição e mágoa dos autores de outros textos já citados neste trabalho, ele lamenta que os revolucionários, entre os quais ele se inclui, sejam tratados como “pequeninas criaturas neste mundo de grandes, teremos que abater de fome, de frio, sem o direito sequer de nos cobrir com a bandeira da terra, onde vimos o alvorecer de nossos primeiros dias” (Jornal O Acre. 18 de agosto, de 1907. p. 01. n.º 05).
Outra razão para queixa, era devido ao fato de que, na condição de Território, o Acre não tinha representantes no Congresso e não podia eleger seus líderes locais, que eram nomeados pelo governo federal. O Acre não dispunha, portanto, das prerrogativas conferidas pela primeira Constituição republicana, de 1891, aos Estados federativos. Sua administração, além de alheia aos interesses dos autonomistas era de:
uma provisoriedade que tende a se perpetuar, uma organização babilônica, onde ninguém se entende: - cada um dá á lei acreana uma interpretação a seu bel-prazer; (e ela a tudo é modelável) as autoridades se revezam de dia para dia, desmanchando o que outras fizeram; e os prefeitos, que são as autoridades superiores, com atribuições restritas, faltos de elementos necessários à execução de suas idéias, vem, cada vez mais, estreitar-se o círculo de ferro, que por força da lei os prende e manieta (Jornal O Acre. Primeiro lustro. 06 de agosto de 1907, ano I, nº 04).

O autor de “Primeiro Lustro” lembra que, no Acre, todos os eventos eram provisórios e muito curtos, a contar do breve período em que os acreanos desfrutaram de um governo autônomo. E que o acreano é um “cidadão - sem direitos civis nem políticos – não goza das regalias que lhe são asseguradas no Pacto Fundamental da Nação a que pertence, a própria liberdade é um mito, pois nem o direito de habeas-corpus é dado aos Acreanos!”, ou seja, não lhe era assegurado o direito de locomoção: o de ir e vir, ficar ou permanecer livremente em qualquer parte do território, fosse por causa da distância que separava o Acre das capitais onde se situavam os Tribunais de Justiça, fosse porque no Território cada mandatário fazia cumprir suas próprias leis, em descumprimento da Carta Magna.
Um agravante desse problema devia-se ao fato de que, na organização judiciária do Acre, a sede da comarca e o Tribunal de Apelação situavam-se na cidade de Manaus, tornando bastante dificultoso o acesso ao Poder Judiciário, até mesmo para as pessoas de maior poder aquisitivo.
Não obstante as reformas realizadas no Acre, que colocaram à disposição dos habitantes um melhor aparato judiciário, os jornais demonstram que o clima de insatisfação com as decisões tomadas sempre a partir das determinações do governo federal, estendia-se para outras décadas. Um dos redatores do jornal Commercio do Acre, de 1916, possivelmente seu diretor, o Juiz de Direito Bruno Barbosa, chama a atenção para aspectos falhos no judiciário do Acre. Segundo ele, a administração da justiça no Acre, pelos idos de 1916, prestava-se a:
servir a interesses particulares e até personalíssimos, como na última reforma, deste ano, pela qual os dois tribunais que tínhamos, ficaram reduzidos a um só, para pôr-se em disponibilidade juízes moços em plena saúde, com ótimos vencimentos, e que vão ser parasitas da nação (...) E que, depois de manter, criminosamente, à sua disposição, por muitos meses, vadiando no Rio de Janeiro, dois desembargadores do Tribunal de Sena Madureira, a pretexto de ajudarem a fazer um decreto que está cheio de heresias gramaticais e jurídicas, conservando-se o Tribunal fechado, com enorme prejuízo nosso (Jornal Commercio do Acre. Dois Anos. Xapuri, 11 de junho, de 1917, ano III. nº 106, p.01).

Além da redução no número de tribunais acreanos, o redator se refere a privilégios concedidos a certos magistrados nomeados pela União, os quais se ausentavam da jurisdição por meses, deixando a população sem a devida assistência jurídica.
Não somente as crônicas, como de modo geral, toda imprensa xapuriense, serviram de espaço para contendas entre magistrados e advogados, os quais faziam dos periódicos o meio de expor publicamente seus posicionamentos nas delongas judiciais. Exemplo disso foi a contenda que envolveu os juízes de direito da Comarca do Alto Acre, João Paulo de Almeida Couto e Osvaldo Marques Pinto. Contra este último, o advogado Lourenço Moreira Lima fez representação junto ao Tribunal de Apelação, no ano de 1912.
Os jornais eram também suporte a campanhas contra ou a favor de determinados grupos, até mesmo, do judiciário. A contenda citada ocupou espaço também em outros periódicos, em que se observam os argumentos de defesa e de acusação entre os envolvidos: o magistrado Antônio Bruno Barbosa e o Coronel Manoel Leitão Cacela. O primeiro era redator, e o segundo, dono do jornal Correio do Acre, ambos moveram campanha por meio desse veículo contra as falcatruas praticadas por Osvaldo Marques Pinto, que envolviam o roubo de espólio de órfãos e de uma viúva.
Era também por meio dos periódicos que chegavam ao conhecimento da sociedade os reclames daqueles que não comungavam com o estado de caos vivenciado no Acre, no qual o coronelismo da borracha determinava o modo de organização social a que deviam se submeter os seres ali sediados: escritores, os homens da escrituração comercial e, até mesmo, as autoridades constituídas, exceto os prefeitos e os grandes coronéis da borracha, que figuravam quase como senhores absolutos na região.
As questões prioritárias do Território do Acre mantiveram-se em evidência em quase todas as matérias jornalísticas durante as duas primeiras décadas do século XX. Questões que iam do âmbito comercial à inexistência de atendimento médico e hospitalar. A assistência na área da saúde devia-se à presença de alguns poucos profissionais que se encontravam na região temporariamente. Alguns, a mando do governo, outros movidos pela curiosidade de conhecer as excentricidades da selva, ou em uma situação especial, tal qual se deu com a médica Ana Turan que, juntamente com seu marido, o cirurgião-dentista Emílio Falcão, residiu e prestou seus primeiros serviços em Xapuri.
Os colunistas dão conta da precariedade no ensino. As poucas escolas que existiam no território situavam-se nas margens dos rios, na sede dos seringais. Isso fazia com que os habitantes das brenhas fossem excluídos do saber letrado, logo da vida política, pelo não direito de voto, uma vez que, conforme a legislação eleitoral da época, somente podia votar quem, ao menos, soubesse assinar o próprio nome.
A dificuldade de comunicação entre os departamentos, agravada pelos precários meios de transporte que tornavam, cada vez mais, demoradas as cartas e as notícias vindas de outras localidades, fazia com que aumentasse o isolamento e os problemas resultantes dele para a população. Além desses problemas, persistia a espoliação do governo federal por meio de uma tributação excessiva sobre a borracha. É desse emaranhado de entraves para o progresso do Acre que se alimentavam os jornais, não somente de Xapuri, como das demais localidades do Acre.
Não sem prejuízo para os demais assuntos, o tema recorrente nos jornais, mantidos pelos coronéis da borracha, ou pela Intendência, reportava-se sempre ao movimento autonomista, gerador das contendas entre os mandatários dos departamentos. Posto que, contrariamente à posição dos seringalistas e comerciantes do Vale do Acre, os autonomistas do Vale do Juruá, por exemplo, concordavam com a permanência da arrecadação de tributos sobre a região pelo governo federal (Costa, F. 2005 p. 294).
De modo geral, os jornais espelhavam as divergências pessoais e políticas entre os membros dos muitos partidos que iam se formando em torno da causa que cada grupo dizia defender. O jornal Acreano, de 04 de novembro, de 1908, no artigo “Porque o Acre não Progride”, traduz esse quadro nos seguintes termos:
Aqui não há unidade de vistas, reina apenas o egoísmo pessoal e das menores questões faz-se uma trica política, senão vejamos: Qualquer indivíduo que aporta no Acre julgando-nos imbecis, entende ter o direito de envolver-se nas questões do povo acreano e em pouco tempo arvora-se a chefe; se o fizesse em benefício do Departamento vá, pois precisamos da legião dos que trabalham para o progresso do Acre, e do seu aumento (Jornal Acreano. 04 de novembro de 1908, p.01).

Para o autor do texto, a causa de tanta contenda e divisões de grupos tem uma única motivação para os arrivistas: tirar proveito da situação, tendo em vista a “ingenuidade” do povo acreano que, segundo o autor, “em tudo acredita”, não se dando conta de que ao “anularem as velhas amizades”, os aventureiros ganhavam espaço para agirem e se locupletarem de seus planos: ou seja, retirarem-se do Acre “com as algibeiras cheias... Esta união tão preciosa e almejada, não lhes convém. Para poderem enriquecer é necessário que haja desunião e provocam-na”. Vale, portanto, lembrar que a imprensa local atendia aos interesses desses grupos e que assim como eles se dissipavam, os veículos que representavam suas idéias e vontades também se dissipavam tão logo a causa pleiteada fosse resolvida ou posta fora de questão (Calisto; Souza, J. F; Souza, J. D, 1985).


3.3. Reminiscências do desbravamento

As crônicas jornalísticas de Xapuri evocam o Acre antigo, como documentos que extrapolam os limites da história objetiva, para alcançarem minudências sobre a memória do desbravamento do Acre, representadas em uma narrativa em que se mesclam a história e a imaginação. Para o historiador Jacques Le Goff (2003), há uma segunda história nesse tipo de memória social que é reconstituída pela propriedade da memória individual, a partir de um conjunto de funções psíquicas que atualizam impressões e informações do passado. Estas adquirem importância quando evocam aspectos da memória histórica em que se situa o sujeito que lembra como partícipe ou expectador e o sujeito desejoso do fato lembrado.
Nesta parte do trabalho, o foco dá-se sobre as crônicas de temática histórica e em tom humorístico. Com ênfase nos escritos do Zé de Barranco (coluna “Riscados”), e de Zé Ferino (coluna “Palestras”), do ano de 1913, mas que remetem à “epopéia” da descoberta e da conquista do Acre em meados do século XIX, bem antes de a Bolívia ter-se interessado em ocupar a região.
Os primitivos desbravadores do Acre, os “aventureiros da borracha”, são transpostos para a narrativa como categorias estéticas do discurso ficcional. E na condição de personagens fictícios são recriados do trabalho da memória, “observação e imaginação, sob a égide das concepções intelectuais e morais do seu criador” (Cândido, 1998, p.53-80).
Na construção dos personagens, o ficcionista pode ter como referência seres reais, com quem vivenciou alguma experiência, mas, ao recriá-los, os traços que os ligam diretamente à realidade objetiva são transfigurados de forma que nem sempre é possível fazer o reconhecimento das pessoas em que o artista se inspirou.
No caso dos rústicos e primitivos personagens de Zé do Barranco, desbravadores do Acre, que se tornaram os coronéis da borracha, eles são construídos de forma verossímil e coerentes ao ambiente natural ainda não “podado” pela chamada civilização. E, com essa natureza bruta, eles têm traços de identidade, como se pode inferir na leitura da crônica publicada em 30 de março, de 1913. O cronista inicia sua narrativa informando ao leitor que:
Os primeiros habitantes do Acre eram homens de uma coragem e energia admiráveis. Contando com exíguos elementos de vitória, atiravam-se aos rios inexplorados, à frente de um pugilo de homens que conseguiam assoldadar, e muitas vezes, em companhia de dois ou três camaradas, assentando as suas tendas nos lugares que à primeira vista, lhes ofereciam maior abundância de seringa.
Levantada a barraca, começavam a exploração da mata, a cata do leite ambicionado, por ali permanecendo, num meio completamente hostil, desde as febres que os perseguiam constantemente, até aos ataques dos índios, que eles iam afastando a tiros de rifles.
Outros vinham depois, engrossando as fileiras dos primeiros e preenchendo os claros que se faziam assustadoramente, avançado por sua vez as cabeceiras.
E assim, dentro de pouco mais de um quarto de século, o Acre e seus tributários estavam conquistados (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913, p.02).

