O Código Penal foi organizado de forma sistêmica, dividido em duas grandes partes: a Geral e a Especial, repartição que se justifica plenamente, pois além de confirmar o respeito à técnica e à metodologia científica, atende à preferência dos doutrinadores modernos. Confira com Magalhães Noronha:
“Dividem-se, então, os Códigos Penais modernos em duas partes: a Geral e a Especial. Aquela contém os princípios e regras gerais que dizem respeito ao crime, à imputabilidade, à pena, à medida de segurança etc., dando as características da lei penal e o modo de sua atuação.
Após essa disciplina ampla do crime, como pressuposto, e da pena como conseqüência, apresentam os Códigos a Parte Especial, integrada pelos delitos considerados pelo legislador. Há tipificação. São os crimes definidos em fórmulas sintéticas, precisas e unitárias, constituindo tipos, aos quais a conduta do sujeito ativo se deve ajustar (nullum crimen sine typo)”1.
Todavia, é interessante dizer que historicamente a Parte Especial precedeu à Geral, isto em face da própria dinâmica das sociedades, pois somente à medida em que o homem praticava condutas lesivas ao ambiente social é que surgiam as normas destinadas a sancionar tais comportamentos, em um fenômeno similar ao princípio universal da ação e reação. Fácil concluir, portanto, que a normatização primitiva caracterizava-se por ser assistemática e desorganizada. Acompanhe, sobre a assertiva, o raciocínio de Mirabete:
“As leis eram elaboradas à medida em que surgiam os fatos de natureza nociva à ordem pública e que exigiam, por isso, a repressão penal. Não estavam elas, assim, organizadas em sistema, pois o interesse primordial do Estado era o de fixar o que deveria ser considerado crime e a sanção cabível ao autor do fato. O desenvolvimento dos estudos sobre as questões particulares de certas figuras penais mais importantes, como o homicídio, por exemplo, levou porém à formação de institutos (causalidade, dolo, culpa, tentativa,legítima defesa etc.) que iriam constituir mais tarde, através de lenta e progressiva evolução da cultura e do apuramento das construções jurídicas, os princípios da Parte Geral”2.
O que importa realmente é a constatação de que a classificação das entidades criminais dentro de uma lógica sistêmica representa uma utilíssima ferramenta para a elaboração da lei, para seu estudo e, porque não dizer, para sua aplicação.
Particularmente sobre a Parte Especial, onde se encontram as espécies de condutas criminosas (os tipos penais), é preciso registrar que diversos modelos de sistematização foram propostos, desde os critérios absolutamente empíricos até os mais contaminados pela atenção científica.
Assim é que podem ser apontados exemplos bizarros como o da Practica Criminalis de Julius Clarus que organizava os delitos por ordem alfabética. Outros métodos, por seu turno, baseavam-se nas categorias de processo, na jurisdição ou até mesmo na espécie de sanção penal. Quem nunca ouviu falar da divisão romana entre crimes públicos e crimes privados (delicta publica e delicta privata), ou na classificação de Carrara que dividiu os delitos em naturais e sociais!
No entanto, sua atenção maior deve estar voltada para o critério adotado pela atual legislação penal brasileira, qual seja, aquele que considera como fator de seleção dos tipos a objetividade jurídica, isto é, os delitos são reunidos de acordo com o bem jurídico que protegem (tutelam). Desta forma, as diversas figuras delitivas agrupam-se de forma harmônica e complementar ao redor de sua própria motivação primária. Tome como exemplo o Capítulo I do Título I do CP; nele estão reunidos todos os crimes que atentam contra a vida humana (homicídio - art.121, infanticídio - art. 122, induzimento, instigação e auxílio ao suicídio - art. 123 e aborto - arts. 124, 125 e 126).
Observe, em um exemplo real e prático, como é importante a classificação dos delitos tendo como critério a objetividade jurídica:
Em meados de 2001 recebi um IPM (Inquérito Policial Militar) em que figurava como indiciado um militar do Exército que havia se apropriado de alguns quilos de carne, cujo valor ultrapassava um pouco o salário mínimo vigente à época. Depois de analisar o caderno inquisitorial ofereci denúncia em desfavor do indiciado; o Juiz, porém, não a recebeu alegando a atipicidade da conduta e arrimando sua decisão no princípio da insignificância.
Ora, como seria de se esperar, interpus o devido Recurso em Sentido Estrito argumentando que o delito que se pretendia reprimir (peculato) classificava-se dentre os crimes contra a Administração Pública, isto porque o soldado era responsável pelo Rancho do Quartel (auxiliar de cozinha) e, em assim sendo, a aferição da significância da conduta imputada teria que ser feita com relação à objetividade jurídica própria dos delitos desta matiz, ou seja, não importava o valor material ou comercial da carne surrupiada, pois não se tratava de crime contra o patrimônio (apropriação indébita), mas sim violação da confiança e quebra do dever de lealdade que era exigida do agente público em favor da Administração.
Portanto, lembre-se:
“A classificação sistemática dos delitos é um dos mais sólidos elementos com que pode contar a hermenêutica. Sem ela, o intérprete mover-se-ia com indecisão e incerteza, na busca do bem tutelado, objeto de interpretação finalística ou teleológica, de todas a mais importante (...) A consideração do objeto jurídico, além de outros fins, tem o de determinar a sanção proporcional ao valor que ele representa (...) É que valorativo como é o direito penal, não só tutela os valores mais elevados ou fundamentais para a sociedade como os dispõe em escala hierárquica. A sanção tem de guardar necessária correspondência com a lesão a esse valor”3.
