[Meus caros leitores: saibam vocês dois ou três
que, relendo os textos de Zé Pedro Antunes, resolvi publicar minha tese de mestrado aqui no Usina. Afinal, ela foi financiada com o dinheiro do povo brasileiro numa universidade pública. Conhecimento é para ser socializado. Estamos no momento certo: 80 anos da Semana de Arte Moderna, cem anos da publicação de Canaã, de Graça Aranha, obra tematizada por mim aqui e hoje quase esquecida. Perdoem-me aqueles que tiveram a tese dedicada a eles: Luciene, Ramon, Sarapatetas, mas aqui foi preciso outro tipo de início. Oxalá seja um novo início mesmo.]
1. Introdução
A nossa vida (de brasileiros) é, no seu aspecto geral, e de um certo período para cá, a marcha incerta e lenta, desgraciosa e constrangida, de um povo que a cada passo que avança se volta, inquieto, para a estrada de onde o estrangeiro o está contemplando a procurar, da massa fria dos espectadores indiferentes, o sorriso de aprovação que lhe dê alento para seguir. (RBR, v.1, n.1, p.2, jan. 1916)
Durante a década de 70, Plínio Salgado (1895-1975) e sua ideologia, o integralismo, foram objeto de estudo de muitos livros na área de Ciências Humanas de várias universidades brasileiras. O Plínio Salgado literato encontrou bem poucos autores que analisassem suas obras. O que ocorreu com freqüência foi que historiadores e cientistas políticos comentaram as obras literárias apressadamente, para embasarem teorias abrangendo toda a atividade intelectual de Plínio Salgado .
Comecemos por dois estudos sobre o integralismo já publicados: O Integralismo de Plínio Salgado, de autoria de José Chasin, e A Ideologia Curupira, de Gilberto Vasconcellos. Num momento histórico de intenso estudo do integralismo (o final dos anos 70), o professor Florestan Fernandes escreveu no prefácio de uma das obras lançadas no período (A Ideologia Curupira, de Gilberto Vasconcellos):
Acho penosa a tarefa de escrever um prefácio para um livro como A Ideologia Curupira. Não que a obra de Gilberto Vasconcellos exija reparos graves ou que seja destituída de valor (...). O que a põe de quarentena é o assunto. Hoje 1979 está na moda dizer-se que se deve estudar o integralismo. Não compartilho dessa opinião. Nem mesmo devemos nos preocupar em destruí-lo (...). Se merecem atenção os integralistas não é tanto por eles próprios, quanto pelo fato de que o pensamento conservador e a burguesia dependente da periferia do mundo capitalista tenham precisado deles (e de outras modalidades igualmente equívocas de defesa do status quo). O que nos coube, na ‘virada fascista’ da história recente, merece mais a novela picaresca que a investigação sociológica séria. (Fernandes. Apud: VASCONCELLOS, 1979, p.13)
Diante de um enfoque sociológico sério, um professor famoso como Florestan Fernandes descartou a questão do integralismo (que incluiu, em última análise, a questão nacional), dizendo preferir vê-la motivo de sátira literária. As abordagens mais sistemáticas realizadas se fixaram genericamente no integralismo como um todo, permanecendo centradas em seus aspectos políticos, como o texto de Marilena Chauí, “Apontamentos para uma Crítica da Ação Integralista Brasileira” . Logo de início, Vasconcellos esclareceu seu objetivo e justificou sua análise:
A busca da especificidade do integralismo enquanto discurso fascista que se insere numa sociedade capitalista periférica, eis o alvo desse trabalho (...). Diferentemente das burguesias dos países centrais, a burguesia dependente não consegue realizar seus papéis históricos: a autodeterminação do Estado, a autonomia nacional, a ‘democratização’ da renda, do poder, etc. O passo trôpego da burguesia brasileira é inegável (...). Com efeito, faz pouco tempo que ela, ajustando-se ao ritmo da divisão internacional do trabalho, voltou as costas à ideologia da ‘autonomia nacional’, substituindo-a por justificativas tecnocráticas mais condizentes com o lema ‘desenvolvimento e segurança’, de que a ‘democracia forte’ e o ‘milagre econômico’ são os exemplos mais eloqüentes. Nesse contexto, o ‘nacionalismo burguês’, de que se lambuzou à vontade a utopia curupira dos anos 30, está sepultado, historicamente sepultado (...). A ideologia curupira, no entanto, tem passos largos. Embora não em sua forma original, ela reaparece em cena ainda hoje quando, por qualquer motivo, querem nos convencer de que, nestas brenhas, a luta de classes não viceja – vem, é trazida de fora, infiltrada. (VASCONCELLOS, 1979, p.21)
Pretendendo fazer uma análise da ideologia integralista, Vasconcellos prefere analisar os textos teóricos (Literatura e Política, Manifesto da Anta, Manifesto Verde e Amarelo, Curupira e o Carão), deixando de lado O Estrangeiro e os romances de Plínio Salgado. Ele avançou no sentido em que, além de apontar elementos no verde-amarelismo, os encontrou – através do texto de Bosi – também na Antropofagia oswaldiana:
Sendo um texto atento à escassez de nosso subsenvolvimento, o manifesto Pau-Brasil encerra, ao contrário, uma imagem desconcertante, não afirmativa do país. É preciso acrescentar o seguinte: apesar de tudo, ele fica preso à aparência do real, dando conta somente do que está mais visível no fenômeno da dependência. Quer dizer: registra de modo crítico seus efeitos, porém não os vê como resultado de sua inserção num processo histórico global. À semelhança do movimento antropofágico, Pau-Brasil se compraz em constatar os contrastantes e conflitantes segmentos de nosso capitalismo dependente. Falta-lhe uma visão totalizante da dependência, uma ausência de ‘sistematização’, para citar novamente o juízo de Mário de Andrade (...). Uma vez que tais desajustes são vistos de modo estilhaçado (e não há aqui nenhuma condenação da polissemia, da ambigüidade estilística), na base da justaposição dos segmentos contrastantes de nossa realidade social – sem uma compreensão histórica unitária --, esse manifesto acaba por apresentá-los abstratamente como a encarnação alegórica do país, cuja conotação última é a idéia irracionalista do Brasil como o absurdo, o caos, reduto do nonsense. (Bosi. Apud: VASCONCELLOS, 1979, p.161)
Assim, vemos que o irracionalismo foi um elemento presente também no texto oswaldiano, e não esteve somente nas obras de Plínio Salgado. Acreditamos que essa obra deve ser entendida em sua lógica interna. Devemos também nos esforçar para não estigmatizá-la como patológica, deixando de lado a simples acusação de ligação com o fascismo europeu. Podemos avaliar a possível origem desse irracionalismo numa tradição romântica, como veremos logo abaixo.
Num artigo chamado “Entre a Melancolia e a Exaltação: Povo e Nação na Obra de Plínio Salgado”, Eliana de Freitas Dutra estabeleceu uma relação entre o Romantismo e os conceitos produzidos por Plínio Salgado:
Interessa-nos, sobretudo, situar as definições de Plínio Salgado dentro de um campo contextual do pensamento político sobre o Brasil, em que se destacam traços que, a nosso ver, estão presentes em outros autores da sua geração, embora nem todos pertençam, necessariamente, à sua tradição política. Nesse caso, estamos pensando em Vicente Licínio Cardoso, Tristão de Athaíde, Ronald de Carvalho, Tasso da Silveira, Cassiano Ricardo. O nosso pressuposto é que o quadro referencial que conforma o pensamento pliniano sobre o Povo/Nação e define os matizes do seu pensamento político é o do Romantismo, na tradição, com momentos de maior ou menor aproximação, do conservadorismo de autores românticos como Novalis, de Bonald, e De Maistre, tanto quanto, guardadas as devidas diferenças, do utopismo romântico de um Michelet. Pensamos que a dimensão romântica da obra de Plínio Salgado, embora alinhada com autores do primeiro movimento romântico, pode ser compreendida dentro do que Michel Lowy chama de o novo surto de Romantismo que ocorre entre o final do século XIX e o começo dos anos trinta. (DUTRA, 1998, p. 218)
As idéias próximas ao integralismo, dentro de O Estrangeiro, pertencem a um personagem em especial, o professor Juvêncio. Mesmo essas idéias não se devem diretamente aos nacionalismos conservadores europeus, sendo uma herança do romantismo do século XIX que chegou até o modernismo. No Brasil, o nacionalismo romântico presidiu um momento fundamental para a formação da literatura brasileira, o indianismo:
Ao resgatar nossas origens e nossa personalidade de Nação, o Romantismo, fenômeno universal, teria se manifestado no Brasil, na leitura de Plínio Salgado, conquanto um tradutor de nacionalidade, pois expressão da terra e dos delineamentos da raça em elaboração. A sugestão aqui, a nosso ver, é de que terra e a raça possuem um nexo fundamental, um vínculo primitivo, e se constituem uma espécie de raiz natural da Nação. A nossa formação política teria sido portanto demarcada dentro dos limites do Romantismo. A força do Romantismo indianista de José de Alencar e Gonçalves Dias estaria nessa função de “expressão” que eles deram à força latente da nossa nacionalidade (...). O Romantismo foi, na expressão de Tristão de Athayde, um sonho de brasileirismo, de onde saiu o primeiro impulso coletivo para a literatura brasileira. Os textos centrais aqui utilizados para análise foram o Despertemos a Nação, de 1935, O Integralismo Perante a Nação, de 1945, e o Compêndio de Instrução Moral e Cívica, de 1968, no qual o autor, numa linha de continuidade e fidelidade às idéias expressas nos anos 20 e 30, agrega às suas formulações explicitações úteis para uma maior compreensão do seu exercício de conceituação. (DUTRA, 1998, p.218)
Muito embora Eliana Dutra não tenha se preocupado com a especificidade de Plínio Salgado enquanto romancista e enquanto político, o que notamos aqui é que ela o inseriu sem maiores problemas dentro de uma tradição literária que remete ao Romantismo. Dutra observou as seguintes similaridades entre o pensamento de Plínio Salgado e os românticos dos oitocentos:
Mais de um século antes de Plínio Salgado, Herder, um nome expressivo para o Romantismo alemão, elaborou uma definição étnica de Nação na qual postulava que é o sentimento que os indivíduos carregam, e não a razão, o que os ligaria à Nação. A origem e a cultura comum dos indivíduos, e não o contrato social, é o que fundaria a sua legitimidade. O que Herder chamava de Nação, alerta-nos Noiriel, estaria próximo do sentido contemporâneo dado a grupo étnico, o qual se apóia no tripé tradição, língua e sensibilidade, como sendo o que há de comum e de natural, de original, entre membros de uma comunidade(...). O Romantismo foi uma chave para a decifração da psicologia de um povo que Plínio Salgado pretendeu conhecer para poder dirigir, escorando seus objetivos com a força genuína da nossa brasilidade curupira, e cadenciando-nos pelo ‘ritmo bárbaro’ da cultura nacional. (DUTRA, 1998, pp. 225- 239)
Nesse trecho acima, Eliana Dutra reafirma o elo entre Plínio Salgado e o Romantismo. Acreditamos que em O Estrangeiro há muito de uma retomada do Romantismo, numa releitura “caboclista” do indianismo. O integralismo é que foi um desdobramento (uma continuidade que se apresentou como vanguarda política) de idéias que já tinham surgido no campo estético.
Sem avaliar essa problemática do Romantismo, mas longe de um simples paralelo com o fascismo, o livro de José Chasin, O Integralismo de Plínio Salgado, preparou o leitor desde as primeiras páginas para a hipótese que levantou, e anunciou que iria desfazer equívocos:
Plínio Salgado e o integralismo sempre foram condenados. Mereceram, merecem e nunca será demais prosseguir na sua condenação. Com uma diferença, que acentua e vigora à sanção: há que sentenciá-los por aquilo que são, não por aquilo que seus válidos inimigos entenderam, ou puderam entender que fossem. E isto, acima de tudo, para o nosso próprio bem. (CHASIN, nota introdutória, 1979)
No decorrer do texto, o que postula Chasin é que Plínio Salgado elaborou uma filosofia política a partir do Modernismo, uma criação original. Entretanto, foi rechaçado universalmente por trazer as marcas de um nacionalismo reacionário. Sua atitude (e também a nossa) não consiste no elogio de um autor condenado, mas sim na busca de sua correta compreensão.
No livro, José Chasin avaliou, no capítulo chamado Véspera e Antevéspera de um Movimento, as obras literárias de Plínio Salgado, mas desde o começo advertiu:
O conjunto dos romances, contos e poemas de P. Salgado prestar-se-ia, obviamente, a um estudo particular. A crítica literária, a história da literatura e outras angulações específicas teriam, aí, campo para investigações. Não temos nós, todavia, pretensão a abordagens dessa ordem. (SALGADO, 1979, p.255).
O caráter polêmico do texto de Chasin já se anuncia no choque entre o prefácio de Antonio Candido e a introdução realizada pelo autor. Abordando rapidamente a literatura de Plínio Salgado, Chasin efetuou algumas simplificações. Ao analisar O Estrangeiro, ressaltou:
O Estrangeiro tem sido reconhecido como a expressão mais completa e acabada do romance pliniano. Cabe acrescentar que ele é a matriz da qual todos os produtos literários de Salgado são desdobramentos de aspectos particulares nele contidos (CHASIN, 1979, p.269).
Para mais rapidamente avaliar a ideologia que a obra contém, Chasin deixou de lado uma apreciação estética mais apurada do romance:
Em face de um elenco tão numeroso, julgar-se-ia que O Estrangeiro resultasse necessariamente num romance de grande complexidade. Todavia, se o desembaraçarmos de sua linguagem pretensiosa, do rococó das frases sempre escassas de conteúdo, se suprimirmos o empolado das alusões vagas e por vezes desastradamente herméticas, que se contentam muito mais em sugerir do que afirmar, resta, com efeito, uma estrutura muito simples, um conjunto de personagens básicas que sustenta o romance, e, acima de tudo, a ideologia. São estereótipos que carregam rótulos e etiquetas de seu significado doutrinário. Estereótipos que têm no contraste entre Ivã e Juvêncio sua formulação mais significativa. O positivo e o negativo pateticamente radicais. Enquanto o primeiro é fracasso e o desastre, a inviabilidade humana da civilização urbano-industrial, o segundo é a vitória pela fuga ao sertão. (CHASIN, 1979, p.269)
Uma abordagem tão sumária ocorreu devido ao direcionamento buscado por Chasin, como ele mesmo afirmou: “Preocupados em identificar o discurso ideológico de Salgado, só deste ponto de vista a obra literária nos interessa, ou seja, enquanto afloração do discurso doutrinário” (CHASIN, 1979, p.256). Rastreando a ideologia nos romances, Chasin não os avaliou separadamente, efetuou idas e voltas, seguidamente, e volta e meia citou trechos não só dos romances como dos contos, manifestos e do Poema da Fortaleza de Santa Cruz. Chasin afirmou que a obra literária trouxe também a ideologia do autor, postulado que aceitamos; o que nos incomodou foi a redução da estética a ideologia. Chasin citou Augusta Garcia Dorea, naquela que foi a única exposição menos sumária, mas nem por isso menos laudatória, das Crônicas da Vida Brasileira: “Seus romances não formam obra de ficção com objetivo puramente literário, mas a expressão da sua ideologia, da sua constante preocupação com o povo brasileiro, do seu estudo dos problemas nacionais. São romances que trazem uma mensagem” (Dorea, apud: CHASIN, 1979, p.258). Em outras palavras, Chasin trouxe Dorea para a discussão apenas para reiterar suas posturas tomadas anteriormente, concluiu que: “de fato, a obra literária não é mais do que a ilustração, a encarnação simplificadora da doutrina, e a obra doutrinária não mais que a explicitação, a ‘sistematização’ dos significados fundamentais, a exibição da espinha dorsal que sustenta a produção literária” (CHASIN, 1979, p.258).
Em 1978, um ano antes da publicação do texto a que estamos nos referindo (O Integralismo de Plínio Salgado), foi republicado o estudo de Maria Augusta Dorea, uma tese de mestrado intitulada O Romance Modernista de Plínio Salgado, defendida em 1956 na USP. O trabalho é composto por biografia rápida de Salgado, sucintas análises da trilogia onde O Estrangeiro figura como o primeiro romance, e uma conclusão onde a autora afirmou que Plínio Salgado precisa ser estudado como um dos mais importantes romancistas brasileiros. Mesmo José Chasin se baseia em Dorea para analisar os romances, mas considerou que essa era uma análise integralista da obra literária de Plínio Salgado, e por isso demasiado elogiosa, juízo com o qual concordamos.
Chasin explicitou que seu interesse não era se debruçar mais atentamente sobre os elementos estéticos, privilegiando a busca de traços políticos e ideológicos. Tampouco discutiu as citações que colocou nas notas, que em boa parte elogiaram o romance O Estrangeiro. Afirmou, por exemplo, Nelson Werneck Sodré:
Quem quiser ter a paciência de estabelecer o confronto entre os romances de Oswald de Andrade e de Plínio Salgado verificará que, não havendo conteúdo revolucionário nem nos primeiros nem nos segundos, estes apresentam mais consistência social, mais simpatia pelo que era novo, mais acolhimento às mudanças e até maior arte e mais forte semelhança e verossimilhança do que aqueles. (Sodré, apud: CHASIN. 1979, p. 256)
Chasin não realizou a comparação entre Oswald de Andrade e Plínio Salgado, uma vez que sua prioridade foi outra. Embora também sem fazer essa comparação, Cassiano Ricardo rememorou as críticas do grupo verde-amarelo a Oswald e seus seguidores. O trecho citado abaixo estava num livro de memórias escrito em 1970, na perspectiva de quem superou os ressentimentos do passado:
Ia dizendo que ao pau-brasil, de Oswald, opôs o grupo verde-amarelo o seu manifesto: pau-brasil era um ‘pau xereta, antinacional e nefasto porque servira pra atrair piratas e traficantes estrangeiros de madeira para tinturaria’. Hoje ‘não mais que um simples arcaísmo da flora’. Oswald, com a sua genialidade, blagueur incorrigível, gostava de briga e nos insultava com uma alegria pantagruélica que dava gosto. (Ricardo, apud: CHASIN, 1979, p.191)
Chasin anotou da seguinte maneira esse choque entre tendências modernistas:
Cabe precisar que o verdamarelismo, ainda obviamente o ponto de vista de Salgado, é inserido naquilo que ele denomina de ‘segundo indianismo’ e que produziu, ‘de um lado, um forte movimento nacionalista, que se denominou o verdamarelismo; e de outro lado, um movimento surrealista e dadaísta, de dissolução nacional e diletantismo de estilo’. Esta breve, porém violenta, alusão à Antropofagia, repetida outras vezes sob formas semelhantes, além de apontar para o choque travado entre as duas tendências, encerra, provavelmente, boa parte do significado essencial do verdamarelismo. (CHASIN, 1979, p.191)
Desenvolvendo essa leitura, podemos afirmar que existiu um indianismo primeiro no século XIX, e que nos anos 20 emergiu um novo indianismo, dividido em duas vertentes, uma releitura moderada e outra radical.
Fazendo uma sucinta avaliação de O Estrangeiro, Chasin comenta que, no romance, o personagem Ivã vacilou entre “ser ou não ser burguês, entre ser ou não ser homem” (CHASIN, 1979, p.270). O extermínio dos operários foi visto como o clímax do que ocorreu com a classe operária durante todo o romance. O extermínio coletivo é mostra de que “não possuem alternativas à sua situação de imolados à sociedade urbano-industrial” (CHASIN, 1979, p.272). A análise de Chasin, que representou um progresso ao situar Plínio Salgado em seu contexto específico, deixou de lado facetas essenciais de O Estrangeiro. Notamos que Ivã e Juvêncio se transformaram no decorrer do texto: Ivã esboçou uma personalidade em contato com o meio rural e a cidade provinciana, mas entrou em colapso psíquico em São Paulo. Juvêncio, de início, acreditou que os estrangeiros seriam mais cedo ou mais tarde assimilados, dando sua contribuição patriótica como professor. Algum tempo depois, o professor nacionalista observou que os imigrantes deprimiram os brasileiros. Num segundo momento, fugiu para um sertão ainda intocado, onde acreditou ter encontrado o Brasil verdadeiro. Não houve, portanto, a dicotomia a que se referiu Chasin, quando afirmou que Ivã e Juvêncio são o “positivo e o negativo pateticamente radicais” (CHASIN, 1979, p. 272).
Se os marcos teóricos para a avaliação do pensamento de Plínio Salgado já foram colocados, não podemos dizer que sua avaliação como escritor modernista tenha avançado muito desde o tempo em que, segundo Florestan Fernandes, andou em voga pesquisar o integralismo. A inserção de Plínio Salgado na historiografia literária se deu discretamente, situando o autor na periferia do cânone.
No período em que várias obras sobre o integralismo foram publicadas (o final dos anos 70), Affonso Romano de Sant’Anna observou com acuidade a convergência entre vanguardas estéticas e políticas no modernismo, e suas repercussões na atualidade:
Um enfoque histórico e sociológico poderia facilmente situar em 1922 as linguagens que se entrechocaram dez anos depois no regime Vargas. Cassiano Ricardo, de Martim Cererê (1928) é o mesmo de A Marcha para o Oeste (1928), que já se tinha exercitado no governo Campos Salles e organizaria o movimento ‘Bandeira’ em 1936. O comunismo já estava nos manifestos de Oswald de Andrade com todos os seus dilaceramentos entre a boêmia e a revolução. O Integralismo de Plínio Salgado já estava inquieto no grupo Anta. O udenismo em suas múltiplas manifestações, mas sempre a favor de um nacionalismo convencional , já está em A Revista, uma versão moderna do despotismo esclarecido do século XVII. Talvez o grande mérito do Modernismo tenha sido o de ser câmara de eco dos ‘18 do forte’, da coluna Prestes e dos camisas verdes. O que se preparava transcendia os preparadores. No Modernismo estão presentes as contradições que nos assolaram nestes 50 anos (sic). (SANT’ANNA, 1976, p.63)
Não pudemos deixar de notar a procedência dessa análise, secundada posteriormente por Érico Veríssimo e pelo próprio Mário de Andrade, que admitiu o Modernismo como um preparador de clima para a revolução de 30. Concordamos com o crítico carioca de que o que se preparava foi muito além dos protagonistas de um primeiro momento. Em uma breve apreciação da literatura brasileira, Érico Veríssimo fez a seguinte apreciação do romancista Plínio:
Em minha opinião, o movimento modernista foi uma espécie de encruzilhada de onde se originaram os múltiplos caminhos da cena literária brasileira de hoje. Desses vários caminhos (alguns deles apenas atalhos), acho que só três são de fato importantes. Um deles tomou a direção da esquerda com Mário e Oswald de Andrade, que não eram comunistas e sim socialistas que punham grande ênfase na importância do fator econômico na vida social. O segundo caminho conduzia a Deus, via Vaticano (...). Quanto ao terceiro caminho – foi um prolongamento tardio do segundo, rumo à extrema-direita.
O líder desse movimento foi Plínio Salgado, um romancista de destaque que havia escrito um dos livros modernistas mais importantes no campo da ficção: O Estrangeiro. É a história de uns imigrantes italianos que chegam pobres ao Brasil e, obra de trabalho árduo, economia e tenacidade, enriquecem, enquanto a família local, tradicional, declina por ausência de força de vontade e incentivo. O livro todo possui um leve travo de patriotismo extremado. Suas personagens são decididamente simbólicas e a moral da história parecia conter um convite aos patriotas a reagirem e tomar posse da terra de seus ancestrais. (VERÍSSIMO, 1995, p.116)
Logo adiante, Veríssimo tomou uma postura convencional a respeito de Plínio Salgado: essa vertente, comandada por ele, terminou no fascismo, não só em palavras, mas em atos. O trecho acima se inseriu, notemos, em um livro composto de várias palestras pronunciadas por Veríssimo na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e reunidas recentemente num todo único. Observamos que a importância dada a Plínio Salgado dentro do contexto do modernismo serviu para o palestrante chamar a atenção da platéia norte-americana: por um lado, colocou a questão da imigração italiana, muito significativa nos EUA, como tema principal do livro, enquanto o fio condutor da narrativa é a trajetória do russo Ivã. Assim sendo, Veríssimo estrategicamente vinculou o tema literário a um tema político familiar aos norte-americanos e sempre polêmico: o fascismo.