O narrador, que também é uma categoria estética, elabora quadros recortados de uma possível realidade, que, se não foi testemunhada por ele, foi relatada por alguém que pertenceu à época da lida árdua dos desbravadores do Acre na luta quase hercúlea contra a natureza, de onde eles vislumbravam o enriquecimento rápido. Esses senhores quase sobre-humanos, mesmo expostos às doenças tropicais e aos possíveis ataques dos nativos, conseguiram vencer os obstáculos de um espaço inóspito aos recém-chegados e apropriar-se das vastas fontes de riqueza da região.
No entanto, ao se confrontar o perfil dos exploradores do Acre, construído pelo cronista, como sendo de homens destemidos, mas truculentos, com a descrição dos primeiros mandatários do Acre, feita pelo jornalista João Craveiro Costa , em A conquista do deserto ocidental, observa-se haver dualidade entre eles. Pois, se para o cronista, os desbravadores, embora fossem homens de bravura, representavam a brutalidade e a exploração. Já para o jornalista Craveiro Costa, eles eram representantes da sociedade civilizada. Homens cujo perfil lembra os heróis dos romances históricos de José de Alencar, como se fossem inspirados nos fidalgos ao estilo de D. Antônio de Mariz, de O guarani, homem rico, bem instruído e dotado de sentimentos nobres. Na visão desse escritor, os fundadores do Acre eram:
Homens de paz, votados ao trabalho (...) senhores de copiosa fortuna, dotados de boa e sólida inteligência e energia, alguns deles possuidores de excelente cultura (...) homens de prestígio real (...) eram: Joaquim Vítor, Antunes Alencar, Hipólito Moreira, Joaquim Maia, João Donato, Pedro Braga, Brasílio Gomes, Neutel Maia, Simplício Costa, João Rola, Porfírio Sá Pergentino Ferreira, João Monte, Vítor Porto, Antônio Braga, José Galdino e tantos outros (Costa, C., 1973, p.45)

Esses contrastes, na construção do perfil dos desbravadores, põem em jogo a veracidade da informação dada pelo documentador. E a sugestão feita pelo cronista torna-se um outro ponto de vista sobre o fato.
A nominação dessas pessoas, neste caso, é o único dado concreto, possível de ser comprovado por meio dos documentos oficiais da história do Acre, mas a personalidade, a formação moral e cultural dos seres nominados pelo jornalista, em nada se parece com os “senhores feudais” das crônicas do Zé do Barranco. Para ele, os exploradores eram: “Verdadeiros brutamontes, sem Deus nem lei, mal sabendo assinar os nomes, destituídos do menor sentimento de justiça, só conheciam um empecilho à satisfação de seus apetites — a força” (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913, p.02).
Os “coronéis-de-barranco” ou da borracha são criados a partir de um modelo instaurado pelos coronéis-do-sertão, os quais eram, quase sempre, donos de grandes latifúndios e ostentavam patentes militares concedidas pelo governo. Os coronéis eram também símbolos de truculência e impunidade, e como seu modelo originário, eles eram homens rudes, alguns até analfabetos, porém ricos e com plenos poderes de mando na região sob seu domínio.
Não obstante essa caracterização, os personagens de Zé do Barranco são coerentes com as circunstâncias do tempo e do espaço, que exigiam destemor dos que se arvoravam a explorar o “fabuloso” mundo Amazônico. A intrepidez e a coragem, porém, mesmo sendo atributos dignos de louvor, não lhes garantem ascender à categoria de heróis porque o cronista não lhes dá essa possibilidade. Ele dilui qualquer intenção do leitor, nesse sentido, informando-lhe que, quando eles, os exploradores queriam borracha “esta havia de vir-lhes, fosse como fosse. Quando empenhavam a palavra, faziam-no com o intuito premeditado de faltar ao seu cumprimento. Na arte de enganar e serem enganados, eram exímios” (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913, p.02).
Além de deformar-lhes o perfil, o cronista coloca-os em situações risíveis, as quais são identificadas a partir da construção do tipo físico deles, de suas vestimentas e acessórios, as gafes cometidas por aqueles “coronéis”, que “mal sabendo assinar os nomes” têm seus defeitos acentuados pelo narrador. A começar pela descrição dos adornos que usavam, exemplificados pelo “horrível brilhante de um tamanho inestético” que o “Coroné, enfiava no dedo”. Um brilhante de tamanho avantajado que tornava ainda mais grotesco o perfil caricaturesco dos “coronéis-de-barranco”.
A sua palestra, diz o narrador: “era seringa, seringa e mais seringa. Causava dor de cabeça a um morto. A bordo dos navios do Lloyd reclamavam de tudo, porque pagavam com o seu dinheiro”. Em sua ignorância e arrogância, ”Supunham que isso era o chic e constituía uma prova de civilidade” (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913, p.02). Também nesse aspecto, as personagens são mais coerentes do que os seres históricos, os quais são refinados demais para as exigências do espaço.
O narrador, mesmo pondo em relevo os defeitos dos “coronés”, angaria a simpatia do leitor para com eles, ao exaltar-lhes a valentia e a coragem diante da rudeza do meio. Para o narrador, foi graças à intrepidez desses homens que a “hostilidade” do meio e dos nativos foi amenizada, e em pouco tempo as “ambicionadas” fontes de riqueza naturais, dentre elas, as extensas áreas cobertas por seringais nativos, foram conquistadas. A razão dessa defesa talvez encontre respaldo no fato de que muitos intelectuais da imprensa tomaram parte e se tornaram simpatizantes da “causa dos brasileiros do Acre”, e esse narrador parece ser a representação desses intelectuais.
A coexistência harmônica de elementos diferentes de gêneros também diferentes, o literário e o histórico, resulta do hibridismo peculiar à narrativa da crônica moderna, que do aspecto documental, herdado das crônicas medievais, preserva o fato no tempo de seu acontecimento, mas, paradoxalmente, os seres nela representados como seres imaginários têm no desnudamento de sua personalidade, no pormenor da trama, muito mais vínculo com o universo circundante do que os seres quase mitificados pela história.
Zé do Barranco inscreve-se como um personagem familiarizado com o espaço e conhecedor dos pormenores da história da conquista e das várias tentativas de apropriação pelos muitos aventureiros que vislumbravam fazer do Acre um reinado particular. O episódio da primeira proclamação do Estado Independente do Acre é, porém, mencionado brevemente, como pertencendo a um tempo em que:
a Bolívia entendeu que o Acre lhe pertencia e, apoiada pelo governo do Brasil, meteu-se a dona da terra. Começaram as rixas. E menos de quatro anos depois, os patrões se arvoraram em coronéis de verdade, e por um triz não meteram o general Pando nas cordas (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913, p.02).

Ao remeter aos fatos do ano de 1895, quando o governo boliviano intentou assumir o domínio sobre a região, aos fatos do ano de 1899, quando os brasileiros, liderados por Luís Galvez, fizeram o primeiro levante contra os bolivianos, expulsando-os do Acre, o cronista reitera sua simpatia para com os desbravadores:
Esses homens cujas consciências dir-se-iam dominadas completamente pela idéia do ganho, guardavam ainda sentimentos nobres. Bateram-se com bravura. Muitos perderam os seus haveres e raríssimos foram os que traíram a causa da revolução (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913, p.02).

Sem negar-lhes os defeitos e consciente das motivações que levaram os coronéis a lutar pela libertação do Acre do jugo boliviano, o cronista enfatiza a bravura de seus anônimos e bravos personagens, na defesa do solo conquistado às duras penas.
O cronista Zé Ferino (que pode se lido como o Zé da língua ferina), em uma de suas crônicas, publicada na coluna “Palestras”, em 11 de maio, de 1913, faz também a narrativa da conquista, porém, de forma indireta. Ele inicia sua crônica com um comentário sobre uma notícia intitulada “Uma república minúscula”, publicada “alhures onde se respira melhor a vida”, indicando por meio do advérbio “alhures” que havia lido algo produzido fora do Acre, lugar que, para ele, é o oposto do lugar de onde ele recebeu a matéria. Em outras palavras, para o autor, o Acre é onde se respira a morte.
Entretanto, o autor não prossegue em sua reclamação sobre o Acre, dando, pois, continuidade ao comentário que fazia sobre uma notícia a que ele chama de “curiosa”. Trata-se da visita que um explorador australiano havia feito à ilha de Pitcairn, no oceano Pacífico, uma das três ilhas que formam a colônia britânica de Pitcairn na Polinésia, onde, segundo o cronista, existe a República menor do mundo.
Depois de fazer uma breve explanação sobre a história da ocupação daquela isolada ilha, descoberta no século XVIII, o narrador passa a comentar a administração e a organização política daquele lugar:
Hoje com cento e cinqüenta habitantes. Os colonos têm uma capela e uma escola. O professor exerce também a função de médico.
O poder é exercido por um comitê, composto de um presidente, de dois assessores e de um secretário.
(...)
O estado dessa república é bastante próspero. Aos cidadãos nada falta, posto que o dinheiro seja raro. O total do numerário que circula na ilha eleva-se a duzentos mil réis (Jornal O Acre, 11 de maio, de 1913).

O detalhamento sobre a isolada ilha de Pitcairn permite a identificação de vários aspectos que a assemelham com o também isolado e longínquo Território do Acre, como, por exemplo: o pequeno número de habitantes, o acúmulo de funções pelos cidadãos mais instruídos, a transitoriedade das gestões políticas, as possibilidades de desenvolvimento que o lugar oferecia, e enfim, a falta de dinheiro em espécie circulando no local.
Esse fato, embora pareça estranho, considerando o volume de negócios realizados com a produção dos seringais, era comum na época, devido ao sistema de aviamento que usava mercadorias como moeda, com raras exceções para os casos em que o trabalhador tivesse saldo. Ainda assim, o dinheiro recebido era, quase sempre, gasto nas cidades mais próximas do Acre.
Zé Ferino evoca o contexto de quando houve o segundo levante dos “brasileiros do Acre” contra o domínio estrangeiro, orientados pelo jornalista Rodrigo de Carvalho e comandados pelo seringalista Antônio de Sousa Braga. Este governou o Acre, proclamado independente pela segunda vez, por um brevíssimo tempo que durou somente de 01 a 30 de janeiro do ano de 1900. Possivelmente durante o tempo evocado pelo cronista Zé Ferino, que dá índices temporais ao leitor sobre o episódio que narra:
Isso me fez lembrar o caso do Acre, desse Acre de treze anos antes, quando, em um assomo de rebeldia contra o ato do governo brasileiro entregando à Bolívia o território desbravado por brasileiros e de que éramos possuidores de fato, contra a invasão e domínio do estrangeiro, levantamo-nos, armados para a defesa dos nossos direitos, que reivindicamos, finalmente, não sem enormes sacrifícios (Jornal O Acre, 11 de maio, de 1913).

Até esse ponto do texto, o autor parecia ser alguém que escrevia sem outras pretensões, a não ser exercitar uma atividade intelectual. Talvez, para amenizar seu isolamento. Porém, essa impressão se dissipa quando ele se inclui, não apenas como um cidadão simpatizante com a causa dos “brasileiros do Acre”, o que se percebeu também na crônica do Zé do Barranco, anteriormente explorada. Zé Ferino identifica-se como um dos tantos brasileiros que também pegou em armas para defender o seu direito de usufruir da terra conquistada.
Mesmo tendo se apresentado como partícipe dos fatos evocados, Zé Ferino passa a fazer a narrativa da conquista, a princípio com forte vínculo ao mundo objetivo, informando ao leitor o espaço, o tempo e as circunstâncias em que se dão os fatos que ele anuncia que vai narrar: “Estava o Acre, no tempo a que nos reportamos, organizado revolucionariamente. Era o Estado Independente do Acre”.
Ao fazer a referência espaço-temporal, o narrador induz o leitor a crer que estará diante de uma narrativa ficcional de fundo histórico, porém, suas expectativas não se concretizam, já que para sua surpresa, o narrador comunica, subitamente, que contará uma anedota. Desse modo, o que poderia ser uma narrativa da conquista do Acre passa a ser uma crônica de humor, em que a anedota é uma forma indireta do cronista brincar com os fatos históricos, pois ele conta a anedota em tom popular como quem a ouviu de outras pessoas:
Um dia funcionava o Ministério entregando-se aos estudos dos momentosos planos administrativos, quando no largo salão onde os senhores ministros se achavam reanimados e cada um atento nos afazeres de sua pasta, apresenta-se o padeiro devidamente munido de sua grande e recheada cesta. Aos seus pesados passos voltaram-se todos os ministros e o mais próximo perguntou-lhe:
- Que deseja?
- Vocês querem comprar pão?
- Isso é aí com o Sr. Ministro da Fazenda (Jornal O Acre, 11de maio de 1913, p. 02).

A ênfase do relato recai sobre um episódio da vida administrativa do Acre e envolve personagens não nominados, mas que têm um referencial no mundo objetivo, assim como se deu com os ”coronés” do Zé do Barranco, situados nos tempos do desbravamento dos rios e das florestas acreanas.
Nesse caso, porém, o foco se dá sobre um tempo já marcado pela presença de elementos da civilização trazidos para o Acre pelos exploradores. Tempo em que os nativos já não existiam mais. Pois, segundo o cronista Zé do Barranco, para não declarar que haviam sido exterminados à bala, registra que eles haviam sido “espantados” com tiros de rifles. Nos moldes como se formou a organização política e social da “minúscula república” de Pitcairn, citada na crônica anedótica de Zé Ferino.
A crônica é iniciada com o tradicional “Um dia ...”, como se o acontecimento tivesse se dado em um tempo não marcado no calendário, dando a impressão de que se trata de um conto popular. No entanto, o tom irônico vai ganhando força, principalmente, quando o “Ministério” de planejamento, que faz não se sabe o quê, é quase personificado em sua “entrega aos estudos dos momentosos planos administrativos” (Jornal O Acre, 11de maio, de 1913, p. 02). O adjetivo “momentoso”, neste caso, alude mais a algo cômico, do que a algo apreciativo, uma vez que devia ser uma atribuição aos estudos e não aos planos administrativos de um lugar que ainda se encontrava em estado quase tão primitivo como era na época da descoberta pelos desbravadores Acre.
O qualificativo “momentoso”, que devia indicar algo a que se dá grande importância, está em desarmonia com a ambientação rústica na qual a expressão “senhores ministros” soa como deboche aos “coronéis-de-barranco”, que possivelmente ocupavam os recém-criados cargos ministeriais sem nenhuma qualificação e estrutura para o seu desempenho.
Na anedota inserida na narrativa, o recém-proclamado Estado Independente do Acre é o contexto em que ocorre o episódio da vida administrativa, gerador do humor. É também o contexto em que, de acordo com as fontes históricas, houve um levante encabeçado por um número reduzido de pessoas. Estas mesmo não tendo qualificação para ocupar postos de comando, o fariam face à ausência de pessoas capacitadas, ou por imposição dos que representavam o poder de mando, determinado pelo dinheiro e pela valentia.
Deve-se ter em mente que o cronista não se arvora em historiador, uma vez que os dados da história são por ele convertidos em aspectos risíveis, o que dá a sua escrita a leveza de uma literatura de entretenimento. O quadro que ele enfoca torna-se mais risível pelas figuras que o compõem: os anônimos, “brutamontes” e semi-analfabetos coronéis-de-barranco, travestidos de ministros de estado, compenetrados “cada um nos afazeres de sua pasta”.
Essa pseudo-magnitude do momento se dissolve quando é dado ao leitor o conhecimento sobre a atribuição do mais importante dos ministérios, ou seja, comprar o pão do lanche, vendido de porta em porta sobre a cabeça de um ambulante. No mínimo, também tão rústico quanto os senhores ministros, a contar pelos “pesados passos”, com que ele adentrou no recinto, tirando os nobres senhores de seus compenetrados estudos.
O modo como o padeiro dirige-se às autoridades é também digno de nota. Sem ter quem o anunciasse, sem nenhum protocolo a quebrar, já que ali não havia cerimonial, ele entra bruscamente no recinto, não faz as saudações de praxe. E de maneira objetiva, sem nenhuma apresentação do produto que pretende vender, dirige-se informalmente às autoridades: “- Vocês querem comprar pão?”
Sua espontaneidade é bem comum à de quem parece não ter conhecimento de que, ao se dirigir a um Ministro de Estado, é necessário o uso do pronome de tratamento apropriado para as circunstâncias, pois é por meio deste que se expressa a hierarquia no meio oficial. No caso, ao se dirigir aos “senhores ministros”, o padeiro deveria, ao menos, tratá-los por “senhores”, como o faz o cronista, já que, talvez, sequer tivesse conhecimento de que a forma correta seria: “Vossa Excelência” e não “vocês”.
A ação do padeiro, ao dirigir-se a uma autoridade sem as formalidades de praxe, somada à forma como um produto de consumo seria comprado por uma instituição pública, sem a obediência dos trâmites legais, reforça o perfil dos primeiros habitantes do Acre, construído por Zé do Barranco: analfabetos, “mal sabendo assinar o nome”, logo sem a polidez formalizada por alguns documentadores.


