INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Lei nº 8.666, de 1993, ainda não esgotou a fonte de divergências que enseja sua aplicação, não por ser uma lei imprestável ou inconstitucional, como apregoam, sem razão, alguns doutrinadores da melhor estirpe, visto que toda lei, por mais clara e bem redigida que seja, há de sempre apresentar dúvidas e questionamentos, especialmente quando se trata de texto regulamentador de matéria altamente polêmica, como as licitações e os contratos administrativos. A doutrina e a jurisprudência hão de poli-la, devidamente.
Esta lei institui normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, no âmbito dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a ela subordinando-se os órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as demais entidades controladas direta ou indiretamente.
Contudo, deve-se dar especial atenção à profunda revolução produzida pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, que determinou substancial alteração na Lei de Licitações e Contratos, excluindo de sua incidência as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, as quais deverão ter estatuto próprio, subordinado aos princípios da administração, no que diz respeito à contratação de obras, serviços e alienações.
O citado diploma legal, que impõe um regime privilegiado, com as prerrogativas naturais da relação Estado — particular ou ainda com o próprio Estado, quando no pólo de contratado, respeitados sempre os seus direitos, alerta para um ponto de crucial relevância, assinalando que esses contratos se regulam por suas cláusulas e também pelos princípios da teoria geral dos contratos e pelas disposições de direito privado.
Os contratos administrativos não se distinguem dos contratos comuns, a não ser pela só presença de administração pública, a qual derroga normas de direito privado, conforme as lições de Hely Lopes Meirelles e de autores proeminentes. A formalidade, contudo, é essencial e não pode ser negligenciada.
Esses contratos impõem as condições e cláusulas, unilateralmente, e caracterizam-se como verdadeiros contratos de adesão. A fase inicial de debates e da transigência fica eliminada, visto que uma das partes impõe à outra, como um todo, o instrumento inteiro do negócio que essa em geral não pode recusar, com a predominância apenas da igualdade jurídica. É uma espécie de contrato — regulamento, estabelecido previamente pela contratante e que a contratada aceita ou não, segundo as normas de rigorosa padronização. Nesse sentido, Clovis, Washington de Barros Monteiro, Sílvio Rodrigues e Cunha Gonçalves. A propósito, o Código do Consumidor, estatuído pela Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, trata do contrato de adesão e define-o como aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente, sem que suas cláusulas possam ser discutidas ou modificadas substancialmente.
Assim, as cláusulas duvidosas interpretam-se em favor de quem se obriga e qualquer obscuridade deve ser debitada à conta de quem redigiu o ajuste, de sorte que, no conflito entre duas cláusulas, a contradição prejudica o outorgante e não o outorgado. A interpretação dever-se-á fazer da maneira menos onerosa para o devedor, em atenção ao conjunto das disposições e não isoladamente, em harmonia com a melhor doutrina e jurisprudência.
Essa advertência ganha importância no momento da aplicação das disposições especiais e na interpretação das cláusulas contratuais, quando então o intérprete e o aplicador da lei (e o contrato é lei entre as partes) e do contrato devem sempre ter em vista o contexto e a real intenção das partes, a finalidade a que se destina o objeto, a obtenção dos resultados e sua utilização, sem se fixar na literalidade da expressão verbal.
Os autores prelecionam que a inserção de cláusulas duvidosas ou de pontos obscuros é sempre possível, por mais que se conheça o idioma, de modo a exigir-se do aplicador da lei, do advogado ou do juiz a fixação do sentido autêntico, exatamente colimado pelos interessados, devendo alijar-se, assim, o entendimento que se apegue somente à literalidade da convenção, eis que a ponderação e o equilíbrio devem estar sempre presentes. Os doutos têm-se manifestado pelo apreço ao interesse público, sem discursar, porém, do interesse privado, não permitindo assim sacrifício inútil ou lesão dos direitos dos particulares, quando sediados no pólo oposto. Na interpretação dos contratos administrativos levar-se-á em conta o interesse público, mas não se rejeitará a proteção que é devida ao contratado, nem se negarão os princípios da boa-fé, da razoabilidade, da impessoalidade, da moralidade, da legalidade e da probidade contra o arbítrio, os quais devem ser respeitados pelo Poder Público. O entrelaçamento de um princípio com outros é de fundamental importância, ou, como informa o ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, ‘‘o Direito, como sistema é uno. Não admite contradição lógica. As normas harmonizam-se’’. Desde Celso, em Roma, emitir parecer ou julgar a lei, separadamente, ao invés de fazê-lo em conjunto, é extremamente condenável, porque contrário ao direito.