1.2. Homicídio.
1.2.1. Introdução.
Talvez você nunca tenha ouvido falar de Hannah Arendt, filósofa e pensadora política nascida na Alemanha em 1906. Porém, é dela uma das pérolas da literatura mundial- A Condição Humana4-, livro em que discute e reconsidera a própria condição do homem na era moderna.
Pois bem, você pode estranhar a referência que faço no instante em que inicio o estudo do crime de homicídio, todavia lembre-se que a vida humana é o bem jurídico por excelência e, portanto, primeiro e principal destinatário da proteção penal. Eis porque lhe brindo, neste debut, com as palavras iluminadas de Arendt:
“Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar”.
Não há, pois como negar o relevo superior da vida humana, considerada quer como um bem-interesse tutelado especificamente pela lei (nos crimes contra a vida), quer como fértil e interminável nascente dos demais direitos individuais e sociais, haja vista que todos eles, nela (na vida humana) se justificam.
Hungria, com sua maestria usual, principia seus Comentários dizendo:
“O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinqüência violenta ou sanguinária que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da sociedade civilizada (...) todos os direitos partem do direito de viver,pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O homicídio tem a primazia entre os crimes mais graves, pois é o atentado contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os bens públicos e privados, todas as instituições se fundam sobre o respeito à existência dos indivíduos que compõem o agregado social”5.
Na atual composição do Código Penal você encontra 4 (quatro) “modalidades” de homicídio, distinção cuja ancestralidade se deve a diversos ordenamentos alienígenas. Logo no art. 121, caput, temos o homicídio simples, seguido imediatamente pelo privilegiado (art.121. § 1º). O § 2º trata do homicídio qualificado e o§ 3º do culposo.
Recorde-se que a Lei nº 8.072, que dispõe sobre os crimes hediondos, inclui neste rol o homicídio qualificado e, de igual sorte, o homicídio (tentado ou consumado) praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente.
1.2.2. Conceito.
Eu sempre achei muito interessante as polêmicas doutrinárias sobre pontos que, à primeira vista, não parecem essenciais. Contudo, o apego à técnica robustece a ciência jurídica e não pode de maneira alguma ser olvidado.
Na conceituação do homicídio existe uma certa discussão acadêmica, principalmente contra aqueles que, no conceito, enxertam elementos de antijuridicidade ou de culpabilidade.
Desses, o conceito de Carmignani é um dos mais festejados. Diz ele que o homicídio (termo originado da expressão latina hominis excidium) é a “ocisão violenta de um homem injustamente praticada por outro homem”. Todavia, além de ser desnecessária a indicação explícita do sujeito ativo, pois o agente sempre haverá de ser um homem (gênero), não se mostra adequada a inclusão da antijuridicidade (injustamente) no conceito do delito.
Observe a crítica de Noronha:
“Com razão tem sido ela (a definição) criticada. Não se vê por que se há de ressaltar o elemento injusto, quando a antijuridicidade é característico de todo delito. Depois, desde que se trate de crime, a morte só
pode ser dada por outro homem: só este é sujeito ativo”6.
Já Euclides Custódio da Silveira o define como “a eliminação da vida humana extra-uterina”.
Prefiro descomplicar, até mesmo porque o molde penal é bastante simples. A lei, no art. 121, diz apenas: matar alguém; portanto, tenho por homicídio a conduta humana (positiva ou negativa) que põe termo à vida de outra pessoa.
1.2.3. Objetividade jurídica.
Em Fortaleza reside e oficia um grande amigo e culto Juiz, decano da Justiça Militar da União, que foi, inclusive, homenageado no primeiro volume desta coleção de Direito Penal, Dr. Angelo Rattacaso Junior.
Costuma ele dizer que há somente dois momentos realmente importantes na vida dos homens, o instante do nascimento e aquele derradeiro, o da morte; todos os demais acontecimentos são periféricos ou marginais.
As conclusões do Dr. Angelo são excepcionalmente apropriadas para se esclarecer qualquer dúvida sobre a objetividade jurídica do crime de homicídio, pois como se sabe, o bem-interesse protegido é a vida humana, sendo necessário, portanto, estabelecer claramente que antes da vida e depois dela não se pode mais falar em homicídio, mas em um outro delito, aborto ou vilipêndio a cadáver, por exemplo.
Tome como paradigma o caso ocorrido muito recentemente protagonizado pelo Dr. Farah, médico residente em São Paulo que após matar sua amante, esquartejou-lhe o corpo e colocou os restos mortais em sacos de lixo acondicionando-os no interior do bagageiro do carro de seus pais. Pois bem, depois de ter matado sua vítima, o homicídio foi consumado, devendo as condutas subseqüentes serem punidas a título de vilipêndio a cadáver (art. 212) e ocultamento de cadáver (art. 211).
Eis porque é necessário aprender, com a melhor doutrina e a jurisprudência de escol, quais os marcos inciais e finais da vida.