3.4. Memórias da Revolução

A memória escrita do período formativo do Acre, embora seja registrada pelos cronistas com uma boa dose de humor, apresenta pontos multifários em razão do modo como cada sujeito sente, interpreta e reelabora a realidade lembrada. Essa memória, como uma apropriação do passado, traz também as impressões dos traços da subjetividade de quem a registra, de sua experiência pessoal, dos seus códigos de valores, resultando em diferentes abordagens sobre o mesmo fato.
Nas narrativas sobre as experiências do cotidiano, o sujeito faz representações da memória social. E nelas não podem ser especificados o verdadeiro ou o falso, senão através do que é dado pelo sujeito, uma vez que estando o fato situado no passado não há como reconstruí-lo objetivamente. O documento, configurado nesse tipo de narrativa, contém as expressões de uma determinada época e local, podendo configurar-se em uma herança social do passado por representar um testemunho da história.
A primeira década do século XX foi marcada pela disputa pelo Acre entre brasileiros e bolivianos, que teve desfecho pacífico via negociações diplomáticas. No entanto, se por um lado cessaram as contendas externas pela posse, por outro continuaram as rixas internas entre as forças militarizadas opostas: as tropas revolucionárias acreanas, de Plácido de Castro, e as tropas enviadas pelo governo brasileiro.
As crônicas que remetem a esse tempo têm por tônica a exacerbação dos ideais que moviam os revolucionários, na defesa de um Acre brasileiro e independente, e têm como personagem central a figura aludida de Plácido de Castro, relembrado somente em suas virtudes, como um homem de bravura e honradez a toda prova, ainda que seu nome nem sempre seja citado.
A exaltação dos brios dos combatentes da Revolução Acreana constrói uma imagem positiva para os “brutamontes” coronéis e ameniza a avareza atribuída aos comerciantes locais, pois o sentido cívico que lhes é atribuído coloca-os envoltos em uma nova aura, integrando-se à galeria dos heróis ou dos mártires. O cronista Zé do Barranco, por exemplo, torna-se condescendente com os considerados, até então, incômodos regatões turcos que faziam concorrência com os barracões. No contexto pós-revolução, eles até são considerados beneméritos e partícipes da vitória acreana. Segundo o cronista, apoiando-se nas palavras de um mandatário local:
O regatão, já o disse um dos prefeitos mais capazes que nos mandou o governo – Taumaturgo de Azevedo — é um benemérito.
De fato, a prevenção que existe contra o turco não é justa.
Quem esquecerá os serviços que nos foram prestados por ele na Revolução?
Quem não se lembrará com veneração, de Salim, morto em Costa Rica, por haver conservado nos punhos da sua blusa, as suas insígnias de capitão?
(...)
Temos sido injustos para com os turcos, quando devíamos ter para com eles a maior estima.
O que existe, hoje no Acre não é o resultado do nosso único esforço, e sim dos trabalhos de todos quantos aqui têm vindo ter, dentre estes, salientando-se o turco, e muito especialmente o gômbâdre do bâdâlone (Jornal O Acre, 11 de março, de 1913, p. 02).

O cronista sustenta sua defesa em prol do turco, argüindo que muitos deles tiveram a vida imolada durante a luta pela causa dos “brasileiros do Acre”. A imolação desses também “despatriados” é exemplificada com o sacrifício de um combatente chamado Salim, quando as tropas de Plácido de Castro avançaram contra os bolivianos, no seringal Costa Rica, em novembro de 1902. No combate, o turco Salim é citado por sua fidelidade à Revolução Acreana.
Na escrita sobre a Revolução, os textos de base histórica deveriam figurar entre aqueles de caráter mais informativo do que opinativos, como os artigos ou ensaios, porém, afastam-se do gênero meramente jornalístico e adquirem um caráter mais subjetivo. Para o estudioso Nilson Lage (1993), a retórica do jornalismo define-se pela elevada taxa de informação, de identificação ou de empatia. Esta, quase sempre, dá-se em notícias sobre pessoas importantes, que correspondem a estereótipos sociais ou que se articulem em torno daquelas que estejam de acordo com as aspirações coletivas.
O autor observa que o sistema de comunicação de massa montado no Ocidente, ao utilizar a identificação, constrói mitos, inventa um passado em um universo de ficção no qual os heróis que se cultuam não envelhecem e se harmonizam sempre com a vontade de uma suposta maioria. Nos jornais em estudo, a informação aparece quase sempre com forte carga dessa identificação, fazendo com que os registros históricos passem a ser lidos como textos de gênero híbrido, ou seja, entre o histórico e o literário. Tem-se, por exemplo, o discurso cívico, a exaltação dos heróis, dos homens que participaram da Revolução Acreana e daqueles que se empenharam na construção do povoado e, posteriormente, da cidade de Xapuri.
No texto “Um documento histórico”, escrito pelo Coronel Plácido de Castro, publicado treze anos depois da Revolução Acreana, no jornal Alto Acre, de 07 de dezembro, de 1913, a narrativa está impregnada de juízo de valor. O referido documento consiste em uma “Ordem do Dia”, um relatório de atividades militares sobre a batalha de Costa Rica, comandada por Plácido de Castro. Nas palavras dele, aquele combate, “veio fortalecer-me a convicção de que acho-me à frente de homens que não só abraçaram a revolução com ardor como a defendem com abnegação pouco comum” (In: Jornal Alto Acre. 07 de setembro, de 1913).
A idealização de uma cidade harmônica, onde os veteranos eram regidos pelos princípios da boa moral e inspirados no mais alto espírito patriótico, exprime-se em algumas crônicas esparsas e de autoria oculta, publicadas, geralmente, nas datas comemorativas da história do Acre ou por ocasião do natalício de algum combatente. Nelas, os revolucionários são transfigurados em heróis unidos por um mesmo ideal, incluindo os que participaram do movimento de 1899.
A homenagem ao Coronel Joaquim da Cunha Fontenele, médico e diretor do jornal Acreano, escrita por ocasião de seu aniversário, no dia 18 de fevereiro, publicada em 14 de março, de 1909, é um dos muitos exemplos de textos em que há uma vontade explícita de enaltecer os que lutaram pela causa do Acre. Segundo o autor, que se identifica apenas pelas iniciais F.M, o coronel Fontenele foi um dos que;
por ela sacrificou qualquer coisa, isto é, quem pela sua reivindicação bateu-se contra o domínio boliviano, mas bateu-se com a convicção e desejo de servir à GRANDE MÃE comum, com afeição, com sinceridade, com desejo de vê-la a figurar entre as estrelas que brilham no pendão auri-verde, término da luta iniciada em Maio de 1899 (...) desta afeição sincera participam todos os que, depois do Tratado, que nos garantiu a posse do território que com muito sangue, com a perda de inúmeras vidas, desbravávamos (...) vieram dar-nos o alento que já nos ia faltando ora concitando-nos com palmas e flores, ora doutrinando-nos com as boas e sãs teorias de espíritos lúcidos, espargindo luz sobre os direitos que nos assistem, de nos ombrear de igual para igual com as demais circunscrições que formam o Grande Todo da Pátria Brasileira (Jornal Acreano, 14 de março de 1909, p.02).

As virtudes dos mandatários, dos chamados “coronéis-de-barranco”, porém, é o que mais se evidencia nesses textos avulsos. O coronel Antônio Antunes de Alencar, por exemplo, é destacado por suas “qualidades morais” e seu “espírito ordeiro”, um dos “maiores defensores dessa terra”, segundo o texto, sem autoria, publicado no jornal de sua propriedade, o Acreano, sob o título “Homenagem merecida”. A louvação das virtudes desse mandatário segue-se em outro texto, também sem autoria, em que é colocada em relevo a participação do coronel na Revolução Acreana:
Em peleja armada, quando na luta contra a invasão e domínio boliviano, neste Departamento portou-se de maneira a dar exemplo e estímulo a vários outros, emulando-se com os mais destemidos e destacando-se em belo realce pela sua tradicional calma nos momentos agudos dos mais encarniçados combates. Foi um bravo, portou-se com heroísmo, impondo-se ao apreço de seus camaradas e ao respeito de seus subordinados (Jornal Acreano. 31de dezembro de1908, p. 01)

A verbalização dos intelectuais, neste caso, demonstra o posicionamento do periódico como um instrumento polarizador dos propósitos do coronel Alencar e dos partidários da autonomia imediata do Acre, organizados em torno do “Club 24 de Janeiro”, do qual o jornal Acreano era porta-voz. A criação desse jornal deu-se sob o propósito autonomista em prol dos investidores que enriqueceram com a exploração dos seringais. Estes eram movidos também por interesses políticos e por isso propiciavam a fundação de jornais a fim de disseminar e causar efeitos positivos em benefício da própria imagem pública.
Das figuras históricas que compõem a memória da Revolução Acreana, nos jornais de Xapuri, Plácido de Castro é o que mais perde sua condição humana para ganhar uma aura mitificada. Ao ser transposto para a narrativa da batalha, como um personagem quase imaginário, ele passa de caudilho, aventureiro ou qualquer outra forma de identificação, ao ser mais digno de todas as honrarias.
Seu grande feito como o libertador do Acre é a motivação de todos os textos em sua homenagem nas datas comemorativas da Revolução, desde o surgimento do primeiro jornal de Xapuri, em 1907, até os últimos textos colhidos da década de 20. Sua aura heróica, porém, ganha mais força após seu assassinato, em 1908, a partir de quando a narrativa de seus feitos torna-se mais imaginativa.
Na crônica intitulada “Malvívulo”, assinada sob o pseudônimo Justulo , em 1910, no jornal Correio do Acre, o narrador, antes de traçar o perfil do personagem principal, situa-o em uma comunidade feliz e em um tempo não marcado no calendário, mas passível de identificação histórica. Ele alude à conquista do Acre e a um possível tempo de regozijo de seu líder, Plácido de Castro, antes que fosse instaurada a desordem e acesas as ambições de alguns de seus correligionários. Estes, traiçoeiramente, tramaram e executaram o plano de assassiná-lo, em 1908, fato que foi levado a termo, segundo as fontes históricas, por um de seus ex-companheiros de batalha, o Coronel Alexandrino José da Silva, que se aliou às forças federais, tornando-se então opositor de Plácido de Castro e dos que defendiam a autonomia imediata do Acre.
Nessa crônica, como nas demais selecionadas para este trabalho, nem mesmo o personagem principal é nominado. A identificação dos personagens, no entanto, é feita ao se estabelecer a relação entre o conteúdo sugerido pelo texto (a traição e o assassinato de um líder) e as informações contextuais (o assassinato de Plácido de Castro, traído por seus ex-parceiros de combate). Feito esse procedimento pode-se chegar a deduções coerentes com a representação que é oferecida pelo narrador, e, junto com ele, “presenciar” os eventos retirados do passado. Isso porque o universo referenciado é também narrável no mundo objetivo e registrado nas fontes históricas.
Nesse caso, o início da narrativa pode situar-se, historicamente, em um possível, porém breve, período de paz, transcorrido entre a conquista do Acre setentrional, em que Plácido de Castro foi conclamado governador, e o tempo de seu assassinato, quando o Acre já não estava mais sob seu domínio. Estava sob o mando dos generais nomeados pelo governo federal . Em alusão a esse período, o narrador informa que:
Decorriam-se os dias, Alegre e satisfeito, nobilitando no empenho da terra que denodadamente libertara, hipotecando toda sua alma grandiosa cheia de invencível ardor pátrio, ele vivia. Por subitâneo e brusco golpe é atirado a mundos ignotos, longe, bem longe da terra estremecida, da família e daquela que escolhera ainda para partilhar a glória de seu nome (Jornal Correio do Acre, 1910).

Na crônica em questão, o narrador envereda-se por especulações de natureza filosófica ao acompanhar o percurso do seu personagem pelo mundo dos mortos para onde ele foi arremetido abruptamente, sem, contudo, desvincular-se do mundo objetivo, onde já não se sentia mais incluso:
Passaram-se tempos. O degredo prolongava-se.
O espírito anuviado da perturbação constantemente tão violenta transição, aclarou-se pouco a pouco, e então ele sentiu–se estranho no meio daquele povo que libertara. Examinou-se, examinou a todos e sentiu-se novamente estranho! Notou que alguém guardava ainda lembrança a seu nome, e no meio de todos, alguns passaram perturbados procurando esconder as mãos!
Contemplou-os!
Chamou-os, chamou-os novamente, pareciam não lhe ouvirem, não lhe entenderam (Jornal Correio do Acre, 1910).

