Crimes militares em tempo de paz. Uma abordagem crítica do art. 9º.
Alexandre José de Barros Leal Saraiva
Promotor da Justiça Militar
O art. 9° é a coluna vertebral da lei penal militar. Nele estão dispostos os critérios legais para a definição do crime militar em tempo de paz (critério ratione legis).
De difícil entendimento, o artigo 9°. carrega consigo a mesclagem de várias características que adornam este especial modelo de delito. Por vezes, é a qualidade dos sujeitos (ativo ou passivo), que transforma um crime (que seria) comum em militar. Por outras, é o local da infração ou ter sido o fato praticado em detrimento da Administração Militar ou da ordem administrativa militar que os singulariza. De qualquer sorte, as exigências contidas neste artigo consubstanciam o primeiro passo na adequação típica de qualquer comportamento humano que se pretenda tratar como crime militar. Assim sendo, não é exagero algum advogar que essas circunstâncias são elementares do tipo!
Inicialmente os crimes militares são classificados em duas grandes categorias: crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares. Esta divisão tem eco constitucional.; basta uma rápida leitura do art, 5°, inciso LXI, da Carta, para que seja aferida a importância da distinção.
Há uma rumorosa impaciência doutrinária quando se tenta conceituar o crime propriamente militar. Geralmente, os estudiosos apontam como sua principal característica o fato de serem previstos apenas na lei penal militar e/ou serem praticados somente por militares.
Todavia, há crimes propriamente militares que são necessariamente praticados por civis, como insubmissão (art. 183), Criação ou simulação de incapacidade física (art. 184), Substituição à convocação (art. 185) etc., e não é de todo impossível ou equivocado que uma lei genérica traga a previsão de um crime propriamente militar (uma lei que defina a ação de grupos armados pode, em tese, veicular tipo penal destinado unicamente aos grupos ou milícias formadas por militares amotinados ou insurretos, por exemplo). Também precisa ser dito que os delitos previstos apenas no CPM (art. 9°, inciso I) podem ser praticados por civis, nos termos preconizados pelo próprio art. 9°, em seu inciso III.
Portanto, ousamos dizer que crime propriamente militar é aquele que guarda sua razão de ser exclusivamente para tutelar uma objetividade jurídica estranha à sociedade civil, ou seja, é um tipo penal especialmente criado para proteger um interesse próprio, particular e característico da ambiência militar, preferencialmente veiculado em norma específica e, via de regra, praticado por militares.
Já os impropriamente militares são aqueles que assim se tornam em razão da aderência de uma das exigências do artigo 9°, sem a qual continuariam a receber o tratamento de delito comum. Para tanto, é preciso que estejam previstos tanto na lei penal comum como na lei penal militar. A descrição típica, inclusive, quando não é idêntica guarda grande aparência de igualdade, entre os modelos penal comum e penal militar. São crimes acidentalmente militares. Aos olhos de um “profano”, parecem crimes comuns, mas aos aplicadores do direito, destacam-se os adornos distintivos que lhes transfiguram a natureza.
Passemos, então, à casuística do artigo 9° e seus incisos.
No inciso I estão contemplados os crimes previstos com exclusividade no CPM e aqueles que são definidos de forma diversa na lei penal comum.
Neste passo parece-nos razoável a seguinte observação: considerando que o tipo penal é um modelo descritivo de conduta humana, seria mais acertado dizer (s. m. j.) que nas hipóteses em que o CPM trata de um crime de forma diferente da lei penal comum, a resultante é um tipo exclusivo da lei penal militar.; a não ser que se confunda o tipo penal propriamente dito com o nomem iuris dos delitos.
De qualquer sorte, a lei diz que são crimes militares (em tempo de paz) os previstos no CPM, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente.
A amplitude desta concepção é demasiada! O crime de furto de uso, por exemplo, somente é veiculado pelo Código Penal Militar (art. 242). Portanto, de acordo com o dispositivo, qualquer pessoa que subtrair coisa alheia móvel para o fim de uso momentâneo, restituindo-a ou repondo-a, comete crime militar, independente de qualquer outra consideração, pois o inciso I não condiciona a adequação típica a nenhuma condição do agente, do ofendido ou do bem jurídico tutelado, como faz no inciso II.; apenas manda considerar crimes militares aqueles previstos unicamente em sua própria codificação. Com efeito, não foi feliz a técnica legislativa escolhida!