Regra geral se defende que a comprovação do início da vida humana se dá com a constatação da respiração, contudo Hungria chamou a atenção para asituação do neonato apnéico ou asfixico, que mesmo sem ter respirado tem sua vida reconhecida e protegida. Acompanhe:
“(...) como ou quando começa a vida? Dizia Casper: ‘viver é respirar; não ter respirado é não ter vivido’. Formulado assim irrestritamente, não é exato o conceito, ainda mesmo que se considerasse vida somente a que se apresenta de modo autônomo, per sè estande, já inteiramente destacado o feto do útero materno. A respiração é uma prova, ou melhor, a infalível prova da vida; mas não é a imprescindível condição desta, nem a sua única prova. O neonato apnéico ou asfíxico não deixa de estar vivo pelo fato de não respirar. Mesmo sem a respiração, a vida pode manifestar-se por outros sinais,como sejam o movimento circulatório, as pulsações do coração, etc. É de notar-se, além disso, que a própria destruição da vida biológica do feto, no início do parto, com o rompimento do saco amniótico, já constitui homicídio...”7.
Na mesma direção, a dicção pretoriana:
“Antes do nascimento não há crime de homicídio, mas, sim, de aborto.Todavia, a morte do feto durante o parto configura o crime de homicídio, a menos que seja praticada pela própria mãe, sob a influência do estado puerperal, caso em que o crime a identificar-se será infanticídio”8.
Em sua homenagem, destaco mais uma vez a harmonia entre doutrina e jurisprudência. Siga os ensinamentos de Vannini:
“o produto da concepção adquire a individualidade que o torna objeto capaz do delito em exame, não já no instante em que adquire vida autônoma, com a separação do corpo da mãe, ou seja, no instante em que sua vida se torna completamente independente da vida da mãe, adquire-a quando, completado o processo fisiológico da gravidez, inicia-se seu desprendimento do útero materno”9.
Essa conclusão parece a mais acertada, isto por que, de acordo com o CPB, quando a mãe em estado puerperal, durante ou logo após o parto, mata o próprio filho, a conduta criminosa a ser reconhecida é aquela prevista no art. 122, infanticídio, que, verdade seja dita, é uma espécie (embora autônoma) privilegiadíssima de homicídio. Portanto, quando durante o parto o neonascente é exterminado por outra pessoa (excetuando-se a possibilidade de concurso com a mãe), o crime a ser imputado é o de homicídio.
No que concerne ao momento indicativo da morte há uma complicação a mais, pois com o avanço das técnicas médicas de reanimação e recuperação de quadros até então considerados irreversíveis, mudam-se os paradigmas legais ao sabor de ditas inovações e descobertas. Sobre o tema, a lição do professor lusitano Jorge de Figueredo Dias:
“A segunda das grandes questões relativas do tipo objectivo de ilícito do homicídio contende com a determinação do momento da morte, do momento a partir do qual cessa a tutela jurídico-penal dispensada por aquele tipo (...) A qualidade da pessoa para efeito do tipo de ilícito objetivo do homicídio termina com a morte: o cadáver não é mais pessoa para este efeito.O problema - até há poucas décadas praticamente desconhecido nos seus pressupostos teoréticos - tornou-se um dos mais debatidos na doutrina jurídico-penal por efeito da descoberta médico-científica das téncicas de reanimação, e exasperou-se nos últimos anos pela necessidade de obter órgãos do cadáver que permitam a transplantação”10.
De qualquer forma, para as perfeita caracterização do homicídio é indispensável a comprovação técnica de que houve morte, e isto se dará com os meios científicos próprios, adequados e reconhecidos à época dos exames.
À título de sugestão, assista ao filme “Duplo Risco” em que há uma condenação por homicídio baseada na comprovação circunstancial da morte (perícia indireta).
1.2.4. Sujeitos.
Considerando que o homicídio é crime comum, fácil constatar que pode ser praticado por qualquer pessoa, de forma isolada ou concorrente (concurso de agentes). Observe, porém, a advertência de Heleno Fragoso:
“Não se exige qualquer específica qualificação do sujeito ativo do crime, quando é praticado por ação. Quando praticado por omissão, deve o sujeito ativo ter as condições pessoais que o fazem juridicamente obrigado a impedir o resultado, como em todo crime comissivo por omissão”11.
Acompanhe agora o enxerto jurisprudencial:
“Acusado que, estando ao lado do filho menor, que portava revólver, nada fez para impedir que ele disparasse a arma, alvejando mortalmente a vítima com que havia brigado. Pronúncia mantida”12.
Quanto ao sujeito passivo, lembre-se que o art.121 refere-se a “alguém”, ou seja, qualquer pessoa, válidas aqui as observações que fizemos sobre o instante em que doutrina e jurisprudência consideram como aquele que marca o início da vida, incluídas também as considerações sobre o neonascente (item 1.2.2).
Veja, até mesmo por sadia curiosidade histórica, o que Olavo Oliveira, em seu clássico O delito de matar, deixou registrado sobre o sujeito passivo do homicídio:
“Alguém, isto é, a pessoa humana nascente ou nascida, com vida.
Nascente, encerrado o ciclo biológico da gravidez, na flagrância do parto, a têrmo ou prematuro, anterior ou posteriormente à expulsão do feto, mas ainda prêsa à mãe pelo cordão umbilical, através do qual passam os últimos elementos de nutrição ou de vida fetal e cujo corte muitas vêzes convém demorar.