O narrador, em sua posição de demiurgo, acompanha o percurso do personagem em seu degredo para o “hades”, a morada dos mortos. Porém, a condição desse personagem é pior do que a de um titã derrotado na luta contra os deuses olímpicos. Pois, arrebatado da vida de forma traiçoeira sequer teve a oportunidade de lutar com os seus assassinos. No trânsito para o mundo dos mortos, para o qual parecia relutante em fazer a travessia, diz o narrador que ele:
não podendo conceder aquele indiferentismo de seus irmãos, filhos da mesma terra que adotaram a cujo lado tantas vezes lutara impacientado, voltou-se para a própria terra, para a terra mãe e interpelou-a.
- Ó Pátria adotiva, por que te calas tu assim? Por que consente neste misterioso enredo que me cerca? A terra, como que impulsionada por tão acerba evocação (...) E então para ele:
— (...) Não sentes que foste banido do seio da terra que libertaste no enleio de horrível trama, o que toda a natureza desta majestosa terra que tu censura, revolta-se clamando vingança? (Jornal Correio do Acre, 1910).

A conformação do personagem à sua condição de degredado na morte se dá somente à medida que o narrador dá voz à terra que figura como pousada final do herói trágico. E ela, a terra, verbaliza o desejo dos acreanos, partidários de Plácido de Castro, de vingar a morte dele:
Ele parece que meditava.
Depois em pungentes as palavras refletidamente pronunciadas parecendo submeter– se a um exame próprio: - sim, agora se me vão clareando mais as coisas. Não podia crer, mas, irmãos já não mataram outros irmãos, levados pela traição. Judas, já não existiram tantos?
Oh! É abominavel, é horrível a traição.
E voltou-se num adeus eterno, evolando-se aos poucos num misto da luz e sombras para não mais voltar (Correio do Acre, 1910).

No jornal Correio do Acre, de 1911, na crônica intitulada “Oh! Pior sem ele”, Justulo retoma a idealização de uma “aldeia aprazível [onde] reinava uma harmonia admirável, uma verdadeira união entre seus habitantes” é somada à mitificação do herói assassinado depois que, segundo o relato do cronista: “O gérmen da ambição incontida fora lançado em meio daquela aldeia, trazido por aventureiros que lá aportaram embalados na doce esperança da fortuna”. No entanto, o que antes parecia ser era apenas “uma doce esperança de fortuna”, desenvolveu-se e deu-se a conhecer a todos nos atos de discórdia que substituíram o estado pacífico anterior. Diz o narrador que os ambiciosos
não encaravam meios para conseguirem os fins, e sucessivamente, tangidas por cabeças tão perversamente calculadas, foram avolumando-se, dando lugar a duelos, provações, intrigas, assassinatos, fatos vergonhosos que se desenrolaram em despenhadeiro, tornando-se enfim aquela bela e agradável aldeia de outrora o palco de cenas escandalosas, tudo se encaminhando para um desmoronamento moral inconcebível.
Ninguém mais se entendia nem se confiava; não havia mais a quem mandar, pois uma febre avassaladora de governar assolava. Os chefes, como as modas nas cidades adiantadas, sucediam-se numa produção espantosa e confundiam-se numa promiscuidade carnavalesca.
O fraco sucumbia ao forte (Jornal Correio do Acre, 1911).

O quadro que se instaurou, na aldeia do cronista, em muito se assemelha com o estado caótico do qual falam os estudiosos da história social do Acre. Essas fontes dão conta de que tão logo o Acre foi anexado ao Brasil começaram as discórdias. A primeira delas deu-se entre os componentes do exército de Plácido de Castro e os membros da força federal. Os primeiros foram humilhados, presos e tiveram suas provisões e armamentos saqueados pelos últimos.
Além de que, muitos integrantes do exército acreano acabaram por compactuar com a falácia de que o Acre não estava preparado para ser autônomo. E que, se não estivesse sob a guarda tutelar da União, deveria ficar sob a tutela do Estado do Amazonas ou do Pará. Falácia que resultou em dissensões entre os combatentes, que passaram a se organizar não mais pela libertação do Acre do jugo boliviano e sim para defender interesses particulares, os quais tinham sempre motivações econômicas.
No recém-fundado Território do Acre, todos os que ousassem questionar a organização política, administrativa e judiciária implantada pelo governo federal eram punidos com severidade, nem mesmo os coronéis escapavam às punições. Exemplo disso foram as prisões dos coronéis José Galdino de Assis Marinho (homem de confiança de Plácido de castro no Alto Acre, Manuel Leopoldino Pereira Leitão Cacela (fundador e redator do jornal Correio do Acre) e o Major Antônio Lucatele Doria, que foram presos em 1906 sob a acusação de defenderem a idéia da anexação do Acre ao Estado do Amazonas (Costa, F, 2005, p.43).
Em meio ao contexto turbulento do Acre pós-revolucionário, em que até mesmo alguns dos companheiros de Plácido de Castro puseram-se contra ele, aderindo às forças federais em troca de nomeações, diz o cronista/narrador que: “Um deles, apenas, conservava-se, não se abatia; era como que o equilíbrio em meio de tão amarga fase; entretanto, tombou ao frio sopro da morte, por mão assassina”. Este “um”, mesmo não nominado pelo autor do texto, pode ser atribuído a Plácido de Castro, pessoa a quem até mesmo o Juiz de Direito da Comarca do Alto Acre, João Rodrigo Lago, dirigiu-se por meio de carta para pedir-lhe que empregasse o prestígio e a influência que dispunha junto à população para “fazer voltarem a paz e a tranqüilidade ao espírito público”, conforme documento transcrito por Cláudio de Araújo Lima, na obra biográfica Plácido de Castro: um caudilho contra o imperialismo (1973).
Após o assassinato de Plácido de Castro, ao que sugere o cronista Justulo, o estado de caos intensificou-se quando os ex-companheiros de batalha, acusados de traição ficaram:
confundidos, atrapalhados, numa verdadeira Babel, choravam, brotando lagrimas de remorso que rolavam queimando a face dos ambiciosos, dos traidores, dos assassinos, deixando-lhes os cérebros em fogo, até que eles caíram prostrados. Depois, viam numa espécie de delírio infrene, perpassarem diante dos olhos esfogueados com desvairado olhar, horríveis visões, e sucumbiu num pesadelo terrível a lamentarem numa inconsciência de louco:
— Oh! Pior sem Ele! (Jornal Correio do Acre, 1911).

A alusão ao texto bíblico do livro de Gênesis, que trata do projeto ambicioso da construção de uma torre em Babel, capital da Babilônia, na planície de Sinear, onde havia a confluência de povos oriundos de diversas nações, tal qual ocorria no Acre explorado por migrantes. Os povos da Babel bíblica formaram uma nação próspera pela força do trabalho e por falarem a mesma língua, mas devido às pretensões dos que se colocaram em posição de deuses, culminou na confusão das línguas e na dispersão dos habitantes do lugar que não conseguiam mais entender uns aos outros.
A analogia ao episódio de Babel sugere que a causa da confusão que passou a reinar no Território acreano, após o assassinato de seu líder maior, foi a ambição dos que queriam a ascensão e o poder em detrimento de Plácido de Castro e seus combatentes, seringalistas e soldados seringueiros, aos quais era devido o reconhecimento pela libertação do Acre do jugo estrangeiro.


3.4. Os cronistas cúmplices e as crônicas da crise

Os cronistas da antiga Xapuri não constroem suas narrativas somente com os dados do passado histórico, evocados pela memória, tratados em tom humorístico, crítico ou saudosista. Eles produzem também crônicas líricas e reflexivas sobre os eventos ambientados no tempo da escrita, de que eles são, muitas vezes, partícipes.
No trânsito de uma memória evocada, para uma memória em construção, o cronista xapuriense, tanto pode ser um dos desbravadores, com os quais se identifica, porém, sem os traços grotescos daqueles, como também pode ser o poeta que, deslumbrado com o exotismo do cenário, contempla-o e dele tira sua matéria. Em qualquer uma dessas situações, ele é sempre um conhecedor in loco do ambiente que o rodeia, da beleza e da exuberância de uma terra que, para ele, é promissora.
O cronista Zé do Barranco, narrador e personagem do que narra, é um dos escritores que se insere na condição de memorialista da epopéia da descoberta, de crítico dos eventos do tempo da escrita e de cúmplice do ambiente em que habita. Na crônica de 16 de março, de 1913, da coluna “Riscados”, ele se vale de um pseudo-discurso de um amigo, chamado Bento de Bentes, para louvar as belezas naturais do Acre. Segundo o narrador, seu amigo Bento de Bentes alcunhou o departamento do Alto Acre de “terra da tristeza”, embora este tivesse feito a ressalva de que a terra não era triste, mas devia ser alcunhada assim porque:
A alegria exuberante e que emana da natureza acreana, discursou o Bento de Bentes, não se comunica aos habitantes da região, estes permanecem indemnes a essa alegria, acastelados pela hostilidade que votam à terra desde o momento em que a ela aportam.
Nós, que pertencemos à onda invasora, não passamos de reles aventureiros sequiosos de recolher o suor precioso que define pelos troncos golpeados das seringueiras seculares (Jornal O Acre, 16 de março, de 1913).

O narrador e seu amigo Bento identificam-se como exploradores do Acre, conscientes de que, como aventureiros, visavam o usufruto máximo das riquezas da nova terra, descrita por ele como “ubérrima” e que enche “de ouro” o forasteiro. Isso traz à mente os primeiros cronistas do rio Amazonas que ficaram deslumbrados e desejos das riquezas da terra paradisíaca, na qual, porém, não pretendiam se estabelecer, apenas retirar dela o máximo de proveito possível.
Zé do Barranco, porém, refere à natureza, terra, floresta, águas e até ao céu que cobre o espaço, como se fosse um filho do lugar ou como quem tomou o Acre por sua pátria. Ele é mais um dos tantos seres anônimos, que adentraram no Acre por meio dos extensos rios que cortam os barrancos da região, contemporâneo dos bravos “coronéis–de-barranco” e parceiro na conquista e no usufruto do Acre. Esse “Zé”, nordestino ou sulista, reclama a falta de uma poesia que declame a beleza do lugar que ele já o tem por seu:
Qual o poeta cuja imaginação cantou em versos terços à sombra evocadora da floresta selvagem; o murmúrio misteriosamente terno dos igarapés de águas claras; os estirões nostálgicos dos rios, terminando em curvas breves, como sonhos bons; os poentes majestosos em que o sol desaparece todas as tardes, num esplendor de apoteose?
Quem teve a lembrança de dizer a grandeza profundamente religiosa de uma noite acreana, quando a via-láctea resplandesce do céu, à semelhança de um gigantesco diadema faiscante de pedrarias?
Quem sentiu e traduziu a saudade que nos desperta um raio oscilante da lua, boiando na superfície recolhida de um lago? (Jornal O Acre, 16 de março, de 1913).

O olhar desse cronista sobre a região revela que, nem sempre, o explorador relaciona-se com o Acre como um lugar de degredo ou para onde se vai, somente, em busca de enriquecimento imediato ou em cumprimento do dever pátrio talvez sob compulsão. Zé do Barranco difere de muitos de seus contemporâneos, a exemplo de Zelinha, do Jornal Correio do Acre. Este escritor deixa sugerido, em uma de suas crônicas, que sua permanência no Acre era uma condição imposta por força do cumprimento de um tempo serviço que fora determinado por forças alheias à sua vontade. Zelinha, em concepção oposta ao Zé do Barranco, vê a natureza acreana como um lugar onde as pessoas eram encarceradas pela “mata verde sombria que nos cerca e nos oprime” (Correio do Acre, 29 de setembro, de 1912, p.01 e 02).
A idéia de opressão, porém, não anula a imagem que o escrito oferece da paisagem, onde essa mesma mata é um elemento de ornamentação em uma crônica escrita uma semana antes dele se referir às matas como elemento de opressão. Na crônica do dia 22 de setembro, de 1912, Zelinha, ao fazer uma reflexão sobre a vida, a lida e os projetos das pessoas que se encontravam no Acre ao término de mais um ano, sugere que muitas delas continuariam na monotonia de seus dias, fazendo quase sempre as mesmas atividades. Ao se referir aos trabalhadores do látex, ele foca sua “lente” para o rio, onde parece visualizar os condutores de borracha em balsas construídas sobre próprias bolas do produto. Diz o cronista que:
Muitos, pitorescamente aboletados sobre balsas, descendo lentamente o rio, como heróis de pouco vulgar envergadura, irão construindo os seus projetos de felicidade sobre a borracha e em torno dela ou fazendo novos planos para o ano vindouro.
Debaixo de um sol ardente, ou dentro da noite úmida, eles, os caminhantes da estrada que anda, irão ouvindo a orquestra soturna das matas que bordam as margens do rio, seguindo com santa resignação e paciência o meandroso curso do rio, acompanhando a corrente mesmo nas voltas em que a direção da marcha percorre todo o quadrante, tornando quase uma curva fechada (Correio do Acre, 22 de setembro, de 1912, p.02).

O quadro que o cronista descreve, apesar de seu tom melancólico, não perde em poesia, e mesmo que seus sentidos auditivos captem sons soturnos vindos da mata, o sentido visual não lhe nega uma imagem ornamentada. Uma vez que, ele visualiza nesse cenário uma mata que borda o rio. E este, para o autor, é a “estrada que anda”, caminho por onde o viajante pode chegar a outras paragens, ou de volta para seu berço. Para Zelinha, o rio:
parecia encher o ambiente de fosforescências radiadas da superfície muda. Sem um marulho, silencioso, como que escorregando sobre um leito de veludo, na solidariedade liquida do maior declive, unia-se confusamente no extremo de um barranco, sem fragor, sem gorgulhar às águas de outro rio.
Águas irmãs que tiveram a mesma origem e no mesmo destino envolvidas, como oferenda consoladora da natureza a esta região (Jornal Correio de Acre. Cinema, 25 de outubro, de 1912).

