SUMÁRIO: 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 2. DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA. 3. ESPÉCIES DE FLAGRANTE. 3.1. Flagrante próprio ou real. 3.2. Flagrante impróprio ou quase-flagrante. 3.3. Flagrante presumido. 4. FLAGRANTE NOS CRIMES PERMANENTES. 5. EXECUTOR DA PRISÃO. 6. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE (APF) E SUAS FORMALIDADES. 6.1. Autoridade competente para a lavratura do APF. 6.2. Escrivão. 6.3. Depoimentos e interrogatório. 6.4. Recolhimento à prisão. 6.5. Nota de culpa. 6.6. Prazo para a lavratura do auto. 7. REMESSA DO APF AO JUIZ.
1. Considerações iniciais.
É bastante comum que os trabalhos da polícia judiciária militar se iniciem com a prisão em flagrante do agente criminoso, sendo que nas oportunidades em que o auto de prisão em flagrante for, por si só, suficiente para a elucidação do fato e de sua autoria, não mais é necessária a instauração do inquérito policial militar.1
Sabe-se, contudo, que a liberdade constitui um dos dogmas do Estado de Direito. Portanto, o encarceramento, mesmo o que decorre de sentença penal condenatória transitada em julgado, é medida excepcional.
O que se dizer então do aprisionamento de uma pessoa sem um exame ou determinação judiciais anteriores, tal qual se dá na prisão em flagrante delito?
Com efeito, a prisão em flagrante é uma medida extrema em que o cidadão tem sua liberdade coarctada sem uma manifestação jurisdicional prévia, razão pela qual deve ser adotada com prudência e absoluta observância da lei.
Não obstante, não se poderia deixar de adotar imediatas providências contra aquele que está cometendo um crime ou acaba de cometê-lo, quer para satisfazer o natural impulso de autodefesa da sociedade, quer para acautelar-se quanto à prova da autoria e materialidade criminosas. Neste sentido, a lição de Romeu Pires de Barros:
“a prisão em flagrante delito é a pronta e eficaz tutela jurídica do Estado, exercitando este seu poder de supremacia, mediante uma verdadeira autodefesa, situação em que se admite também ao próprio ofendido e a qualquer do povo, e tem como principal finalidade a função cautelar.”2
Destarte, dada a excepcionalidade da prisão em flagrante, o legislador estabeleceu uma série de requisitos que têm por escopo salvaguardar os direitos individuais em face de uma situação de anormal rigor, requisitos estes que serão objeto de estudo no presente capítulo.
2. DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA.
A palavra flagrante, de origem latina, significa ardente, que está crepitando, que está em chamas. Daí a expressão “flagrante delito”, utilizada para identificar o crime que está sendo cometido ou acaba de sê-lo. Em sentido jurídico,
“flagrante é uma qualidade do delito, é o delito que está sendo cometido, é o ilícito patente, irrecusável, insofismável.”3
A prisão em flagrante constitui-se em medida cautelar, e, assim, exige a presença dos pressupostos de toda medida cautelar: periculum in mora e fumus boni iuris. Isto posto,
“ocorrendo qualquer das hipóteses de prisão em flagrante, a custódia é automática e imediata, pois a evidência da prática delituosa revela desde logo a presença do fumu boni iuris, além de indicar a necessidade de assegurar a eficácia das providências destinadas à persecução penal.”4
Portanto, a prisão em flagrante é medida administrativa de natureza processual e cautelar, geralmente levada à cabo pela polícia judiciária, sendo um instituto excepcional de restrição da liberdade individual, haja vista que prescinde de prévio controle jurisdicional.
Porém, impõem-se pela necessidade de uma pronta resposta do Estado em situações em que o direito sanciona e legitima um impulso natural de defesa da coletividade, determinado pelo sentimento de repulsa ao procedimento daquele que violou as normas de coexistência social,5 possuindo, também, importante função acautelatória da prova quanto a materialidade do fato e a respectiva autoria.