Nascida, egressa do corpo - em que se gerou - e dêle completamente separada, pela ruptura do cordão umbelical, - circunstância que lhe propicia vida autônoma e própria, antes mesmo da respiração, como ocorre com os recém-nascidos apnéicos”13.
E se por acaso a vida exterminada fosse considerada inviável, ainda assim haveria homicídio?
Nelson Hungria responde:
“É indiferente, do mesmo modo, para a identificação do facinus singulare et nefarium, o grau de vitalidade da vítima: a morte violenta do recém-nascido inviável ou a supressão do minuto de vida que reste ao moribundo é homicídio (...) É suficiente a vida; não importa o grau da capacidade de viver. Igualmente não importam, para a existência do homicídio, o sexo, a raça, a nacionalidade, a casta, a condição ou valor social da vítima. Varão ou mulher, ariano ou judeu, parisiense ou zulu, brâmane ou pária, santo ou bandido, homem de gênio ou idiota, todos representam vidas humanas”14.
1.2.5. Conduta.
Sempre lembramos a singeleza com que o legislador tipificou o homicídio; a lei diz apenas: matar alguém.
Portanto, você logo conclui que são possíveis inúmeros meios de execução do delito, desde os mais óbvios até aqueles decorados com imensa, e às vezes cruel, sofisticação, como podemos conferir, por exemplo, assitindo ao filme “Os Sete Pecados Capitais”, película recheada de curiosidades que podem ser aproveitadas em nosso aprendizado.
É mister destacar que o homicídio pode ser praticado por ação ou por omissão. Neste último caso, como você bem sabe, tratar-se-ia de um crime comissivo por omissão (ou omissivo impróprio), sendo necessário que o omitente ostentasse o dever jurídico e a possibilidade de agir para evitar o resultado (art. 13, § 2º, CPB).
Já que falei do filme, veja o que ocorre com a penúltima vítima do assassino John Doe (protagonizado pelo ator Kevin Spacey). Ele a mantém em cárcere privado e não a alimenta. Ora, como a pessoa encarcerada estava sob a sua inteira responsabilidade e cuidados, criou-se para ele o dever jurídico de mantê-la viva; porém como pretendia matá-la por inanição, deixou deliberadamente de alimentá-la. Se conseguiu, não posso contar, senão estraga a surpresa do filme, mas eis um bom exemplo de homicídio (ou tentativa de homicídio) praticado por omissão. A doutrina costuma oferecer como exemplos: a mãe que deixa de amamentar o filho, o enfermeiro que se abstém de aplicar os remédios prescritos pelo médico, etc.
Quanto aos meios empregados para a prática do homicídio, é comum classificá-los em:
a) diretos ou indiretos–> diretos quando o instrumento utilizado para ofender é manejado pelo próprio agente contra a vítima (uso de armas de fogo, armas brancas etc.) e indiretos quando o agente se vale de um ataque por via oblíqua como, v. g., utilizar-se de um cão amestrado para o ataque fatal ou mesmo orientar um deficiente visual a seguir em frente quando na verdade encontra-se o cego à beira de um abismo.
b) materiais ou morais –> os meios materiais são os físicos (eletrochoque, p.ex.), químicos (venefício, p. ex.), mecânicos (estrangulamento, p.ex.) ou patológicos (contaminação por vírus letal, HIV, p. ex.), enquanto que os morais são os que abalam ou refletem na psique individual (sustos, ameaças graves,exploração drástica do sentimento de medo ou de qualquer outra fobia etc.). É famoso o exemplo retirado das fábulas de Monteiro Lobato em que um personagem extermina seu amigo apoplético contando-lhe uma piada que o faz rir até a morte. Ainda sobre os meios morais vale o parecer médico-legal:
“Um choque moral, uma brusca impressão pode ser causa de distúrbios mórbidos transitórios ou permanentes e, eventualmente, de morte; mas a experiência demonstra que, mais do que os estados de júbilo ou impressões de alegria, têm eficácia patogência os estados depressivos de dor e de angústia, as violentas impressões de medo e de terror. Raras vezes se adoece ou se morre por uma alegria ainda que violenta, mas não é difícil adoecer sob a ação de uma dor profunda ou de um grande susto”15.
Acerca da conduta, tenho mais um destaque a fazer, acompanhando agora a inteligência de Noronha:
“Podem os meios materiais associar-se aos morais,como no caso de o marido desalmado que, à custa de sevícias, maus-tratos etc., vai debilitando o organismo da esposa,tornando-a fraca e enferma, e acabando por lhe dar o golpe de misericórida com a falsa comunicação da morte do filho”16.
1.2.6. Consumação e tentativa.
Quando eu lhe falava sobre a objetividade jurídica do homicídio (item 1.2.1.) comentei sobre um filme, Duplo Risco, sugerindo que você o assistisse, pois trata de uma mulher que é condenada por ter matado o marido e jogado seu corpo ao mar, em razão do que o veredicto se baseou no que chamamos de perícia indireta, ou seja, como o corpo (ou seus despojos) não foi encontrado, a prova circunstancial serviu de arrimo para a condenação.