Desse modo, não se pode dizer que esse escritor seja alheio aos problemas do meio. Pois, mesmo não sendo ele um acreano por adoção voluntária, é, ao menos, um poeta sensível à beleza do cenário que se desdobra diante de seus olhos, fortemente marcado pela confluência de dois rios, o rio Acre e o rio Xapuri, que banham a cidade de Xapuri.
O outro cronista, o Zé do Barranco, embora tenha usado a palavra “selvagem” para designar a floresta, revela uma relação mais afetiva com o lugar, indicando que ele é um dos muitos que se tornaram acreanos por vontade própria. Essa possível afetividade que o faz dar atributos humanos aos elementos da natureza, construindo personificações e imagens sinestéticas dos igarapés de águas claras que têm “murmúrio misteriosamente terno” e dos rios que possuem “estirões nostálgicos”, onde, para esse cronista, as curvas são breves e desembocam em sonhos bons.
Para esse escritor, uma terra com tantos motivos para louvor, não pode ser culpada pela tristeza dos habitantes do lugar. Deve, portanto, haver outras razões para estes pensarem quase que constantemente em voltar para suas terras de origem. O narrador-personagem interroga Bento de Bentes, seu interlocutor se pode haver alegria em um lugar onde não há moleques:
E depois, meu caro, onde se viu uma terra sem moleque? ... Poderá haver alegria num lugar em que todos sejam sérios?
Não é possível!
O moleque é um tipo indispensável à sociedade. É o crítico admirável de todas as fraquezas humanas. Não há ridículo, por mais encoberto que seja, que o moleque não consiga descobrir. Nele o dom da percepção é finalmente desenvolvido.
Meu caro, sem o moleque a vida não tem chiste. É uma sensaboria.
Precisamos de moleques (Jornal O Acre, 16 de março, de1913).

Em sua resposta, ele sugere ao governo brasileiro que frete navios, encha-os de moleques e os envie para o Acre, em vez de mandar comissões científicas para estudar o que o povo do Acre já conhece, referindo-se a uma comissão que se encontrava no Acre para estudar os mosquitos. Desse modo, o governo proveria a solução para acabar com a tristeza dos acreanos. Além de que, em uma terra onde existem muitas crianças, diz o narrador, “ela necessariamente ela há de subir em vez de descer” (Jornal O Acre, 16 de março, de 1913), em uma alusão ao retorno dos habitantes temporários do Acre às suas cidades de origem.
Os cronistas de Xapuri, como escritores envolvidos com as questões políticas e econômicas do Acre, tanto nos momentos áureos como nos momentos de crise, conhecem de perto os problemas vivenciados pelo comércio local. Com o fim do monopólio da borracha, o comércio local, considerado antes da crise como o mais volumoso e próspero, tornou-se decadente, tendo por agravamento a alta tributação cobrada sobre a borracha.
Os donos de casas aviadoras e seringalistas viam-se obrigados a fazer “piruetas” para permanecer no mercado, passando a realizar transações comerciais sob o penhor da palavra. Já que, no auge da crise, o único título de crédito de que dispunham eram notas promissórias, quase sempre, sem fundos como promessa de pagamento das dívidas contraídas com a empresa do látex.
Nesse contexto, a figura do regatão ganha relevância. Categoria de comerciante composta, quase em sua totalidade pelos turcos, sírios e libaneses. Navegavam os rios amazônicos em pequenos batelões, causando desassossego aos “coronéis” da borracha, os quais se tornavam cada vez mais temerosos diante desses concorrentes, cuja mercadoria era mais barata que as vendidas no barracão.
Sobre tal figura, o cronista Zé do Barranco assim se manifesta: “O leitor conhece o judeu do batelão. É um tipo característico da Amazônia. O seu armazém flutuante tem de tudo, desde o livro de São Cipriano até as pílulas de quinino” (Jornal O Acre, 13 de abril, de 1913). No entanto, o judeu, diferente de outros povos que migraram para o Acre, não se estabelece em solo firme, diferenciando-se dos primeiros aventureiros, que construíram seus barracos em terra firme,
Em seu pequeno barco, ainda de acordo com o narrador, ele aproveita os períodos de estiagem. E “pelo verão, quando as águas têm baixado, sobe rio acima”, diz o narrador que, pelo uso do pleonasmo, indica o esforço dobrado que o regatão faz para tirar o máximo de proveito da impossibilidade dos navios cargueiros singrarem os rios secos. Período que se torna propício para negociarem suas quinquilharias com os seringueiros, em troca da “preciosa” borracha do coronel.
O caráter dos seringueiros não difere do caráter do “judeu do batelão”, que desmerecido de confiabilidade, ironicamente, “no seu honesto viver, enganando a todos e sendo por sua vez enganado por todos”, até mesmo pelos seringueiros que se aliam ao judeu, como “Inimigos, que se vivem a enganar a todos os instantes”, mas que tem por finalidade prejudicar o patrão. E assim, diz o narrador: “não há medida que evite a ação do judeu. Veio ao Acre para ganhar dinheiro. Para isso não se escolhe os meios” (Jornal O Acre, 13 de abril, de 1913). Zé do Barranco inscreve-se também como um personagem familiarizado com o espaço, conhecedor dos pormenores e dos fatos pitorescos do lugar. Ele conhece de perto transações comerciais, o uso e o abuso das promissórias para “quitação” de débitos durante a “crise da borracha”.
Na crônica de 27 de abril, de 1913, Zé do Barranco insere-se no contexto de sua narrativa e se apresenta como um habitante do Acre, partícipe das dificuldades vividas pelos sujeitos no contexto da crise instaurada pela queda do preço da borracha brasileira no mercado internacional. Como conseqüência imediata do enfraquecimento desse tipo de comércio, os seringais passam a ser “produtores de dívidas e nada mais”, deixando os seringalistas em falta para com os compromissos assumidos junto às casas aviadoras.
Os patrões já não são descritos como “senhores feudais”, tampouco podem “tudo [pagar] com o seu dinheiro”, uma vez que nem mais podem arcar com os compromissos assumidos. Esses mandatários não possuem mais a arrogância dos “coronéis-de-barranco”, da crônica desse mesmo autor, datada de 30 de março, de 1913 e publicada também no jornal O Acre.
O narrador, agora, é bem mais ferrenho, não poupa crítica sobre o comportamento deles: “nossos capitalistas são uns pobretões arrotando grandeza que não possuem ... despendendo as suas energias em descobrirem novos meios de manterem a posição falsa em que se vêm metidos” (Jornal O Acre. 27 de abril, de 1913).
Os seringalistas falidos conseguem manter as aparências, simulando possuírem crédito e haveres na praça por meio da nota promissória, um título de crédito que tem valor de letra de câmbio. Tal título foi regulamentado pelo decreto nº 2044, de 31 de dezembro de 1908, tornando-se objeto de execução, em caso de não pagamento da dívida.
Faz-se necessário lembrar que o Acre das origens era uma terra de homens sem leis, como informa Zé do Barraco, o que instiga o leitor a fazer conjecturas sobre quem executaria os devedores. E ao que indica o narrador-personagem, tal dívida jamais seria paga. É o que fica sugerido no diálogo entre ele e um amigo endividado que, mesmo sem dinheiro para honrar o nome, repentinamente disse ter-se livrado da dívida:
- A todos. Não devo mais nada a ninguém. Sou um homem sem compromissos.
Pensei que o amigo estivesse pilheriando comigo, diante, porém, de sua seriedade em afirmar o que dizia, convenci-me da verdade, embora não pudesse atinar com que pagara ele aos credores.
Intrigado, fui às últimas.
- Meu caro, eu sei que V. não tem dinheiro, faça-me, pois, o favor de dizer: com que V. enterrou os seus cadáveres.
- Ora, seus, Zé, pois V. ainda não acertou?
- Palavra que não.
- Em notas promissórias (Jornal O Acre, 27 de abril, de 1913).

O endividamento dos comerciantes, a falência dos seringais é a tônica das crônicas da terceira e última fase formativa do Acre. Fases caracterizadas pela acentuação do quadro decadente que se instalou no Território, devido à entrada no mercado da borracha dos seringais ingleses de cultivo na Malásia e na Indonésia, que ultrapassaram a produção da Amazônia e do Acre. Além desse fator, os compradores alegavam que os custos com a extração e transporte da Malásia para a Inglaterra e para outros países eram bem menores do que os custos para adquirir a borracha do Brasil.
Dos cronistas xapurienses, o único que assinou seus textos com um nome possível de identificar historicamente foi Gama Farias, colaborador do jornal Commercio do Acre, que circulou de 1915 a 1918. Este escritor deu vazão às suas inquietações nos artigos e nas crônicas nas quais trouxe à reflexão os problemas que se avolumavam, na medida em que a crise do extrativismo ia ficando mais patente. Entretanto, as preocupações desse escritor vão além dos problemas referentes à crise da borracha.
Em sua produção escrita, percebe-se um sentimento de revolta semelhante ao que já havia sido manifestado pelos escritores que o antecederam em outros jornais . É bom lembrar que o Commercio do Acre, assim como outros periódicos que circularam em Xapuri e em outras partes do Acre, recebia recursos não somente do comércio local, pois, sendo veículos difusores das idéias autonomistas, era patrocinado também pelos seringalistas e ex-combatentes da Revolução Acreana.
Os cronistas, seja os emissários dos patrocinadores dos jornais seja dos tributadores da população, expressavam-se com freqüência como: brasileiros “despatriados” e abandonados pela República. Contra a qual recaía a queixa de explorar os acreanos com cobranças de impostos abusivos, que não retornavam em benefícios para o Território. Fazendo com que Xapuri e as demais cidades, sedes de seringais, fossem se tornando, cada vez mais, lugares onde tudo era instável.
Segundo Gama Farias, na crônica “A instabilidade Acreana”, em um passado não muito distante: “Temos tido de tudo, nesta terra e nada temos, clubes familiares, tiros associações, futebol, jornal literário, etc; etc, que após um prazo relativo de existência desaparecem” (Commercio do Acre. 20 de maio, de 1916). Nesse texto, ele versa sobre as incertezas que se configuraram tanto da esfera econômica como na cultural com a decadência do comércio extrativista. Para ele, pouco ou quase nada restara dos tempos áureos da borracha aos acreanos e xapurienses.
Há que considerar que a desolação instaurada com a primeira crise da borracha teve como agravante o corte nos créditos para o Brasil por parte dos Bancos internacionais, quando a borracha brasileira não mais interessava à indústria estrangeira. Em conseqüência da suspensão dos negócios internacionais, os patrões, sem ter quem comprasse a produção dos seringais, viam-se obrigados a não mais investir na extração do látex, bem como a suspender qualquer forma de recursos destinados ao aparato em torno dele, incluindo nesse rol, o patronato dos jornais. E quanto mais evidente ficava a falência do sistema, os investidores e os que se sustinham do extrativismo mais debandavam do Acre, deixando suas recém-fundadas cidades em estado de desolamento, ermas do contato com os centros mais desenvolvidos, quase em completo abandono.
Nas crônicas da série “Acreanadas”, o escritor Gama Farias oferece ao leitor quadros desse cenário de desolação. No texto intitulado “A conflagação”, ele se refere à Xapuri como um lugar onde impera:
imensa solidão! Mais de dois mil metros o meu olhar abrange e não encontra uma janela aberta onde repouse uma nuvem do fumo do lar. Apenas a mata imensa, verde, isócroma. Acode-me então ao pensamento o motivo de tantas rixas nesta vasta região - pela expansão territorial - onde o povoamento do solo é um mito (Commercio do Acre. 13 de agosto, de 1916. p. 02).

Gama Farias mostra-se atento para o iminente fim do sistema de seringais. Fato que, segundo ele, poderia ocorrer em função de duas causas principais: a queda na exportação da borracha e a diminuição das fontes naturais do látex. O cronista chama atenção para o fato, alertando que:
As estatísticas de saídas de borracha dos portos brasileiros demonstram cabalmente uma verdade tristíssima – que a nossa exportação deste gênero diminui inquietadoramente. Se fôramos também a organizar uma estatística das árvores borrachiferas que matamos teríamos a prova de que dois terços pelo menos já perdemos. Basta frisar que das duas qualidades que na Amazônia trabalhamos – Castila Elástica e Hevea Brasilienses, - a primeira quase já desapareceu (Jornal Commercio do Acre, 03 de setembro, de 1916, p.02).

Para esse escritor, a primeira causa da falência do extrativismo era a que já se evidenciava em decorrência da queda na exportação da borracha. A segunda causa, a mais grave, segundo o cronista, era a morte das árvores da seringueira, devido aos maus extratores do látex, cujos desdobramentos de seus atos nefastos seriam sentidos na economia, com o enfraquecimento do comércio. E na natureza, com a devastação da floresta. Sobre essa questão, o autor observa que:
De fato o bárbaro processo para extrair o leite do caucho teve como término bani-lo da circulação. Seringais, conheço eu – e não são poucos, onde um espécie desta árvore já está passando à curiosidade de floresta; e por mais que procure não acho em que bases se assenta o nosso futuro ou que prodígio ainda esperamos de uma natureza demente e cansada que só produz raquíticos e aleijões como os decretos do governo, para assim deixarmos se aniquilar a única indústria que nos sustem e nos dá esperanças de virmos a ser gente (idem).

Gama Farias estava atento também às possíveis conseqüências da falta de ação do governo que, até então, não havia tomado nenhuma medida para evitar o desastre, previamente, anunciado. Ele conclui seu texto profetizando sobre um futuro próximo, calamitoso, caso não fosse tomada alguma medida preventiva. Para ele, em poucos anos haveria a extinção da maior fonte de riqueza da região:
Portanto devemos tratar seriamente do assunto, estudando os meios eficazes para o plantio de seringueiras novas e conservação das árvores velhas. Se isto não fizermos, e logo, daqui a dez anos, meus caros amigos, para vermos uma árvore de seringa brasileira teremos que ir ao Rio de Janeiro, ao Jardim Botânico para lá admirarmos uma espécie da nossa decaída fonte de riqueza (Jornal Commercio do Acre, 03 de setembro, de 1916, p.02).