3. ESPÉCIES DE FLAGRANTE.
De acordo com o Código de Processo Penal Militar, considera-se em flagrante delito aquele que: a) está cometendo o crime; b)acaba de cometê-lo; c) é perseguido logo após o ato delituoso em situação que faça acreditar ser ele o seu autor ; d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, objetos, material ou papéis que façam presumir a sua participação no fato delituoso.6
Diante, por conseguinte, da disciplina do CPPM, pode-se classificar o flagrante em próprio ou real, em flagrante impróprio ou quase-flagrante e em flagrante presumido.
3.1. Flagrante próprio ou real.
Diz-se próprio o flagrante quando o agente está cometendo o crime (art. 244, “a”) ou acaba de fazê-lo (art. 244, “b”).
Na primeira hipótese, o legislador considera em flagrante aquele que é supreendido praticando atos executórios do crime (subtraindo coisa alheia, disparando arma de fogo contra alguém, etc.). É, sem dúvidas, a modalidade que externa a essência do flagrante, pois no momento da perpetração há
“a plena posse da evidência, a evidência absoluta, o fato que acaba de cometer-se, que acaba de ser provado, que foi visto e ouvido e, em presença do qual, seria absurdo ou impossível negá-lo.”7
Encontra-se, ainda, em situação de flagrância real o agente que acabou de cometer o delito, isto é, que esgotou os meios de execução, dando causa ao resultado jurídico criminoso. “Já não há o fogo, mas existe a fumaça; a chama se apagou, mas a brasa está quente.”8
De se observar que entre o cometimento do crime e o aprisionamento de seu autor deve haver transcorrido um diminuto lapso temporal, quase que uma absoluta relação de imediatidade, sem o que não se caracteriza a situação de flagrância delitiva.
3.2. Flagrante impróprio ou quase-flagrante.
Trata a alínea “c” do “Quase-flagrante”, modalidade na qual a pessoa é perseguida logo após a prática do delito em situação que faça acreditar ser ela a autora do fato típico.
Existe, em verdade, uma presunção legal da autoria criminosa que a norma equipara à certeza advinda da prisão ocorrida durante o cometimento do crime.9 Há uma presunção de autoria e uma ficção do estado de flagrância.10
Nos termos legais, ocorre perseguição quando a autoridade: a) tendo conhecimento da remoção do perseguido, o seguir sem interrupção, embora depois o perca de vista; b) ainda que não tenha avistado a pessoa perseguida, foi em seu encalço, sabendo, por informações fidedignas ou circunstâncias judiciárias, que está sendo removida em determinada direção.11
Exigível, no entanto, que o autor do fato típico seja perseguido logo após o cometimento do crime, isto é, que a perseguição se inicie no curto espaço de tempo necessário à identificação do agente a ser procurado, até porque não configura perseguição a busca desordenada ou desorientada.
“Deve-se entender que o ‘logo após’ do dispositivo é o tempo que corre entre a prática do delito e a colheita de informações a respeito da identificação do autor, que passa a ser imediatamente perseguido após essa rápida investigação procedida por policiais ou particulares (...) Deve-se ter em conta, porém, que tal situação não se confunde com uma demorada investigação a respeito do fato.”12
Iniciada a perseguição com a imediatidade que lhe é imposta, não importa o intervalo de tempo decorrido entre o momento do crime e a captura de seu autor,13 em que pesem respeitáveis opiniões em contrário. O que não encontra nenhum respaldo legal é a crença popular, que deve ser creditada em grande parte às manchetes jornalísticas, de que a prisão em flagrante deve ocorrer dentro de vinte e quatro horas do cometimento do delito.
Muito embora a sua previsão legal, o flagrante impróprio é alvo de diversas oposições doutrinárias, traduzidas pelas palavras de João Mendes de Almeida, que são trazidas à colação por amor à dialética:
“Esta situação parece admitir que, em todo e qualquer tempo após o crime, desde que o delinqüente seja preso pelos que presenciaram, há flagrância. Isso, porém, não corresponde à idéia indicada pela analogia que deu lugar ao termo - flagrante delito. O delinqüente que não foi preso no ato, in faciendo, ou pouco tempo depois do crime, fugindo às conseqüências - este delinqüente não se pode dizer que praticou um ato ainda acesso aos sentidos da autoridade e à memória dos membros da sociedade.”14
3.3. Flagrante presumido.
O flagrante presumido ocorre quando o agente é encontrado logo depois do crime, com instrumentos, objetos, material ou papéis que façam presumir a sua participação no fato delituoso.