O texto de Veríssimo acima referido exprimiu indiretamente uma contradição com a qual temos de lidar: o Modernismo, com características progressistas, conciliando o particular e o universal, terminou dando uma vertente ao mesmo tempo rebelde e retrógrada. A palavra modernidade pressupõe avanço, progresso, alteração e mudanças substanciais, e ainda produz surpresa que a ideologia de um modernista como Salgado abrangesse também fenômenos como recristianização do país, nostalgia das raízes rurais e uma crítica romântica e retrógrada ao capitalismo.
Essa contradição ficou evidente nos anos 30, quando Plínio Salgado encerrou a trilogia iniciada com O Estrangeiro, e realizou também o romance histórico A Voz do Oeste , mas sua produção se concentrou cada vez mais na elaboração de textos doutrinários. Seu romance seguinte, Trepandré, escrito em 1939, foi engavetado e só publicado em 1972.
Infelizmente, a correlação entre renovação política e estética esteve ausente do trabalho de Maria Augusta Dorea, uma obra que nos foi útil por ser a única em que a trilogia de Plínio Salgado foi analisada literariamente conforme uma fortuna crítica. O professor uspiano Antônio Soares Amora orientou a tese de Dorea sobre o romance modernista de Plínio Salgado em 1956; ele reconheceu O Estrangeiro como uma realização do modernismo:
Com a eclosão modernista de 22, decididamente caminhou-se para um romance e um conto modernos pela técnica, pela expressão e pela temática: em São Paulo, os moços modernistas exploraram os motivos da vida presente, no grande centro urbano paulista, ‘sui generis’ pelo espírito nobiliárquico de uma pequena aristocracia dominante, pela mistura racial e pelo acentuado dinamismo econômico então já evidente (Oswald de Andrade, Os Condenados, 1922; Memórias Sentimentais de João Miramar, 1924; Mário de Andrade, Primeiro Andar (contos), 1926; Amar, Verbo Intransitivo, 1927; Menotti del Picchia, A Mulher que Pecou, 1922; Antônio de Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, 1927; Laranja da China, 1928; Plínio Salgado, O Estrangeiro, 1926). (AMORA, 1965, p.209)
O crítico Wilson Martins foi um dos autores que mais se deteve sobre o texto, e basicamente o tomou para um contraponto com Oswald. Martins afirmou também que de O Estrangeiro em diante, Plínio Salgado apresentou uma decomposição estilística, entregando-se a tendências teóricas e deixando de lado preocupações estéticas. Citou o prefácio da primeira edição, fazendo um paralelo com Oswald:
‘Este livro procura fixar aspectos da vida paulista nos últimos dez anos. Vida rural, vida provinciana e vida na grande urbe. Ciclo ascendente do colono (os Mondolfis); ciclo descendente das raças antigas (os Pantojos). Marcha do caboclo para o sertão e novo bandeirismo (Zé Candinho); deslocamento do imigrante nas suas pegadas e novo período agrícola (Humberto); regresso dos antigos fazendeiros para a Capital e novos elementos para o funcionalismo público e classes liberais (ainda os Pantojos). Por outro lado, o espírito de italianidade (a “Dante Alighieri”), em luta com a terra e o meio; movimento de reação das tradições e sentimentos inerentes ao tipo provisório anteriormente esboçado (Juvêncio). Aspectos mentais. O nacionalismo latente, corporificado no mestre-escola. O charlatanismo da política imperante (Major Feliciano). O alheamento dos intelectuais (Eugênio Fortes). Ivã –figura culminante do livro. Síntese de todos os personagens (...). Este livro é, antes de tudo, um desabafo. Nele se notará que se quis dizer alguma coisa.’ Mas esse é o esquema de Marco Zero! São dois romances mal realizados a partir da mesma concepção, das mesmas idéias: Plínio Salgado poderia devolver a Oswald, a propósito desses dois livros, o que João Miramar dizia a respeito de O Estrangeiro. (MARTINS, 1969, p.253)
Martins, traçando um paralelo entre Marco Zero e O Estrangeiro, chegou à conclusão de que Plínio Salgado poderia responder à acusação de plágio do estilo oswaldiano que lhe foi feita por Prudente de Moraes Neto, num artigo citado e comentado mais adiante. Todavia, num julgamento detrator e apressado, Martins diminuiu a importância desse paralelo, abandonando-o. Não obstante, o mesmo crítico considerou O Estrangeiro e O Esperado as duas melhores realizações romanescas da década de 20. O professor Antonio Candido também comparou Plínio e Oswald num ensaio sobre esse último. Achamos que as afirmações de Antonio Candido e de Wilson Martins bastaraam para comprovar a necessidade de estudo das analogias entre Plínio e Oswald, análise que desenvolveremos posteriormente.
Quando escreveu sobre o autor ao qual estamos nos referindo, já na década de 70, Alfredo Bosi (citado acima quando da discussão da Ideologia Curupira) também listou várias obras do modernismo e inclui Plínio Salgado:
Foram publicadas em em 1923, as Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. Em 1924, O Ritmo Dissoluto, de Manuel Bandeira. Em 1925, A Escrava que Não é Isaura, de Mário; Pau-Brasil, de Oswald; Meu e Raça, de Guilherme de Almeida; Chuva de Pedra, de Menotti Del Picchia. Em 1926, Losango Cáqui, de Mário; Toda a América, de Ronald de Carvalho; Vamos Caçar Papagaios, de Cassiano Ricardo; O Estrangeiro, de Plínio Salgado. (BOSI, 1977, p.383)
A posição de Plínio Salgado e seu grupo, mais adiante, surgiu em contraposição com o grupo de Oswald:
Assim, o Manifesto Pau-Brasil lançado por Oswald de Andrade em 1924 entra por uma linha de primitivismo anarcóide, afim às suas origens de burguês culto em perpétua disponibilidade; a Pau-Brasil contrapõe-se uma corrente de nacionalismo não menos mítico, cheio de apelos à Terra, ao Sangue, à Raça, o Verde-Amarelismo (1926), de Cassiano, Menotti del Picchia, Cândido da Mota Filho e Plínio Salgado. Este último iria enveredar por um ideário político direitista, já ‘in nuce’ no grupo neo-indianista da Anta, o totem dos tupis (1927), que seria, por sua vez, revidado com sarcasmo pela Revista de Antropofagia (1928) de Oswald, Tarsila e Raul Bopp, entre outros, cujo Manifesto exacerba as posições de Pau-Brasil e quer regredir ao matriarcado primitivo (sic) já agora sob sugestões de um Freud equívoco e mal deglutido. (BOSI, 1977, p.386).
Assim sendo, mesmo Bosi afirmou acreditar que o ideário integralista de Plínio Salgado já estava em germe em 1927, quando do manifesto do Anta, pouco após O Estrangeiro, repetindo o procedimento habitual dos comentaristas políticos e sem maiores preocupações em fundamentar esse argumento de que a obra literária pliniana contêm prefigurado o integralismo:
Falando de Plínio Salgado, costuma-se distinguir um primeiro momento de interesse pela nova ficção e pela literatura, em geral Ex: o romance O Estrangeiro, de prosa solta e impressionista, da carreira ideológica e política que se lhe seguiu. Mas a verdade está no todo: o indianismo mítico dos escritos iniciais e a xenofobia do manifesto do Anta não estavam infensos aos ideais reacionários que selariam o homem público da década de 30. Pelo contrário, o Integralismo foi o sucedâneo daquele nacionalismo abstrato que, em vez de sondar as contradições objetivas das nossas classes sociais, tais como se apresentavam às vésperas da Revolução de 1930, preferiu fanatizar-se pelos mitos do sangue, da Força, da Terra, da Raça, da Nação, que de brasileiros nada tinham, importados como eram de uma Alemanha e de uma Itália ressentidas em face das grandes potências.
O malogro teórico e prático desse tipo de pensamento foi responsável pelo descrédito da palavra ‘nacionalismo’, em vários setores: tendência que pode chegar –e tem chegado –a extremos igualmente arriscados, na medida em que, temerosa do abuso, fecha os olhos às concretas realidades sócio-econômicas que embasam o sentimento da Pátria e solicitam a defesa de um povo ante ameaças de vários matizes e bandeiras. (BOSI, 1977, p.417)
Porém, as vertentes possuíram outras diferenças que escaparam ao olhar de Alfredo Bosi: a Antropofagia e o Pau-Brasil se referiram ao modernismo francês e ao passado colonial com intenção sarcástica e se exercitavam em paródias. Numa direção mais conciliadora, Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo não questionavam o regime patriarcal, pretendiam fazer uma “mastigação cordial” das teorias européias, voltando-se para o aproveitamento artístico e a investigação intelectual do folclore, dos mitos e lendas do povo brasileiro, recorrendo mais à idealização romântica do que ao deboche dessacralizador. Provavelmente, Bosi teve acesso ao texto abaixo, que data de nove anos depois de lançado o romance, e tomou o próprio Salgado enquanto autoridade a respeito de O Estrangeiro:
O meu primeiro manifesto integralista foi um romance. Quatro anos levei a meditá-lo e a escrevê-lo, desde uma luminosa manhã de setembro em que viajei pelo sertão paulista, onde o Tietê explode nas pedreiras do Avanhandava (...). Esgotando-se a primeira edição do “O Estrangeiro” em vinte dias, meus amigos comemoraram esse fato, oferecendo-me em bronze o personagem do romance que encarnava o espírito imortal da Terra Jovem. Essa festa realizou-se no salão nobre do ‘Correio Paulistano’, órgão oficial de um partido que havia sido alvo das mais irreverentes ironias em muitas páginas do romance. `Minha vida tem sido, assim, cheia de paradoxos. A incoerência dos homens tem sido tão grande em torno de mim, que hoje não me admira que muitos deixem de reconhecer no organizador do Integralismo o mesmo escritor daquele tempo. (SALGADO, 1935, p.6).
Como veremos mais tarde, existem indícios de que O Estrangeiro foi uma obra que encontrou empatia em sua época (a primeira edição esgotou-se em nove meses). Mas, em todo o material que conseguimos reunir e consultar, o romance não foi tomado isoladamente como objeto de pesquisa em uma dissertação. Numa busca pelo nome de Plínio Salgado na Internet, encontrei um trabalho aparentemente de segundo grau, e que comprovou que O Estrangeiro foi eventualmente citado quando se trata do período.
Apesar do estigma de manifesto integralista, O Estrangeiro esboçou contradições sociais, como a prosperidade dos imigrantes em contraste com os antigos habitantes do país, que ficam em situação de pobreza ou subserviência em relação aos elementos estrangeiros. Embora O Estrangeiro tenha incluído o personagem do professor primário Juvêncio, que alimentou uma utopia regressiva, e que foi recuperado por Salgado para o integralismo, o romance não teve a clareza de um manifesto nem teve em Juvêncio seu principal personagem.
1. 1. Os Dois Prefácios
No prefácio da primeira edição (datado de 1/01/1926), antes de tudo o mais, Salgado explicitou sua proposta: “Este livro procura fixar aspectos da vida paulista nos últimos dez anos” (SALGADO, 1937, p.11). Notamos que, neste prefácio, Plínio Salgado ambicionou apenas fixar aspectos, e não dar uma interpretação do todo, acompanhada de uma proclamação de intenções: nesse prefácio, nada temos que indique o romance enquanto manifesto, conforme Salgado escreveu a posteriori. Salgado tomou cada personagem como ilustrativo de um aspecto:
Ciclo ascendente do colono (os Mondolfis): ciclo descendente das raças antigas (os Pantojos). Marcha do caboclo para o sertão e novo banderismo (Zé Candinho); deslocamento do imigrante nas suas pegadas e novo período agrícola (Humberto); regresso dos antigos fazendeiros para a Capital e novos elementos para o funcionalismo público e classes liberais (ainda os Pantojos). Por outro lado, o espírito de italianidade (a ‘Dante Alighieri’), em luta com a terra e o meio; movimento de reação das tradições e sentimentos inerentes ao tipo provisório anteriormente esboçado (Juvêncio). Aspectos mentais. O nacionalismo latente corporificado no mestre-escola. O charlatanismo da política imperante (Major Feliciano). O alheamento dos intelectuais (Eugênio Fortes) (SALGADO, 1937, p.11).
Até esse ponto, concordamos que O Estrangeiro ilustrou cada aspecto citado em cada um desses personagens, e esse simbolismo pareceu simples e linear. Mas essa correlação se complicou quando o personagem Ivã e outros foram tratados:
Ivã – figura culminante do livro. Síntese de todos os personagens. Consciência de todos os males. Ação norteada por um idealismo ‘a priori’ anulada pelos ceticismos cruéis, em face do utilitarismo ambiente e do preconceito esmagador. Pletora de personalidades contrastantes e incapazes (...). Passam os outros comparsas, --Indalécio, Martiniano, Rafael, Lulu, o cunhado comissário, o ‘Esfola-Onça’, Zezinho Silveira, Floriano, Margarida, Concetta, Dona Eugênia, e outros do segundo plano, como Fritz Nagel, Mingote, Policena, Dona Xinoca, Mamede e Melquíades, Lucia e Dora, o Batista, o Matoso, e ainda outros do terceiro plano, --levados pela Grande Onda, expressivos, cada um, de um fenômeno social e presos, aos grupos, a ciclos numerosos da existência paulista. O resto: visões que o sentimento de Arte pretendeu estampar (SALGADO, 1937, p.12).
Ora, como pode um personagem europeu sintetizar todos os personagens brasileiros que aparecem na narrativa? Como pode um estudante russo agregar elementos comuns a um caboclo analfabeto (Indalécio) e um imigrante alemão disciplinado (Fritz Nagel)? Nesse ponto, acreditamos que o personagem fracassou, dada a impossibilidade dessa síntese. O que de fato constatamos é que Ivã (assim como Juvêncio), adotou posições contrastantes entre o princípio e final da narrativa. Quanto aos personagens secundários, julgamos, conforme o autor, que é mais preciso falar deles depois de agrupá-los. Representaram a sociedade interiorana: Policena, o Matoso, Dona Eugênia, o “cunhado comissário”, o “Esfola-Onça”, Zezinho Silveira, Concetta, Margarida. Vivenciando a urbanização estão Fritz Nagel, o Batista, Dona Xinoca, Lúcia e Dora, Mamede e Melquíades.
Ainda assim, notamos uma indefinição em relação ao significado do todo, além de mera crônica (lembremos que ele não falou em sintetizar ou interpretar o período) aparecendo ao final do prefácio:
Este livro é, antes de tudo, em desabafo. Nele se notará que se quis dizer alguma coisa. Se não atingiu o objetivo, nem por isso, deixa esta crônica de ser oportuna. Pelo menos, como depoimento, num instante de tamanha inquietude e necessidade de discussão. (SALGADO, 1937, p13)
O autor se colocou, assim, numa posição cautelosa (de cronista dos fatos), neste prefácio datado primeiro de janeiro de 1926, quando da primeira edição do livro. Aparentemente, foi um desabafo de insatisfação com aquilo que existia, mas não prescreveu medidas ou mudanças que seriam desejáveis. Podemos dizer, desse prefácio, que o tom não era o de quem estava lançando um romance-manifesto.
Observamos que o prefácio da segunda edição, datado de 1/09/1926, que abre a edição que dispomos, o que nos leva a notar o rápido esgotamento daquela primeira edição (a edição que utilizamos é a quarta, datada de 1937). Deste segundo prefácio pinçamos uma observação curiosa, porque, de certo modo, previu o esquecimento que se abateu sobre o livro posteriormente:
Os livros que pretendem tornar-se clássicos, nascem mortos. Ao contrário, os que surgem com a certeza da morte, logram a única vida possível às obras de arte, que é uma hora de humanidade em ação. Com prazer, deixo para mais tarde a edição do embalsamamento...Porque compreendi que as coisas perfeitas perdem em dinamismo vital o que ganham de hipotética imortalidade. (SALGADO, 1937, p.3)
Pelo que foi dito acima, podemos dizer que o autor nunca realizou a tal edição definitiva de O Estrangeiro, nem incluiu, nas edições realizadas nos anos 30, uma explicação a respeito da antecipação integralista que alardeou em Despertemos a Nação! (1935). Por tudo isso foi dito, colocamos em cena uma outra hipótese que não a de que O Estrangeiro fosse mera prefiguração do integralismo.
2. O Estrangeiro: Manifesto ou Crônica?
Anos depois de ter sido publicado, O Estrangeiro foi retomado pelo próprio Salgado num momento diverso daquele de sua publicação, num esforço de justificar a transição do escritor modernista para chefe integralista, explicação que foi o objetivo do livro Despertemos a Nação!, que contém desde uma conferência literária a textos exclusivamente políticos. Ele refez o percurso que percorreu dos anos 20 aos anos 30:
Naqueles dias, a nossa grande preocupação eram os problemas da Arte. Após a “Semana de Arte Moderna”, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, durante a qual Graça Aranha, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Oswald e Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e outros, que já eram grande escritores, nos apontavam novos caminhos, libertações integrais, nacionalismo espontâneo, todos nós, que éramos “promessas sem livros”, entramos numa inquietação estonteante. De 1922 a 1926, eram tão absorventes as leituras que fazíamos de Marinetti, Soffici, Govoni, Apollinaire, Cocteau, Max Jacob, Cendrars, como de 1926 a 1930, tendo nós mudado de tema, foram as leituras de Marx, Sorel, Lenine, Trotski, Riazanov, Plekhanov, Feuerbach.
(...) Penso que O Estrangeiro foi o momento da transição. A sua forma exprime a influência da revolução literária, mas, no seu fundo, delineia-se a revolução política. O discurso que abre este livro (Despertemos a Nação!), tem, pois, para mim, um valor histórico: é a “passagem”. Com ele, iniciei a campanha nacionalista, que já manifestava uma tendência construtiva, depois da fase irreverente de destruição no campo literário e da anarquia intelectual em que nos lançáramos. (SALGADO, 1935, p.7)
O próprio Plínio Salgado avaliou que o livro Despertemos a Nação! foi uma súmula das fases que constituíram a grande véspera do surto integralista. Ele estabeleceu um laço entre a revolução artística e a política:
A revolução literária e artística de 1922-23 teve o mérito de acender um chamejante espírito de rebeldia, com o qual iniciávamos a derrubada dos velhos cultores da forma, quebrando o ritmo do processo de estilo, e nos encorajamos no sentido de quebrar também o ritmo político do país (...). Este livro, sem unidade de estilo, sem outra uniformidade de método, a não ser o cronológico, este livro fragmentário, como os dias inquietos e tormentosos de minha vida, encerra uma fisionomia de pensamento e marca uma sucessão harmoniosa e coerente de atitudes. Vale como um documento das fases que constituíram a Grande Véspera do surto integralista. (SALGADO, 1935, p.10)
Mais adiante, Plínio Salgado ressaltou esse aspecto de construção que tem sua obra. Ele afirmou que os componentes mais amadurecidos da Semana de 22 partiram para tirar da própria destruição as forças salvadoras da construção, desenvolvendo uma expressão de nacionalismo, transferindo-se para o campo social e político. O romance, embora avance ao montar um painel da sociedade paulista, não nos pareceu expressar um nacionalismo: esse elemento está presente, principalmente na figura do professor Juvêncio, mas a conclusão de O Estrangeiro não aponta claramente uma solução nativista para o país. O nacionalista Juvêncio fugiu para o interior e mesmo na cidade de Cedral foi derrotado ao tentar restaurar a brasilidade de um bando de papagaios. Os que vencem são personagens que não apontam soluções no plano coletivo. Outro dado é que, se levarmos em conta o período entre 1926 e 1937, o romance chegou à quarta edição (que utilizamos) e o autor não disponibilizou um novo prefácio explicando essa posição (embora o integralismo estivesse em plena atividade), talvez porque se chocaria com o prefácio à primeira edição. Resumindo, nossa hipótese é que essa afirmação d’ O Estrangeiro foi o primeiro manifesto integralista não é para ser levada tão a sério.
Os comentários propriamente ditos sobre O Estrangeiro a que tivemos acesso (Andrade Muricy, Chasin, Marilena Chauí, Dorea), tenderam a aceitar o romance como manifesto nacionalista, sem dar muito crédito à negação do Brasil feita por Ivã, que afinal permaneceu incontestada por Juvêncio. O próprio Salgado escreveu, no prefácio da primeira edição, que o livro seria uma crônica, ou seja, se limitaram a fixar aspectos da vida paulista. Acreditamos que esse prefácio (nunca retificado pelo autor), foi mais próximo do conteúdo que apresentou o texto, onde os aspectos fixaram, sucessivamente, imagens positivas e negativas de Brasil.
A partir deste caráter documental dos textos, julgamos que o próprio Plínio Salgado mudou bastante desde o momento em que escreveu o romance O Estrangeiro:
Foi nessa Grande Véspera que desencadeei dois movimentos preparatórios do movimento decisivo de 1932. O primeiro foi o “verdamarelismo”. Éramos eu, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Motta Filho. O segundo foi chamado “revolução da Anta”, uma espécie de ala esquerda do “verdamarelismo”, constituída por mim e Raul Bopp.
Pela mesma maneira como, com os “verdamarelos”, rompi contra os chamados “modernistas” porque se desviavam do rumo de uma revolução necessária, também senti que o “verdamarelismo” se estacionava num nacionalismo demasiadamente “exterior” e pictórico. Urgia um nacionalismo “interior”, intuitivo. (SALGADO, 1935, pp. 10-11)
Pelo texto acima, a tendência de Plínio Salgado era liderar movimentos, atuando como ideólogo, mas suas tentativas de orientar grupos literários se esvaziaram, com a politização à esquerda da maioria dos modernistas:
Com Raul Bopp, atravessei muitas noites estudando a língua tupi. Líamos, de preferência, Barbosa Rodrigues e Couto de Magalhães. Essa atitude estava tão fora das cogitações políticas e literárias do momento, que ninguém nos entendeu. Uma intuição secreta me dizia, porém, que eu tinha na mão a chave para decifrar a psicologia de um povo, que seria necessário conhecer, antes de pretender dirigi-lo. Os modernistas extremados ridicularizaram-nos, depois imitaram-nos, organizando um indianismo surrealista e dadaísta, que denominaram “antropofagia”. E Raul Bopp lá se foi com os “modernistas” que aqui viviam sob o protetorado francês. Meu destino era andar sozinho. (SALGADO, 1935, p.12)
O resultado é que, esvaziadas as perspectivas literárias, o político despertou no escritor, ou seja, Plínio Salgado passou a ter ambições predominantemente políticas, que surgiram após o repúdio do materialismo histórico com o qual diz ter convivido nos anos entre 1926-30:
Eu morava, nesse tempo, numa pensão da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, em companhia de Plínio Mello, Fernando Callage, Jayme Adour da Câmara. Vinham, todos os dias, pela manhã e à noite, Augusto Frederico Schmidt, Raul Bopp, aparecendo às vezes Mario Pedrosa e Araújo Lima. Estes últimos traziam o comunismo. Nossas leituras eram todas marxistas. Não cheguei a ficar comunista, porque as “novidades” do materialismo histórico já me tinham fascinado aos dezessete anos, quando lia Buchner, Lamarcke, Haeckel, Le Bon, devorando a filosofia burguesa de Spencer, na qual encontrava, agora, tanta afinidade com a obra de Marx. A recordação das páginas de Farias Brito despertava, porém, no meu espírito. Seria longo descrever o drama pelo qual passávamos naqueles dias. Quase todos os que me rodeavam lá se foram para Lenine. Outros, fugiram para o “diletantismo”, para o campo neutral da literatura sem compromissos. Circunstâncias da vida acabaram separando-nos a todos. Foi quando escrevi os primeiros capítulos do “O Esperado”, meu segundo romance, que iria ter prosseguimento na Europa, em 1930. (SALGADO, 1935, p.14)
Assim, concluímos que Salgado teve consciência da mudança de fase, deixando para trás um tipo de nacionalismo por ser muito exterior, divergindo e se afastando dos antigos companheiros de movimento. Assim, descartamos a hipótese de O Estrangeiro seja mero manifesto nacionalista, e pretendemos fazer uma releitura desse texto, relacionando-o com seus predecessores e contemporâneos, textos com os quais possui elementos em comum, e repensar as imagens de país que ele constrói e destrói.