As preocupações do cronista encontram eco no quadro que ele representa na crônica “Ainda queixas”, publicada em 17 de dezembro, na qual Gama Farias traz novamente à baila a situação de penúria em que o Acre se encontrava:
Tudo [se encontrava] parado, crise e mais crise, falta d`água, falta de gênero, (...) sem provisões, sem dinheiro sem meios de transportes, desencadeia-se um verão irmão-gêmeo da seca, com todas as características desta, (...) e o comércio que é roubado, que é espoliado em seus direitos e em seus capitais, vê-se obrigado a fechar, para remover à socapa uns restos da ração bolorenta que é o supremo escárnio de uma natureza ubérrima subitamente rebelada e de um governo, no último ridículo, apresentando ao mundo uma face risonha de embaixadas principescas, embora para isto, o povo, a vermina, a gentalha, morra de fome nos sertões, morra de opróbrio nas cidades (Jornal Commercio do Acre. 31 de dezembro, de 1916, p.02)

O cronista, porém, não restringe a responsabilidade pela decadência do Acre somente aos governantes. Já que, em sua concepção, de matriz determinista, ainda em voga na época, o meio também tem sua parcela de culpa como um dos fatores determinantes pelo sofrimento dos viventes. Um aspecto para o qual ele foca sua atenção é para a diminuição do volume das chuvas no Acre, fato que já era evidente até mesmo no período denominado inverno que se dá entre os meses de novembro e abril.
Durante os ciclos da borracha, era no período chuvoso que o movimento nas sedes dos seringais aumentava, pois com o leito dos rios cheios, os navios cargueiros podiam chegar até aos mais longínquos lugares, levando mantimentos para o ano inteiro. Além disso, era também a época em que aumentava o fluxo de pessoas e novidades, vindas dos centros desenvolvidos, tanto do Brasil, como do exterior. No entanto, ao cessarem as chuvas, os rios se tornavam intrafegáveis, aumentando o isolamento da região.
Na crônica, intitulada “Ano Novo”, de 31 de dezembro, de 1916, o escritor dá prosseguimento às suas reflexões sobre o cenário em que se encontrava o Acre, naqueles momentos de crise econômica e de abandono das autoridades federais. E em que a natureza parecia comungar com os maus governantes, que exploravam os contribuintes e conduziam o Acre a um estado de estagnação. Nas palavras do escritor:
A começar pelo território em que vivemos abalados por tão desencontrados choques, estacionário na sua infelicidade de torrão colônia que tudo paga e nada recebe, vítima eterna, na pessoa de seus habitantes, da inclemência dos homens e das inclemências da natureza (Commercio do Acre, 31 de dezembro, de 1916).

Ao contrário do que sugere o título da crônica “Ano Novo” e do momento do ano, que deveria ser festivo, em função das comemorações natalinas e da passagem do ano, o cronista traz à luz um contexto de quase miséria. Segundo ele:
Desde que o Acre foi explorado, é esta, por certo, a primeira vez em que se passa o Natal sem pão. Isto é grave (...) Estamos em época francamente religiosa, novenas, missas e outras solenidades; se faltar a matéria prima com que se fazem hóstias, caridades que nos lares alimenta a fé, como há de ser?
Sem comestíveis, sem a animação que o inverno traz ao nosso comércio periódico e ainda sem distrações, resta-nos suprimir o Natal que com este ar soturno de Semana Santa obrigada à lama e ao jejum vem aumentar as nossas saudades de deportados nesta Costa d’Africa que se chama Território Federal, Contribuinte do Tesouro, degredo e, por intuição nativa, Acre ou Terra da Desdita.
Que 1917, entrante, traga mil venturas aos leitores e dissipe este mau humor com que terminei o meu semestre de cronista entre as pirraças a alguém, a raiva de outras e não sei também a contento de alguns.
Desculpas ... e a todos felicidades, bons anos e etc. (Commercio do Acre, 31 de dezembro, de 1916, p.02).

Não obstante suas queixas, Gama Farias apresenta-se como um acreano por adoção, ainda que, na crônica “Ano Novo”, existam indícios de que ele estava no Acre sob compulsão. O texto permite conjecturar que ele poderia ser um dos tantos brasileiros que se encontrava tal qual um deportado, e em uma situação mais grave do que a dos primeiros exploradores do Acre. Pois aqueles, embora se queixassem de “despatriados”, eram livres para retornar aos seus lugares de origem. Enquanto os brasileiros incômodos à República, deportados para regiões longínquas não podiam retornar a seus Estados.
A impressão que se tem é que Gama Farias vivenciava uma situação semelhante a dos “revoltosos”, deportados para o Acre quando eclodiram as duas grandes revoltas na capital da República, Rio de Janeiro, no primeiro decênio do século XX: a Revolta da Vacina, em 1904, e a Revolta da Chibata, em 1910. Esta reivindicava o fim dos castigos físicos impingidos aos militares.
Esses movimentos tiveram como conseqüência, para efeito de punição dos revoltosos, a extradição de boa parte deles para lugares considerados de difícil retorno, entre os quais figurava o Acre. Lugar “onde se respirava a morte” e para onde deviam ser expurgados aqueles que, por ventura, ou desventura, pudessem representar alguma forma de ameaça à ordem da jovem República.
No caso de Gama Farias, não parece ser ele um deportado, mas, mesmo não o sendo, tomou para si a queixa daqueles que, por terem sido esquecidos pela nação, não encontravam eco para suas queixas nos poucos meios de comunicação disponíveis no Brasil, como um todo. Esse cronista pode ser considerado a primeira voz que se manifestou em defesa da preservação dos recursos naturais do Acre nos jornais de Xapuri.
Outro escritor que se situa da fase decadente é Chico Xisto, também do jornal Commercio do Acre. Em sua coluna “Bagatelas”, ele informa ao leitor os problemas enfrentados em Xapuri, que tinham origem direta ou indiretamente na crise da borracha. Seus textos, porém, não podem ser considerados como crônicas, no sentido que o termo é tratado neste trabalho, ou seja, o relato e a reflexão sobre os fatos no tempo, de um passado recente ou mais remoto, à luz da subjetividade do escritor.
Os textos de Chico Xisto são comentários curtos sobre alguns episódios ocorridos durante a semana, sem haver nesses comentários alguma intervenção, ou juízo crítico do jornalista, objetivando apenas noticiar o fato. Como documentos de uma época, esses fragmentos trazem informações que, embora breves, complementam e ampliam o conhecimento sobre o contexto em que foram escritos.
Na coluna “Bagatelas” de 29 de novembro, de 1916, o assunto é o julgamento dos assassinos do seringalista Manoel Pereira de Oliveira, crime que ocorreu no dia vinte de outubro do referido ano e que envolveu um dos combatentes da Revolução Acreana, o Coronel José Galdino. Esse fato é tratado por Chico Xisto como um crime horroroso em que o já idoso Manoel Pereira foi trucidado por dezoito capangas que invadiram sua residência e decapitaram-no covardemente. O episódio ficou registrado como o “crime de Nova Esperança”, em referência ao seringal de propriedade da vítima.
Apesar da crise, Chico Xisto põe em relevo um dado novo, no tocante à Justiça no Acre, quanto à punição de criminosos. De acordo com o comentário do jornalista, nas semanas que se seguiram ao crime:
Nas rodas familiaridades, nos hotéis, nos botequins e até nos grupos infantis que às tardes brincam nas calçadas, o assunto predileto era o horroroso crime de “Nova Esperança”.
De um grupo, ouvi: – está punido o primeiro crime no Acre, de outro: – graças à energia dos moços a quem está confiado atualmente a Justiça desta comarca, vamos ver a manifestação de um povo independente perante o Tribunal do Júri (Jornal Commercio do Acre, 29 de novembro, de 1916)

Dessa notícia, pode-se inferir que o Acre vivenciava novos tempos, começando então a sair da condição mal afamada de “terra-sem-lei”. A notícia chama mais a atenção do leitor porque, entre os acusados da morte do Coronel Manoel Pereira, é citado o nome de um dos líderes da Revolução Acreana e braço direito de Plácido de Castro: o Coronel José Galdino. Logo, ao dizer que os acusados haviam sido presos, deduz-se que, aquele ex-combatente, se não foi condenado, pelo menos, foi privado temporariamente de sua liberdade de locomoção até que os fatos fossem apurados .
José Galdino, uma vez recolhido na prisão, tratado não mais como herói, mas como um cidadão comum, estava exposto ao julgamento adverso do público e até ao escárnio de seus inimigos. Fato que não tardou a acontecer, conforme se pode verificar na coluna “Atualidades”, no texto assinado pelas iniciais “S.M”, publicado no jornal Commercio do Acre de maio, de 1918, em que, segundo o texto, José Galdino era: “um criminoso vulgar”, cuja figura equivalia à “sombra desse herói do mal”, que a mais ninguém podia intimidar. E, dando prosseguimento às deprecações contra o Coronel Galdino, o autor do texto refere-se a ele como “aquela peste”, homem detentor de riquezas oriundas de fontes escusas e “para quem hoje são obscuras todas as glórias” (Jornal Commercio do Acre. 26 de maio, de 1918, p. 02).
É bom que se diga que, no Acre federal, em seus primeiros anos, o judiciário não tinha autonomia. Pois, embora seus membros fossem nomeados pelo presidente da República, os prefeitos dos departamentos podiam substituí-los, a mando dos coronéis, por pessoas de seus interesses sem que houvesse mais a intervenção da União (Costa, F, 2005).
No crime em questão, no entanto, parece que esse judiciário, aludido na menção aos “moços a quem está confiado atualmente a Justiça desta comarca”, dispôs da autonomia que lhe devia ser garantida em todo o território nacional. Um dado, todavia, deve ser colocado em pauta: o fato de um dos magistrados aludido entre os “moços” ser, nada menos, que o maçom, Tenente-Coronel e Juiz de Direito Antônio Bruno Barbosa, que também era um dos redatores do jornal Commercio do Acre. Esse magistrado é mencionado como um homem que:
jamais se viu o seu nome ligado a negócios suspeitos, jamais apareceu a sua autoridade moral unida a desonestos conúbios. Se lhe perscrutarmos a extirpe, encontraremos o velho cerne inatacável das virtudes antigas, tradições de uma ascendência austera e honrada, de que o seu lar é o espelho e um dos elos (Jornal Commercio do Acre, 26 maio, de1918, p. 02)

Dos textos de Chico Xisto, o que mais se aproxima da matéria cronística é a “Bagatelas” que está datada de 14 de janeiro, de 1917, sendo também a última narrativa coletada os jornais de Xapuri do período em estudo. Nela, o autor trata de vários assuntos considerados importantes para o cotidiano da cidade na época, como: a realização de júri popular, a chegada de navios, o atraso na entrega de correspondências devido aos meios de transportes. E o mais grave dos assuntos, a falta de verbas, que era geradora das dificuldades financeiras pelas quais passava a administração pública.
Sem minimizar a importância desses fatos, o cronista diz que, dos assuntos da semana, o que mais chamou sua atenção foi sobre um condenado da Justiça de Xapuri, Júlio Cezar Tividor, que pediu para cumprir sua pena na capital federal, Rio de Janeiro, sua terra de origem. O cronista passa então a conjecturar sobre os possíveis argumentos do preso para fazer tal pedido:
Ao chegar ao Rio ele dirá: tive dor de cumprir naquela infeliz terra a minha sentença. Aconselharam-me resignar-me com a deliberação do júri; que viesse cumprir a minha pena aqui; que a prisão era mais higiênica, mais confortável e que aprenderia pelo menos a ler, e assim tomei a resolução de vir por mim mesmo, pois mandado nunca chegaria cá. Demais ali onde eu estava, a prisão era acanhadíssima, um quarto para mais de quarenta presos e eu tinha de dormir fora da prisão por falta de cômodo e por ser o preso mais velho e de mais confiança. Tinha também muita vontade de aprender a ler, mas, justamente nesta época, a época das reformas ali, o que quer dizer, a época em que se dá mais um passo atrás na estrada do progresso, quando eu esperava que a instrução fosse mais ampliada, que as pequenas salas onde funcionavam as escolas, onde as meninas mal podiam se mover, fossem substituídas por prédios apropriados; que fosse nomeado um professor que nos viesse esclarecer, nas prisões, o espírito, preparando-nos para a correção e o futuro, quando isso esperava, foram suprimidas as escolas por falta de verba na Prefeitura! E podia eu (dirá o Julio Cezar), cumprir uma sentença numa terra desta? (Jornal Commercio do Acre, 14 janeiro, de 1917. p. 02).