Não há perseguição, a pessoa é encontrada portando veementes indícios de autoria do fato típico, logo depois de sua consumação.
A expressão ‘logo depois’ merece a mesma interpretação conferida ao ‘logo após’ do quase-flagrante’. A diferença está em que, neste, o que ocorre logo após o crime é a perseguição; no flagrante presumido o que ocorre logo depois é o encontro com o agente.
Não obstante, no esteio da crítica de Mossin, deve-se destacar que em nível jurisprudencial,
“a matéria atinente ao espaço temporal dentro do qual a prisão deve ser levada a efeito não é pacífica. Os desencontros dos julgados, muitas vezes, injustificáveis, levam à conclusão de que quase sempre há um casuísmo na apreciação.”15
Mister se faz que a pessoa seja encontrada com os elementos suficientes à imputação pelo crime, não sendo bastante a simples confissão.
De igual sorte, não haverá flagrante presumido quando o agente apresentar-se espontaneamente, caso em que restará à autoridade policial judiciária militar representar pela prisão preventiva ou pela adoção de outra medida que seja propícia.
4. FLAGRANTE NOS CRIMES PERMANENTES.
A consumação de alguns crimes se prolonga no tempo, mantendo, destarte, a atualidade criminosa autorizadora da prisão em flagrante. Tais delitos dispõem
“de um momento consumativo inicial e de um momento consumativo final. Entre ambos se põem momentos consumativos intermediários, amalgamados uma aos outros. A soma destes integra o período consumativo.”16
Temos, como exemplo clássico, o delito de seqüestro, previsto no artigo 225 do Código Penal Militar, em que a consumação se protrai durante todo o tempo em que a vítima se encontra privada de sua liberdade de locomoção, a partir de seu arrebatamento pelo seqüestrador. Em situações desta jaez, o criminoso encontra-se em situação de flagrância até o instante em que cessar a atividade delituosa, de acordo com o preceito contido no parágrafo único do artigo 244 do CPPM.
5. EXECUTOR DA PRISÃO.
De acordo com a lei, “qualquer pessoa poderá e os militares deverão” prender quem seja encontrado em flagrante delito.17
Vê-se que o legislador conferiu ao particular a faculdade, facultas agendi, de prender aquele que se encontra em situação de flagrância, uma vez que
“há o interesse coletivo na punição de quem viola a norma penal, porquanto, essa vulneração, em última análise, afeta sobremaneira o equilíbrio social.”18
Por outro lado, aos militares, detentores do poder de polícia judiciária militar, vigora a norma agendi, isto é, o dever jurídico de efetuar a prisão em flagrante, sendo certo que
“o não-cumprimento desse dever, dependendo do caso concreto, poderá sujeitar a Autoridade omissa às sanções de natureza administrativa e, às vezes, às sanções de natureza penal, pois poderá configurar o crime de prevaricação.”19
Come efeito, o delito de prevaricação consiste em infidelidade ao dever de ofício, motivada por razões de interesse ou sentimento pessoal, maculando o bom e correto andamento da gestão pública.
Deve-se observar, contudo, que a obrigação dos militares das Forças Armadas de prender em flagrante delito só existe em relação aos crimes militares de competência da Justiça Militar da União, isto porque são detentores, unicamente, do poder de polícia judiciária militar destinado à apuração de indigitadas infrações.
Em se tratando de crime comum, aos militares federais é facultado, como a “qualquer do povo”, efetuar a prisão daquele que se encontra em flagrante delito.
Note-se que a prisão em flagrante se fará com a simples “voz de prisão”20, sendo permitido o uso de força quando indispensável, nos casos de desobediência, resistência ou tentativa de fuga.21
6. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE (APF) E SUAS FORMALIDADES.
O auto de prisão em flagrante é o documento em que são registrados todos os dados necessários ao esclarecimento dos fatos imputados ao conduzido e que servirão de suporte à formação da opinio delicti do Ministério Público.