Para iniciar essa reavaliação de O Estrangeiro, retomamos uma crítica contemporânea ao romance, texto esse em que Andrade Muricy observou uma composição entre o primitivismo ao modo dos primeiros viajantes e uma retomada de Canaã, e pontuou também a presença do nacionalismo:
Esta gente nova os modernistas, “blagueuse”, de requinte esperto e calculada ingenuidade primitivista, não pôde evitar a facúndia efusiva do nacionalismo (...). Isso, ligado aos problemas da América juvenil, que já Canaã encara, proporcionou a Plínio Salgado oportunidade ótima para ir buscar no caso do colono e do imigrante as fontes do caso nacional. A simbólica de O Estrangeiro é linear e simplíssima. Nem outra coisa visava o jovem paulista, e sentir vibrantemente um problema nacional foi a causa da criação de uma obra de arte. (Andrade Muricy, apud: DOREA, 1978, p.116)
Essa crítica acima foi incluída no texto O Romance Modernista de Plínio Salgado, de Maria Augusta Dorea. A seguir, Dorea opinou que Plínio Salgado tratou de maneira mais conclusiva dessa problemática nacional que Graça Aranha:
Plínio Salgado tratou nesse primeiro romance do problema bastante brasileiro e atual, o da mistura de raças européias com o tipo aqui já existente, derivado do português, do negro e do índio. Não existe ainda o tipo brasileiro definido, que até hoje procuramos antever (...). O problema é proposto, discutido, analisado e levado a uma conclusão, até onde era possível naquela ocasião e ainda hoje, isto é, que o produto das diversas raças será brasileiro, embora não nos seja agora permitido defini-lo com precisão. Essa conclusão faltou ao Canaã, de Graça Aranha. (DOREA, 1978, p. 31)
Podemos dizer que O Estrangeiro avançou ao fazer a crônica da vida brasileira dos anos imediatamente antecedentes ao modernismo, em linguagem inovadora. Mas, ao contrário do que Dorea imaginava, o que se concluiu, ao final da narrativa, não foi algo afirmativo sobre o tipo derivado da mestiçagem; ao contrário, Juvêncio comparou a nova onda imigratória a uma doença fatal:
A civilização estrangeira é uma toxina secretada pelo adventício, para anular todos os meios de defesa do organismo nacional, como o fenômeno biológico das invasões mortais das bactérias (...). Os italianos encontram cidades sem feição e um fundo desdém do brasileiro por tudo o que é seu. A conquista era fácil. Não éramos o Jeca Tatu acocorado e banzeiro? Pobre caboclo! (SALGADO, 1937, p.264)
Para fundamentar melhor sua afirmação, era de se esperar que Dorea fizesse uma análise detalhada de O Estrangeiro, confrontando o romance com Canaã, mas essa comparação não se fez presente no texto. Outras obras modernistas, tais como Macunaíma e Memórias Sentimentais de João Miramar, igualmente não foram tomadas por Dorea enquanto passíveis de clarear O Estrangeiro. Afinal, nos pareceu que Dorea nunca levou a sério a idéia de que escritores retomaram as questões deixadas por seus predecessores, e acreditou que Plínio Salgado fosse “o” romancista modernista par excellence, embarcando num exagero e comprometendo, em grande parte, sua contribuição ensaística. Em se tratando de um autor como Plínio Salgado, dotado de bibliografia exígua, o trabalho de Dorea se mostrou pioneiro, realizou um bom levantamento da fortuna crítica de O Estrangeiro (como atesta acima o texto de Andrade Muricy), mas em muitos pontos foi frágil.
Ao analisar O Estrangeiro, Dorea assumiu um tom de quem sabe mas não indica suas fontes. Vejamos o fragmento onde o narrador trata da escolinha rural em O Estrangeiro, texto em que, ao contrário do que diz Dorea, não há qualquer referência aos caboclos:
As crianças das Escolas Reunidas eram filhos de italianos, espanhóis, japoneses, sírios, mulatinhos espertos puxados ao português. Cantavam o hino nacional e respondiam na ponta da língua, se lhes perguntavam – quem descobriu o Brasil? – Foi o almirante português Pedro Álvares Cabral (...). Juvêncio vibrava. Nem uma nota fora do compasso! Eram uníssonas, como saídas de uma só boca, de um só peito, de um só coração. (Salgado, apud: DOREA, 1978, p.30)
Dorea também aproximou o autor Plínio Salgado ao narrador de O Estrangeiro:
O conflito se desenvolve num ambiente de imigração estrangeira, e o autor poupa ao leitor o trabalho de rememorar a causa dessa imigração, pois já explica numa de suas digressões históricas: (Trecho de história do Brasil: os naturais, por seu gênio erradio, não se prestavam à faina agrícola. Foi necessário instituir a escravidão africana. Os negros eram comprados nas feiras. A libertação dos escravos coincidiu com a República e esta com o desenvolvimento da lavoura. Abriram-se as portas à imigração). (DOREA, 1978, p. 30)
Na mesma página, porém, Dorea atribuiu uma fala do personagem Ivã a Plínio Salgado:
Plínio Salgado, tendo notado que nosso ‘país é uma túnica de cigano sarapintada de borrões e manchas’, e que, ‘sobre o esboço malogrado das primeiras mestiçagens, desenham-se contornos inestimáveis de imagens efêmeras’, onde ‘tudo é indistinto e mudável’, tratou nesse primeiro romance do problema brasileiro e atual, o da mistura das raças européias com o tipo aqui já existente, derivado do português, do negro e do índio. (DOREA, 1978, pp. 30-31)
Vejamos a fala de Ivã, que tomada em si mesma, esteve distante de ser a de um nacionalista:
Depois de tantos séculos, a Rússia atingiu um tipo clássico de povo, centralizado numa pequena porção o vasto território... Heterogênea, com o Brasil, é, entretanto, uma expressão linear, um conjunto de desenhos nítidos de raças definidas. Mas, aqui, o país é uma túnica de cigano sarapintada de borrões e manchas. Sobre o esboço malogrado dos primeiros mestiçamentos, desenham-se contornos instáveis de imagens efêmeras. Tudo era indistinto e mudável. (SALGADO, 1937, p.49)
Na fala acima transcrita, podemos dizer que Ivã comentou que o seu país natal estaria melhor e mais definido que o Brasil – igualmente, os primeiros mestiçamentos, que ele diz fracassados, são os que geraram os caboclos (mistura de portugueses e índios). Dorea atribuiu falas do narrador e do Juvêncio das posições iniciais a Plínio Salgado, no decorrer de duas páginas. Ela pareceu operar com a idéia de que todos os personagens são diferentes facetas de um “autor” inconteste, um Plínio Salgado que ela apresentou no início de seu estudo com uma biografia excessivamente elogiosa, idealizada.
Também duvidosa foi a postura de Dorea no momento de abordar a questão do caboclo: dividiu os caboclos brasileiros presentes em O Estrangeiro em três grupos distintos, incluindo o personagem Martiniano (agregado da fazenda dos Pantojos) em dois grupos contrários, primeiro no dos caboclos que aceitam a imigração, e depois no dos caboclos esnobes e patrioteiros:
Outros caboclos aceitaram a imigração procurando nivelar-se aos estrangeiros, vivendo em harmonia com eles, e com eles se identificando no alheamento para com as coisas brasileiras. São assim, Pantojo, Feliciano e Martiniano. Esse grupo, por vis interesses pessoais, facilitava a dominação estrangeira em nossas terras, vendendo a Pátria ao imigrante (...). Além desses três grupos havia os brasileiros ‘snobs’ e ‘patrioteiros’, que achavam necessária uma oposição sistemática ao estrangeiro, e para os quais ser brasileiro significava ser xenófobo. Censuravam os maus atos quando praticados pelos estrangeiros, os mesmos que eles, anteriormente, haviam praticado. Martiniano era assim. (DOREA, 1978, pp.32-33)
Podemos dizer que aqui há duas incoerências, uma a de colocar o mesmo personagem como patrioteiro e também alheio às coisas brasileiras, outra a de atribuir-lhe a condição de caboclo, não referida no texto. Para além destes deslizes, tomemos como exemplo uma fala de Juvêncio, no princípio do romance: “— Paciência e reação contínua. Eles serão assimilados. É uma fatalidade que encontram nos próprios triunfos” (SALGADO, 1937, p.66). Observamos então a conclusão que Dorea tirou, supomos, a partir de falas como essa, e atribuiu a Salgado: “Plínio Salgado não admite o domínio espiritual do imigrante, mas aceita a imigração, achando até indispensável a sua contribuição para a formação étnica do povo brasileiro e para o progresso econômico do país” (DOREA, 1978, p.34). Procedendo deste modo, Dorea ignorou as cartas que Juvêncio enviou a Ivã ao final da narrativa, em que sobressaem opiniões opostas:
A civilização estrangeira é uma toxina secretada pelo adventício, para anular todos os meios de defesa do organismo nacional, como o fenômeno biológico das invasões mortais das bactérias (...). Os italianos encontram cidades sem feição e um fundo desdém do brasileiro por tudo o que é seu. (SALGADO, 1937, p.264)
Menosprezando as transformações finais de Ivã e Juvêncio, Dorea tirou novamente uma conclusão que nos pareceu equivocada, uma vez que não levou em conta o sucesso dos Mondolfis:
Naturalmente Ivã morreu porque o autor quis mostrar que é inevitável a assimilação dos imigrantes pela realidade brasileira, e, portanto, quem vem imbuído do espírito internacionalista, e não se conforma com o espírito nacional brasileiro, não consegue viver aqui (DOREA, 1978, p.42).
Porém, nós encerramos nossa leitura de O Estrangeiro com conclusões opostas: a família Mondolfi venceu sem se preocupar com a realidade brasileira; obtiveram o que Ivã não conseguiu, se adaptando a São Paulo e unindo Concetta a um nobre italiano:
Núpcias – Realizou-se ontem, na residência dos pais da noiva, o enlace matrimonial da senhora Concetta Mondolfi, prendada filha do cav. uff. Carmine Mondolfi, e de sua exma. esposa, sr. D. Maria Antonia Spagheti Mondolfi, como o sr. Conde Duilio Solfieri, filho dos marqueses de Solfieiri, já falecidos e primo em quinto grau dos príncipes da Apúlia (SALGADO, 1937, p.212).
Nossa hipótese é que a família Mondolfi foi um contraponto a Ivã, realizado pela narrativa, que exemplificou neles os estrangeiros bem sucedidos, vitoriosos na cidade, na ascensão social, na obtenção de um título de nobreza.
A nosso ver, o único brasileiro indubitavelmente bem sucedido foi um político oportunista e falsamente renovador (Major Feliciano); Ivã conseguiu montar uma fábrica, levando adiante um projeto pensado na Rússia, sem se preocupar com o folclore, nem o “espírito nacional brasileiro”; o nacionalismo de Juvêncio não se concretizou num projeto viável, enquanto prosseguiu o avanço da influência estrangeira através da escola italiana. O que ocorreu foi que o nacionalista simplesmente fugiu para um romantizado interior agrário, condenando-se a derrotas a longo prazo, uma vez que os processos (urbanização, fluxo imigratório) dos quais ele fugiu não pararam e iriam alcançá-lo algum dia.
Assim sendo, por todos os deslizes citados anteriormente, Dorea se mostrou uma crítica deficiente em seu intento de analisar o romance modernista de Plínio Salgado. Finalizando o livro, ainda tentou uma aproximação entre Mário de Andrade e Plínio Salgado:
“Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões.” Criticou o celebrado criador de Macunaíma, em diversas passagens, a Plínio Salgado. Mas temos certeza de que, ao aconselhar os jovens que ali se postavam a ouvir a sua palavra oracular, a fim de que marchassem com as multidões, estava se recordando de Plínio Salgado, que marchou com elas, e fê-las avançar sob o seu comando, na realização de um ideal. (DOREA, 1978, p.106)
Podemos dizer que o paralelo entre a obra de Plínio Salgado e a de Mário de Andrade seria pertinente (tentaremos fazê-lo mais adiante), mas não da forma realizada por Dorea, em que essa aproximação não se deu com base nas obras literárias de dois contemporâneos, mas na suposição de que, ao conclamar os jovens para marchar com as multidões, em sua palestra O Movimento Modernista, Mário de Andrade estaria pensando em Plínio Salgado. Como Dorea poderia saber em quem Mário de Andrade estava pensando ao emitir essa opinião? O que mais nos espantou, no entanto, é que no mesmo texto, Mário de Andrade citou de passagem O Estrangeiro , considerando-o enquanto modernista, referência que Dorea não analisou, preferindo apegar-se à certeza, emitida em tom oracular, de que Mário de Andrade, no final da vida, voltou atrás em suas críticas a Plínio Salgado. Tendo em vista procedimentos desse tipo e, por julgarmos já ter aproveitado o possível de uma crítica tão laudatória, passaremos a outras fontes e novas análises.
Buscando os textos predecessores de O Estrangeiro em um depoimento de Plínio Salgado, datado de 1972, observemos as leituras da época que o próprio autor admitiu:
O ‘Verdamarelismo’ apareceu em 1926. Neste ano publiquei o meu romance O Estrangeiro. Depois de muitos debates sobre as concepções estéticas do modernismo, foi o primeiro romance, quanto à forma, estilo e arquitetura narrativa, que marcou definitivamente a passagem da velha para a nova literatura. Tinha eu tido como precursores o ‘Juca Mulato’ de Menotti, exprimindo viva brasilidade, ‘O Homem e a Morte’, do mesmo autor, trazendo novas interpretações da vida e do mundo, a ‘Paulicéia Desvairada’, de Mário de Andrade, destroçando toda a técnica antiga de construção verbal; entretanto, como síntese do sentido modernista das expressões verbais e como concepção construtiva foi realmente O Estrangeiro o livro inaugural do Modernismo. (SALGADO, 1994, p.11)
Podemos supor que o romance foi uma das realizações pioneiras da prosa modernista, mas não como o autor pretendia. Notamos que Plínio Salgado citou como suas influências Mário de Andrade e Menotti del Picchia; omitiu Canaã e o romance-invenção Memórias Sentimentais de João Miramar, que antecedeu O Estrangeiro e que atualmente é considerado o primeiro cadinho da prosa modernista. Pretendemos adiante contextualizar O Estrangeiro, indo do contexto mais geral da época para os temas comuns aos romances do período, procurando comprovar que o texto se inseriu como modernista.
2. 1. O Estrangeiro e o Modernismo
Nos anos 20, o que era ser “modernista”? A Semana de Arte Moderna reuniu um grupo que desejava acompanhar o ritmo das correntes estéticas do pós-guerra, e foi de início etiquetada de “futurista”, palavra muito em voga na época. Em seu tempo, a Semana foi "a coqueluche do nosso grand monde", como escreveu Del Picchia no Correio Paulistano de 7 de fevereiro de 1922. Revendo a participação de Graça Aranha no movimento, Di Cavalcanti comentou: “Graça Aranha, figura mundana, deu ao movimento de 22 um tom festivo irreconciliável talvez com o sentido de transformação social que para mim deveria estar no fundo de nossa revolução artística e literária” (Cavalcanti, Apud: AMARAL, 1972, p.114). A nosso ver, esta contradição (a dissociação, num primeiro momento, entre revolução artística e as transformações sociais e políticas) figurou no cerne do modernismo. Embora tenha se dado em 1922, ano em que o partido comunista brasileiro foi fundado e a rebeldia tenentista se fez sentir, gerando o primeiro abalo de poder da oligarquia de São Paulo e Minas, a Semana e os modernistas não relacionaram imediatamente sua revolução artística com as rebeliões tenentistas contra a ordem estabelecida. Somente anos depois essa ligação emergiu: Mário de Andrade afirmou em sua palestra sobre “O Movimento Modernista”, que este foi “um preparador de clima, mesmo embora não sendo, na sua fase verdadeiramente modernista, o fator das mudanças político-sociais posteriores a ele no Brasil” (Andrade, Apud: AMARAL, 1972, p.114).
Assim sendo, em meio a um movimento que era inicialmente pouco sensível a mudanças políticas, Graça Aranha não foi exceção; os demais modernistas também eram “figuras mundanas”. Em Brasilidade Modernista, Sua Dimensão Filosófica (1978), Eduardo Jardim de Moraes analisou o pensamento desse autor, principalmente o texto A Estética da Vida. A hipótese básica de Jardim de Moraes girou em torno da influência de Graça Aranha e o caminho aberto por sua Estética da Vida:
Tanto a categoria de intuição quanto a de integração, categorias trabalhadas em A Estética da Vida, estão presentes no projeto modernista, seja na corrente de inspiração verde-amarelista, seja nos movimentos orientados pela obra de Oswald de Andrade. Em função desta preocupação, procurando localizar o modernismo em suas ligações com tendências já existentes na cultura nacional e que foram por ele integradas e transformadas, deglutidas à maneira antropofágica ou consumidas sob a cor verde-amarela, é que pesquisaremos mais de perto a obra de Graça Aranha. (MORAES, 1978, p.22)
O capítulo de Brasilidade Modernista que se intitulou “a versão de Plínio Salgado”, onde esperávamos encontrar uma ligação entre Graça Aranha e Salgado, iniciou-se narrando um episódio em que a ala carioca do movimento modernista acusou Mário de Andrade de ter plagiado Graça Aranha, e comentou a seguir a briga entre Graça Aranha e Oswald. Quando enfim se referiu a Salgado, o analisou juntamente com Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, em meio a uma série de artigos que os três lançaram juntos (O Curupira e o Carão, 1927). Jardim de Moraes também encontrou a mesma maneira “sintética e intuitiva” da realidade na conferência A Anta e o Curupira (1926) e dos textos Literatura e Política, a Revolução da Anta e Despertemos a Nação!, também do mesmo período (passagem das décadas de 20/30), optando por não analisar nenhuma obra propriamente literária de Plínio Salgado.
A aproximação entre Oswald e Plínio Salgado já apareceu no primeiro capítulo dessa dissertação, quando citamos Wilson Martins, crítico que detectou o projeto de um romance articulando diferentes vozes, de personagens das mais variadas classes, montando o painel da sociedade paulista, presente tanto em O Estrangeiro de Plínio Salgado quanto em Marco Zero, mas afirmando no entanto que ambos os romances seriam mal realizados .
Jardim de Moraes, ao comentar Plínio Salgado, concentrou-se em textos teóricos ou manifestos onde examinou conceitos de “integração” e “intuição” semelhantes aos que estão presentes em A Estética da Vida. Comparemos alguns dos trechos por ele coletados. Em seu livro sobre estética, diz Graça Aranha:
É possível que a literatura brasileira transmita um dia o fluido que nos ponha em comunicação com o Universo inteligente. Por ora, ela não satisfaz plenamente à própria alma brasileira. (ARANHA, pp. 115-116, s. d.)
Dessa afirmação podemos depreender que é necessário um movimento literário capaz de nos colocar em comunicação com esse universo supracitado. No capítulo sobre o autor aqui estudado, o que mais nos pareceu duvidoso é que Jardim de Moraes acabou por aceitar sem discutir o que Salgado escreveu a posteriori sobre O Estrangeiro:
O desprezo pelos princípios democráticos presente na década de 20 na obra de Plínio Salgado, e também na de Oswald de Andrade, deixa antever uma das facetas do ambiente cultural nas décadas que se seguem. Nos prefácios compostos posteriormente paras suas obras, Plínio Salgado enfatiza: ‘Meu primeiro manifesto integralista foi um romance’, O Estrangeiro” (MORAES, 1978, p.124).
Nesta altura, Jardim de Moraes colocou uma nota que se refere ao prefácio de Despertemos a Nação!, obra doutrinária publicada em 1935, prefácio em que Salgado faz essa afirmação. Com isso, voltamos a uma questão anteriormente tratada: repetindo uma atitude comum aos críticos que falaram da obra, Jardim de Moraes não abordou diretamente O Estrangeiro, dando crédito ao que Plínio Salgado diz a respeito do texto. Ao deixar de repensar O Estrangeiro e aceitando, a respeito dele, um juízo do próprio autor, Jardim de Moraes não nos auxiliou em nossa pesquisa. Mas, por outro lado, Jardim de Moraes estabeleceu incontornavelmente a relação entre os conceitos produzidos por Graça Aranha e aqueles emitidos por Plínio Salgado, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Oswald de Andrade, abrindo espaço para nossa avaliação de O Estrangeiro como texto ligado à produção de seus contemporâneos.
Sabemos o quanto esse elo é controverso: ainda no final dos anos 20, a influência do “romance-invenção” Memórias Sentimentais de João Miramar sobre O Estrangeiro foi motivo de um ataque de Prudente de Moraes Neto a Plínio Salgado, já na segunda dentição da Revista de Antropofagia:
Além disso, o sr. Plínio Salgado, por fazer questão de produzir uma obra modernista, aplicou todo o seu talento de renovador no estilo, caindo desse modo num erro que é difícil escapar entre nós. Neste ponto, a grande influência que se nota no livro é a do sr. Oswald de Andrade, principalmente do Oswald de Os Condenados e de João Miramar. Há trechos e trechos de verdadeiros pastiches do autor de Pau-Brasil. Desde a forma fragmentada até os menores cacoetes da fala deste escritor, a escolha das imagens, o ritmo da frase, aquele jeito tão peculiar a Oswald de Andrade de estabelecer aparentes ligações sintáticas entre frases que não têm nenhuma possível, tudo isso o sr. Plínio Salgado assimilou. E tão perfeitamente que ele mesmo é capaz de não dar pela imitação. A gente percebe que aquilo lhe sai insensivelmente, naturalmente rebuscado. (NETO, 1928, p.13)
A aproximação entre O Estrangeiro e Miramar pode ser feita a partir do próprio enredo de cada romance. Em Miramar, o brasileiro sensível viajou para o exterior, para conhecer o mundo, enquanto em O Estrangeiro, foi o imigrante estrangeiro que lançou um olhar sobre o Brasil. O próprio Oswald fez essa ligação num artigo jornalístico:
Ao lado de Ribeiro Couto, trabalhador inteligentíssimo e grande poeta, vem agora a contribuição de Mário. Deu dois livros: ‘Primeiro Andar’. Não li e não gostei. ‘Amar, Verbo Intransitivo’. Passadista com as minhas ‘Memórias Sentimentais’ e seu filho ‘O Estrangeiro’. Mas que avanço ao lado dos dois ‘Irmãos Siameses’ de Veiga Miranda! Que corrida longe das peludas asneiras de Afrânio Peixoto. (ANDRADE, 1978, p.41)
Para melhor ilustrar a continuidade estilística acima referida entre Miramar e O Estrangeiro, tomemos o trecho que se referiu a uma noitada em Paris, no Miramar: “Mas a calçada rodante de Pigalle levou-me sozinho por tapetes de luzes e de vozes ao mata-bicho decotado de um dancing com grogs cetinadas pernas na mistura de corpos e de globos e de gaitas com tambores” (ANDRADE, 1967, p.58).