Observe, contudo, que esta trama é perfeitamente possível, porém excepcional, uma vez que sendo o homicídio crime material, sua consumação depende de prova inequívoca da morte, geralmente realizada através do exame de corpo de delito direto (autopsia).
Acompanhe o raciocínio:
“A lei torna o exame de corpo de delito obrigatório e imprescindível nos delitos de resultado, sob pena de não comprovação da materialidade delitiva e de nulidade da persecutio criminis. A regra preponderante é a da necessidade de realização do exame de corpo de delito direto, isto é, o incidente sobre os elementos sensíveis que perduraram conferindo uma existência à materialidade delitiva. Não obstante, pode acontecer de não ser possível a realização do exame direto, como se dá quando houverem desaparecido os vestígios da infração. Nestas hipóteses, deve ser realizado o exame de corpo de delito indireto, baseado na prova testemunhal”17.
Desse modo, você pode concluir que o homicídio consuma-se com a extinção da vida humana - “cessação do funcionamento cerebral, circulatório e respiratório”18 -, fato este que haverá de ser comprovado pela via pericial.
No que diz respeito à possibilidade de ocorrência da tentativa, por tratar-se de delito material, saiba que ela é perfeitamente possível, basta que, iniciada a execução do delito, o resultado morte não se produza em face de circunstâncias alheias à vontade do agente.
Há uma curiosidade que merece sua atenção: na tentativa de homicídio pode acontecer que a vítima não sofra nenhum tipo de lesão ou ofensa física (tentativa branca), hipótese que, por óbvio, dispensa a realização de exame de corpo de delito. Confira a jurisprudência a respeito:
“Em se tratando de homicídio tentado, o laudo de exame de corpo de delito não é essencial,pois o delito pode configurar-se mesmo que a vítima não sofra nenhum dano físico, no caso, tentativa branca”19.
Todavia, se há ofensa à integridade física da vítima, é necessária a perícia!
1.2.6. Elemento subjetivo.
Você lembra quando, na Faculdade, estudamos o dolo e a culpa? Pois saiba agora que o homicídio convive harmonicamente com as duas espécies de conformação subjetiva do delito. Sendo assim você pode encontrar variados exemplos onde aparecem o dolo direto ou eventual, a culpa consciente ou inconsciente, e até mesmo a preterintencionalidade.
Veja alguns mais interessantes retirados da melhor coletânea jurisprudencial20:
Homicídio doloso:
“É sobre os pressupostos de fato que se há de assentar o processo lógico através do qual se deduz o dolo distintivo do homicídio”21.
“É doloso e não simplesmente culposo o procedimento de quem conduz a vítima à parte mais profunda de um açude, abandonando-a ali e provocando sua morte, por não saber nadar”22.
Homicídio com dolo eventual:
“Acidentes de trânsito, em situações excepcionais,permitem se conclua pelo dolo eventual, quando há embriaguez, excesso de velocidade, trânsito em local proibido, desrespeito a sinal de preferência, no denominado ‘racha’, situações que perfeitamente se identificam com aquela em que se permite a adolescente de doze anos de idade, sem coordenação psicomotora e destreza, sem habilitação e manejo, dirigir em via pública de movimento, molhada, em local de curva, em velocidade acima do permitido para o local até para condições normais”23.
“Se o réu saca de seu revólver, retira dele algumas cápsulas, e dizendo estar brincando de ‘roleta russa’ dispara e atinge a vítima, assumiu o risco de causar o resultado morte, devendo responder pela prática do homicídio por dolo eventual”24.
Homicídio preterdoloso:
“Quanto ao elemento da previsibilidade do evento morte, não é necessário que se trate de fácil previsibilidade, que, aliás, pode ser até prova indiciária da voluntas occidendi. Basta que a superveniência do efeito letal não tenha sido incalculável ou não se apresente como puro caso fortuito”25.
Homicídio culposo:
“Age com culpa, na modalidade de imprudência, o agente que, ao manusear arma sem verificar se está descarregada, vem a dispará-la, atingindo pessoa que assistia,provocando-lhe a morte, pois evidente o rompimento do dever de cuidado objetivo,diante de um resultado plenamente previsível e caracterizador do injusto culposo”26.
“Comete o delito de homicídio culposo o engenheiro que, por não adotar as medidas protetivas necessárias e exigidas pelas normas técnicas, dá causa à queda de empregado do quinto andar de edifício em construção, vindo o funcionário a falecer em virtude do acidente, pois caracterizada a negligência do profissional”27.
“Age com culpa nas modalidades imperícia e negligência, respondendo por homicídio culposo, por dar causa a falecimento de feto, o médico plantonista que atende parturiente com dores no baixo ventre e, apesar de detectar que o feto está maduro, por exame ultra-sonográfico, não reconhece a urgência do parto, deixando a paciente aos cuidados da enfermagem, restando caracterizada a relação de causalidade entre a conduta culposa e o resultado morte”28.
1.2.8. Homicídio privilegiado.
“Simples é o crime em sua formulação básica (conteúdo mínimo), sem o acréscimo de circunstâncias que aumentem ou diminuam a responsabilidade penal. Quando se agrega a esta norma fundamental e simples circunstâncias que tornam o delito menos grave, diz-se que o crime é privilegiado; se, ao contrário, as circunstâncias aderentes ao tipo básico tornam a infração mais grave, o crime é qualificado”29.