O escritor faz uso de uma estratégia semelhante à usada por Zeferino, do jornal O Acre, de 1913, na anedota sobre a administração do Acre Independente, a qual, ele diz ter escutado de outra pessoa. Ou seja, ele dá voz a um narrador que conta algo que poderia ser contado pela voz do personagem. Chico Xisto, porém, diferente um pouco de Zeferino, porque dá nome a seu personagem: Júlio Cezar Tividor, embora não se saiba se essa pessoa era real ou imaginária. E, não havendo nenhum documento comprobatório de sua identidade jurídica, melhor é concebê-lo como uma categoria ficcional. Nesta esfera, as ações que lhe são atribuídas são sugestivas de imaginação criadora do escritor. Todavia, importa mais a observação que o cronista faz sobre os fatos, os quais são coerentes com o contexto do que saber se o nome citado, em seu texto, é real ou fictício.
O cronista põe em evidência o quadro decadente em que se encontrava o antes rico e próspero departamento do Alto Acre, cuja sede era a cidade de Xapuri. O pseudo-relato do condenado da Justiça permite deduzir que, a administração pública, com as migalhas que recebia do governo federal, não tinha como manter a higiene da única prisão local e que, por sinal, encontrava-se com superlotação. Tampouco, a verba dava para garantir aos sentenciados, sob a guarda do Território, o acesso à alfabetização, como também não dava para manter e ampliar o ensino regular. Pois, ainda de acordo com esse pseudo-relato, as escolas foram suprimidas por falta de verba para a prefeitura local.
De modo geral, os cronistas que publicaram nos jornais de Xapuri, depois de 1915, quando a crise econômica já era um fato incontestável, atribuíam aos governantes e ao meio natural a culpa pelo fracasso que se abateu sobre o Acre. Para eles, uma das implicações do ambiente se dava quanto aos meios de transportes. Pois, em um lugar onde o único meio de transporte era o fluvial, a diminuição do volume de chuvas, já evidenciadas na época, era um dos fatores que agravava o deplorável quadro, uma vez que, sem chover o suficiente, os rios tornavam-se intrafegáveis para os navios cargueiros de grande porte. E em conseqüência disso, o Território do Acre, cada vez mais, ia se tornando um lugar relegado ao esquecimento e à miséria.
Observa-se que, quanto mais se consolidava o poder federativo sobre o Acre, e quanto mais se evidenciava a crise da borracha, mais as crônicas desse período suprimem a menção aos feitos dos desbravadores e aos brios dos revolucionários. Aqueles seres históricos, quase mitificados nas primeiras crônicas, encontram-se agora em oposição à representação heróica feita pelos escritores que escreveram sobre a memória da Revolução Acreana, nas crônicas de 1907 a 1913. Nos anos da decadência econômica, porém, depois de 1913, até mesmo o grande líder Plácido de Castro é pouco lembrado pelos escritores.


3.6. Autorias femininas ocultas

A história tem revelado que durante a modernidade, em todas as culturas letradas, das quais se tem conhecimento, as escritoras mantiveram-se duplamente ocultas: a primeira situação se dava por forjarem um nome com o qual se apresentavam ao público, e a segunda, pelo fato do nome escolhido, raramente, representar o gênero feminino. Se aos homens havia restrições que tolhiam o exercício das idéias, muito mais devia haver às mulheres. E como resultado dessas formas de cerceamento tem-se, na história da escrita, tanto de homens como de mulheres, milhares de pseudônimos, cujas autorias talvez jamais sejam identificadas.
As mulheres começaram a escrever para jornais ainda no século XIX, quando o gênero folhetinesco era um modismo entre a classe burguesa, porém como, naquela época, era inadmissível para a sociedade que uma mulher tivesse vida pública, inúmeras escritoras talentosas não se deram a conhecer a seus leitores. Um dos nomes representativos dessa situação é o da inglesa Mary Ann Evans, que durante toda sua vida esteve oculta sob o pseudônimo George Eliot.
No Brasil, a situação não foi muito diferente, todavia algumas mulheres ousaram sair do casulo. Isso se deu não muito tempo depois do surgimento dos periódicos mantidos pela iniciativa privada. Nesses jornais, a participação de escritoras não era algo incomum. No entanto, a elas cabia somente a colaboração com textos cívicos, didáticos e doutrinários, a exemplo de Júlia Lopes de Almeida, que teve alguns de seus artigos didáticos publicados também em Xapuri, no jornal Correio do Acre de 1912.
A expressão lírica das escritoras brasileiras no início do século XX era também orientada para a função pedagógica e, quando muito, para poesias de conteúdo marcadamente religioso ou de louvor à natureza. Do contrário, restava-lhes o subterfúgio do pseudônimo, como ocorreu à Madame Chrysanthème, pseudônimo que ocultava a escritora Cecília Bandeira de Melo Rebelo, acusada de escrever textos escandalosos, como o que se intitulava “Virgindade Imoral e Antihigiênica”.
No Acre, na produção impressa dos anos formativos, raramente se encontra alguma menção à presença de mulheres entre os exploradores e revolucionários e, muito menos, sobre a participação delas em atividade intelectuais. Embora não se possa descartar a possibilidade de alguns pseudônimos pertencerem a mulheres, uma vez que, entre os textos coletados dos jornais de Xapuri, foram encontradas algumas cartas e poemas de autoria feminina. E que esses textos, a maior parte, possivelmente, assinada por pseudônimos, revelam haver na região mulheres instruídas e de posicionamentos considerados de vanguarda para a época e local.
Faz-se, portanto, necessário levar em consideração o contexto em que se deu a presença da mulher oriunda de culturas letradas no Acre durante o primeiro ciclo da borracha. Sobre esse aspecto vale citar a tese de doutorado de Margarete Edul Prado de Souza Lopes (2006), em que a pesquisadora faz um estudo sobre as relações de gênero através da produção escrita das mulheres no Acre.
Segundo essa pesquisadora, na formação do Território do Acre, as mulheres não foram tratadas com benevolência, a começar pelas nativas que foram massacradas, estupradas e mortas durante o desbravamento e conquista da região. E quando o elemento dominador já se encontrava de posse da terra, tendo se dado conta da escassez de mulheres, passou a pleiteá-las via negociações com os seringalistas, donos de casas aviadoras e demais financiadores do látex. As mulheres passaram a ser objeto de troca tais quais os produtos do extrativismo.
Os seringueiros, por sua vez, disputavam-nas uns contra os outros, utilizando em regra o “convincente” recurso do inseparável rifle norte-americano Winchester, calibre 44 de repetição, o que, muitas vezes, terminava em morte. Quando não, em uma convivência quase sempre forçada para a mulher, que, independente de sua vontade, deveria aceitar por marido o homem que tivesse mais condição de mando ou que se mostrasse mais forte, de acordo com as regras locais.
O cronista Zé do Barranco tematiza esse aspecto da vida social do Acre território, em sua crônica do dia 20 de abril, de 1913. Ele narra um episódio ocorrido no Alto Acre, já nos tempos a que pode chamar de civilizados, em que o Território já dispunha de juiz de paz . Todavia não se pode esquecer que os acontecimentos da história transpostos para o campo ficcional são recriados e deles pode-se apenas inferir recortes da realidade. Zé do Barranco, como observador das margens dos rios e das vidas alheias, observa a vida dos outros “Zes” habitantes do barranco, anônimos como ele, que nessa posição de escritor oculto põe a nu a vida dos seus conterrâneos.
Ele passa a contar uma negociação entre dois seringueiros, envolvendo uma mulher e umas pelas de borracha e sernambi e um juiz do Departamento do Alto Acre. Segundo o Zé do Barranco, “esse tipo de negócio era comum no Acre de outrora”, dando uma idéia de que o fato já estava longe no tempo, embora que pelos registros históricos, observa-se que a presença de juízes de paz era algo não tão distante do tempo da escrita. Antes, porém, de iniciar a narrativa, o cronista explica ao leitor o significado da palavra “pertence”, que no contexto local, servia como garantia do pagamento da dívida, que no caso era a mulher de um dos seringueiros:
Um deles tinha vendido a sua amásia ao companheiro, por uma pele de borracha e um pouco de sernambi. (...) Ao terminar o prazo do recebimento, dirigiu-se o primeiro à barraca do segundo e exigiu o cumprimento da obrigação contraída. Este procurou satisfazê-lo, entregando-lhe a quantidade de sernambi convencionada.
O credor, porém, não aceitou o pagamento por um motivo muito simples: o sernambi devia ser de seringa e não de caucho . O outro, não concordando com isso e, desavindos, recorreu ao Juiz de Paz, para que este providenciasse a respeito. (...) O Juiz de Paz pensou sobre o assunto, examinou o pertence e cada vez se via em maiores dificuldades para dar uma solução ao caso. Chama o seu escrivão e consulta-o sobre o que havia de fazer.
Esse depois de ver o pertence, declarou que ele estava legal e que o recurso era o comprador ser obrigado a pagar, ou então a mulher voltar para a companhia do credor.
Essa protestou que não voltava para a companhia de nenhum dos dois. Queria ver-se livre de ambos.
Então o escrivão sentenciou que o melhor era meter os dois no tronco e a mulher ir para onde quisesse, porque aquilo era uma imoralidade.
O Juiz concordou com a opinião do seu auxiliar e para coroar a obra declarou que a mulher ficava em sua companhia. E assim, lá se vai de águas abaixo o pertence do seringueiro (Jornal O Acre, 13 de abril de 1913).

O desfecho bem humorado da crônica suscita reflexões sobre a condição da mulher no Acre antigo. Usada, não somente como objeto de compra, também como penhor nas negociatas do marido proprietário e inescrupuloso. Mais sem escrúpulo ainda foi o juiz, que agiu de modo semelhante aos “coronéis-de-barranco”, os quais eram, para o cronista Zé do Barranco, homens “sem Deus nem lei” (Jornal O Acre, 30 de março, de 1913), e resolveu a contenda entre os seringueiros, tomando para si a mulher e mandando colocar os seringueiros no tronco.
No entanto, somente quem tinha o direito de encomendar uma mulher era o seringueiro que tivesse saldo com o patrão. E isso significava viver confinado na floresta dia e noite, quase nunca tirando um dia de folga. Logo, esse tipo de trabalhador tinha pouco convívio social com a população dos povoados. Do mesmo modo seria o padrão de vida de sua parceira. Esta ia à margem do seringal apenas nas datas festivas, religiosas e cívicas, quando muito, no dia do aniversário da Independência do Brasil e por ocasião das festas de final de ano. Nesse contexto, é pouco provável que essas mulheres tivessem alguma forma de atividade intelectual em igual proporção à dos homens.
Nos jornais pesquisados, encontram-se poucos textos de autoria feminina explícita, a maioria, porém, pode ser considerada como pseudônimo, visto que os nomes usados não constam nos documentos oficiais da época. Os únicos nomes que se pôde localizar nas fontes documentais foram os das senhoras Maria Vicença Mota e Celina Barbosa , que publicaram cartas nos periódicos locais, ambas eram casadas com militares maçons e colaboradores da imprensa local.
Maria Vicença era esposa do Major e Juiz de Paz, por nomeação, Cícero Mota, que se encontrava no Acre desde 1905, enviado pelo governo federal. Esta senhora veio a público, por meio de uma Carta Aberta, no jornal Commercio do Acre, em 1916, para defender a si e ao marido das acusações levianas que vinham sofrendo por parte de algumas pessoas recém-chegadas ao lugar. Segundo a autora, ela e o marido prestaram serviços à Agência Postal de Xapuri e não receberam o devido pagamento do seu trabalho. De antemão, ela avisa aos leitores que, ao se manifestar em público, estava quebrando a promessa que havia feito a si mesma de não tratar de tal assunto através da imprensa, mas, segundo o teor da carta, o que a levou a agir assim foi:
um sentimento de revolta e de indignação tamanha que fez me arredar do propósito em que me havia firmado de não discutir pela imprensa a vileza que comigo praticaram.
Tudo, porém, tem um limite, e, como os promotores da campanha contra mim, os aventureiros mais ousados e desbriados que a esta infeliz terra têm aportado, estão de malas arrumadas e prontos para semear a desditosa terra que teve a infelicidade de abrigá-los por alguns anos, resolvi trazer ao público estes esclarecimentos para que a maldição dos perseguidos por eles se perpetue na história desta terra e nos espíritos das crianças e cujos pais eles arrancaram o pão e o trabalho.
(...)
Que me respondam os meus caluniadores, se tiverem algum resquício de brio.
Que me dê uma solução o Sr. Coronel Raul de Azevedo, Administrador dos Correios do Amazonas, cujo zelo e correção no desempenho do cargo que há tantos anos ocupa, se há patenteado de modo digno e louvável.
Em nome da nobreza de seu caráter, dos deveres do seu cargo, faço-lhe este apelo para que possa eu confundir, com a sua solução, os miseráveis caluniadores, que com o fim de apossarem-se do cargo que eu exercia como conseguiram, desceram à esterqueira onde se chafurdaram os miseráveis, arrastando naquela descaída até cavalheiros distintos que foram iludidos.
Quero agora receber o que me compete, o dinheiro que ganhei honradamente com meu trabalho (Jornal Commercio do Acre. 02 de abril de 1916).

A autora, além de demonstrar habilidades com a escrita, denota personalidade forte e destemor ao afrontar em público as pessoas que, segundo ela, tentavam manchar a sua reputação e de seu marido. Ademais, ao vir por meio da imprensa prestar contas de seus atos à comunidade, exigindo também o pagamento que lhe era devido pelos serviços prestados como agente do Correio local, essa mulher pode ser considerada de vanguarda para o contexto da época.
Outra mulher que assina uma Carta Aberta nos jornais é Celina Barbosa , esposa de Bruno Barbosa. Essa senhora teve atuação nas atividades filantrópicas e religiosas na cidade. E Pelo teor de sua carta, pode-se afirmar que se tratava de uma pessoa que tinha boa instrução escolar, assim como sua contemporânea, Maria Vicença Mota. Entretanto, a expressão escrita de Celina Barbosa é bastante polida, bem apropriada à maioria das mulheres que assumiam a autoria dos textos que destinavam aos jornais.
Para ilustração de outras cartas assinadas por mulheres, citam-se as correspondências trocadas entre Zuleida de Azevedo e Zalina , por meio do jornal O Acre, de 1913, em que as autoras trocam idéias sobre a natureza masculina e o comportamento podado das mulheres face às imposições do modelo social da época.
Zalina responde uma carta da amiga Zuleida, em que justifica a volubilidade dos homens, dizendo que se as mulheres tivessem as mesmas oportunidades, talvez, agissem do mesmo modo que os homens. Enquanto Zuleida de Azevedo, em sua missiva, adverte a amiga quanto a não se deixar embevecer pelos poetas, pois, segundo ela, eles são bons de lábia, porém indignos da confiança cega de uma mulher.
Essa advertência tem motivação no soneto “Recordação” que Zalina publicou no Jornal O Acre de 23 de março de 1913. No soneto, a poetisa rememora um alvorada em que os cantos ternos de amor feitos pelos trovadores a deixaram com a alma arrebatada, saudosa e desejosa de ouvi-los novamente. Zuleida, ao endereçar a carta à Zalina, diz ter lido com imensa satisfação o poema da amiga, tecendo, porém, algumas observações:
Canta, minha Zalina, canta a tua saudade repassada de doçura, mas não te deixes prender pelo feitiço dos bardos. São uns sonhadores, e, como sonhadores não amam a nós outras, mas a um ideal que lhes vive nas almas de cantores, nascendo aos primeiros arpejos de uma sonata e morrendo ao expirarem as suas ultimas notas. Não te fies neles minha amiguinha, aceita o conselho da tua Zuleida Azevedo (Jornal O Acre. 23 de março 1913, n° 02, p. 02).