Neste excerto acima, que Haroldo de Campos chamou de prosa cubo-futurista, e onde observou que “cláusulas se encontram e se interceptam como planos, os atributos saltam do engaste e deslizam de uma superfície semântica para outra, as imagens se seccionam como providas de arestas” (CAMPOS, 1970, p.87) e notou uma influência pictórica dos cubistas franceses, aconteceu simplesmente o passeio de João Miramar por Paris, mas, como explicou detalhadamente o crítico paulista:
Não é a ‘calçada rodante de Pigalle’ que leva Miramar a um ‘matabicho decotado’, mas o herói que passeia pela calçada de Pigalle, tendo dela a impressão de um tapete rolante (pelo movimento dos transeuntes); o ‘matabicho decotado’ é o drinque bebido num dancing entre mulheres decotadas, e a enumeração seguinte: ‘com grogs setinadas pernas na misturas de corpos e de globos e de gaitas com tambores’, isolando e destacando faces da realidade, reordenadas à descrição do autor, parece sair diretamente de uma tela cubista. (CAMPOS, 1970, p.92)
Confrontemos o fragmento textual do Miramar com a descrição de uma noitada paulistana em O Estrangeiro:
O crepúsculo martini-seco, mastigado com azeitonas e amendoins preludiava a noite cocktail gizada de diagramas de jazz e relampagueada de visões róseas de espáduas brancas das aspirações noturnas com hóstias de osso, plec-plec, dentro da madrugada verde, as casas verdes, caiadas com focos foscos. (SALGADO, 1937, p.147)
Os trechos tiveram em comum as frases longas, ritmadas, imagéticas. Notamos no trecho de Plínio uma descrição de um colorido crepúsculo, comparado a um aperitivo que antecipa a noite onde se toma coquetel, ouve jazz, e aspirações notívagas são satisfeitas com carnes róseas. O quadro se completou com a visão da cidade na madrugada. Podemos supor que a prosa oswaldiana ressoou na narrativa pliniana, donde a presença desse ritmo sincopado da frase. A acusação de plágio deixou de fazer sentido, e distante do emocionalismo do confronto entre facções, percebemos que é Plínio Salgado retomou o estilo cubista que Oswald inaugurara e experimentou num romance social e polifônico , onde vozes diversas falam, indo além das Memórias Sentimentais de João Miramar, onde as principais vozes são Machado Penumbra (voz passadista, acadêmica, parnasiana) e o próprio João Miramar, boêmio que se contrapôs à burguesia e viveu em perpétua disponibilidade.
No Miramar, podemos dizer que a voz de Machado Penumbra também teve ressonância nas falas de Juvêncio em O Estrangeiro. Tomemos uma parte do discurso de Machado Penumbra, pronunciado no Grêmio Bandeirantes em presença de sua rodinha literária (Miramar, Fíleas, Dr. Pilatos), na pequena cidade de Aradópolis:
—A plenitude cafeeira e pastoril do nosso estado se distende nos assaltos ao Hinterland que foge num último galopar de índios e de feras! A cada investida vitoriosa, os novos bandeirantes são a reencarnação estupenda da luta, a magnífica, a eterna ressurreição da Força! (ANDRADE, 1990, p.76)
No texto acima, o tema (o avanço paulista enquanto repetição das Bandeiras) e o tom épico foi semelhante à seguinte fala do professor Juvêncio em O Estrangeiro:
A onça e o índio fogem espavoridos ao tropel do herói pardo. O machado arrasa os jequitibás golpeando os ecos arautos. Cataclisma de raças; sedimentação de caracteres civilizadores: sob o rastro do selvagem o rastro do mameluco; depois, sobre a terra desvirginada e domada, o colono estrangeiro estabilizando a agricultura...Os buritis fixam nas asas abertas a volada inicial da fuga vertiginosa. E os braços do caboclo são como as asas dos buritis agitadas pelo vento. (...) Os que partem são fortes como fundadores de países. (SALGADO, 1937, p.29)
Além de, em ambos os romances, estar tematizado o mesmo processo de desbravamento e colonização do interior paulista, no texto de Oswald também estiveram presentes -- desde o prefácio -- vários intelectuais: Machado Penumbra foi um escritor mais velho que fez restrições às Memórias Sentimentais de João Miramar no prefácio, mas apoiou a experimentação; Fíleas foi passadista, autor de sonetos, sempre ridicularizado; e Dr. Pilatos foi um crítico conhecido que também terminou por aprovar as Memórias, dizendo que “lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo” (ANDRADE, 1990, p. 107). Podemos dizer que Miramar trouxe esse recurso de levantar temas ou questões em diálogos entre personagens intelectuais. Mas, como esses personagens permanecem demasiado subordinados ao protagonista, essa característica não ficou bem marcada. A seu turno, O Estrangeiro se valeu bastante dessa técnica, construindo o cerne do romance em torno das falas de Ivã e Juvêncio e respectivas imagens de Brasil.
Para não nos atermos somente ao Miramar e podermos avaliar a semelhança, comentada por Prudente de Moraes Neto, entre O Estrangeiro e a trilogia oswaldiana Os Condenados, comparemos o trecho que lidou com o suicídio em Alma, (o primeiro romance da trilogia) e em O Estrangeiro, uma vez que Prudente de Moraes Neto sugeriu, em tom acusatório, essa influência. No romance de Oswald, foi o personagem Dagoberto Lessa que se atirou de uma ponte, por não conseguir obter a exclusividade do amor da prostituta Alma:
Como? A molhada noite de relâmpagos apagados num instante...E a cidade armada em capela mortuária, com as carroças nos viadutos...
O labirinto de Creta só tinha uma saída, uma porta. E na desvairada Paulicéia, as carroças rodando nos viadutos, silhuetados em aço pelos relâmpagos curtos...Silêncio! Um homem vai morrer, voluntariamente, vitoriosamente...
E as carroças nos viadutos...
Lá embaixo, um gato humano miou esfrangalhado.
Os embuçados que passam nas pontes a essas horas, espiaram.
Um relâmpago silhuetou em aço o viaduto e o suicida estendido e calado.
(ANDRADE, 1978, p.126)
No romance pliniano, é Marina, uma moça de origem proletária, que não aceitou mais sua condição de amante de Ivã e se matou. O mergulho na cidade, experiência que causou tanta dor que não coube na vida, devorou tanto Marina quanto Dagoberto Lessa. Esse suicídio de Marina foi assim descrito:
Nas balaustradas da rua Líbero, apinhava-se uma multidão. Em toda a extensão das grades do Viaduto havia gente debruçada. Formigavam curiosos na esplanada do Municipal. Um sol grande e branco, estacara bem no alto, plagiando o sol de Josué.
--Que há?
--Uma rapariga que se atirou.
--Viram? Subiu à grade, esteve sobre ela, de pé dois segundos, e o vestido bege desfraldado, a cabeleira flamejante; e mergulhou feito uma labareda. (...) No fundo do parque, negro como um destino e piedoso como o bom samaritano, o carro enorme da ambulância parecia meditar, babando, no meio da turba bisbilhoteira. No cenário eriçado de prédios e postes e riscado de fios, a multidão zumbia, bêbada de sol e de espanto. Meteoro!
Autos e bondes (e sufocavam-se pressas! Pressas! Pressas!) autos e bondes pararam. A urbes imobilizou-se, numa síncope. (SALGADO, 1937, p.213)
Em ambos os textos, a grande cidade foi cenário e cúmplice do sofrimento humano. No romance de Oswald, o suicídio é noturno, um verdadeiro mergulho na escuridão, e a cidade se compôs como capela mortuária. O silêncio que envolveu a cena, num dia chuvoso, acentuou um clima sinistro. Já em O Estrangeiro o ambiente interagiu com o ato extremo, a urbe barulhenta se confundiu com um corpo que sofreu uma parada repentina. A multidão embriagada contemplou a morta anônima e prosseguiu zumbindo, caótica: São Paulo é uma cidade tentacular, e Marina uma de suas vítimas. Se em Alma a cidade, nas altas horas da noite, montou o cenário de solidão e sombras do suicídio, em O Estrangeiro é o dia intenso, solar, a luz meridiana que embriaga a cena, enquanto a cidade se eriça, num cenário de intenso movimento em que Marina é apenas uma luz fugidia, uma labareda que se consome, uma rapariga que se atira, meteórica, enquanto a coletividade, ansiosa, tem pressa em ir adiante, indiferente a essa auto-destruição.
Na época em que o protagonista de O Estrangeiro permaneceu na cidade, surgiram as reivindicações obreiras, que terminaram em sangue depois de repressão violenta, e referências sobre a velocidade da vida urbana (aconteceu até um atropelamento) e a paisagem pontuada por chaminés de fábricas e demais novidades tecnológicas e culturais (trem, automóvel, jazz-bands, etc). Voltamos ao discurso de Del Picchia na abertura da Semana:
E que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e a sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena. (Del Picchia, apud: AMARAL, 1972, p.278)
O texto acima falou (em tom de manifesta recomendação) da substituição das referências à mitologia grega por outras mais atuais: a presença de uma excluiria a da outra. Valendo-se de um procedimento diferente, Salgado buscou termos na tradição ocidental (mitologia grega, Bíblia) para descrever o novo, uma prática que se fez presente nas páginas do romance sob o qual nos debruçamos. Ela se fez sentir logo na página 20, quando da chegada de Ivã: “Javé desceu do Mediterrâneo com o sol latino nas mãos. E a Hospedaria de Imigrantes transformou-se no carro de Apolo” (SALGADO, 1937, p.21). E, na página 22, numa citação literal da Bíblia: “Jacó, Jacó! Eis-me aqui, Senhor! E disse: Não temas descer ao Egito, porque eu te farei ali uma grande Nação” (SALGADO, 1937, p.22). Voltando ao final do livro, as referências gregas se fizeram presentes nas últimas páginas, quando se falou de um estilo musical que era novidade: “Jazz. Música cambaia de Epicuro cascavelhada por Baco para o festim de Plutão. Cosmopolitismo com champagne frappé” (SALGADO, 1937, p.278). Conforme essa última frase e o contexto em que se inseriu, o jazz não foi analisado em sua especificidade -- enquanto música negra norte-americana -- e sim tomado enquanto signo da internacionalização de São Paulo. Um pouco antes, comparou-se o protagonista com um profeta bíblico, mas num sentido negativo:
Seus companheiros, vitoriosos na Rússia, construíam agora uma civilização nova, num largo panorama de uniformidade coletiva. Ele, entretanto, tornara-se um fidalgo, com todas as prerrogativas que o dinheiro outorga aos aventureiros e felizardos. Seus inimigos –agora seus correligionários – vinham iniciar, como ele, o ciclo palmilhado da humilhação ao triunfo. Seus operários iam em meio do caminho. Conduzia-os, como Moisés, para uma Canaã execrável...(SALGADO, 1937, p.272)
Toda essa descrição acima da trajetória de Ivã poderia ser tomada num sentido afirmativo: ao invés de ser apenas mais um na multidão, Ivã passou a ser alguém que comandava e conduzia (respectivamente, a fábrica e seus operários), e como burguês bem sucedido, podia até se pretender aristocrata. Não nos foi dada, no texto acima, nenhuma justificativa do porquê essa Canaã foi tão ruim aos olhos de Ivã, uma vez que é dito que nela os humilhados podem vencer.
Julgamos que houve uma predisposição contra a urbanização em O Estrangeiro, e que isso é patente o romance focalizou São Paulo. O atropelamento na grande cidade é descrito nos seguintes termos:
A Hudson tropeçou numa coisa. A ‘brekada’ estourou um pneumático, terrível perigo de capotagem. Mas, não foi nada. Zezinho Silveira respirou. Foi apenas uma menina de 9 anos que ficou em estado de coma. O soldado tomou apontamentos maçantes. Aglomeração pró e contra. Outro pneu – Sabe com quem está falando? E a corrida prosseguiu na tarde pérola. (SALGADO, 1937, p.228)
Esse comportamento inescrupuloso já estava anunciado numa fala anterior de Zezinho: “Eu, uma vez é que peguei um operário, no Belemzinho. Mas essa gente anda dormindo” (SALGADO, 1937, p.176). A ponta de cinismo emitida pelo narrador (foi apenas uma menina de nove anos...) nos foi bem clara, principalmente quando nos deparamos com a conhecida frase “sabe com quem está falando?”, analisada longamente por Roberto Damatta no texto Carnaval, Malandros e Heróis. A julgar pela descrição do enterro de um conhecido de Ivã, o personagem Zezinho conviveu no mesmo segmento social que o protagonista do romance:
Os convivas foram saindo: Pantojo e Martiniano, Mondolfi e Zezinho Silveira, Ivã, o Lulu e o cunhado comissário, funcionários da Repartição do sr. Hortêncio, o irmão de umas amigas de Dora, um maestro, um advogado, Guedinho & Cia, desconhecidos com motivos,-- todos de preto, considerações banais sobre a morte, ‘está aí o que é a vida’, ‘nada adianta lutar’, -- e automóveis por hora com algumas anedotas...(SALGADO, 1937, p.193)
A desilusão de Ivã foi provocada, também, pela banalidade e falta de escrúpulos que observou nesse meio social: pesou bastante ver claramente as desigualdades se repetindo no Novo Mundo.
Vamos em seguida aprofundar a contextualização de O Estrangeiro, pesquisando a forma como ele lida com os temas tratou dos seus predecessores e contemporâneos: o imigrante russo foi o protagonista de O Estrangeiro, e dois alemães centralizaram as discussões em Canaã, e uma alemãzinha também apareceu de passagem em Macunaíma. O folclore surgiu en passant em Canaã, ganha relevo e importância em O Estrangeiro e, enfim, formou a matéria-prima da própria narrativa em Macunaíma; o caboclo foi um tipo étnico bastante discutido: forneceu o assunto de Urupês, de Monteiro Lobato, e desempenhou um papel importante n’ O Estrangeiro, encarnado no personagem Zé Candinho, personagem que centralizou as esperanças de Juvêncio.
2.2. O Imigrante
Esse personagem se fez presente na prosa de Graça Aranha, mais especificamente no romance Canaã (1901), texto onde existiu, assim como em O Estrangeiro, o imigrante que se fixou e progrediu, deixando para trás os brasileiros:
--Vosmecê vai ficar aqui? Daqui a um ano está podre de rico. Todos seus patrícios eu vi chegar sem nada, com as mãos abanando...E agora? Todos têm uma casa, têm cafezal, burrada...De brasileiro Governo tirou tudo, fazenda, cavalo e negro...Não me tirando a graça de Deus...(ARANHA, s.d., p.20)
No decorrer do romance, dois imigrantes dialogaram: Milkau preferiu se misturar à nova pátria e aos brasileiros, Lenz resistiu e negou-se a conviver com os nativos da América do Sul, se achou no direito de submetê-los:
Lentz -- O homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores. Vê, a história...
Milkau -- Um dos erros dos intérpretes da História está no preconceito aristocrático com que concebem a idéia de raça (...).
Milkau -- As raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da civilização.(...).
Lentz -- Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Será sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravos em revoltas e quedas. (ARANHA, s.d., p.44)
Para Milkau, na América esteve a possibilidade de rejuvenescimento da civilização, enquanto Lentz insistiu num nacionalismo aristocrático alemão. Lentz deixou a Alemanha devido a uma frustração amorosa, numa situação análoga à de Ivã em O Estrangeiro.
Houve em Canaã, como em O Estrangeiro, o imigrante que se desilude com o Brasil. No livro de Graça Aranha, Milkau se desiludiu quando viu a injustiça feita com Maria Perut, uma grávida expulsa de casa que perdeu o filho e foi presa por acusação de assassinato. No momento em que a ajudou a fugir da cadeia, Milkau refletiu:
Chegara-lhe o momento doloroso, em que o divino sonho se desmancha no sopro da maldade. Tudo o que julgara como o doce convívio da bondade, do esquecimento e da paz não era senão o baixo conúbio de todas as vilezas sociais...(ARANHA, s.d., p.218)
E daí em diante, desiludido, Milkau reviu amargamente a cidade de Cachoeiro, negativo como Ivã em seus momentos finais:
E aí, embrionária e abortada cidade, a gente grosseira e rude mostrava o ar embrutecido, torturado pela ávida cobiça...Tudo o que era natureza tinha o aspecto sinistro, trágico, desolador, e o que era humano, mesquinho e ridículo. (...) O aspecto da sociedade brasileira é uma singular fisionomia de decrepitude e de infantilidade. A decadência aqui é um misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral. As correntes da imoralidade vagueiam sobre a sociedade e não encontram resistência em nenhuma instituição. (ARANHA, s.d., p.232)
Em Canaã, a narrativa se encerrou com o alemão, que fez parte de algo novo (a imigração não-ibérica), também se chocando com a tragédia da sociedade brasileira. Milkau só não chegou aos extremos de Ivã:
--Canaã! Canaã!...—suplicava ele em pensamento, pedindo à noite que lhe revelasse a estrada da Promissão. (...) Canaã! Canaã! Pedia ele no coração, para fim do seu martírio...E nunca jamais lhe aparecia a terra desejada...Nunca jamais...corriam...corriam...(...) . Milkau viu que tudo era vazio, que tudo era deserto, que os novos homens ainda ali não tinham surgido (...). –Não te canses em vão...Não corras...É inútil...A terra da Promissão, que eu te ia mostrar e que também ansioso buscava, não a vejo mais...Ainda não despontou à Vida. (ARANHA, s. d., p.232)
Assim, com seu final cético, Canaã concluiu com uma imagem não-idealizada do país, que deixou a desejar no presente e frustrou os imigrantes que vieram esperando uma terra prometida. Em Canaã, a narrativa tratou do Brasil enquanto terra onde o imigrante se arroga direitos de superioridade racial (Lentz), sendo ao mesmo tempo uma nova terra prometida (Milkau) e eterna colônia, na visão do brasileiro Maciel:
Colônia somos nós e seremos...—repetiu frio e insistente. (...) Temos sobre o continente projetada a sombra dos Estados Unidos. Isto reconheço; mas um dia, fatigados de impedir que outros se apossem de nós, eles nos comerão, como fizeram a Cuba. (ARANHA, s. d., p.154)
Embora no decorrer de Canaã não exista um personagem nacionalista, como surgiu em O Estrangeiro na figura de Juvêncio, em ambos os romances esteve presente o tema do imigrante, utilizado para buscar, na questão da colonização, as raízes do caso nacional. Em Canaã, a narrativa se encerrou com o imigrante otimista se desiludindo, enquanto a posição de Maciel deu a entender que o país ainda não se tornou independente, e que ele enquanto brasileiro se conformou com isso, advindo daí o fato de sua enunciação ser insistente, fria e repetitiva. Trajetória diversa seguiu o otimista estudante russo que refletia sobre o Brasil em O Estrangeiro: chegou com uma visão de paraíso, e terminou decepcionado com o Brasil, pensando o país como um jovem mas corrompido desdobramento do Velho Mundo, vendo no Cruzeiro do Sul uma cruz do suplício, um símbolo de que fatalmente a América iria fracassar.
Sem o tom trágico de O Estrangeiro, mas repondo estereótipos a respeito do Brasil (o brasileiro como preguiçoso, desprovido de formação moral, sensual e sem limites morais), em Macunaíma, que diferiu dos dois romances anteriores por não ser um romance e sim uma rapsódia (um texto que sintetiza as narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo), o imigrante foi mais uma das surpresas que o herói de nossa gente encontrou em São Paulo:
Nem bem saiu da pensão topou com uma cunhã clara, loiríssima, filhinha-da-mandioca bem, toda de branco e o chapéu de tucumã vermelho coberto de margaridinhas. Chamava Fraulein e sempre carecia de proteção. Foram juntos e chegaram lá (...). Pois então a alemãzinha chorando comovida, se virou e perguntou pra ele si deixava ela fincar aquela margarida no puíto dele. (ANDRADE, 2000, pp. 84-85)
Utilizando um tom satírico que contrasta com a seriedade e o drama dos personagens de Canaã e O Estrangeiro, neste fragmento acima de Macunaíma foi explorada a comicidade da palavra “botão” -- que para o heroí se chama “puíto” -- em seus múltiplos sentidos. Não é o imigrante que instaurou a reflexão sobre o Brasil; não se encontrando, como em Canaã e O Estrangeiro, idéias sobre o Brasil tão claramente expostas, elas devem ser tiradas das paródias, peripécias do protagonista ou de ditos populares como “pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” (ANDRADE, 2000, p.79). Talvez porque não se encontre essa clareza, o próprio Mário escreveu a respeito:
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. (...) E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. (ANDRADE, 2000, p.169)
Isto posto, percebemos que Mário de Andrade buscou uma síntese, não só das lendas e narrativas orais como da “entidade psíquica permanente” dos brasileiros, e encontrou nossa diferença nessa ausência de caráter (em ambos os sentidos), e justificou essa conclusão com base em exemplos de outros países. Podemos dizer que essa imagem de Brasil -- emitida por Mário de Andrade -- não foi propriamente positiva, pois colocou os brasileiros atrás dos franceses, dos mexicanos e dos jorubas (aparentemente, esses últimos são uma tribo africana). Mário de Andrade também buscou somente uma “essência” permanente, sem atentar para que o Brasil dos anos 20 estava em pleno processo de transformação.
2.3. O Caboclo
Dentro de O Estrangeiro, surgiram dois tipos de caboclo: o que aceitou o imigrante e se submeteu (Indalécio) e o que se manteve forte e fugiu intocado (Zé Candinho). O mesmo tipo étnico foi mostrado somente como preguiçoso, jeca tatu atrasado, indolente, produto duvidoso da mestiçagem por Monteiro Lobato em seu texto Urupês (1918):
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé (...). Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jéca, antes de agir, acocora-se. (LOBATO, 1982, p.145)
A presença de tipo semelhante foi notada pelo narrador, num fragmento logo nas primeiras páginas de O Estrangeiro: “Um homem empalamado, acocorado à beira do barranco. Chapeirão de palha, cigarro na boca, barba rala, artelhos abertos como garras. Tem o ar triste e banzeiro” (SALGADO, 1937, p.25). Mas surgiu logo uma distinção: “Alguns, --pequenos agricultores, taverneiros, carregadores ou peões, exceção feita ao Zé Candinho --,andavam por ali, mas guardavam poucos traços do caboclo genuíno, ou antes, eram uma expressão interior do caboclo” (SALGADO, 1937, p.29). A natureza dessa exceção feita ao Zé Candinho não ficou bem explicada: seria Zé Candinho um caboclo genuíno? Outro dado é que, embora esses outros fossem “expressão inferior”, continuavam representativos da pobreza daquelas populações rurais naquele momento histórico, ou seja, continuavam representantes legítimos dos caboclos.
É nesse ponto que residiu uma marcante diferença entre Urupês e O Estrangeiro: para Lobato, o caboclo real é Jeca Tatu: “Pobre Jéca Tatú! Como és bonito no romance e feio na realidade” (LOBATO, 1982, p.148). Em O Estrangeiro, a justificativa é que existiam vários tipos de caboclo:
Ivã queria ver um caboclo autêntico. Contou-lhe o amigo que eram raros. Quase todos estavam no sertão. Poucos ficaram nas redondezas, cantando à viola, empalamados (...). O legítimo, esse prosseguia a sua faina, rumo das brenhas, afastando-se da onda absorvente dos estrangeiros. (SALGADO, 1937, p.29)
Assim, O Estrangeiro apresentou personagens caboclos (Indalécio e Zé Candinho), mas de forma conciliadora, dando uma explicação mais favorável a eles que a de Monteiro Lobato: os caboclos não seriam todos iguais.
Se para Lobato o caboclo foi objeto da denúncia de que existiu uma lacuna entre o caboclo real e o caboclo da ficção, em O Estrangeiro o caboclo foi o centro das atenções e expectativas do nacionalista Juvêncio. Esse professor fez dele uma imagem idealizada, de um primeiro mestiçamento bem sucedido, sendo portanto de se esperar que esses “Hércules de bronze” consigam integrar os estrangeiros ao meio em que eles chegam. Juvêncio já se referiu a Zé Candinho, em Mandaguari, como um Hércules que se tinha feito domador de burros. Posteriormente, Zé Candinho se enamorou da italiana Concetta, mas acabou seguindo para o interior, sentindo que sua condição, perante os imigrantes, seria subalterna. Juvêncio voltou a reencontrá-lo em Cedral; Zé Candinho acompanhou a trajetória do professor Juvêncio, mas não por sua influência direta: Afinal, em momento nenhum, Juvêncio dialogou diretamente com Zé Candinho e lhe prescreveu gestos ou atitudes. Podemos dizer que Juvêncio e Zé Candinho convergiram para as mesmas posições dentro do romance, sem que haja uma interferência direta do intelectual: Zé Candinho abandonou a idéia de casar com uma italiana, assim como o professor desistiu de seu projeto de integrar os imigrantes. A idéia presente aí talvez seja que Juvêncio era tão ligado à terra que acompanhava, intuitivamente, os caminhos dos melhores do povo.