Destina-se também o APF a fazer prova da legalidade do excepcional cerceamento da liberdade do cidadão, razão pela qual deve ser imediatamente comunicado ao Juízo22 e ao Ministério Público Militar, em se tratando de prisão efetuada pela polícia judiciária militar federal, isto porque, de acordo com o artigo 10 da Lei Complementar nº 75/93:
“A prisão de qualquer pessoa, por parte de autoridade federal ou do Distrito Federal e Territórios, deverá ser comunicada imediatamente ao Ministério Público competente, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão.”
Vê-se, portanto, que o auto de prisão em flagrante possui, na verdade, dupla natureza. Em um primeiro momento mostra-se peça coercitiva, autorizando e titulando a segregação cautelar do autuado, para logo em seguida servir de peça informativa de fato que, nos termos legais, configure crime militar, com nítido caráter sumário, instrutório e provisório, tal qual o inquérito policial militar. Tanto é verdade que, como visto outrora, o IPM será dispensado quando o APF for, por si só, suficiente para a elucidação do fato e de sua autoria.23
A lavratura do auto de prisão em flagrante deve obedecer, em absoluto, às exigências da lei, que representam a garantia do cidadão contra o arbítrio, máxime quando se trata de cerceamento liminar da liberdade. Portanto, tais formalidades são
“sacramentais e constituem elementos essenciais desse ato processual complexo, sendo certo que seu desatendimento deve resultar no reconhecimento de sua invalidade”.24
Por fim, de acordo com Walter P. Acosta, “o auto de flagrante é peça inteiriça, de texto corrido, redigida e ditada pela autoridade, contendo no preâmbulo o título, a data, o local, o nome e o cargo da autoridade que preside o ato, e que prossegue com a qualificação e declarações do condutor, das testemunhas e, por último, com o interrogatório do conduzido. Em seguida, assinam a autoridade e todas as pessoas que em qualquer condição participam do ato.”25
6.1. Autoridade competente para a lavratura do APF.
A primeira questão que deve ser enfrentada diz respeito à autoridade competente para lavrar o auto de prisão em flagrante.
O CPPM dispõe que:
“Art. 245. Apresentado o preso ao comandante ou a oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou autoridade correspondente, ou à autoridade judiciária, será, por qualquer deles, ouvido o condutor e as testemunhas que o acompanharem, bem como inquirido o indiciado sobre a imputação que lhe é feita, e especialmente sobre o lugar e a hora em que o fato aconteceu, lavrando-se de tudo auto, que será por todos assinado.”
Inicialmente deve-se ressaltar que “para fins de fixação da competência da autoridade, considera-se o local da prisão em flagrante, ou seja, o local da efetiva captura do infrator, e não, o da prática do crime.”26
Em primeiro lugar, cuidemos do comandante militar.
Ora, o poder de polícia judiciária militar é conferido originalmente aos comandantes, chefes e diretores, em seus níveis mais expressivos, dentro de suas respectivas áreas de atribuições.27 Natural, por consegüinte, que sejam eleitos pela lei para lavrarem o auto de prisão em flagrante quando a prisão se efetuar em seus comandos.
Se a prisão for efetuada no interior da Organização Militar não há nenhuma dúvida de que o comandante de referida unidade é a autoridade responsável pela confecção do APF.
Porém, quando a prisão for realizada em lugar não sujeito à administração castrense, a quem caberá lavrar o auto?
Diz a lei que, em tais casos, o auto poderá ser lavrado pela autoridade militar do lugar mais próximo do que ocorreu a prisão ou por autoridade civil,28 muito embora,
“toda vez que o flagrante ocorrer em lugar não sujeito à administração militar, a tendência será apresentar o capturado ao seu comandante.”29
Não obstante, o artigo 250 do CPPM é claro e insofismável: o preso deverá ser apresentado ao comandante militar mais próximo ou à autoridade civil!