Embora essas cartas sejam assinadas com nomes femininos (Zalina e Zuleida), não existem dados comprobatórios de que foram escritas por mulheres, podendo se tratar de pseudônimos criados pelos colaboradores do jornal O Acre. Prática bastante usada na época na imprensa brasileira e também na imprensa local, a exemplo dos muitos casos já citados no decorrer deste trabalho, como: Zelinha, Zé do Barranco e Zé Ferino, cujas autorias permanecem ocultas.
Apesar da ressalva, merece atenção o trecho em que Zuleida alerta a amiga, dizendo que ela deve se acautelar dos poetas, os quais, por serem sonhadores, “não amam a nós outras” (Jornal O Acre. 23 de março, de 1913, p. 02). Essa expressão pode significar que os poetas não amam a mulheres reais, dotadas de virtudes e defeitos, mas a mulheres ideais que povoam sua imaginação. Com essa observação, a autora da carta denota estar em compasso com o espírito da época realista, em que não se concebia mais a perpetuação dos perfis femininos, que mais se aproximavam de criaturas aladas e inalcançáveis.
Entre as cartas de autoria feminina, encontram-se também algumas de cunho satírico, assinadas por Chica Tereza Noronha, enviadas de um seringal ao compadre Cosme Chico Queiroz, por meio do jornal Correio do Acre, de 1911. Apesar de se tratar de um nome acompanhado de sobrenome, parece mais razoável atribuí-las a uma autoria masculina oculta por pseudônimo, uma vez que o conteúdo delas objetiva trazer à tona as críticas dos autores à administração pública local. Atitude pouco provável para ser tomada por uma mulher e, principalmente, por se tratar de uma época em que não lhe era permitido fazer exposição pública de suas idéias, ainda mais, em um lugar tão pequeno, como era Xapuri, onde todos se conheciam.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As crônicas jornalísticas xapurienses, do período estudado, são repletas de episódios memoráveis do que têm sido a saga de alguns, a epopéia ou a tragédia de muitos. E, assim como a história do Acre, esses episódios, ao serem resgatados dos mais diferentes escritos, podem ser reescritos e redescobertos, garantindo a continuidade da memória do lugar e de seus constituintes, através do tempo.
As crônicas reiteram e ampliam o conhecimento sobre a história da formação do Acre, já narrada por outras fontes. Ao se visitar esses textos, “lugares de memória”, pôde-se inferir que os brasileiros e estrangeiros, os quais subiram os rios e adentraram a selva, na segunda metade do século XIX, foram como os bandeirantes que transpuseram com ambição e espírito de aventura os limites inóspitos do intrigante mundo, que ainda era o Brasil da época.
De acordo com os cronistas, foram esses desbravadores que, com os sacrifícios das próprias vidas, conquistaram o “torrão” acreano e sua conseqüente incorporação ao Estado Brasileiro. Ainda que nas crônicas da fase formativa do Acre, os escritores caricaturizem o perfil de seus “heróicos coronés”, desnudem-lhes o caráter, ora prestando-lhes homenagens, pela persistência na defesa de seus interesses, ora expondo-lhes os defeitos para o jugo do leitor.
No contexto histórico acreano, dentre outras cidades, não menos importantes, destaca-se Xapuri que, afora sua relevância nas searas econômicas e culturais, tem significação política como espaço onde os movimentos pela autonomia e anexação do Acre ao Brasil ganharam impulso. Não se pode, contudo, negar que tais movimentos tiveram suas motivações calcadas, muito mais, em interesses exploratórios capitalistas do que na manifestação da vontade dos milhares de trabalhadores que se embrenharam nos seringais em busca de sobrevivência.
Sabe-se que o ideal autonomista, que perpassa as crônicas do Acre pós-revolucionário, era a manifestação da vontade de dominação sobre o território para fins de exploração pelos agenciadores do extrativismo. Estes encontravam eco para suas ambições na insatisfação dos seringalistas e comerciantes, frente à administração autoritária e espoliadora de governo federal sobre a região. Somada a esse fato, a primeira crise da borracha levou os mandatários locais a buscarem alternativas para superá-la e a organizarem protestos contra o modelo político e administrativo imposto pela União, considerado como um agravante a mais.
Os fatos elencados são versados nas crônicas dos jornais de Xapuri, no período já citado neste trabalho. Além dos eventos correntes durante as edições dos jornais, as primeiras crônicas escritas, principalmente as de 1907, tratam de fatos ocorridos em um passado mais remoto, durante os primeiros anos de desbravamento do Acre, ainda no século XIX. São, portanto, crônicas que resgatam, não somente a memória de Xapuri, mas também a memória da exploração e da conquista do Acre, tratando o fato, às vezes, em tom quase épico e, às vezes, em tom humorístico.
Sobre o meio em que essa memória foi registrada, abre-se aqui um espaço para relembrar que o mesmo teve como suporte os jornais e que estes foram fundados no início do século XX, no período irrequieto, após a Revolução Acreana (1902). Período em que, no Acre, surgiram os serviços de imprensa. Tal fato foi marcante porque se tratava da inserção de um instrumento da cultura letrada em um cenário rústico e pouco propício para emanações de intelectualidades.
Salvaguardadas as adversidades existentes no meio social e político, as dificuldades de acesso aos meios de informação e as possíveis interdições na difusão das idéias de homens de letras, os jornais serviram de espaço para o registro dos fatos considerados relevantes ao tempo dos acontecimentos. Há, contudo, que se levar em consideração que o critério para que tais acontecimentos fossem ou não registrados e divulgados, estava sujeito à determinação dos grupos patrocinadores da imprensa.
Ressalva-se, por dever de justiça, a contribuição da Maçonaria, em especial, pela disseminação das idéias autonomistas, mesmo que não fosse a “autonomia imediata” como queriam a maioria dos seringalistas e partidários de Plácido de Castro, mas uma “autonomia oportuna”, em consonância com os interesses do governo brasileiro.
Por oportuno, é bom lembrar que essa instituição, a Maçonaria, era constituída pelos membros dos dois segmentos sociais dominantes, ou seja, dos grandes seringalistas, comerciantes e financiadores do extrativismo, bem como pelo grupo dos representantes do governo federal, constituído pela burocracia administrativa, civil e militar, em que se sobressaíam alguns letrados. Por isso, face à sua composição mista, e, no âmbito de sua atuação, de certa forma, agregadora, a Maçonaria transitava nessas duas forças opostas, não raras vezes, agindo como mediadora.
Nas crônicas de Xapuri, evidencia-se que, na luta de interesses, de um lado, encontravam-se os que defendiam a causa em favor dos anseios dos “brasileiros do Acre”, cuja peleja fulcrava-se na defesa da “autonomia imediata” do Acre como um Estado independente. Ainda que esse ideal fosse vinculado ao capital internacional, que movia a economia do extrativismo. Os partidários da autonomia imediata do Acre, comerciantes, donos de casas aviadoras, banqueiros e seringalistas, promoviam a defesa de sua causa por meio da força bélica. Embora dentro desse segmento, houvesse uma pequena parcela que acreditava haver solução para o impasse de forma pacífica.
E do flanco adverso, postavam-se os representantes do governo federal, em regra, oficiais militares, nomeados para funções administrativas e até judiciárias, mandados para a região, a pretexto de garantir a paz e a soberania brasileira no Acre, embora também munidos pela força bélica. Em ambos os grupos, encontravam-se os intelectuais do Acre, que faziam jornalismo amador e que se perfilavam conforme as alegações da causa que diziam defender, na histórica “Questão do Acre”, cujas origens situam-se nas definições imprecisas de suas fronteiras com a Bolívia e o Peru.
Os embates travados pela supremacia tinham escopo, não a posse da terra, como um bem herdado pelo qual deviam zelar, mas a defesa da liberdade absoluta, pleiteada por grupos poderosos, de explorar a região, ao máximo, e extrair dela as riquezas até o ponto de esvaziá-la. As condições de vida, atividades diárias e dificuldades dos “acreanos” trabalhadores braçais, raramente, eram mencionadas nos jornais. Quando muito, o seringueiro era mencionado, nas crônicas laudatórias, por seu labor de construir riquezas para a nação.
Nas crônicas humorísticas, que tiveram seu ponto maior em 1913, quando a primeira crise da borracha já era sentida em todo o Território, o seringueiro era tratado como alguém capaz de se unir ao indesejado regatão turco para prejudicar o patrão, vendendo as pélas de borracha abaixo do custo. A menção ao seringueiro,assim como a construção do perfil dos mandatários também é dúbia, ora dá-se para louvação do seu trabalho árduo, ora para provocar o riso do leitor.
Nas crônicas críticas, mais freqüentes depois de 1915, esse trabalhador é incluído entre os que sucateavam os seringais nativos, explorando-os de modo desenfreado, construindo “mutás” ou giraus em torno das árvores de seringa, no desejo ávido de extrair mais látex, a ponto de colocar em risco a vida dos seringais nativos.
Dos assuntos tratados, porém, o mais recorrente nas crônicas de 1907 a 1917, é o das reivindicações dos autonomistas, que se centravam em dois aspectos fundamentais: econômicos e políticos. O primeiro era consubstanciado no potencial que o Acre tinha de se auto-sustentar. Visto que, pelas cifras anuais, o Território contribuía para a nação com uma receita maior do que a de dezesseis Estados do Brasil e apresentava elementos financeiros capazes de garantir seu desenvolvimento em um curto período de tempo.
Pode-se dizer que as crônicas ampliam a história do Acre, com seus encantos e desencantos, ainda que não tenham focado para a dura realidade dos seringais, para as agruras e os sofrimentos dos seringueiros. Movidos pela miragem do “ouro negro” e pela ilusão da terra prometida e da riqueza fácil, expuseram-se a toda sorte de perigos, e, muitas vezes, foram privados da própria dignidade.
Esses homens e mulheres, patrões e empregados, brasileiros e estrangeiros, são os seres que povoam a memória escrita, não somente de Xapuri, mas de todo o Acre. Pode-se inferir do apanhado geral que as crônicas possibilitam que os desbravadores fizeram sua história com determinação e coragem, deixando para as gerações presentes e futuras o valioso legado da persistência e ousadia.
Os cronistas de Xapuri podem ser também considerados importantes personagens na história do Acre, figurando entre os muitos personagens, históricos e ficcionais. Isso porque suas escritas indicam que eles assumiam traços de identidade com o cotidiano da localidade, pois revelam a existência de vínculos entre os escritores e os eventos por eles narrados.
É nítida, nos textos, a idéia de que, mesmos oriundos de outros lugares, esses letrados “brasileiros do Acre” eram de fato nutridos de um forte sentimento de apego à terra conquistada, uma vez que essas pessoas adotaram o Acre como terra natal, nela se fixando, criando raízes em definitivo. Portanto, é indubitável a contribuição propiciada pelas crônicas escritas em Xapuri à memória do Acre.
Seria inapropriado asseverar que os jornais, como meio de comunicação social, tinham veiculação isenta de interesses políticos e econômicos, particularmente, no período delimitado nesta pesquisa. Na verdade, os periódicos editados em Xapuri, assim como em outras localidades, eram criados, mantidos e extintos pelos grupos que detinham a hegemonia política e econômica no Território, razão pela qual defendiam precipuamente seus interesses.
Em regra, com um ou outro grupo de mandatários, as relações dos jornalistas cronistas com os detentores do poder eram de passividade conveniente, de defensores de seus interesses e de subserviência. Quando alguma crítica era veiculada de forma mais veemente, com raras exceções, era sempre direcionada em detrimento de um grupo e em proveito de outro que almejava a hegemonia do poder.
Desse modo, a memória da crônica, originada na vida da coletividade, funciona como instrumento de denúncia, porém, monitorada pelo poder vigente, assim como eram os jornais, onde o gênero se espraiou. Ambos são, ambiguamente, produtos e produtores das forças que regem esse poder e que, em razão disso, seu foco de atenção move-se de acordo com as regras em voga.
Nessas circunstâncias, a construção e preservação da memória acontecem, quase sempre, através das estratégias dos agentes políticos imbuídos de evidenciar somente os fatos e as figuras que se coadunam com os interesses em jogo, com vistas à estabilização de uma memória institucional que é carregada de intenções.
Há que se reconhecer, contudo, o fundamental papel das crônicas jornalísticas de Xapuri, assim como de outras cidades do Território do Acre, como importantes fontes reminiscentes da vida acreana, dos feitos de seu povo e de sua cultura. De enaltecimento das riquezas e belezas naturais, mesmo nas circunstâncias em que os escritores, influenciados pelo pensamento determinista, em voga na época, atribuíam também à natureza a responsabilidade pelas agruras do homem.
Além disso, as crônicas colocam em evidência o perfil dos formadores do Acre, descritos como destemidos e rudes, analfabetos, ou não, mas, em sua maioria, persistentes na luta pela criação de um Estado independente, onde construíram sua prole. E como legado, eles deixaram o “instinto, ou espírito, de acreanidade” tão em evidência desde a composição do Hino Acreano, no período pós-revolucionário, aos tempos atuais, em que o povo do Acre pode, enfim, usufruir das garantias constitucionais, conferidas a todos brasileiros.


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Sites consultados

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