Todavia, as capacidades intuitivas de Juvêncio foram, num dado momento, desmentidas pela realidade: o professor constatou que, mesmo no sertão, os papagaios brasileiros aprenderam o italiano e não mais pararam de cantar nessa língua . Nesse último caso, a realidade se mostrou bem pior que Juvêncio pôde intuir: são os nativos que se deixaram influenciar pela cultura exógena; assim sendo, as trocas culturais entre os dois grupos não se efetivaram. Juvêncio se assustou por pensar ter descoberto, no episódio, uma regra geral da natureza e da cultura no Brasil. Em O Estrangeiro tivemos o trajeto completo dessa desilusão do nacionalista, que passa a ver na imigração uma recolonização.
2. 4. O Folclore
No romance Canaã, em meio à trajetória de Milkau e Lentz, fixamos nosso olhar na contraposição de lenda alemã e do folclore brasileiro, que foi narrada como parte da interação entre nativos e estrangeiros na fazenda. A lenda alemã, contada por um imigrante do Reno, tratou da jovem Marta, uma bela e jovem monja. Essa lenda germânica e cristã que em seguida é contestada pelo cético Lentz, que se pôs a negar bruxas, milagres e encantados. Mais adiante, os colonos também citaram a Lorelei, ninfa que cantava no Reno com uma lira na mão, e que levou para o fundo do rio, onde ficava seu palácio de cristal, um conde palatino seduzido por sua voz mágica. Ao ouvir isso, o mulato Joca afirmou não temer nem as feiticeiras nem as mães d’água, pois já encontrara o curupira:
Com o cabo de poucos minutos, eu ouvi um berro de estrondo, um berro de onça; ah! Pensei que o malvado me deixava. Mas foi pior, porque outros berros se repetiram, caititu vinha batendo queixo, gatos bravos miavam; ouvi cascavel tocar seu chocalho...Com poucas estava no chão com o caboclo em cima de mim (...). Passei a mão em roda de mim, caçando minha garrafinha de restilo e as toras de fumo. Para espertar não há melhor que um gole de cana e uma masca...Mas não encontrei nada; cacei, cacei. (...). Quis correr para a ramada da Maria Benedita, o samba devia estar aceso àquela hora. Olhei para a frente, a estrada ia acabar longe, muito longe. Tive medo de novo encontro. (ARANHA, s.d., p.79)
Em Canaã, essa contraposição de folclores acima surgiu em meio a um diálogo descontraído do personagem Lentz com o brasileiro Joca e os outros imigrantes. Com a comparação se fez para notarmos as diferenças: um imaginário é cristianizado, outro se referiu a uma permanência do folclore indígena (curupira). Aparecendo apenas nessa passagem de Canaã, essa contraposição refletiu a convivência entre essas lendas, e não a possível substituição de um fabulário por outro, preocupação que surgiu, logo mais, em O Estrangeiro.
Não por acaso, é o Juvêncio comprometido com o nacionalismo que instaurou a comparação entre fabulário interno e externo e marcou a passagem abaixo de O Estrangeiro:
E, apesar de todas as luzes de uma civilização cosmopolita, o Boitatá acende o seu fogo no sertão (...). A Uiára, de verdes cabelos compridos, teme o confronto com as cabeças parisienses? E o Saci deixa ao Pinóquio os becos do Brás e do Bom Retiro? E o caapóra, por onde anda, com o seu cigarrão de palha, com seu garrafão de pinga, de sorte que nem dele tem notícias a sociedade que fuma cigarrilhas egípcias e bebe cachaça inglesa de Johnnie Walker com gosto de cheiro de defunto? A mãe de Ouro é menos dadivosa que o Papá Noel alemão? O Boitatá sente pejo diante dos arcos voltaicos da Light e não sabe que o seu fogo deveria iluminar todo o país? (SALGADO, 1937, pp. 90-100)
O professor contrastou o folclore da roça com um imaginário exógeno, dando a entender o risco de uma substituição de um pelo outro. Em Canaã, um confronto semelhante foi trazido à luz para demarcar o momento então vivido pelo país: a chegada de uma nova onda imigratória. No livro de Graça Aranha, o folclore surgiu para dar idéia das diferenças entre colonos e nativos, enquanto que, de tantas indagações acima, tiradas de O Estrangeiro, subentendemos uma única questão central: “o folclore estrangeiro está substituindo o nosso, mas o que ele tem de melhor, de mais valor?”
Podemos acrescentar que, embora Ivã converse sempre com Juvêncio, o russo nunca se interessa por folclore, nem Juvêncio aborda o assunto em suas conversas com o imigrante. Logo na primeira epígrafe do romance, há uma profissão de fé de que o saci saberia enfrentar todas as formas do imperialismo pacífico, ou seja, a parte que fala da região rural, trata do possível enfrentamento entre o saci e o folclore trazido pelo imigrante.
A narrativa se vale do folclore para tratar de outros assuntos, não discutindo o sentido intrínseco das lendas. O resultado é que o folclore serviu de matéria-prima para os símbolos que a narrativa nos foi apresentado. Salgado definiu o ambiente em que as três partes do romance se desenrolam: “Vida rural, vida provinciana e vida na grande urbe” (SALGADO, 1937, p.11). As três partes são: “A terra do saci”, “o boitatá” e “a cabeça da mula sem cabeça”, todas acompanhadas de pequenas e enigmáticas epígrafes. A epígrafe da parte que se passa no meio rural, a tal terra do saci, é uma profissão de fé no negrinho: “Eu creio que o Saci, na sua puerilidade, sabe enfrentar todas as formas do imperialismo pacífico” (SALGADO, 1937, p.4). Não sabemos quem possa ser esse “eu” que enuncia esse fragmento, mas se é o narrador, essa afirmação foi desmentida pelos acontecimentos posteriores da narrativa, em que lendas estrangeiras como o Papai Noel começam a substituir o folclore ao qual o saci pertence, sem que os brasileiros, tanto o caboclo (no caso do Indalécio) como o mais instruído (no caso de Juvêncio) enfrentem com sucesso a onda imigratória.
A segunda epígrafe, que abre “O Boitatá” se refere a essa assombração: “...e, apesar de todas as luzes de uma civilização cosmopolita, o boitatá acende o seu fogo no sertão” (SALGADO, 1937, p.87). O fragmento insinuou que na vida provinciana existiria uma permanência do folclore, apesar da província já estar em contato com os estrangeiros. Porém, depreendemos da atuação do professor nacionalista em Mandaguari que, se não houver resistência nativa de alguma forma, esse fogo do boitatá poderá se apagar.
Finalmente, a terceira e última parte (a cabeça da mula sem cabeça) nos parece insinuar um futuro de reconquista da cidade pelo meio rural. Aqui, o simbolismo é assumido: “...e assim, a simbólica Mula, que, por trazer muitas cabeças, é como se nenhuma tivesse, será, apenas, uma trágica lembrança, no dia em que o Anhangüera volver à Cidade requintada de onde o expulsaram.” (SALGADO, 1937, p.184). Esse intelecto que não existe simboliza a grande cidade, conforme o esquema esboçado por Salgado no prefácio. O mítico Anhangüera seria representativo dos próprios brasileiros que, uma vez dominados pelos estrangeiros, deveriam no futuro acabar com esse jugo. No entanto nada indicou, no referido capítulo, que há uma nacionalização no horizonte. O folclore, nesta última parte, se restringe às cartas de Juvêncio para Ivã, que em momento nenhum respondeu nos mesmos termos ou falou do folclore russo.
Se foi negada a presença, na cidade, do folclore brasileiro, sua negação textual pode ser encontrada na ampla utilização de termos estrangeiros pelo narrador (postos em negrito), que marcou presença em toda a narrativa, mas foi mais freqüente nesse capítulo. Coletamos em duas páginas (185 e 186) os seguintes termos: “rag-time”, “pierrete”, “loups” , “fox-trots yankees”, “jazz-bands”, “bluffs”, “plafonds”, “pocker”, “stores”, “Club”. Assim, constatamos uma contradição de fundo: na a epígrafe que prenuncia uma futura nacionalização (e que não é atribuída a nenhum personagem), mas a própria terminologia empregada o desmente: para narrar a realidade urbana, foi preciso fazer uma desnacionalização na esfera vocabular. Não há quaisquer indícios de que essa urbanidade possa ser expressa de outro modo. Não está em curso uma confrontação sistemática do folclore brasileiro com seus possíveis sucedâneos internacionais, nessa última parte de O Estrangeiro. O que dá a entender que o folclore nativo já teria desmanchado ou sido substituído. Ora, podemos supor que ainda existia folclore na São Paulo dos anos 20: grande parte de seus habitantes eram brasileiros de urbanização recente, e que provavelmente traziam suas próprias lendas e tradições do campo. Já os imigrantes estrangeiros também deveriam trazer seu fabulário da Europa. Logo, São Paulo seria antes um laboratório de fusão de várias tradições, mais do que um lugar de dissolução destas num cosmopolitismo – termo esse que, no romance de Plínio Salgado, foi a denominação negativa de “internacionalismo”.
Avaliando conjuntamente Canaã, O Estrangeiro e Macunaíma, notamos também uma gradação na abordagem do folclore: tendo aparecido numa simples passagem em Canaã, foi a seguir tomado como elemento mais caracteristicamente nacional da cultura brasileira em O Estrangeiro, ainda sem ocupar o primeiro plano da narrativa. Finalmente, em Macunaíma, o elemento mítico e folclórico foi a matéria prima da narrativa, posição hegemônica que não ocupava em Canaã e O Estrangeiro, romances que trataram primordialmente da imigração, e onde o folclore apenas pontuou a narrativa.
Analisando de uma outra perspectiva, para dar a idéia de como se investem, dentro das narrativas, elementos folclóricos (no caso, Macunaíma e O Estrangeiro), em simbolismos inversos: o papagaio e o Cruzeiro do Sul. O papagaio, ave que em O Estrangeiro foi símbolo do brasileiro imitador, estrangulado pelo professor Juvêncio, reapareceu em Macunaíma como figura central da narrativa. O Cruzeiro do Sul é um símbolo presente em O Estrangeiro e em Macunaíma, mas no romance pliniano ele se tornou um signo que mostra que esse céu americano não está livre dos pecados, e está destinado a fracassar. Em O Estrangeiro a referência ao Cruzeiro do Sul foi fatalista, como vimos anteriormente. O Cruzeiro do Sul apareceu para Ivã como uma representação da cruz do suplício, anunciando que a América fracassou em dar soluções para os dilemas vividos pela Europa. Observemos como esse símbolo foi virado ao avesso em Macunaíma:
Nesse momento, um mulato da maior mulataria trepou numa estátua e principiou um discurso entusiasmado explicando para Macunaíma o que era o dia do Cruzeiro (...). Só depois do homem apontar muito e descrever muito é que Macunaíma pôs reparo que o tal de Cruzeiro era mas eram aquelas quatro estrelas que ele sabia muito bem serem o pai do Mutum morando no campo do céu (...). O pai do Mutum quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da nossa terra, fez. Pediu pro compadre vagalume alumiar o caminho na frente com as lanterninhas verdes (...). O mano pediu para o pai, o pai pediu para mãe, e a mãe pediu para toda a geração, o chefe-de-polícia e o inspetor do quarteirão e muitos muitos, uma nuvem de vagalumes foram alumiando caminho uns pros outros. (ANDRADE, 2000, pp.85-87)]
Assim, em Macunaíma, o sinal no céu não é visto como profecia derrotista de estrangeiro, nem discurso de ufanismo mulato: dá-se crédito à explicação mítica, herdada dos índios, que aparece como contraponto do patriotismo oratório e dos discursos oficiais.
Comparando os dois símbolos, observamos que o papagaio, que no romance de Plínio Salgado foi tomado como emblema de uma repetição impensada, se limitando a repetir, ecoando impensadamente uma enunciação alheia, no livro de Mário tornou-se símbolo de um discurso que se constrói com a apropriação de criações outras. O mesmo símbolo reaparece, mas com sinal invertido: a apropriação do alheio é revista enquanto proposta criativa e válida. O Cruzeiro do Sul passa por processo semelhante, sendo despido da significação de cruz, passando a símbolo de um povo mágico e fantasioso, parte de uma visão de mundo original que Macunaíma vem restaurar.
Assim, temos símbolos em comum em ambos os textos, mas um tratamento diverso. O final de ambos também se aproxima para depois divergir: um autor também se apresenta na primeira pessoa, como no livro de Salgado:
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente. Tem mais não. (ANRADE, 2000, p.162)
Mas surgiu ao fim a surpresa no que toca ao destino do elemento exógeno: o papagaio ruma para a terra lusa, de onde se originou nossa língua. Mesmo a narrativa composta com as referências mais brasileiras não escapa à necessidade de ser escrita com um idioma oriundo da Europa. Esta contradição parece apontar retroativamente para O Estrangeiro, que se pretende uma narrativa tecida com os mais autênticos temas e linguagem nacionais, mas precisa, para isso, de um fio condutor traçado por um viajante estrangeiro, fio esse tecido por palavras originárias de outras plagas.
Supomos a existência de uma linha de continuidade: Plínio Salgado retomou de Graça Aranha a questão da imigração, ambientando-a em São Paulo e com um estilo inspirado em Memórias Sentimentais de João Miramar. O contraste entre o folclore brasileiro e o exógeno que, em Canaã, era esporádico e surgiu num momento de descontraída interação entre colonos e imigrantes, em O Estrangeiro assumiu um aspecto belicoso na cidade de Mandaguari, agudizado pela forte presença estrangeira e pelo projeto educacional do nacionalista.
3. Imagens do Brasil em O Estrangeiro
Eu encontrei um homem vermelho
Falando uma língua que eu não sabia...
Pelos seus gestos eu entendi que ele achava
Minha terra muito bonita (...).
Eu tive vontade que ele entendesse a minha fala prá lhe dizer:
--Marinheiro provéra Deus que você fosse
Pelos nossos sertões...
Você via os campos sem fim...
(...)Você comia comigo umbuzada gostosa...
O leite com girimum...
Curimatã fresca com molho de pimenta de cheiro...
(...) Marinheiro, se você soubesse a minha fala
Eu haveria de levar você pro meu sertão...
O Estrangeiro, Jorge Fernandes
Neste capítulo, iremos analisar as diferentes imagens do Brasil contidas em O Estrangeiro. Acreditamos que essas imagens oscilam entre a melancolia e a exaltação, e o romance não obtém uma síntese, um equilíbrio entre os pontos negativos e positivos.
Logo na chegada de Ivã, o narrador se referiu ao Brasil como a terra da promissão, mas lhe negou a condição de paraíso, uma vez que a condenação adâmica ao trabalho se repetiu:
Estava na terra da promissão. Mas estava encarcerado. Entrava-se na terra livre da América, como um condenado. A sentença bíblica, pronunciada à saída do Éden, repetia-se às portas do novo paraíso: --DEPARTAMENTO ESTADUAL DO TRABALHO. (SALGADO, 1937: p.16)
Foi anunciado o impacto dessas palavras no personagem: “Após 20 dias nos porões do navio, aquelas palavras caíram sobre seu espírito como a mão de ferro de um cossaco abatida sobre o ombro de um suspeito” (SALGADO, 1937, p.16). Notamos também que Ivã havia escapado da prisão e do fuzilamento em Moscou:
Achara-se em Gênova, para escapar ao fuzil, em Moscou. (...) Como conseguira, ante as maiores dificuldades, encaixar-se entre os imigrantes italianos? (...). Fez-se revolucionário, conspirou nos bairros escusos dos clássicos porões, onde fervia em ebulição o cérebro da Pátria. Esteve perseguido e ameaçado de morte. (SALGADO, 1937, p.17)
De certo modo, o narrador já emitiu uma sentença: Ivã escapou de uma condenação para cair em outra. Noutro pólo, o da exaltação predominante quando da chegada do estrangeiro, uma imagem do narrador nasceu da comparação do Brasil com a Atlântida: “Foi o aroma afrodisíaco da Atlântida que acordou o instinto pagão dos velhos povos desvirginadores, adormecido nos séculos claustrais do misticismo” (SALGADO, 1937, p.28). Nem mesmo essa imagem foi de todo favorável, podendo ser aproximada àquela de um paraíso perdido. Nos diálogos platônicos, a lendária Atlântida foi referida como um exemplo do que poderia acontecer se os habitantes de um reino não seguissem leis boas e justas: a destruição em meio ao dilúvio. Em sua única aparição no romance, anteriormente citada, a Atlântida apareceu como um mito gerador da colonização da América. Esse mito seria a mola que levou os europeus a partirem em busca de novas terras, depois da Idade Média.
Ivã, quando chegou ao Brasil, veio fazer a América, fugir das tradições da nobreza russa e também para adquirir os direitos que a Rússia não garantiu, mas isso em meio a profecias:
As instituições americanas repousam na rocha viva dos direitos do Homem. Quando desabar o dilúvio russo, suas últimas ondas virão morrer aqui, de encontro a estas paredes da Imigração, onde há um dístico, à maneira de sentença, a encimar um arco de triunfo. E a América, então, reconstruirá o que estiver destruído no mundo. (...) Aqui, sem prerrogativas de nascimento, sem brasões nem escudos de armas, efetiva-se o ciclo da evolução social. O homem entra pela porta da escravidão e sai pela da opulência. (SALGADO, 1937, p.15)
Nesta profecia, a América viria a suplantar a Rússia e seu dilúvio revolucionário devido a seus elementos de novidade: garantiu aos direitos do indivíduo, que na “Terra Jovem” está livre do peso das tradições, podendo então avançar em termos de evolução social. Quando Ivã chega à América, o narrador faz uma colorida descrição, produzindo vívidas imagens:
Ivã pôs-se a contar as pequenas lanternas verdes, vermelhas, azuis, espalhadas ao longo da via férrea, até a estação do Norte, ao Pari, à luz. E ouvia o ressonar dos companheiros,-- velhos campônios lombardos, brônzeos calabreses -, espuma da taça transbordante aliviada no dorso do oceano. (SALGADO, 1937, p.16)
No trecho acima, já está clara a proximidade com os imigrantes italianos, com os quais Ivã chegou ao Brasil e cuja língua domina. A Itália é representada como uma taça que derramou o seu excesso de habitantes no Brasil. O russo, no momento em que chega, combina o desejo de se filiar a uma civilização nova com a ambição de nada dever ao passado e às tradições, podendo assim construir uma nova identidade. Nesse novo país, supostamente, o trauma provocado pelo abandono da amada, a nobre russa Ana Olenewna, será superado. Ele depôs sobre o interdito:
Que se faz no meu país, quando se ama uma mulher e os costumes, invioláveis, escrevem sobre sua cabeça a palavra impossível. Apenas me recordo que armei o braço para todas as violências. Como remover o impecilho? Destruindo-o. Na América, é diferente. Aqui, o indivíduo não destrói para vencer; deve construir, para alcançar. (SALGADO, 1937, p. 94)
Ivã disse isso num segundo momento, quando se preparou para tornar-se um industrial. Supomos que, quando Ivã não conseguir construir a empresa nos moldes que sonha, partirá para as violências contra os nobres russos e os operários da fábrica. Quando ele volta a São Paulo, está lendo um livro: “Antes de dormir, lia um livro, ‘Nantas’, a história de um homem que se construiu, para vencer uma mulher.” (SALGADO, 1937, p. 95) É um efeito de metalinguagem evidente: a história de Ivã é a de um homem que se destruiu, tentando vencer a obsessão por uma mulher.
No momento da chegada, Ivã passou por São Paulo, e percebeu a metrópole como algo inteiramente novo, assim como seus anseios: “A cidade americana não tinha nada da européia. Assim o pressentia. Assim o desejava.” (SALGADO, 1937, p.19). Apesar disso, abandonou a grande cidade e se deslocou para o campo. A primeira impressão desfavorável chegou depois que ele se agregou à família Mondolfi:
Pálida, com um lenço atado à cabeça, Concetta disse a medo: -a terra é triste...E Ivã sentiu, formidável, o peso da fatalidade. Noite velha. Um cão uivava dolorosamente. (Certa vez, entre estudantes moscovitas, planejara matar o Czar. Atiraria a bomba.) O vento zumbia no telhado. (E ela? Que destino seguira? Filha de condes, com largos latifúndios em Irkutsk, ambientada, penetrada pela aristocracia...) (SALGADO, 1937, p. 24).
Uma vez no novo país, um simples juízo desfavorável de Concetta Mondolfi já bastou para deixar Ivã perturbado em suas convicções. Mais adiante o narrador observou que os italianos dentro em pouco tinham superado a primeira impressão: “os filhos de Carmine travaram relações com a gente e em poucos dias pareciam estar na própria terra” (SALGADO, 1937, p. 26). Ivã, no entanto, começou a mudar de opinião e a se sentir cada vez menos à vontade. Mais adiante, Ivã encontrou o professor nacionalista Juvêncio. O narrador diz desse encontro, talvez o mais importante do livro: “Ivã fez-se amigo do diretor das Escolas Reunidas. E Juvêncio tornou-se um bom cicerone, descerrando ao moscovita os segredos da terra.” (SALGADO, 1937, p. 26) O narrador trata o personagem nacionalista com o termo cicerone, como se Ivã fosse simplesmente um turista e Juvêncio, um guia.
Apesar dos mitos e profecias, o narrador nos transmitiu a informação que Ivã reclamou da vida monótona da fazenda e de sua paisagem “verde-parada, medíocre, insignificante” (SALGADO, 1937, p.41), enquanto, pouco antes, exaltara essa mesma paisagem paradisíaca em que “sob um sol de legenda, desdobrava-se o panorama formidável da América. Escarpas a piques, abismos verdes, tigres dormitando à sombra de árvores apocalípticas” (SALGADO, 1937, p.24). A ambigüidade de Ivã quanto ao novo país parece que se deu desde o começo. Isso sinalizou o início de um processo que percorreu todo o romance: a narrativa devorou as imagens colocadas por si mesma, devorando o protagonista. A imagem acima, esboçada por Ivã, foi altamente fantasiosa, uma vez que sequer existem tigres no Brasil.
3.1. Os Intelectuais e a Mentalidade Brasileira
Quais são as fantasias, ilusões, qual foi a mentalidade que Ivã trouxe para o Brasil? Primeiramente, pontuamos que O Estrangeiro nos pareceu ser um romance anti-intelectual, no sentido em que terminou negando a articulação de reflexões sobre o real. São os imigrantes que não refletiram – e praticamente não falaram – que vencem no país. Também foi vencedor um brasileiro, Major Feliciano, que foi oposicionista somente no município, e mesmo assim só foi contra o voto de cabresto enquanto esteve fora do poder. Uma vez dentro, usou os mesmos mecanismos daqueles a quem se opunha. Com isso, o romance nos pareceu concluir que o Brasil ainda não conseguiu se renovar politicamente, e, quando isso ocorreu, terminou voltando a velhos vícios. A narrativa nos pareceu levar à conclusão de que seria impossível escapar a esse ciclo.
O foco narrativo de O Estrangeiro privilegiou os derrotados Ivã e Juvêncio, muito embora Juvêncio não veja Ivã como um igual: “Estamos entre duas espadas, que nos mostram o caminho da decadência, o materialismo utilitário dos inconscientes e o ceticismo desnorteante dos intelectuais como você” (SALGADO, 1937, p.267). Dito assim, podemos supor que Juvêncio estava demarcando diferenças: a expressão “intelectuais como você” deu a entender que existiam diferentes tipos de intelectuais, e aquele que escreveu o texto acima sabia qual era o caminho da decadência e qual o do progresso. Ele comentou, ainda na época de professor, o que reprovava na intelectualidade:
E como é ridícula a inteligência, sem a colaboração do sentimento, que é a soma dos elementos subconscientes, que lhe estampa os traços da fisionomia e lhe dá o espírito da personalidade! (SALGADO, 1935, p.31).