Aliás, seria profundamente redundante consignar que são crimes militares aqueles previstos no Código Penal Militar, o que leva a crer que a dicção legislativa destina-se somente a realçar (na parte final do dispositivo) que o crime militar aperfeiçoa-se, nestes casos, independente da qualificação do sujeito ativo da infração.
A imperfeição legislativa persiste no inciso II, senão vejamos. Em primeiro lugar é repetida a obviedade de que os crimes previstos no CPM são crimes militares, aduzido da observação de que assim permanecem ainda quando previstos na lei penal comum, o que reforça a destinação do inciso anterior, ou seja, se as condições exigidas no inciso II apenas se aplicam aos crimes definidos em ambos os diplomas legais (CPM e CP comum), quando o delito é definido exclusivamente no CPM pode ser cometido por qualquer pessoa, sem qualquer outra ressalva!
Somente a interpretação teleológica é capaz de atenuar a atecnia legislativa e tornar lúcida e coerente a aplicação deste inciso I do art. 9°.
A despeito das incoerências apontadas, o inciso II anuncia uma série de condicionantes para a caracterização do crime militar nas hipóteses já mencionadas de definição paralela do tipo penal em ambas as codificações.
A primeira delas é que o delito tenha sido praticado por militar em situação de atividade contra militar na mesma situação. Observe que a figura do “assemelhado” (referida na alínea “a” deste inciso e definida no art. 21 do CPM), não existe mais, pois todos os servidores civis dos Comandos Militares sujeitam-se à legislação específica (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União – Lei 8.112/90) e não são mais “submetidos a preceito de disciplina militar, em virtude de lei ou regulamento”.
É interessante destacar que embora a lei refira-se, neste inciso II, alínea “a”, a “militar em situação de atividade” (status definido pelo Estatuto dos Militares), quando define quem considera militar (art. 22), para efeito de aplicação do próprio CPM, dispõe: “qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação ou sujeição à disciplina militar”.
Enquanto isto, o diploma legal específico sobre a matéria, Lei 6.880/80, reconhece que os militares podem se encontrar em duas situações: na ativa (ou em atividade) ou na inatividade.
A inatividade contempla a Reserva Remunerada e a Reforma (art. 3°, alínea “b”). Os militares da Reserva Remunerada são os que (“aposentados”) ainda reúnem condições de serem mobilizados ou convocados para retornarem ao serviço ativo. Os reformados encontram-se em situação semelhante, com a particularidade de que não se vêem condicionados a voltar ao serviço ativo. Estão, portanto, definitivamente na situação de inatividade. Também se encontram na inatividade os militares que, na Reserva Remunerada ou na Reforma (excepcionalmente), são contratados pela Administração Militar para prestarem tarefa por tempo certo (art. 3°, § 1°, alínea “b”, inciso III, acrescentado pela Lei 9.442/97).
Por outro lado, os militares da ativa são: a) os de carreira1.; b) os incorporados às Forças Armadas para prestação do serviço militar inicial, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar, ou durante as prorrogações daqueles prazos.; c) os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados.; d) os alunos de órgãos de formação de militares da ativa e da reserva.; e) em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas (art. 3°, alínea “a”, da Lei 6880/80).
Pode-se observar que o conceito de militar da ativa veiculado pelo Estatuto dos Militares é mais amplo do que o conceito (restritivo) de “militar” embutido no art. 22 do CPM. Aliás, a simples menção ao ato de incorporação já é, por si só, limitador, pois em algumas situações o militar da ativa não é “incorporado”, como acontece com os alunos de órgãos de formação de oficiais da reserva (Centros ou Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva), nos quais há matrícula e não incorporação (vide art. 22 da Lei 4.375/64, Lei do Serviço Militar).
Em conseqüência, na aplicação do art. 9° do CPM deve ser considerado como “militar em atividade” qualquer pessoa que se encontre em uma das situações previstas no Estatuto dos Militares (art. 3°, § 1°, alínea “a”).