Agora temos a oportunidade de estudar uma modalidade de homicídio que, diante de situações reconhecidas pela lei como demonstrativas de menor censura do agente - “sociabilidade dos motivos determinantes”30- , reclamam do Estado uma punição menos severa do que aquela prevista para o delito em sua fórmula básica.
De acordo com a lei, o homicídio será considerado privilegiado quando:
1) o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral;
2) o agente comete o crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.
Comecemos, portanto, pela motivação do agente, e o faço citando Hungria:
“Os motivos determinantes constituem, no direito penal moderno, a pedra de toque do crime. Não há crime gratuito ou sem motivo e é no motivo que reside a significação mesma do crime. O motivo é o ‘adjetivo’ do elemento moral do crime. É através do ‘porquê’ do crime, principalmente, que se pode rastrear a personalidade do criminoso, e identificar sua maior ou menor anti-sociabilidade”31.
Ora, já que o motivo é o adjetivo do elemento moral do delito, cumpre-nos perquirir o que se pode entender por relevante valor moral ou social.
Antes de qualquer outra consideração observe que tanto o valor moral quanto o social devem ser relevantes; portanto, motivações frívolas, tolas, fugazes não são albergadas pelo dispositivo, ainda quando repercutam no patrimônio moral ou social.
Destaco, ainda, que a relevância do motivo deve ser aferida objetivamente, de acordo com a consciência comum do corpo social, ou seja, em harmonia com os valores “aprovados pela consciência ética de um povo em determinado momento histórico”32.
Distinguem-se os valores morais e sociais.
Os primeiros decorrem de interesses individuais, que, não obstante serem particulares, merecem o apoio da moral comum. Os doutrinadores constantemente citam como exemplo a eutanásia (homicídio piedoso, misericordioso ou branco). Nela, o agente elimina a vida de sua vítima “com o escopo de poupá-la de intenso sofrimento e acentuada agonia, abreviando-lhe assim a existência. Anima-o, por via de conseqüência, o sentimento de comiseração e piedade”33.
Observe, todavia, que o homicídio branco não elide o caráter criminoso do fato, apenas privilegia a conduta ilícita.
São bastante comuns referências doutrinárias a doentes terminais que suplicam aos parentes mais próximos que lhes abreviem o sofrimento com a “morte libertadora”, contudo, lembro-me de outro exemplo que causa dúvida íntima sobre a (i)licitude da eutanásia em situações extremadas. Este exemplo colhi de um livro antigo e, infelizmente, o guardo apenas na memória, em razão do que citá-lo-ei desculpando-me pela falta de remição: em um treinamento militar no Chile, após um grave acidente de trem, um cadete ficou preso entre os escombros, totalmente imobilizado e impotente diante das chamas que dominavam a composição. Vendo a dramática cena e atendendo aos pedidos desesperados do militar, seu comandante o matou com um tiro certeiro no coração, poupando-lhe do terrível sofrimento de ser consumido em vida pelas chamas.
Mesmo diante de realidade tão cruel, a posição mais freqüente dos clássicos da doutrina jurídica brasileira pode ser resumida em famosa explanação de Hungria:
“Se é verdade que a honestidade do móvel e o consentimento expresso da vítima como que tiram ao homicídio seu caráter alarmante e anti-social, não é menos verdade que a pretendida impunibilidade da chamada eutanásia não passa de um desses paradoxos característicos da extrema liberdade intelectual da época atual (...) O homem, ainda que irremediavelmente acuado pela dor ou minado por um mal físico, não é precisamente a rês estropiada, que o campeiro abate. Repugna à razão e à consciência humanas que se possa confundir com a prática deliberada de um homicídio o nobre sentimento de solidariedade e abnegação que manda acudir os enfermos e os desgraçados. Além disso, não se pode olvidar que o sofrimento é um fator de elevação moral (...) O indivíduo que autoriza a própria morte não está, não pode estar na integridade de seu entendimento. O apêgo à vida é um sentimento tão forte, que o homem, no seu estado psíquico normal, prefere todas as dores e todos os calvários à mais suave das mortes (...) Ainda que a vida se transforme numa tortura de cada instante, há uma força imperiosa que nos traz chumbados a ela: é o institivo medo da morte (...) A licença para a eutanásia deve ser repelida, principalmente em nome do direito (...) Defender a eutanásia é, sem mais, nem menos, fazer a apologia de um crime. Não desmoralizemos a civilização contemporânea com o preconício do homicídio. A vida de cada homem, até seu último momento, é uma contribuição para a harmonia suprema do Universo e nenhum artifício humano,por isso mesmo, deve truncá-la.Não nos acumpliciemos com a Morte”34.
Todavia, o Anteprojeto de Reforma da Parte Especial de 1984 isentava de pena o “médico que, com o consentimento da vítima, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa a morte iminente e inevitável, atestada por outro médico”.
Vê-se logo que a discussão sobre a eutanásia ainda vai longe e merece, portanto, um estudo particularizado, em face do que receba estas considerações até aqui apresentadas como um incentivo para o aprofundamento da questão.
Além do homicídio piedoso você pode citar como exemplo de homicídio privilegiado por relevante valor moral todo aquele em que a conduta do agente for animada pela caridade, piedade, compaixão ou qualquer outro valor relevante e nobre35.