A julgar pelos atos de Juvêncio, podemos dizer que ele não apontou um caminho, mas reprovou os intelectuais céticos, que se desnorteavam. No romance, os intelectuais foram referidos enquanto categoria; falou-se no “ceticismo desnorteante” destes. A narrativa privilegiou o embate de Juvêncio e de Ivã com a realidade, processo em que acabaram frustrados. No romance, intelectuais propriamente ditos seriam os elementos instruídos: Ivã (estudante universitário), Juvêncio (professor secundário) e Eugênio Fortes (poeta paulista). Este último foi comentado pelo narrador como “triste”, “voz ignorada” que no entanto “refletia a alma incoerente da urbe cosmopolita”. A julgar pelo fragmento de Eugênio Fortes ao qual nos deu acesso, o narrador entendeu que o estado de espírito citadino seria de “alegria selvagem de civilização nova, esbatida de melancolia da decadência” (SALGADO, 1937, p.157). A incompletude e a insatisfação do poeta foi também comum a todos os intelectuais. No final do romance, Ivã, ao sentar-se à mesa com Humberto Mondolfi, Eugênio Fortes e Juvêncio, repetiu imagem semelhante, a de um Brasil dividido entre a nova e a velha tragédia:
Sento-me hoje à mesa num país diferente. Ontem, jantei no Clube, num Brasil antigo. Ali, tudo o que há de novo é adventício; no fundo, há uma velhice deteriorada, um fim de raça doloroso, que agoniza sobre os plafonds, numa coletiva inconsciência do marasmo senil (...). Mas aqui, somos personagens da Tragédia Nova. Sinto o Brasil, corpo e alma, palpitantes...(SALGADO, 1937, p.200)
Curiosamente, o fracasso e o alheamento dos intelectuais não era característico do período em que se passou a narrativa (anos 10). Tânia Regina de Luca afirmou que:
Longe de se limitar a uma atitude contemplativa, os intelectuais ansiavam por influir nos destinos do país, apontar caminhos, forjar políticas de ação. Por se considerarem os únicos capazes de interpretar corretamente o mundo (...). Parecia-lhes evidente que apenas eles dispunham da competência necessária para (re)colocar o país em sintonia com seus verdadeiros valores. Essa vocação para conduzir os negócios públicos, de inspiração nitidamente iluminista, encontra-se manifesta nas explicações, sínteses, balanços, propostas e projetos que arquitetaram. (DE LUCA, 1998, p.41)
Juvêncio era mais parecido com esse tipo de perfil que De Luca traçou, principalmente no início de sua trajetória. O narrador identificou nele um inadaptado, assim como Ivã, e acompanhou-os em seus infortúnios. Podemos assim supor que o narrador negou um papel iluminista aos intelectuais, que não deteriam a missão de educar, nem conseguiriam interpretar corretamente o mundo, ou gerar a verdadeira consciência.
O papel dos intelectuais no período em que transcorreu a narrativa de O Estrangeiro (1914-18) foi discutido por Tânia Regina de Luca em sua obra historiográfica sobre o pré-modernismo, intitulada A Revista do Brasil: Um Diagnóstico para a (N)ação. Neste texto, a autora citou que os intelectuais da República Velha (que ele chama de “anatolianos”), poderiam ser definidos do seguinte modo:
Eram polígrafos que se esforçavam por satisfazer a todo tipo de demandas que lhes faziam a grande imprensa, as revistas mundanas, os dirigentes e mandatários políticos da oligarquia, sob a forma de críticas, rodapés, crônicas, discursos, elogios, artigos de fundo, editoriais, etc (...). Respondendo a necessidades diversas impostas por um campo relativamente indiferenciado (...). (DE LUCA, 1998, p.28)
Os intelectuais que apareceram em O Estrangeiro não se enquadravam na definição acima. Juvêncio, o intelectual que mais se aproximou, ao mesmo tempo foi professor, escrevia sonetos camonianos e ensaios em jornais sobre a escola como fábrica de brasileiros. Ivã era estudante universitário e trouxe da Rússia um plano de uma fábrica onde os operários seriam “quase sócios”. Eugênio Fortes, poeta que o narrador chamou de melancólico e por todos não escutado, foi tido por esse mesmo narrador como o melhor intérprete da grande cidade.
Os intelectuais modernistas, aderindo a um programa de nacionalização da literatura brasileira (segundo De Luca, já presente nos anos 10), recomendavam a incorporação de temas e linguagem da terra. Supomos inclusive que O Estrangeiro foi a ampliação da tentativa paulista de se colocar como modelo para o país, ambição essa detectada (nos textos da Revista do Brasil) por Tânia Regina de Luca na primeira década do século:
São Paulo, que já fornecera à Nação o café, as indústrias, um passado glorioso, uma raça de bravos, um território de dimensões continentais, desejava agora brindá-la com uma língua e uma arte próprias, coroando assim os esforços de enfim dotar o Brasil de sentido e continuidade histórica, graças ao trabalho de construção de mitos, símbolos e heróis capazes de serem compartilhados por todos os seus filhos. Desde logo, percebe-se a dimensão política da questão, uma vez que nessa busca dos caracteres particularizadores da Nação fundiam-se o anseio de autonomia e afirmação ante o estrangeiro, manifesto no desejo de possuir uma língua própria, capaz de dar conta da sensibilidade local; a dificuldade – se não impossibilidade – de encontrar critérios objetivos para definir o nacional; e a tentativa paulista, aberta pela referida dificuldade, de apresentar-se como padrão ou modelo válido para todo o país. (DE LUCA, 1998, p.280)
Supomos que, na tentativa que faz O Estrangeiro de sintetizar o caso nacional, estava também o projeto paulista: uma vez definido o nacional, seria possível propor São Paulo como modelo e padrão para todo o país. O Estrangeiro findou por dar a entender o próprio esforço de abstração e racionalização como responsável pelos fracassos.
Um momento em que surgiu essa postura: Ivã disse que não era o imigrante ideal para o Brasil, que este deveria ser bronco e trazer as virtudes européias sem o saber, e Juvêncio concordou. Assim, ficou entre eles o consenso de que a intelectualização e reflexão trouxeram vícios e defeitos, sendo preferível a inconsciência. Em uma fala já comentada, Juvêncio disse que o caminho seguido pelos “materialistas inconscientes” seria o da decadência. Só que a narrativa não confirmou isso: o caminho seguido pelos personagens que não refletiram e se apegaram a oportunidades concretas (os Mondolfis, o Major Feliciano) foi de ascensão social e política, respectivamente. Portanto, o Brasil que venceu no final da narrativa foi o Brasil dos pragmáticos e dos não conscientes, dos que não pensaram a respeito da realidade brasileira. Podemos supor que, embora O Estrangeiro tenha surgido num ambiente em que existia a necessidade de pensar o Brasil-nação, a narrativa demonstrou ceticismo em relação aos intelectuais que antecederam os modernistas. Tânia Regina de Luca, citando Alfredo Bosi, pontuou a relação de continuidade e ruptura dos modernistas com seus predecessores:
O trabalho, no dizer de Bosi, ‘paciente e amoroso’ de certos autores no trato da realidade local, a atenção aos costumes, hábitos, cenas, linguagem e folclore, fazem-nos companheiros dos modernos na preocupação com a temática nacional. É certo que sempre se poderá argumentar que apenas os últimos foram capazes de superar de vez o tom exótico, artificial e pitoresco comum a certos regionalistas, mas isso não garante à vanguarda exclusividade absoluta no trato da questão. De fato, as propostas modernistas foram nutridas em um ambiente dominado pela urgência de pensar o Brasil-Nação. (DE LUCA, 1998, p.285)
Como foi dito acima, O Estrangeiro foi uma narrativa ambientada numa época motivada pela necessidade de se pensar o Brasil enquanto nação, motivo-guia que permaneceu na década de vinte, em que o romance foi escrito, mas esboçou uma ruptura com o modo de pensar o Brasil-nação de um passado então recente. Por fim, notamos que O Estrangeiro foi inclusive uma revolta destrutiva contra o que era a inteligência nacional, tanto em suas faces mais participantes (Juvêncio) quanto céticas (Ivã).
Na Conferência A Anta e o Curupira , Plínio Salgado disse que “a mentalidade brasileira era o Ivã que pus no ‘O Estrangeiro’ ”. (SALGADO, 1935, p.29). Nos pareceu ser a mentalidade de um europeu exilado nos trópicos. No decorrer de O Estrangeiro, Juvêncio criticou a dissociação do intelecto e da sensibilidade: “E como é ridícula a inteligência, sem a colaboração do sentimento, que é a soma dos elementos subconscientes, que lhe estampa os traços da fisionomia e lhe dá o espírito da personalidade!” (SALGADO, 1935, p.31). Não foi o que se deu com o seu interlocutor Ivã, uma figura em que o sentimento de desenraizamento se conjugou com a reflexão sobre o novo país. Se tomarmos como válida a asserção pliniana que iniciou esse parágrafo, a mentalidade nacional abarcou tanto uma visão de paraíso a respeito do Brasil quanto uma crítica destruidora e suicida, mas permaneceu ainda européia.
As imagens geradas por Ivã em São Paulo teriam, portanto, muito em comum com um determinado perfil: Ivã permaneceu um europeu extraviado, varado de saudades da amada, insatisfeito com o Brasil, sem conseguir se identificar com nenhum ideal coletivo local, mesmo depois de ter feito fortuna rápida. Com suas reflexões, Ivã criticou São Paulo e o Brasil:
Sem nada de seu, o mal do brasileiro foi saber demais; e o que saber? Princípios inaclimatáveis e funestas generalizações, que o deveriam conduzir às mesmas enfermidades dos povos fatigados...Nada foi construído de original, de próprio, nem na política, nem nas artes (SALGADO, 1937, p.254).
Essa imagem de Ivã espelhou ele próprio. Ele também trouxe da Europa e da Rússia idéias e projetos preconcebidos, tentou aclimatá-los, e sempre fez generalizações. O Brasil seria imitação, ao mesmo tempo, do país europeu que o colonizou primeiramente e de outro país americano: Ivã encontrou o casco do navio lusitano vestindo a vistosa carroceria das usinas de Chicago. Do modo como a narrativa foi conduzida, as reflexões do russo o levaram a uma desilusão sistemática.
3.2. Ivã e Juvêncio: Construção e Destruição das Imagens do Brasil
Depois de uma fase inicial predominantemente otimista, Ivã entediou-se com Mandaguari, e comentou que o Brasil não era simplesmente uma “Terra Jovem”. Seria um “país ainda não estilizado. Falta-lhe a íntima comunhão dos homens, a consciência criadora das formas definitivas” (SALGADO, 1937, p.49). Comparou o país com a Rússia, percebeu que sua pátria chegou a um “contorno nítido de raças definidas” (SALGADO, 1937, p.49). Aqui ele desmente que a América seria o cume da evolução social: “Sobre o esboço malogrado dos primeiros mestiçamentos, desenham-se contornos instáveis de imagens efêmeras. Tudo é indistinto e mudável” (SALGADO, 1937, p.49). Esse foi um diálogo em que Juvêncio, supostamente um intelectual nacionalista, não contrapôs argumentos a favor do Brasil. Juvêncio, tão entusiasta com os alunos, diante do estrangeiro aceitou as críticas ao seu “objeto de amor patriótico” de maneira passiva.
Ao descrever a chegada de Ivã e sua passagem de São Paulo capital até a zona rural, o narrador apresentou imagens predominantemente simpáticas ao Brasil. O norte do estado de São Paulo foi comparado com a região oeste, onde estava Mandaguari, quando surgiu o personagem do caboclo Zé Candinho, que fez o trajeto do norte ao oeste, e retornou ao norte, no final do romance. O norte então foi descrito como estagnado: “Viera do norte do Estado, onde as cidades são paradas como lagoas e os municípios pontilhados de clãs modorrentas. Terra-boa, mãe-velha, que deu de mamar à nação paulista” (SALGADO, 1937, p.34). O narrador inicialmente valorizou a região onde se passou o princípio do romance, situada “naquele pedaço do oeste [onde] era tudo café e italianos” (SALGADO, 1937, p.33) e detratou o norte. No final do livro, o professor Juvêncio inverteu o sentido dessas observações, marcando um distanciamento crítico do narrador em relação ao personagem (distanciamento que ao final do livro tentou-se anular): Juvêncio julgou ter descoberto o verdadeiro Brasil no norte, desvalorizando o oeste enquanto região ocupada por estrangeiros.
Ao contrário da de Ivã, a adaptação dos italianos foi quase instantânea: “Em poucos dias [os filhos de Carmine] pareciam estar na própria terra” (SALGADO, 1937, p.28). Posteriormente, quando surgiu o folclore (mula-sem-cabeça, boitatá, mãe d’água, saci-pererê), comentou que “as crianças de Carmine tinha medo do saci-pererê” (SALGADO, 1937, p.39). Noutras palavras, podemos dizer que houve uma inversão de papéis: anteriormente o narrador dera aos europeus adjetivos como “procriadores” e “faunos”. Agora, era Martiniano e o saci-pererê que atormentavam, com volúpia e sensualidade, os colonos. Sintomaticamente, Concetta “sentia em torno da colônia, na volúpia da noite tropical, pé caprino de fauno, olho de brasa, --o saci-pererê” (SALGADO, 1937, p.41). Mais adiante, o narrador comentou que “entre o sátiro de nariz farejante e o homem branco, impassível ou tímido, a filha de Carmine Mondolfi preferia o peão rude e valente” (SALGADO, 1937, p.45). O transcurso da narrativa não confirmou essa preferência, e Concetta Mondolfi e de Zé Candinho (que chegaram a se enamorar) se desencontraram totalmente: o caboclo se embrenhou pelo interior, enquanto a imigrante acompanhou a família em sua mudança para a cidade e terminou casando com um conde. Podemos dizer que a narrativa contrapôs trajetórias opostas dos dois imigrantes: ao se mudar para a cidade e se afastar do caboclo, Concetta terminou com um titulo de nobreza; Ivã, depois de se tornar industrial e casar com a brasileira Maria de Lourdes, acabou por cometer suicídio.
Logo adiante, o narrador transmitiu as visões infernais que povoavam a mente de Ivã, que apareceram ligadas ao cenário urbano, às vésperas da greve que o descontentou com sua fábrica:
Ivã andou até à madrugada pelas ruas cortadas de sanfonas e de ébrios. Levava o mundo nos ombros e tinha repentes de alijar a carga ao inferno. Que bela seria! Os pés na treva, a cabeça nos astros, e a bola miserável, os homens, com seu dinheiro, suas tolices, suas ambições, as mulheres com seus amores, seus mistérios, suas perfídias, --mirrando-se, esfazendo-se nas labaredas...(SALGADO, 1937, p.125)
Foi sintomático: às vésperas da greve na fábrica (que não nos foi dado saber o que produz) Ivã estava com o pensamento focado em morte e destruição mundiais, todas as imagens esperançosas do Brasil enquanto um lugar diferente, um possível paraíso terrestre, foram agora negadas: não há nada de novo debaixo do sol.
O episódio da greve que veio a seguir, e que terminou em mortes, foi paradigmático, das tragédias citadinas. A revolta operária foi assim definida por Ivã: “a greve é um resto de enfermidade dos velhos países de origem, de ombros curvados, como Cristo, sob o peso das fatalidades urbanas” (SALGADO, 1937, p.131). A cidade não foi observada em seu dinamismo, nem na vitalidade de sua movimentação urbana, e a continuidade com a cultura européia foi descrita agora como infeliz e inescapável. Ivã nesse momento já se tornou proprietário. Supomos que a rebeldia de Ivã era dirigida apenas contra o czarismo, uma monarquia absolutista e feudal. Uma vez adaptado à ordem burguesa no Brasil, preferiu o individualismo ao socialismo. Tal mudança de postura fica evidente depois que a cavalaria deixou alguns cadáveres, entre os quais o de um operário de sua fábrica, o Batista, e Ivã afirmou diante do corpo: “—Parece que dorme...Não faz mal. Eu farei com que os próprios homens vinguem nas próprias dores a sua morte. Lançarei homens ao mundo, para se devorarem...” (SALGADO, 1937, p.132).
Neste momento em que os empregados da fábrica sofrem violências, o narrador nos ofereceu aquilo que disse ser o pensamento dos operários: o sonho de melhorar de vida e um dia ascender socialmente: “-Não abandonaremos o serviço. Os salários não são muito grandes e o horário é duro; mas, amanhã, poderemos ser patrões. A nossa condição é passageira. Por isso, aqui estamos, e ficamos” (SALGADO, 1937, p.129). A imagem de paraíso, para os proletários, seria um país com mobilidade social, onde seria possível passar de operário a patrão. Ivã, daí por diante, passou a alimentar antipatia pelos operários desejosos de subir na vida até o patamar onde ele estava, ascensão esta que só se tornou possível através de um casamento (mal explicado pelo narrador) com Maria de Lourdes Pantojo, filha de família coronelista tradicional. Ao final do romance, Ivã decidiu punir seus operários, pois viu neles a imagem que renegou. O narrador interpretou o que Ivã sentia: “Ele mesmo havia se expressado naquela linguagem, ensinando aquela fé, de que agora duvidava, percebendo crescer, dentro do seu peito, o sentimento de fatalidade de sua raça” (SALGADO, 1937, p.129). Ele percebeu a América como a terra prometida mas passou a ver essa terra com outros olhos: “Compreendeu que interpretara o sentido messiânico da terra jovem e, com ele, criara, na sua fábrica, um pequeno mundo de embaladores egoísmos.” (SALGADO, 1937, p.129). Na “grande urbe”, com a greve, veio abaixo o sonho de Ivã de uma nação totalmente diversa da Europa conturbada, e a narrativa desconstruiu todas as imagens de nação tecidas na primeira metade do romance.
Diferente de Ivã, que preferiu a cidade ao campo, o narrador realizou o seguinte paralelo entre ambos: “Piratininga! Cidade de ouro resplandecendo na aurora! Diadema na cabeleira verde dos cafezais! Corpo astral, invisível, da cidade parda, de chaminés negras e bairros escusos...” (SALGADO, 1937, p.20). Nessa passagem, o campo foi descrito como belo, possuindo cafezais verdes e aurora dourada, enquanto a cidade propriamente dita possuía chaminés negras e bairros escusos. Nossa hipótese é que essa cisão campo/cidade, nos termos em que foi apresentada em O Estrangeiro, de certa forma consiste num topus comum na literatura, desde o século XIX: a imagem da cidade foi uma visão de pesadelo. Podemos dizer que o narrador mostrou uma decisão equivocada de Ivã, ao trocar as cidades e cafezais do interior pela metrópole parda e escusa.
Supomos que a diferença no tratamento dado ao campo em contraponto com a cidade foi notória mesmo quando do conflito Nhô Indalécio/Martiniano, e quando foi narrada a noite de emboscada em que Indalécio tentou matar Martiniano:
O crepúsculo verde-garrafa de vinho tinto quebrava-se na cabeça noturna da montanha ao longe. O mato vestiu o pijama violeta. E veio a estrela da tarde como uma vela na mão da noite estalajadeira, que trazia na outra mão o copo d’água da lua. Nhô Indalécio acendeu um cigarrão de palha, tremendo...(SALGADO, 1937, p.59)
Embora o trecho acima tenha tratado de um dos momentos imediatamente anteriores a uma emboscada, ato esse que resultou na morte do caboclo Indalécio, a subseqüente fuga da família e venda da fazenda do brasileiro aos italianos, o narrador não afirmou a existência de pressentimentos trágicos, não lamentando a trágica vendetta que envolveu a morte de um caboclo e resultou em benefício para os estrangeiros. Conflitando com a situação tensa, o narrador pintou um entardecer luminoso, multicor. Analisamos também um episódio posterior em que morreu o caboclo Indalécio (que aceitou se misturar aos imigrantes), e a natureza tocou-lhe um réquiem, enquanto o narrador expõe imagens de um país tropical intocado:
E um ipê, que encomendou crisântemos falsos, trouxe braçadas de flores amarelas. (...) Mas um bando de periquitos palhaços amoita-se e dissimula-se numa fronde. Gargalha uma vaia num voô-surpresa! Explode, na manhã cegante, o réquiem carnavalesco. O sino da matriz de Mandaguari chorou por três mil réis. (SALGADO, 1937, p.66)
A imagem do narrador pareceu ser a contraposição entre uma natureza brasileira vital, plena, pura, enquanto outra, que atingiu Indalécio e o sino da matriz, foi corrompida pela cidade. Essa corrupção se mostrou, acima, como a submissão da vida às necessidades pecuniárias, uma impostura que se fez presente até na pequena cidade interiorana. Nesta altura do romance, Ivã revelou para um outro estrangeiro, Carmine Mondolfi, o fato de ter afinal encontrado uma identidade no Brasil: “Mas, se eu voltar para o meu país, onde, apesar de tantas raças, há apenas uma multidão, serei um homem na multidão. Portanto, construi-me, encontrei-me.” (SALGADO, 1937, p.71). Essa afirmação se mostrou enganosa, e foi desmentida pelo narrador, que posteriormente apresentou o protagonista como Ivã número 1, 2 e 3, demonstrando uma identidade despedaçada.
A equação da vida citadina com imagens sombrias se acirrou quando o estrangeiro se deslocou para São Paulo. Nesta altura, observamos uma sombria imagem da cidade: “Os rolos de fumo arriaram como bandeiras. As chaminés ficaram como dedos hirtos pedindo silêncio, no céu pardo sobre o panorama do Brás amortalhado de garoas e pressentimentos” (SALGADO, 1937, p.127). As imagens da cidade assim descritas foram constituídas de uma natureza poluída, cores sombrias, chaminés que se tornam dedos rígidos de morte.
O narrador nos pareceu ser por excelência um cronista onisciente: até a primeira metade do romance, ele e os intelectuais Juvêncio e Ivã apresentaram imagens exaltantes do Brasil, imagens estas que, a partir da metade até o final, a narrativa se ocupou em negar. O que permitiu o funcionamento dessa máquina de triturar imagens foi o foco do romance, colocado propositalmente nos dois personagens intelectualizados: Ivã e Juvêncio. Parece-nos ser uma opção do narrador, que escolheu deliberadamente esse ponto de vista. No final do romance, a exaltação se esvaiu, restou a melancolia de um país ainda indefinido, cuja imagem própria terminou composta de borrões e manchas, um esboço incompleto e insatisfatório que intelectuais nativos e de além-mar se esforçaram em compreender racionalmente, mas em vão.
Em meio a discussões cultas, as imagens de Ivã se deslocaram de uma visão da terra prometida, quando de sua chegada, para imitação piorada da Europa, no final da narrativa. O pensamento de Ivã constituiu-se de comparações incessantes:
Na Rússia, quando um artista fala, é a voz da multidão, vindo das dores da multidão; quando um homem atira uma bomba, é um braço da multidão, projetada no mar largo da coletividade. Aqui é o homem que age, em cada tipo, de cada raça, de cada cruzamento (...). A torre de babel está interrompida; mas, em torno dela, há grandezas que tocam o firmamento (SALGADO, 1937, p.72).
No fragmento acima, a Rússia foi vista como uma sociedade onde a comunidade falou mais alto, enquanto o Brasil (e, por extensão, a América como um todo) apareceu como o local por excelência onde estão garantidos os direitos individuais. Surgiu então uma alusão nada clara: podemos supor que o Brasil foi chamado de torre de babel interrompida, em torno da qual há grandezas que não podemos precisar o que sejam, mas podemos supor que sejam países em vias de se afirmar, como a Argentina e os Estados Unidos. Ivã retomou mais adiante a mesma questão e as atitudes do homem brasileiro, que agiria em detrimento do coletivo, foram vistas como um obstáculo para a identidade do país.