Quando o auto de prisão em flagrante for lavrado por autoridade policial civil, deve ser observado que o militar das Forças Armadas possui a prerrogativa legal de ser mantido na delegacia somente durante o tempo necessário para a lavratura do APF, cabendo àquela autoridade providenciar a imediata remoção do autuado ao Comando militar mais próximo.30
Na sequência do artigo 245, temos como autoridade competente para a lavratura do APF, o oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou correspondente. Trata-se de delegação de exercício de poder de polícia realizada diretamente pela lei, uma vez que o oficial de dia é o representante do comandante da unidade. Por autoridade correspondente entendemos as figuras conhecidas do fiscal de dia, médico de dia, etc.
Pode, todavia, haver delegação de poderes para a lavratura do APF a outro militar, observadas as regras contidas nos parágrafos do artigo 7º do CPPM, sendo mister, nestes casos, que a portaria delegante seja juntada ao APF.
Igualmente competente para lavrar auto de prisão em flagrante é o Magistrado, mormente nas ocasiões em que a infração for praticada em sua presença, ou contra ele, no exercício de suas funções.31
6.2. Escrivão.
Escrivão é o responsável pela confecção do auto de prisão em flagrante, exercendo, por conseguinte, destacada função em serviço da persecutio criminis.
Em se tratando de APF presidido por autoridade militar, o escrivão será por esta designado, observada a regra que se segue: se o indiciado for oficial, a designação recairá sobre um oficial subalterno ou intermediário; nos demais casos, o escrivão poderá ser um subtenente, suboficial ou sargento. Em qualquer caso, prestará o compromisso de manter o sigilo e de cumprir fielmente a lei, no exercício de suas funções.
Na falta ou impedimento do escrivão, a autoridade policial judiciária militar nomeará escrivão ad hoc, nos termos do artigo 245, § 5º, do CPPM.
Nos casos em que o APF é lavrado por autoridade civil, funcionará no feito o escrivão de carreira que oficiar perante a delegacia ou juízo, sendo possível a nomeação de escrivão ad hoc nas hipóteses de ausência ou impedimento do funcionário.
6.3. Depoimentos e interrogatório.
Efetuada a prisão em flagrante, o preso deverá ser imediatamente apresentado à autoridade competente para a lavratura do APF, que, incontinente, lhe dará ciência de suas garantias constitucionais, dentre as quais: a de permanecer em silêncio, ser assistido pela família e por advogado e identificar os responsáveis por sua prisão e interrogatório.
“O atendimento dessas exigências deve vir expresso no auto de prisão em flagrante delito, que é o instrumento em que estão documentados os fatos que revelam a legalidade e a regularidade da restrição antecipada do direito de liberdade.”32
Ultrapassada a preliminar, deve a autoridade proceder à oitiva do condutor, das testemunhas, do ofendido e, por fim, do autuado. Note-se que
“a ordem na inquirição é imperativa: primeiro é ouvido o condutor, depois as testemunhas e a vítima, se encontrada, por fim o indiciado; é indispensável que este seja o derradeiro a falar no auto e sua manifestação será balizada pelo que afirmaram as testemunhas e o ofendido.”33
O condutor é a pessoa que apresenta o preso à autoridade, não sendo necessário que tenha participado da prisão do infrator ou sido testemunha da prática do delito.
Após sua qualificação, será compromissado e deverá ser perguntado sobre as circunstâncias e os motivos que o levaram a prender o conduzido ou em que situações o recebeu de quem efetuou o aprisionamento.
Finda a oitiva do condutor, serão as testemunhas, cada uma de per si, qualificadas, compromissadas e inquiridas pela autoridade que presidir a lavratura do APF.
De se ressaltar que a falta de testemunhas não impede a autuação. Em casos tais, o auto será assinado por duas testemunhas instrumentárias, isto é, pessoas que hajam testemunhado a apresentação do preso, sendo
“irregular e condenável o procedimento da autoridade que convoca duas pessoas para assinarem um auto de flagrante sem que hajam assistido à apresentação, às declarações de condutor e conduzido e à redação do auto.”34
Não se pode perder de vista que “a inquirição do condutor e das testemunhas representa, sem dúvida, o momento mais importante; é através da narração dos fatos feitas por essas pessoas que a autoridade obtém as informações fundamentais sobre a existência da infração penal e caracterização da situação de flagrância.”35
Terminada a oitiva das testemunhas deve ser ouvido o ofendido, alertando-se para o fato de que suas declarações possuem valor probatório relativo, conforme comentamos no item 4.2.2., ao qual remetemos o leitor.