A seguir, o art. 9° trata dos crimes praticados por militares em situação de atividade contra militar da reserva ou reformado, ou contra civil, desde que o delito ocorra em área sujeita à Administração Militar (aqui sobreleva-se o critério ratione loci). Seria de bom gosto que o conceito de área sujeita à Administração Militar merecesse atenção legislativa e, assim, acabassem, de uma vez por todas, as dificuldades de conceituação e aplicação do Direito.
Ora, é induvidoso que os espaços físicos nos quais estão edificadas as instalações militares (quartéis, escolas, hospitais, depósitos, parques de manutenção, hangares, piers etc) são áreas sujeitas à sua gestão. Também é óbvio que até mesmo materiais e equipamentos de guerra (aviões, navios, carros blindados etc.) se incluem neste conceito.
Todavia, com razoável freqüência surgem casos práticos que colocam em dúvida a amplitude deste instituto. Outrora já se chegou a discutir se os Próprios Nacionais Residenciais (PNR’s) estavam inseridos na definição corrente. Hoje, diante da escalda da violência, se pretende que as Forças Armadas assumam o patrulhamento das áreas circunvizinhas às Organizações Militares o que, em derradeira análise, pode sugerir uma interpretação extensiva do conceito de “área militar”, como já se deu no passado quando se tinha como tal aquela compreendida na distância do alcance de um tiro de canhão.
Também caracteriza o crime militar em tempo de paz, ter sido praticado por militar em situação de atividade, ainda que fora de local sujeito à Administração Militar, contra militares inativos ou contra civis, desde que agindo em razão do serviço, das funções que desempenha ou de comissão recebida.
Em idêntico norte, é crime militar o praticado por militar da ativa contra os da inatividade ou civis, cometidos durante o período de manobras ou exercícios da tropa. Muito embora possa parecer que o critério utilizado leve em consideração o tempo da infração2, com isto não concordamos. Segundo entendemos, o desejo do legislador é contemplar como crime militar aqueles praticados nos locais em que estão sendo realizadas as manobras e/ou os exercícios militares. Assim, o vetor de aproximação do delito é o local do crime e não o tempo. A não ser que se considere crime militar aquele praticado a centenas de quilômetros do local em que está sendo realizado o exercício ou a manobra, apenas porque concomitante.
Por fim, é lógico que deve ser considerado crime militar aquele praticado por militar da ativa em detrimento da própria Administração Castrense (patrimônio sujeito à Administração e conduta desfavorável à ordem administrativa militar).
Depois de regular os crimes que têm como sujeito ativo um militar em atividade (art. 9°, II), o Código preocupa-se com os delitos praticados por civis ou militares da inatividade (Reserva Remunerada e Reformados), contra as Instituições Militares, alertando que nestes casos é indiferente que o delito cometido esteja previsto exclusivamente no CPM (art. 9°, I) ou também o seja na lei penal comum (art. 9°,II). Porém, é preciso que:
1.o delito seja praticado contra o patrimônio sujeito à Administração Militar ou contra a ordem administrativa militar (regular, eficiente e proba gestão militar).;
2.o crime seja praticado em lugar sujeito à Administração Militar contra militar em situação de atividade, ou contra funcionário civil dos Comandos Militares ou da Justiça Militar (vide art. 27 do CPM), estando estes no exercício funcional.;
3.que o delito seja cometido contra militar em formatura ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras.;
4.que o crime seja praticado contra militar em função de natureza militar ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, independente do local em que seja cometido e desde que o militar vitimado esteja legalmente requisitado para aquele fim ou se encontre sob obediência a determinação legal superior.
Por derradeiro, o artigo 9° exaure-se com a estranha modificação sofrida através da Lei 9.299/96. Na oportunidade foi-lhe acrescentado o parágrafo único determinando que os crimes militares em tempo de paz, quando dolosos e praticados contra civis, passam à competência da justiça comum.
Estranha é a previsão, porque seu conteúdo tem incontestável natureza processual e, em sendo assim, não está em seu habitat natural. Em segundo lugar, porque a providência legislativa, como se sabe, foi direcionada às Justiças Militares estaduais, partindo-se da premissa (que não deixa de conter amarga dose de preconceito) de que nas Auditorias dos estados grassam o corporativismo e a impunidade, mas acabou veiculado no Código Penal Militar, lei que se aplica às justiças militares estaduais por uma “cortesia”, digamos assim, do ordenamento jurídico brasileiro, haja vista sua destinação primeira e principal.