Inicialmente, a novidade da terra jovem lhe interessava na medida em que não repetisse a civilização européia; segundo o seu pensamento, essa era uma civilização cansada e dilacerada pela guerra e revolução. No princípio da narrativa, Ivã formou a imagem da Rússia enquanto lugar de onde vinha o dilúvio revolucionário. Depois de se deslocar para a cidade e montar a sua indústria (um projeto elaborado nos tempos da universidade), já vitorioso enquanto burguês bem-sucedido, ele pensou em outubro de 1917 enquanto redenção distante: desencantado com o Brasil, idealizou a pátria enquanto paraíso perdido. Por outro lado, Ivã veio para a América tentando contornar obstáculos colocados pela nobreza e buscando ascender socialmente; uma vez vitorioso em sua ascensão social, passou a se debater com dilemas de consciência ao pensar questões como a identidade nacional ainda incerta (o que o fazia sentir inadaptado), os desdobramentos do “dilúvio russo” no Brasil (a greve em que se desiludiu com a “quase sociedade” com os operários) e a insatisfação amorosa (que fez esfriar o casamento com Maria de Lourdes), voltando-se contra si mesmo num processo autodestrutivo. Ivã, em crise de identidade, fez a apologia da busca individualista do proveito próprio quando um grevista decidiu se solidarizar com a categoria:
- A vida é uma luta brava; mais vale lutar na luta do que lutar contra a luta. É inútil o sacrifício em prol dos outros. A vida será sempre assim...Portanto, é tratar de sofrer, porém subindo sempre! (SALGADO, 1937, p.130)
Se no princípio do romance o céu brasileiro era visto como livre de pecados, no final o imigrante apontou o Cruzeiro do Sul para Ana Olenewna, e o interpretou como um símbolo de que mesmo nos trópicos, o homem carregará sempre a cruz do suplício. Repete-se o movimento da narrativa, que destroçou as imagens anteriormente emitidas por Ivã: “—Sou meu pai e o meu filho! O devorador de minhas próprias imagens! Eu sou o Saturno da lenda!” (SALGADO, 1937, p.223). A própria narrativa é saturnina, no sentido referido pelo personagem principal: a princípio ela gerou imagens ufanistas do Brasil, apenas para canibalizá-las mais à frente. O imigrante é russo, mas se identifica com a Europa que vivia então (1914-18) a guerra e a revolução. Ele gerou imagens de um país jovem, uma terra da promissão onde ele se construiria, uma Atlântida reencontrada. Mas a seguir tudo desmorona: o tipo brasileiro não se definiu, a evolução social não se completou, os primeiros mestiçamentos (brancos com negros e índios) falharam, e finalmente, afirmou que o país é mera cópia.
Em O Estrangeiro, o que desencadeou esse processo autofágico foi a não-realização pessoal, tanto na trajetória de Ivã quanto na de Juvêncio. Tanto esse quanto aquele não conseguiram nunca se realizar: Ivã poderia se entregar a uma vida de prazeres junto com os Pantojos (que parecem ter vindo para São Paulo apenas por hedonismo), e Juvêncio poderia ter se aliado ao Major Feliciano num triunfo nacionalista e oposicionista graças à entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Diante da possibilidade de realização concreta, se transformam novamente, foram personagens eternamente insatisfeitos.
Neste período (em que a fábrica prosperou e ele ganhou dinheiro), Ivã se tornou um vitorioso que não soube vencer. Ao contrário do que seria de se esperar de um proprietário de empresa, a revolução socialista foi vista por Ivã como renovação positiva, à qual não tem mais acesso, uma vez que abandonou a terra natal e os ideais. Segundo Ivã, a revolução, enquanto ação coletiva em prol de um ideal, não é possível no Brasil, uma vez que o país seria uma “pluralidade heterogênea, cada um de nós constrói o seu próprio eu” (SALGADO, 1937, p.179). Curiosamente, ele julga poder falar em nome dos brasileiros, realizando a integração de seu “eu” no “nós”, e definindo características de nossa comunidade cultural, comunidade na qual ele diz sofrer por não conseguir se misturar. Podemos então dizer que Ivã tornou-se um empresário individualista: “Renunciando ao ideal político, este triunfava gloriosamente na sua pátria, enquanto seu espírito torturado surgia personagem da velha tragédia levada como em reprise, no Novo Mundo” (SALGADO, 1937, p.196).
Finalmente, uma “nova revolução” se produziu no espírito de Ivã: ele leu no jornal que aristocratas russos, obrigados ao trabalho pelos bolcheviques, vinham para o trabalho rural na América, provavelmente desembarcando no mesmo casarão da Mooca onde Ivã leu sua condenação, também, ao trabalho: a partir dessa notícia, Ivã nega inteiramente a América, utilizando, inclusive, palavras de Juvêncio: “sem uma só das virtudes dos povos novos, já temos todos os vícios dos povos em decrepitude” (SALGADO, 1937, p. 203). Com certeza a posição de Juvêncio citada por Ivã foi gerada depois de sua mudança para Cedral, momento em que o professor ficou mais crítico em relação ao Brasil de seu tempo. Aqui Ivã pensa claramente em acompanhar Juvêncio, “dinamitar sua fábrica, fugir para um lugar aonde não chegassem as contaminações inevitáveis da Europa senil” (SALGADO, 1937, p.202). No entanto, o desejo de vingança de Ivã parece ser mais forte, e ele não perdoou os russos recém-chegados, que eram nobres que vinham como colonos em busca de novos nomes, uma nova filiação, pois o leninismo intentara igualá-los com o resto dos russos. Ivã, então, arma seu braço para todas as violências novamente. Sua vingança se realizou, e atingiu também os trabalhadores de sua fábrica. Sua personalidade começou a se transformar, mas essas mudanças não são motivadas pelo esgotamento ou fracasso, e sim pela aproximação de um momento de realização e de potência, diante do qual Ivã recuou novamente para uma posição “do contra”, voltando a ser um insatisfeito. A narrativa nos pareceu encenar a plenitude da vida enquanto inatingível para aqueles que perseguem ideais, mesmo depois de desencantados; na trajetória de Ivã e na de Juvêncio o que se repetiu foi uma busca desorientada, sem porto, que deixou para trás possíveis conquistas.
No romance, as imagens transitaram nas falas dos personagens conforme o seu deslocamento geográfico: a desintegração da imagem de paraíso de Ivã começou no campo, mas foi em São Paulo que ela desmoronou. Juvêncio também apresentou essa característica: acreditava na assimilação do imigrante pelo espírito da terra e pelo folclore enquanto morou em Mandaguari, apresentando a imagem de paraíso americano onde ocorreu a mistura de todas as raças, e no sertão essa imagem anterior foi definitivamente abandonada.
Na medida em que Ivã se deslocou, permaneceu como traço constante o ceticismo na relação com a Europa; mas quando os brasileiros criticaram os arrogantes cônsules italianos, Ivã argumentou em favor dos estrangeiros. Criticando os imigrantes, Martiniano disse:
-Esses estrangeiros, concluiu, chegam aqui com uma trouxa de roupas às costas, e logo são fazendeiros, prefeitos, delegados, chefes políticos. Deprimem os brasileiros e, no caminho que vamos, não tardará o dia em que nos tornaremos súditos de Vítor Emanuel. Tudo, enfim, que se tolere. Mas a atitude dos cônsules, é demais. (SALGADO, 1937, p.83)
Diante do sentimento de nacionalismo expresso por um brasileiro, Ivã reagiu afirmando que os italianos estavam pagando suas vitórias com sangue, e que estavam num processo de integração em que seriam parte de um novo Brasil. No entanto, se depois disse que o colono rude seria o ideal para o Brasil, isso quer dizer que o papel professoral de Juvêncio era supérfluo.
Podemos supor que a fala de Martiniano que ocasionou a discussão acima se referiu a um fato histórico, os protestos dos cônsules italianos em defesa dos imigrantes, que estariam sendo vítimas de maus-tratos no Brasil:
Na sua presença do imigrante entravam as mais variadas manifestações declaradas de modo agressivo, fossem de ordem material ou intelectual, sempre em aparência envenenadas pelo nacionalismo em todas as suas manifestações. A cabal demonstração desse espírito odioso, é mais facilmente encontrada no indivíduo culto do que no inculto. Não ressumava tanto no proletário anônimo, que se sente bem onde vive folgado, mas no agente oficial representante de sua terra, cujas funções antigamente consistiam muito mais em explorá-lo em nome de sentimentos patrióticos, que protegê-lo das vicissitudes da imigração. (...) O fim era invariável. Mantê-lo o imigrante sempre como fator de renda para o país de origem, em última análise, variante do colonialismo para maior bem de uma nação à custa de outra. (ALMEIDA PRADO, 1956, p.301)
A discussão entre Ivã e o brasileiro se deu em torno da situação relativamente remediada dos imigrantes em relação aos brasileiros pobres e a presença do nacionalismo italiano, comprovada nas declarações de seus representantes no Brasil, o que criou para Martiniano o temor da imigração como álibi do colonialismo europeu, e não como uma contribuição populacional para o Brasil e sim como exploração do país em prol dos europeus. Nesse contexto, podemos supor que na condição de imigrante, Ivã conhecia bem os desníveis entre pobres e ricos no Brasil. Ivã sentiu, segundo o narrador, que era grande a distância entre os bairros burgueses e proletários de São Paulo, entre o Brás e Higienópolis. O narrador anotou que a distância poderia ser vencida, mas que Ivã começava a experimentar uma secreta repugnância pelas pretensões da aristocracia paulistana.
Ivã começou a refletir sobre a frase de Maria de Lourdes: “O destino, na pátria nova, é um deus jovem e alegre, Ivã. O homem não se refugia no seio da renúncia, porque sabe que vence!” (SALGADO, 1937, p.122). Essa frase deu uma idéia de que o destino, na América, seria a vitória. No entanto, Ivã, tendo feito a América, entrou em crise: “vencer não será uma forma de egoísmo e covardia?” (SALGADO, 1937, p.122). Assim, ele inverteu o sentido das palavras de sua esposa. Podemos supor que a personagem de Maria de Lourdes também mudou de postura, uma vez que num diálogo entre ela e Margarida, ambas pertencentes ao clã dos Pantojos, Maria de Lourdes desprezou o Brasil: “O Brasil é uma terra pau, não Lurdinha?” (SALGADO, 1937, p.63). Ao que tudo indica, mesmo a imagem de “Lurdinha” piorou no decorrer do livro. Neste trecho, ambas comentavam sobre uma parente que escreveu, contando das belezas da Europa. A frase ironizou a origem do nome do país, e tem o sentido de “esse país não presta, não é?” Podemos dizer que a brasileira com quem Ivã se uniu não partilhava de sua postura de repúdio à origem européia, ou quem sabe, o andamento da narrativa exigiu que se destruísse mesmo a imagem positiva de Brasil da esposa de Ivã.
Ivã agiu frente a Martiniano enquanto apenas mais um imigrante, defendendo corporativamente essa “categoria”. Noutro momento, como veremos adiante, ele se separou e se definiu como um tipo diverso de imigrante, depreciando-se.
Essa mudança ficou clara quando, às vésperas da transferência para Cedral, o professor foi a São Paulo, conversar com Ivã. No diálogo, o russo afirmou que não seria o imigrante que o Brasil precisava, pois traria muita Europa na alma. Juvêncio concordou: “Os estrangeiros mais inteligentes é que procuravam criar as pátrias parasitárias, com defeitos de origem e enfermidades sem cura” (SALGADO, 1937, p.142).
No decorrer do romance, o russo se dedicou a operações do intelecto junto a Juvêncio, tentando entender o Brasil, e Ivã pareceu culpar a própria reflexão contínua pelo sentimento de insatisfação. As meditações de Ivã, naturais em meio ao choque cultural, foram apontadas como geradoras dos choques em si mesmas. Ivã, ao afirmar que o estrangeiro ideal para o país seria o colono rude, poderia estar supondo que este não traria o nacionalismo consigo e se adaptaria. Porém, o próprio Ivã não foi apegado à terra natal, e supomos que era culto para os baixos padrões daqueles que imigravam da Europa, uma vez que cursou uma universidade. Assim, Ivã devorou sua antiga imagem do Brasil enquanto terra onde todos poderão se integrar, expressada no diálogo com Martiniano, atingindo também a imagem de Juvêncio: a escola não vai fabricar brasileiros e sim pátrias parasitárias.
Nesta altura da narrativa, o próprio Juvêncio pareceu ter abandonado a missão didático-pedagógica que propunha antes, em que o professor construiria a nova pátria, formando uma barreira contra a dominação estrangeira. Naquela fase inicial, Juvêncio adiou a renovação política, até que predominasse “um dos determinados cursos das correntes raciais” (SALGADO, 1937, p.64). E Juvêncio foi desmentido pelos fatos: que a saída do professor de Mandaguari, que se deu na mesma época em que ocorreu a renovação política movida pelo Major Feliciano, se deu também devido ao desinteresse político de Juvêncio. Assim, os vencedores no final de O Estrangeiro – e no Brasil criado no romance – são um político oportunista e os imigrantes que vieram em um grupo familiar coeso, e que se mantiveram ligados à sua identidade original (Humberto Mondolfi lutou pela Itália, os cônsules protestavam em favor dos colonos).
Enquanto Ivã se integrou à classe dos industriais (virando empresário) e oligarcas (casando com uma filha do coronel Pantojo), mas viu os resultados o decepcionarem, Juvêncio tentou aculturar os colonos através do culto dos símbolos nacionais e depois desistiu. Vale a pena notar que Ivã freqüentava a casa dos Pantojos, clã coronelista ao estilo da República Velha, chegando até a se casar; os Pantojos foram os brasileiros que emprestaram o dinheiro para o empreendimento industrial de Ivã, sem nenhuma razão aparente que não a excelência do projeto elaborado por Ivã em seu curso universitário na Rússia. Na origem da experiência pioneira de Ivã estava uma família comprometida com a velha casta dos latifundiários. Esse foi um ponto obscuro do romance: o casamento de Ivã com Maria de Lourdes Pantojo ocorreu sem que houvessem interesses recíprocos suficientemente convincentes, como seria de se esperar no casamento da época. Essa ligação um tanto forçada entrou em O Estrangeiro para demonstrar a contaminação do russo com elementos retrógrados e corrompidos moralmente, o que mais para adiante fez se enredar em contradições. A presença de transgressões na família Pantojo estava insinuada desde o princípio:
O filho do coronel Pantojo fordejava a colônia. Reparou que havia raparigas bonitas. O coronel fazia uma estação de virtudes com pequenas transgressões familiares.(...). (Floriano) Pantojo espichava-se na rede, nas longas ausências de Martiniano. Demorava os olhos nos braços de Dona Eugênia e conhecia pormenores do quarto de dormir. Havia uma lâmpada acesa aos pés do oratório, que era religiosamente apagada em certos momentos, para que a Santa não se escandalizasse. (SALGADO, 1937, p. 61)
O texto acima, escrito pelo narrador, se referiu à vida sexual da família Pantojo, e deixou entrever o universo da transgressão no Brasil patriarcal, se tomarmos a sério o subtítulo “crônicas da vida brasileira” que tem o romance. A sexualidade no romance girou muito em torno dos Pantojos , sendo essa a família de brasileiros à qual Ivã ficou de certo modo pertencendo, depois de tomar Maria de Lourdes Pantojo como esposa.
Ao tratar dos Pantojos, o narrador os relacionou com uma sensualidade desregrada no campo e degradação moral na cidade. Do modo como a narrativa foi conduzida, parece que Ivã não poderia ficar alheio a uma sensualidade desagregadora presente nos trópicos, encarnada em O Estrangeiro pela família Pantojo. O narrador assim descreveu as sensações do russo ao amar a mulher brasileira: “Meio-dias quentes, mamões mornos de seios, musgos cálidos...Largas folhas de bananeiras curvadas para os banhados; balouço mole de palmeiras. Cipoeirais-abraços. Beijos-pitanga. Flexibilidade de caule indolente...” (SALGADO, 1934, p.259). Destacou-se a imagem de um corpo feminino envolvente, quente e preguiçoso. Esse o corpo comprometedor (que é também dos Pantojos) em que Ivã penetrou. Mas de fato, temos a ligação com uma Pantojo, simbolizando o envolvimento de Ivã com uma natureza negativa e diversa da dele, o que afetou o seu equilíbrio.
O fato acima deve ser levado em conta, tendo em vista que um dos motivos que impeliu o russo para a nova terra foi a frustração com a mulher que desejava no Velho Mundo, Ana Olenewna, uma integrante da nobreza russa. A revolta com a Europa dos brasões o levou a entrar numa conspiração para matar o Czar, sofreu ameaças de morte e fugiu. Por outro lado, Ivã não veio impor a sua língua a uma nova terra, e sim construir uma identidade. E tentou fazê-la em contato com a “terra jovem”.
Diagnosticamos o comportamento de Ivã: ele iniciou sua estada na América como adepto da visão edênica, depois a abandonou, e reagiu contra a visão da selvageria e da barbárie – que paradoxalmente encontra em São Paulo – com intelectualização e uma crítica totalmente destrutiva. Além da intelectualização, pouca ligação com o local e com os ideais coletivos, houve ainda o aborto de Maria de Lourdes, simbolizando o fracasso de Ivã em se integrar aos brasileiros. Ivã sofreu muito com essa morte; reencenou o seu drama: expulso da pátria, perdendo os carinhos da amada, Ivã veio morrer num mundo exterior. Nessa altura ele postula amargamente que o Brasil “nasceu velho, como toda a América. Desdobramento do país originário. (...) Do ventre da Terra Jovem, saiu o Ancião de Longas Barbas...” (SALGADO, 1937, p.254). O narrador capta a fragmentação do sujeito, num descentramento em que uma impressão era antítese da outra, e a síntese era obtida com a observação do Brasil industrial, e se resumiu no niilismo:
Ivã número 1: -a vida é má!
Ivã número 2: (defrontando o palacete Matarazzo): - A vida é boa.
Ivã número 3 (chegando ao belvedere do Trianon, contemplando a cidade panorâmica, multidão de chaminés, perdendo-se nos outeiros azuis de Guaiaúna): -A vida é inútil... (SALGADO, 1937, p.255)
A oscilação de Ivã foi o assunto do trecho: estava entre o industrial irritado com a greve -- parte do dilúvio bolchevique russo que chegou à América -- o imigrante enriquecido e que realizou o seu intento, e o niilista entediado da cidade industrial e da era da máquina. O narrador se abstêm de intervir e nos revelar um Ivã verdadeiro, limitando-se a acompanhar seus infortúnios.
Quando o romance tratou da correspondência entre Ivã e Juvêncio, o imigrante citadino relatou a morte de Maria de Lourdes e o possível desembarque da amada russa no Brasil, terminando com uma questão: “-para que serve a vida?” Ao que Juvêncio respondeu: “penso que estamos entre duas espadas, que nos apontam o caminho da decadência: o materialismo utilitário dos inconscientes e o ceticismo desnorteante dos intelectuais, como você” (SALGADO, 1937, p.267). Aqui, Juvêncio demonstrou saber que Ivã estava desnorteado. O narrador o soube bastante bem:
O pensamento niilista, que o vinha trabalhando desde alguns dias, irrompera repentinamente, numa catadupa, com a presença de Ana Olenewna, precipitando o esboroamento de todos os impulsos de construção que nele se moveram (SALGADO, 1937, p.275).
Nesta altura, Ivã pensava em Juvêncio e Humberto como “almas simples” ou “crianças do poema de Tagore, brincando na praia”, ao ler as cartas do professor, vindas do interior que nada trariam de seu íntimo drama. No entanto, mais adiante apareceu uma carta em que Ivã tentou se autodefinir: “ o Estrangeiro de todos os países...; o homem que perdeu o Ideal no deserto dos livros e deu rações de coração ao insaciável Pensamento...” Noutra carta, o professor Juvêncio lhe respondeu: “ Aflita e contraditória Inteligência! ” (SALGADO, 1937, p.221). Sinal inequívoco de que Juvêncio conhecia o conflito de Ivã.
A conclusão final de Ivã remeteu aos interditos: “Tudo é repetição de cansados martírios e, nem a luta, nem a esperança dissimulam a nossa miséria. Este país nasceu velho como a nossa Rússia; e tudo quanto aqui fizerem não será mais do que acelerar a construção de novas barreiras e novos impossíveis” (SALGADO, 1937, p.281). Se Ivã veio tentar construir uma identidade numa nova pátria, ele foi basicamente um colono fracassado. Esse pensamento estava também presente na primeira década do século:
Dá o Brasil, por vezes, a impressão de uma dessas obras feitas às pressas, errada desde os alicerces até a última descrição interna; em corrigindo aqui, em retocando além, terminamos por nos convencer de que o remédio decisivo estaria na sua destruição total, para a recomeçar, cuidadosa e pacientemente, sob outras bases. E como não é possível destruir uma nação, como se destrói uma casa, temos que limitar a nossa atividade a esta obra de reformas e de retoques diários, a esta espécie de equilíbrio instável, que tão bem caracteriza a nossa vida pública...Realizamos o estranho paradoxo dum país novo e semideserto eivado de taras especiais das civilizações esgotadas, uma Grécia ou Espanha em decadência e em ruína. (José Maria Bello, Apud: LUCA, 1998, p.190)
O pensamento de Ivã em seus últimos momentos teve uma linha semelhante, só que Ivã não se dispôs a reformas, acreditou que o Brasil estava comprometido e entregou-se à destruição total.
O personagem Juvêncio, professor primário, primeiro amigo de Ivã no Brasil, de início acreditou no axioma de Washington Luís, transcrito no segundo capítulo numa citação de Del Picchia: “No Brasil todos são estrangeiros, exceto os índios, só que uns chegaram antes, outros depois”. No decorrer da narrativa, diante da chegada de imigrantes nacionalistas que se dão melhor aqui do que os caboclos (que sintetiza a condição dos mestiços originados da colônia), o professor afirmou que o caboclo, tipo que já admirava pela força hercúlea, feições bonitas e toadas dolentes, era o único tipo presente no Brasil verdadeiro, ou seja, era o brasileiro autêntico. Refez-se, nessa identificação, um movimento que o próprio romance realizou: o caso do imigrante em São Paulo resumiu o caso da formação das Américas, conforme disse o narrador, enquanto o caso do caboclo resumiu os aspectos étnicos brasileiros. Juvêncio, no momento inicial, comentou “ingenuamente”, segundo o narrador, que “não é admirável o fato de não termos partidos. Não há partidos sem povo e nós ainda não temos um povo, mas elementos em combate para a fixação da coletividade-tipo” (SALGADO, 1937, p. 65). Aqui, Juvêncio aceitou o argumento de Ivã, o que equivaleu a desvalorizar os tipos brasileiros aqui existentes antes da chegada do imigrante: o caboclo, o mulato, o cafuzo. O patriotismo de Juvêncio facilmente aceitou juízos duros do estrangeiro sobre o país. O narrador demonstrou desconfiar dele à página 66:
Feliciano, tão alheio como Juvêncio à realidade do problema nacional, retrucou:
-Gosto de um povo como o mexicano; traz o governo sempre em sobressalto.
Mas o Juvêncio, virando o último gole da xícara:
-Ali o tipo americano é mais definido. Será o americano de amanhã? Essa gente bronzeada, que se apurou nas pequenas Repúblicas do continente, será o cerne das nacionalidades. O fenômeno paulista abrangerá a América. (SALGADO, 1937, p.66)
Inicialmente, Juvêncio acreditou que a imigração irá trazer a definição étnica da população americana, com a cor bronzeada como predominante, e que São Paulo é a vanguarda desse fenômeno. O narrador não explicou a razão do alheamento de Juvêncio e Feliciano num ponto tão importante – e que percorre todo o romance — como a questão nacional.
A transformação total de Juvêncio se deu após a transferência para Cedral, quando ele abandonou a idéia de integração racial. A imagem de Brasil do professor se alterou, mas não implicou num desagregamento psíquico. O professor -- que escrevia sonetos camonianos -- fora considerado em São Paulo um elemento que “incorrera no desagrado dos velhos, que montavam guarda à forma clássica e às idéias equilibradas” (SALGADO, 1937, p. 96). O fato não deixa de ser estranho, uma vez que Juvêncio tinha sido muito reverente com as formas clássicas ao escrever sonetos inspirados em Camões. Sem ter se consagrado enquanto renovador, foi para Mandaguari para trabalhar pela “criação da pátria integral, com sua consciência própria, sua aspiração, seu tipo definido” (SALGADO, 1937, p. 97). Para esse professor que desejava narrar a nação aos alunos, a escola seria o “centro de gravidade” no “burburinho de raças” do novo país. O narrador assinalou a escola como espaço onde os diferentes convivem, aprendem e são integrados no todo, e que o Brasil começou com a chegada dos estrangeiros europeus. Fez parte desse contexto de otimismo a observação de esperteza dos mulatos puxados ao português. O narrador notou o esforço de Juvêncio em integrar em um só país os imigrantes, dando-lhes significantes nacionais: “Juvêncio vibrava. Nem uma nota fora do compasso. Eram uníssonas, como saídas de uma só boca, de um só peito, de um só coração” (SALGADO, 1937, p. 30). Neste momento, ele se aproximou do perfil de um “criador de colonos”. Nesta fase inicial, Juvêncio narrou para Ivã uma lenda onde o Brasil nasceu de aventureiros em busca de um palácio encantado, cheio de esmeraldas e diamantes; ao passo que os dois travaram o seguinte diálogo, que de certo modo resumiu as posições de Juvêncio até esse momento do romance:
--E o palácio encantado? Perguntou Ivã, sorrindo.