Ao fim das inquirições do condutor, testemunhas e ofendido, deve ser procedido ao interrogatório do conduzido.
“No atual sistema constitucional, que consagra o conjunto de garantias do ‘devido processo legal’ (art. 5º, LIV), a presunção de inocência (art. 5º, LVII) e o direito ao silêncio (art. 5º, LXIII), o interrogatório do acusado não constitui meio de prova, mas representa o mais importante instrumento de autodefesa no processo penal; sua inclusão como formalidade essencial para a lavratura do flagrante decorre do interesse de tutela do direito de liberdade, diante da situação excepcional que autoriza a prisão sem ordem judicial.” 36
Não obstante, há situações anormais em que o interrogatório do conduzido não é realizado por impossibilidade ou inconveniência, como se dá, por exemplo, nos casos de encontrar-se o preso gravemente ferido e hospitalizado ou bastante embriagado.
De mais a mais, no interrogatório do conduzido são aplicáveis as mesmas cautelas e idênticos procedimentos adotados quando do interrogatório do indiciado no inquérito policial militar, matéria que foi objeto de nossas considerações no item 4.2.3.,inclusive no que concerne à nomeação de curador quando o preso for maior de dezoito e menor de vinte e um anos.
Por outro lado, quando o conduzido for menor inimputável, isto é, menor de dezoito anos, não poderá ser autuado, restando à autoridade policial judiciária militar apresentá-lo ao Juizado da Infância e da Adolescência.37
Se, contudo, o menor praticou o delito em concurso com pessoas imputáveis, é importante que o presidente do APF colha o seu depoimento. Porém, mesmo nesta hipótese, não haverá autuação do inimputável, que será encaminhado ao juizado específico.
Terminado o interrogatório do conduzido, a autoridade encerrará o auto, no qual constarão a assinatura das autoridades oficiantes e das pessoas ouvidas. Caso alguma testemunha não saiba ou não possa assinar, certifica-lo-á o escrivão, sem necessidade de assinatura a rogo. Porém, em se tratando de recalcitrância ou impossibilidade do conduzido em assinar o interrogatório, bem como, se o mesmo não souber fazê-lo, o auto será assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura na presença do autuado, do condutor e das testemunhas numerárias.38
6.4. Recolhimento à prisão.
O recolhimento do conduzido à prisão não é medida arbitrária ou automática nos casos de flagrância delitiva. Muito pelo contrário, só se efetivará quando, após as oitivas do condutor, das testemunhas, do ofendido e do próprio conduzido, resultarem fundadas suspeitas de que este foi o autor da infração à lei penal militar.
Ademais, não basta a prática do delito para que se autorize a excepcional custódia do conduzido. É necessário que fique evidenciada a situação de flagrância e, por outro lado, há de se verificar se a infração cometida enseja a concessão de liberdade provisória, com o que fica vedada a restrição do direito à liberdade, isto em face do artigo 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal que garante ao cidadão não ser levado à prisão ou nela ser mantido quando a lei admitir liberdade provisória.
Situamo-nos dentre aqueles que entendem caber à autoridade policial judiciária militar abster-se, após a lavratura do auto, de recolher o autuado à prisão nos casos em que lhe é admitida a liberdade provisória. De igual sorte, quando das diligências efetuadas aquela autoridade constatar a manifesta inexistência da infração penal ou a não participação da pessoa conduzida, relaxará a prisão, como também, nos casos em que houver ilegalidade ou arbítrio no captura do conduzido.
Freyesleben adverte que nos casos em que a autoridade policial judiciária militar tiver dúvida a respeito do relaxamento da prisão em flagrante,
“deverá remeter os autos do APF ao juiz-auditor, acompanhados das necessárias explicações, para que em juízo seja mantida ou relaxada a prisão (art. 248 do CPPM).”39
Em prisma diverso, quando o presidente do APF concluir que trata-se, na verdade, de crime comum, remeterá o preso e o auto à autoridade competente.