Passemos ao motivo de relevante valor social, ou seja, “aquele que atende aos interesses ou fins da vida coletiva”36. Tem se apontado como exemplos o do patriota que mata em nome do civismo, o do cidadão de bem que mata um perigoso mal-feitor que atormentava a comunidade etc. Veja a jurisprudência:
“Deve-se entender por motivo social, aquele que corresponde mais particularmente aos objetivos da coletividade; contudo, para que a figura privilegiada possa ser reconhecida, é necessário que o motivo seja realmente relevante, isto é, notável, importante, especialmente digno de apreço”37.
A segunda hipótese legal de homicídio privilegiado é aquela tratada classicamente como ímpeto da ira ou da justa dor (escusa da provocação) e conhecida entre nós como violenta emoção. Observe, porém, e nisso tenha bastante cuidado, que para se reconhecer o homicídio emocional é indispensável a coexistência de seus três requisitos, quais sejam:
1) estar o agente sob o domínio de violenta emoção;
2) ter sido injustamente provocado;
3) ter cometido o homicídio logo em seguida ao injusto ultraje.
Antes de analisarmos criteriosamente cada um dos requisitos enumerados, gostaria de lhe pedir (ou sugerir) que relembrasse o estudo realizado sobre a emoção e a paixão (item 3.3. do DPF - Parte Geral), oportunidade em que foi destacado que nem uma das duas excluem a imputabilidade penal, nos termos do art. 28 do CPB.
Note que a primeira condição legal exige que o agente esteja dominado (completamente absorvido), por uma emoção violenta, ou seja, é preciso que o sentimento aflitivo comprometa seriamente os freios inibitórios e a capacidade de reflexão do homicida; destarte, não basta que a emoção apenas o influencie, tal qual ocorre na causa atenuante genérica prevista no art. 65, III, c, última parte. Confira a jurisprudência:
“A simples existência de emoção por parte do acusado igualmente não basta a seu reconhecimento, pois não se pode outorgar privilégios aos irracíveis ou às pessoas que facilmente se deixam dominar pela cólera”38.
O segundo requisito clama por uma provocação injusta, que pode consistir em qualquer fato voluntário (comissivo ou omissivo) que se traduza como uma grave ofensa à sensibilidade moral do provocado, tais como: ameaças, vias de fato, zombarias, insinuações malévolas, apelidos vilipendiosos, revelação de segredos, indiretas mordazes, atos de emulação, comportamentos traiçoeiros, infidelidade etc. Note, contudo que “a injustiça da provocação deve ser apreciada objetivamente, isto é, não segundo a opinião de quem reage,mas segundo a opinião geral, sem se perder de vista, entretanto, a qualidade ou condição das pessoas dos contendores, seu nível de educação, seus legítimos melindres.Uma palavra que pode ofender a um homem de bem já não terá o mesmo efeito quando dirigida a um desclassificado. Por outro lado, não justifica o estado de ira a hiperestesia sentimental dos alfinins e mimosos. Faltará a objetividade da provocação, se esta não é suscetível de provocar a indignação de uma pessoa normal e de boa-fé”39.
Observe também que não é imprescindível ser a provocação endereçada diretamente contra o agente, pois a privilegiadora absorve as situações em que a injusta ofensa é lançada contra outra pessoa, ou coisa, mas, mesmo assim, gera profunda, injusta e incontrolável emoção negativa na pessoa que a testemunha. Imagine, por exemplo, um indivíduo que maltrata perversamente um animal na frente de um ardoroso defensor do meio ambiente.
É possível, ainda, que o agente suponha, por erro, estar sendo injustamente provocado,hipótese que reclama o reconhecimento da privilegiadora, em sendo o erro escusável.
Finalmente, determina a lei que a ação homicida se desenvolva logo após a injusta provocação, sem quaisquer intervalos, demoras ou de forma intercalada com outros afazeres, com o que estaria descaracterizado o estado de absoluta alteração emocional. Para Mirabete,
“Não se configura o privilégio quando se verifica um hiato, um intermezzo entre a provocação e o crime, que só será privilegiado se ocorrer enquanto durar a exasperação do agente”40.
Porém, em muitas ocasiões parece difícil, senão impossível, estabelecer o quanto perdura um sentimento extraordinariamente absorvente e violento, razão pela qual os Tribunais têm decidido com imperiosa cautela, veja:
“A expressão logo em seguida, constante do art.121, § 1º, do CP,tem que ser entendida à luz da psicologia moderna,como a emoção que estala em conseqüência de injusta provocação, logo depois de acontecida a injusta provocação, ou logo depois de renovada a mesma motivação emocional. Assim é que, segundo se sabe, as emoções podem ser revividas já que a memória não é puramente intelectiva, mas também retém a carga emocional. A renovação da mesma emoção, pode se dar simplesmente à vista do ofensor, justificando-se o mesmo estado emocional que ocorrera no primeiro momento, com toda a intensidade, ao ponto de autorizar a diminuição da responsabilidade criminal do agente”41.