--Era...apenas uma lenda!
(...) –Não, replicou liricamente o professor. Devia ser a Alma da Pátria, que ainda não achamos, a chave do nosso enigma...(...) Nós somos a dúvida... (SALGADO, 1935, p.53)
No texto acima Juvêncio explicou a busca do palácio encantado como a própria “alma” da pátria. Assim, podemos supor que, depois da eclosão da I guerra, da transferência para Cedral, Juvêncio encontrou o que buscava, uma salvação que estaria no Brasil caboclo, sertanejo, agrário, que existia sem a presença “contaminadora” do imigrante, ou seja, abraçou a utopia de uma nova marcha para o oeste, apostando num neo-bandeirantismo. No romance, porém, essa marcha para o oeste não vai além das fronteiras do estado de São Paulo. Refletindo sobre essa característica, podemos supor que O Estrangeiro, continuou uma tendência anotada por Tânia Regina de Luca na intelectualidade da primeira década do século:
O Brasil, que já embalara os sonhos de riqueza e abundância dos europeus, adentrava o século XX como um contra-exemplo. Desprovido de uma história gloriosa, com grandes extensões de terras ainda intocadas, habitado por uma população escassa e estigmatizada pela presença do sangue de índios e negros, então considerados inferiores, ele parecia fadado a permanecer alijado do concerto das nações. Segundo a opinião corrente, não éramos ainda uma verdadeira nação, conclusão que imprimia um sentido de urgência à tarefa de descobrir porque parecia falhar a química capaz de garantir, sob o céu dos trópicos, uma existência plena ao nacional. A proposição do problema, a maneira de enfrentá-lo e as saídas sugeridas variaram consideravelmente nas páginas da Revista do Brasil, o que atesta que a publicação foi capaz de expressar diferentes setores da intelectualidade. Contudo, uma representação em particular transparece com força: a que atrelava as possibilidades de futuro à condição de se impor o exemplo paulista ao conjunto do país. (DE LUCA, 1998, p.78)
A trajetória dos personagens em O Estrangeiro e suas falas giraram em torno das questões mencionada acima, e o romance se ateve ao estado de São Paulo, sem chegar sequer ao Rio de Janeiro, talvez devido às motivações dos intelectuais do período em que a narrativa se passou: a falta de uma existência plena do nacional e as anotações sobre as transformações sociais paulistas. Com variações de enfoque, esses dois tópicos perpassaram tanto as falas de Ivã e Juvêncio quanto as do narrador, o que se explicaria tanto por estarem presentes na época de formação de Plínio Salgado (década de 10).
Num dado momento, o narrador mostrou uma das “lições de Juvêncio” dessa fase inicial. Nesse ensaio que Juvêncio andava escrevendo, encontramos a visão de um país articulado à tradição do Ocidente, com natureza tropical e animais selvagens:
E, então, tudo era a selva, onde dormia o Mistério. Bandos de periquitos, projeções verdes da terra estampavam-se no céu, ainda inocente de crimes. Continuação indefinida da manhã úmida e verde, que a arca de Noé encalhou na montanha. Altas palmeiras emergindo das florestas oceânicas estilizando a alma sentimental da rude natureza meridiana. Macacos balouçando nos cipoerais pendentes das perobeiras. Oceano, oceano...O jaguar vinha dormitar à sombra das gameleiras, nas barrancas dos rios turvos, emplumados de garças. Manhãs de janeiro! Cheiro molhado de terra moça e virgem; grotas frias, com gemidos sensuais de rolas e sussurros confidentes sob a matilha dos cachetês. Capivaras, caetetus, antas bufando. (...) Corpo de moça! Como interessa o espírito caprino das raças procriadoras! Foi o aroma afrodisíaco da Atlântida que acordou o instinto pagão dos povos desvirginadores, adormecido nos séculos claustrais do Misticismo. (SALGADO, 1937, p. 28)
Porém, essas fantasias visionárias tinham limites: o professor se interessava mais por uma atuação cultural do que por uma postura de oposição política ao coronelismo dos Pantojos, grupamento que, bem ao estilo das oligarquias da República Velha, dominava Mandaguari. A busca de Juvêncio de uma nação coesa, do reforço da decisão de viver em comum visaria, provavelmente, a impedir que a nação se desdobrasse em outras pela presença de minorias raciais, uma vez que seu esforço se concentrava em integrar as ondas imigratórias. Isso podemos supor a partir de sua atuação como mestre-escola, pois em sua definição, a nação é algo como um “espírito da terra”, uma língua mística, corpo astral só acessível por quem sente, e não através da intelectualização:
O major Feliciano, citando autores, perguntou:
-Afinal, o que é a pátria?
Como uma estátua de sombra estampada no céu fulvo, Juvêncio disse:
-É um misterioso idioma que se conversa com a terra e com as estrelas. Só o entende, quem sofreu e sentiu, no país, teatro de sua vida, debaixo dos astros confidentes do seu coração. (SALGADO, 1937, p.102)
Esse “misterioso idioma” era justamente o que Juvêncio procurou nos símbolos nacionais e no folclore, para assimilar o colono e unir os brasileiros, mas depois desistiu desse projeto, passando a acreditar que o melhor seria preservar o brasileiro do contato externo. Para o personagem Juvêncio, em sua “pedagogia nacionalista”, o desejável seria justamente a coesão e a homogeneidade.
Quando ainda esperançoso de que essa coesão e homogeneidade um dia viriam, o mestre-escola respondeu às críticas de que pouco mudou com a proclamação da república, acreditando nas transformações operadas no imaginário da nação: “-É a consciência nacional em crise transformadora. De 89 para cá, entramos num período de hibernação, véspera do novo Brasil, retemperado pelo sangue novo. Tudo isso é natural. Eu tenho fé no Brasil” (SALGADO, 1937, p.109). E, mais adiante, quando eclodiu a primeira guerra e ocorreu em Mandaguari uma tomada de consciência nacional, Juvêncio se converteu em um vitorioso:
Mas os alemães torpedearam um navio brasileiro. Surgiram nacionais de todos os recantos do município a aclamar a bandeira na passeata organizada pelas Escolas Reunidas. Grossa desforra. Parece ter ido a pique a frota de guerra de Mandaguari. (...) Juvêncio foi chamado a São Paulo. O Governo pensava em premiar-lhe os serviços. (SALGADO, 1937, pp. 139-140)
No entanto, esse vitória se reverteu em revés decisivo. O narrador assim o relatou:
Saiu a remoção de Juvêncio para Cedral, no extremo sertão. Conselhos paternais de autoridades diziam-lhe que não se metesse em política; e incutisse, apenas, como educador, admiração pelas notabilidades oficializadas com bandeiras a meio-pau e condolências presidenciais antecipadoras dos necrológios 21 tiros do estilo das lideranças parlamentares da maioria. (SALGADO, 1937, p.142)
Uma vez removido, o professor se transformou, após a transferência de Mandaguari para Cedral. Decidido a testar a presença do “espírito da terra” nuns papagaios cantavam o hino Giovinezza na casa dos Mondolfis, Juvêncio teve uma grande decepção. .Vale a pena notar que esse hino era anterior ao fascismo de Mussolini e foi cantado pelos seguidores do poeta Gabriele D’Annunzio, numa explosão de nacionalismo que chefiou em fins da década de 10, quando grupos paramilitares italianos ocuparam a cidade iugoslava de Fiúme. Isso indicaria que o narrador de O Estrangeiro seria contemporâneo da escrita do livro (1926) e não do período em que se passa o enredo (1914-1918). O narrador observa, antes de narrar o episódio: “Mas foi inútil...” O episódio narrado foi tragicômico, pois o que provocou a ira de Juvêncio era a própria natureza que ele tanto reverenciava:
-Esta queda d’água poderia fornecer força a muitas cidades, mover usinas e iluminar. Assim é o homem da nossa terra. No litoral, ele se desmancha em arroios, mas aqui é bruto e forte. Agarrou, então, os papagaios- giovinezza! giovinezza! e , um por um, foi estrangulando, atirando-os na onda brava da catadupa. (SALGADO, 1937, p.266)
Quando Juvêncio viu que, mesmo com o retorno à selva, esse “espírito da terra” -- com o qual ele sempre contou -- não penetrou nos papagaios, sua imagem anterior, de um país onde esse espírito envolveria o colono, se desfez; o contato com o imigrante, nessa linha de raciocínio, faria, dos brasileiros, papagaios imitadores. Juvêncio se animou em ter encontrado em Cedral uma cultura nacional sem mistura. A seu turno, Ivã também julgou ter encontrado o Brasil, um pouco antes da desilusão total:
Encontrei o Zé Candinho, como um centauro, corcovando na besta pinhão, pelas ruas do povoado. Em todo o município de Rio Preto, predomina o elemento nacional: baianos, mineiros, gaúchos, bandeiras em marcha no rumo incerto no sertão. Boiadas canalizadas pelo Taboado, estradas de poeira de Tanabi e Monte Aprazível. Aldeias acampamento, cheirando a pólvora. Achei, enfim, o Brasil.
Ivã respondeu-lhe que também encontrara o Brasil em S. Paulo. Descobria no espírito de aventura da grande cidade, qualquer coisa de um novo país. (SALGADO, 1937, p.161)
Nesta nova imagem de Juvêncio, confirmamos que ele abandonou a esperança numa nova raça formada pela miscigenação , enquanto Ivã, que há muito havia afirmado que os mestiçamentos anteriores falharam no Brasil, partiu do campo para o grande centro por acreditar que São Paulo possuía algo de positivo e original, do que logo desistiu, concluindo que São Paulo era também mera cópia em negativo. Indignado com essa descoberta, Juvêncio indagou nas cartas a Ivã:
Porque nossas artes não se afirmam numa bárbara originalidade? O ambiente criado pelo cosmopolitismo dissolvente! A civilização estrangeira é uma toxina secretada pelo adventício, para anular todos os meios de defesa do organismo nacional, como o fenômeno biológico das invasões mortais das bactérias....(...). Depois, vieram os yankees e nos ofereceram um ideal de convencionalismos, que o país ainda não entendeu: o Comte traçou o lema da nossa bandeira. Os italianos encontram cidades sem feição e um fundo desdém do brasileiro por tudo o que é seu. (SALGADO, 1937, p.264).
Novamente, uma referência aos italianos como estrangeiros vitoriosos que se apoderaram do Brasil paulatinamente, sem encontrar oposição, graças à baixa auto-estima dos brasileiros. Os italianos foram igualados aos yankees e a outros componentes das civilizações estrangeiras, e dissolveriam a frágil identidade local com seus hábitos e costumes cosmopolitas, assumindo riquezas e poder em detrimento dos brasileiros. Não há, pelo que diz Juvêncio, nenhuma saída senão a fuga do contato com o estrangeiro, fuga essa que, pela própria lógica esboçada no princípio do romance, estava a longo prazo condenada pela chegada dos imigrantes atrás dos desbravadores.
4. Conclusão
Lua Cheia
Boião de leite
Que a noite leva
Com mãos de treva
Pra não sei quem beber.
Mas que embora levado
Muito devagarinho
Vai derramando pingos brancos
Pelo caminho.
Cassiano Ricardo
Plínio Salgado, escritor e político cuja obra foi estudada por Marilena Chauí, José Chasin, Gilberto Vasconcellos, Eliana de Freitas Dutra, Hélgio Trindade e outros, foi aqui estudado enquanto literato. O trabalho de Maria Augusta Dorea sobre o Romance Modernista de Plínio Salgado foi o mais utilizado por nós, mas foi confrontado em suas posições ideológicas, demasiado favoráveis ao integralismo, e seus equívocos teóricos.
Para analisar o romance O Estrangeiro, foi preciso encontrar o lugar de seu autor na historiografia literária: trata-se de um romance que retomou questões presentes em Canaã, de Graça Aranha, mas também foi influenciado por Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade.
Dentro dos movimentos modernistas/primitivistas, delimitamos o lugar específico de Plínio Salgado: uma vertente “tupi”, moderada. Coerente com a proposta colocada no prefácio, O Estrangeiro foi um romance que buscou fixar aspectos, fazer uma boa crônica do estado de coisas no Brasil ao tempo da guerra de 1914-18, no que foi bem sucedido.
Centrado no percurso de um intelectual, o estudante universitário Ivã, a narrativa romance percorreu meio rural, cidade provinciana e grande centro urbano. Ivã discutiu gerou e destruiu suas imagens do novo país em diálogo com o professor Juvêncio, que mudou no decorrer da narrativa. Em Cedral, junto a uma cachoeira, ocorreu o episódio dos papagaios: Juvêncio descrentou do “espírito da terra”, se transformou num defensor do Brasil agrário sem os imigrantes, exaltando a cidade de Cedral, onde o Brasil permaneceu selvagem. Juvêncio, que a partir da decepção com os papagaios, percebeu que com o simples contato com a terra não se restaurou uma “brasilidade”, passou a acreditar que os brasileiros é que tendiam a ser influenciados pelos colonos, e o meio não bastaria para reverter o processo.
No final do romance, a imagem de Brasil que restou não foi favorável. No campo, com a chegada dos imigrantes, estes tendiam a se misturar aos brasileiros, mas colocando os antigos moradores em situação subalterna. Ivã, que tentou sempre racionalizar e explicar a situação do país, acabou derrotado, assim como Juvêncio, que obrigado a se mudar para o interior onde não chegaram os imigrantes.
Ao tempo de O Estrangeiro, o imigrante não-ibérico já fora tematizado no Canaã de Graça Aranha, comentado por nós no segundo capítulo dessa dissertação, e o personagem imigrante foi, em ambos os romances, o canal privilegiado das reflexões sobre o país. Em O Estrangeiro, diferentes imagens do Brasil são lançadas pelo protagonista Ivã, um russo ocidentalizado e que se sente europeu, mas igualmente opinam seu amigo Juvêncio e sua esposa Maria de Lourdes. Na primeira metade do livro, que se passou na província, essas imagens foram, grosso modo, de exaltação da terra jovem, um país promissor numa América onde se completa um ciclo da evolução social. Surgiu Juvêncio, um professor primário que se tornou interlocutor privilegiado de Ivã, e que alimentava muita esperança do Brasil absorvendo os imigrantes. Na medida em que o livro avançou, porém, Ivã se deslocou para a metrópole paulistana e Juvêncio foi removido para o sertão, enquanto a narrativa assumiu um tom melancólico, desconstruindo as imagens do Brasil forjadas anteriormente, e o Brasil foi visto como imitação de Portugal com influências cosmopolitas, nação de origem recente onde o imigrante viveria todas as velhas tragédias européias em reprise. O brasileiro nacionalista acabou descrentando da miscigenação, para preferir o Brasil sem mescla. A imagem que restou do país foi triste, o que desmentiu o romance enquanto manifesto nacionalista.
O Brasil que o romance deixou ao findar, seria o País enriquecido no campo que desceu para as cidades, e não o que procurou a fortuna na cidade (Ivã) ou a dissipação hedonista de riquezas no centro cosmopolita (os Pantojos). O Major Feliciano disse que o Brasil era possível do mesmo modo como estava, ou seja, nas mãos das oligarquias: “Isto de voto secreto é muito ótimo quando se está na oposição, apenasmente. Neste ponto estou de acordo (...). Faça como eu, o futuro nos pertence, e cada povo tem o governo que merece, consoante um escritor cujo nome não me lembro” (SALGADO, 1937, p.238). A narrativa sancionou essa explicação sobre o Brasil, pois se encerrou com ela e justamente finalizou a trajetória do brasileiro que melhorou de posição (assim como Juvêncio, após a Primeira Guerra), mas, ao contrário do professor, não foi removido e obteve uma posição mais cômoda.
Enquanto em Canaã, apareceram imigrantes intelectualizados, discutindo o Brasil, em O Estrangeiro apareceu um imigrante também intelectualizado, estudante universitário na Rússia, que construiu e desconstruiu imagens de Brasil no diálogo com Juvêncio. Julgamos que O Estrangeiro foi válido enquanto realização da prosa modernista, mas concluímos que não terminou -- de modo algum -- favorável a um movimento nacionalista. Wilson Martins também notou que o romance fracassou nesse sentido:
Também Wilson Martins compara o livro de Cony ao de Callado, mas, para ele, ambos são representantes de um projeto tradicionalmente frustrado no Brasil, desde O Estrangeiro, de Plínio Salgado: o romance político. Projetados como ‘romances de revolução’, tanto Pessach como Quarup seriam muito mais os ‘romances da decepção, da amargura, do desencanto e da ironia’. (MORAES LEITE, 1984, p.130)
Considerando O Estrangeiro como precursor de uma linhagem de romances políticos que terminam tristemente, ou seja, deixaram os personagens sem horizonte positivo, acreditamos que O Estrangeiro foi uma retomada importante de aspectos contidos na literatura sobre o caboclo (Urupês e Juca Mulato), sobre o imigrante (Canaã) e que também levou a contento a experimentação formal (aproximando-se de certos temas e do estilo de Memórias Sentimentais de João Miramar), encerrando tanto um rico panorama formal do Modernismo quanto um histórico do período que o gestou, a década de 10.
5. Apêndice
O romance O Estrangeiro é, hoje, pouco conhecido. Por isso consideramos importante fazer um resumo de seu enredo. Desse modo poderemos também notar que os elementos listados por Del Picchia no discurso da Semana de Arte Moderna, numa espécie de proclamação de intenções, se fariam presentes em O Estrangeiro:
O romance narra a trajetória de Ivã, um russo que imigra para o Brasil fugindo da guerra de 1914-18 e do czarismo, que impediu que ele casasse com a mulher que amava, Ana Olenewna, uma filha da nobreza russa. Assim que chega, idealiza a América como terra dos direitos humanos, e encaminha-se para a região rural, pois espera trabalhar na lavoura. É rejeitado por ser supostamente anarquista. Dirige-se então para a cidade de Mandaguari, onde faz amizade com o professor nacionalista Juvêncio. Na pequena cidade, Ivã observa a ascensão dos Mondolfis, colonos italianos que vão expulsando os caboclos e influenciando os brasileiros. Os Mondolfis, estrangeiros bem sucedidos, servem de contraponto aos Pantojos, brasileiros de uma família em “lenta decadência”, apresentada no prefácio como uma “raça cansada”. Os Pantojos, no entanto, não decaem de patrões para empregados em São Paulo; trata-se, ao nosso ver, da dissolução de costumes entendida enquanto decadência.
Em Mandaguari, o imigrante russo começa a freqüentar a casa do coronel Pantojo, fazendeiro e chefe político local, e casa-se com uma das filhas deste, Maria de Lourdes. Assim, Ivã, que dizia estar fugindo da decadência da Europa, acabou se ligando a um setor decadente da elite brasileira. O pacto entre o novo e o antigo, que possibilitou a ascensão social de Ivã, reunido ao sentimento de inadaptação, fracasso das ligações amorosas, com a chegada da greve, dos imigrantes russos e a notícia da revolução, terminou sendo decisivo no abalo psíquico sofrido pelo estrangeiro.
Pouco depois de chegado à cidade de Mandaguari, o russo acompanha interessado a rivalidade entre as Escolas Reunidas de Juvêncio e a eurocêntrica Escola Dante Alighieri. Ivã, no entanto, entedia-se com o provincianismo da cidade, e lança-se numa outra aventura: cria uma indústria na cidade de São Paulo, graças à ajuda financeira dos Pantojos. Sente, no entanto, que abandonou os ideais do passado (dizia que a possibilidade de ascender de trabalhador a patrão era a condição da república burguesa). Os ideais, pensa ele, são a estação aduaneira da alma: a passagem nos custa o coração. Sua crise de consciência se agrava quando a revolução socialista triunfa na sua pátria, aumenta com a greve que presencia em sua fábrica e chega ao extremo quando, entre um grupo de imigrantes russos, julga vislumbrar a amada, e isso enquanto sustenta Maria de Lourdes e Marina, a amante. A presença de uma aristocracia paulista é outra evidência desagradável:
Entretanto, começava a experimentar uma secreta repugnância pela floração improvisada de brasões, que refulgia no Aeroplano Clube, alimentando-se dos caprichos da Fortuna, para, depois, estiolar-se às aragens mortíferas do Azar...(SALGADO, 1937, p.121)
O personagem perde a esposa (Maria de Lourdes), que adoece e morre de moléstia; depois perde também Marina, a amante, que se suicida. Depois da avalanche de fracassos, Ivã decide-se pelo suicídio. Após envenenar a moça russa que erroneamente tomou por Ana, em seguida envenena-se também; seu gesto tem um quê de vingança e desforra, e por isso ele mata também todos os operários de sua fábrica, oferecendo-lhes uma festa em que um líquido letal é adicionado à bebida. No final do livro, o próprio personagem Juvêncio nos é apresentado como autor do romance:
Numa página de almaço, pôs o título do livro:
O Estrangeiro
por Juvêncio de Ulhoa
Letra caprichada...
***
Releu o último capítulo. Estava patético! Escreveu por baixo:
FINIS
Depois riscou. E substituiu:
LAUS DEO
XLV
APOTEOSE AO ANHANGÜERA
Teria morrido Juvêncio por esses confins da nossa terra? Este livro vai escrito por um e terminado por outro. É certo que o autor o encerra com aquelas palavras “laus deo”...
Juvêncio deve andar fugido pelo sertão. Ele era o Anhangüera, palrador e iluminado. Como o Avanhandava, que estourava ali perto da sua maleita e do seu esquecimento, -- a vigilante força obscura...
XLVI
À cena o autor
E, também, - ai da nossa Terra! - o criador de Ivã pode muito bem ter sido uma mera criação...
FIM (SALGADO, 1937, pp. 286-288)
No entanto, não acreditamos que a narrativa comporta uma releitura na ótica de Juvêncio, uma vez sua conclusão não é de esperança nacionalista, pelo contrário: o professor Juvêncio (que simboliza o nacionalista no decorrer do livro) foi obrigado a deixar Mandaguari para uma cidade ainda mais afastada, fugindo dos imigrantes. Julgamos que, a longo prazo, a fuga se mostrará uma derrota definitiva, pois ele não estancou a onda imigratória. Igualmente, o destino dos outros personagens e o painel que a narrativa traça do país não oferece motivo de orgulho. O narrador escreve, depois do encontro entre Juvêncio e Zé Candinho em Cedral:
Fáceis eram as conquistas da ‘Dante Alighieri’, ou de qualquer instituição estrangeira, nas cidades onde a preocupação do conforto e os luxos do espírito e do corpo derivavam do materialismo de uma civilização delirante; onde os frios ceticismos, com miragens trepidantes de dúvidas, estenderam-se como um deserto, para que os deuses nacionais morressem, mordendo o pó das desdenhosas ironias. (SALGADO, 1937, p. 263)
Assim sendo, podemos dizer que o narrador é Juvêncio, até porque a narrativa é pontuada por termos estrangeiros (voltaremos a esta questão mais adiante). Enfim, pontuamos que a conclusão do romance é de amargura em relação ao Brasil, o que não inspira nenhum ufanismo.
6. Obras de P. Salgado:
SALGADO, Plínio. O Estrangeiro. Livraria José Olímpio Editora. 4.ed. Rio de Janeiro, 1937.
IDEM. O Esperado. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1931.
IDEM. Despertemos a Nação!. Livraria José Olímpio Editora. Rio de Janeiro, 1935.
IDEM. A Voz do Oeste. Companhia Editora Panorama, São Paulo, 1948..
7. Obras Sobre P. Salgado
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ANDRADE, Muricy: O Momento do Romance Brasileiro, in Rev. Panorama número 1, São Paulo, 1936.
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