6.5. Nota de culpa.
A nota de culpa é um dos mais destacados mecanismos de garantia do cidadão contra prisões abusivas.
Consiste em um documento obrigatório de comunicação oficial ao detido acerca dos motivos de seu encarceramento, onde são nominados o condutor, as testemunhas, o ofendido e a autoridade responsável pela lavratura do auto.
O direito à nota de culpa visa, de um lado, coibir o abuso de detenções ilegais, até porque, a simples exigência desse ato representa um sério obstáculo ao arbítrio40 e, de outro, possibilitar, desde o nascedouro da persecutio criminis, o exercício da ampla defesa41 assegurado pela Constituição Federal. Por conseguinte,
A nota de culpa deve ser fornecida ao preso nas vinte e quatro horas que se seguirem à sua prisão, entrega esta que se dará mediante recibo, acentuando-se, destarte, a sua importância.
Se o preso não souber, não quiser ou não puder assinar, há necessidade de que duas pessoas testemunhem a entrega do documento e a recusa, impossibilidade ou recalcitrância do detido.
Constitui constrangimento ilegal a não entrega da nota de culpa no prazo fixado pela lei, tendo como consequência o relaxamento da prisão.
6.6. Prazo para a lavratura do auto.42
A lei não determina, de forma direta, um prazo para que o APF seja lavrado. Não obstante, uma interpretação sistemática leva à conclusão de que a lavratura deve ocorrer antes de passadas vinte e quatro horas da prisão.
Em primeiro lugar, determina o CPPM que apresentado o preso à autoridade, será por esta ouvido o condutor, as testemunhas e o conduzido,43em clara demonstração de que a lavratura do APF deve ocorrer logo após a apresentação,
“uma vez que a imediata lavratura do auto está incorporada no próprio espírito do instituto processual do flagrante, que reclama esta medida em forma vizinha da prisão, sob pena de tornar ilegal o ato de detenção em flagrante do conduzido, propiciando seu relaxamento.”44
Por outro lado, como visto a pouco, a nota de culpa obrigatoriamente será fornecida dentro de vinte e quatro horas da captura. Ora, se a confecção da nota de culpa depende do término do APF, é de obviedade ululante que a lavratura do auto não pode ultrapassar o período máximo para o fornecimento da notificação, vinte e quatro horas, sob pena de causar um ilegal constrangimento na liberdade do autuado.
7. REMESSA DO APF AO JUIZ.
De acordo com a lei, imediatamente após a lavratura, o APF deve ser remetido à autoridade judiciária. No entanto, às vezes é necessária a realização de diligências para o esclarecimento dos fatos, hipótese na qual o prazo de remessa passa a ser de no máximo cinco dias.45 De qualquer sorte, o presidente do flagrante tem que dar incontinente conhecimento da prisão ao Juízo e ao Ministério Público.
Ao término da lavratura do auto, o preso fica à disposição do Juízo.
8. Controle jurisdicional da prisão em flagrante.
A exigência de comunicação da prisão cautelar é de ordem constitucional46, voltada ao resguardo do status libertatis do cidadão. O CPPM, por sua vez, prevê que a prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente levada ao conhecimento do juiz, com a descrição do local onde a mesma se acha sob custódia.47
Sendo assim,
“cabe ao juiz, em primeiro lugar, ao receber a comunicação, verificar se o auto de prisão efetivamente noticia a prática de infração penal, se ocorre uma das situações legais que autorizam o flagrante e, por último, se foram atendidas as prescrições formais que legitimam a prisão; caso contrário, é de ser reconhecida a nulidade do ato, com o conseqüente relaxamento da medida de restrição da liberdade.”48
Posto isso, se da análise do APF o magistrado convencer-se de que não existiu crime militar ou que o autuado dele não participou, determinará o relaxamento da custódia, nos termos do artigo 247, § 1º, do CPPM. Por outro lado, se estiverem presentes os requisitos favoráveis à liberdade provisória,49 caberá ao juiz concedê-la ao preso.
De se notar que omissão da autoridade policial em comunicar a prisão ao juiz competente para conhecê-la configura o crime de abuso de autoridade, previsto no artigo 4º, alínea “c”, da Lei nº 4.898/65.