A guisa de exemplo, você assistiu ao filme “O preço de um resgate”? Nele, o filho de um empresário milionário é seqüestrado e a família passa por todo aquele processo traumático das negociações. Ao final, depois de ter seu filho libertado, o pai da criança recebe em sua casa o policial que o teria salvado, no afã de recompensá-lo financeiramente. Quando a criança vê o policial entra em choque denunciando que, na verdade, o policial era o seqüestrador. Pois bem, neste caso, em tese, o pai, vendo-se diante daquele que levou tanto sofrimento para seu filho e para sua família, certamente que estaria albergado pelo instituto do homicídio privilegiado.
É claro que quem mata sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a uma injusta provocação da vítima, não o faz de forma insidiosa, à traição, de emboscada ou mediante dissimulação42, hipóteses que estariam a sugerir, ao revés, premeditação, vingança ou, simplesmente, intenção deliberada de aproveitar a ocasião para matar.
Assim, a mulher que ao chegar em casa encontra seu marido, na cama do casal, a traindo com sua melhor amiga, e, incontinenti, mata os dois, pode alegar o privilégio. Porém, se da traição ela tivesse conhecimento prévio e intencionalmente regressasse para casa de inopino, encontrando o casal e matando os amantes, a situação seria diametralmente oposta, pois ao invés do privilégio, incidiria uma ou mais qualificadoras. Aliás, esta hipótese (com inversão das personagens) foi muito bem explorada no filme brasileiro “Faca de dois gumes”. Vale a pena assistir!
1.2.8. Homicídio qualificado.
Do homicídio privilegiado passamos para o qualificado, entidade que representa espécie mais grave do delito de matar, em razão do que mereceu tratamento distinto e preceito sancionatório autônomo, além de passar a ser considerada, nos termos da Lei 8.930/1994, crime hediondo.
As circunstâncias que causam a “pior repercussão” do homicídio qualificado devem-se a alguns atributos de ordem subjetiva e outros de natureza objetiva. Assim, podemos ordená-las da seguinte forma:
Circunstâncias Subjetivas
Circunstâncias Objetivas
Motivo do crime - art. 121, § 2º, I e II.
Meios utilizados - art. 121, § 2º, III.
Finalidade do crime - art. 121, § 2º,V.
Modo de execução - art. 121, § 2º, IV.
E se agora, depois desta classificação, eu lhe perguntasse se um homicídio qualificado poderia ser ao mesmo tempo privilegiado, o que você me responderia?
Preste bem a atenção: o que privilegia o homicídio, como visto há pouco, são circunstâncias de cunho subjetivo (violenta emoção ou relevante valor social ou moral), portanto elas jamais poderiam conviver com as qualificadoras da mesma categoria, isto é, subjetivas (de forma profana: ou o elemento volitivo é nobre ou é desprezível).
Porém, nada impede que um homicídio privilegiado seja também qualificado por circunstâncias qualificadoras objetivas, v.g., a eutanásia praticada com o uso de veneno.
Certo é que nessa hipótese possível de co-existência entre a privilegiadora e a qualificadora objetiva, o homicídio resultante não deve ser considerado crime hediondo, até mesmo por que,
“(...) nos termos do art. 67 do CP, havendo concorrência de circunstâncias agravantes e atenuantes, dá-se preponderância às de natureza subjetiva, com fundamento nos motivos determinantes do crime. Extrai-se da disposição o princípio de que, em nossa legislação, havendo simultaneidade de circunstâncias, as subjetivas preponderam sobre as objetivas. Ora, o homicídio privilegiado, que apresenta circunstâncias subjetivas, só é compatível com as qualificadoras objetivas. Logo, se no caso concreto são reconhecidos ao mesmo tempo uma circunstância de privilégio e outra da forma qualificada, de natureza objetiva, aquela sobrepõe-se a esta, uma vez que o motivo determinante do crime tem preferência sobre a outra”43.
A partir de agora enfrentaremos cada uma das qualificadoras do homicídio. Mãos à obra:
1) mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe.
Se você tivesse que, para resumi-lo, selecionar uma só palavra deste inciso I, qual você destacaria?
Eu destaco “motivo”, e assim concluo que a primeira qualificadora é de índole subjetiva, inconciliável, por conseguinte, com as causas privilegiadoras.
Observe também que o legislador se utilizou de uma forma de interpretação analógica, quando elegeu a expressão “ou por outro motivo torpe”. Assim, qualquer motivação que se assemelhe à hipótese exemplificativa (mediante paga ou promessa de recompensa) serve para qualificar o delito.
Torpe é o motivo moralmente inaceitável, vil, abjeto, ignóbil, que merece reprovação e demonstra a insensibilidade ou deprovação moral do agente. Para Olavo Oliveira, “é a volição de natureza egoística ou antisocial, tradutora de sentimentos mesquinhos, baixos e vis, em choque frontal com as regras básicas da coexistência humana (...) São suas matizes a vingança, a cupidez, a atrocidade, o ódio, a luxúria, a vaidade criminal, a inveja, o despeito da imoralidade contrariada, a volúpia do mal e outros muitos impulsos anômalos dos nossos instintos sanguinários, egressos das profundezas do nosso eu, em momentos malsãos”44.
Quanto ao homicídio mercenário (aquele executado mediante paga ou promessa de recompensa) é preciso cuidado para enxergar que:
1) não é necessário que o executor receba efetivamente qualquer recompensa (paga), basta que execute o delito neste afã (aceitando a promessa);
2) a recompensa (ou a paga, conhecida pelos doutos como o preço do sangue) não precisa ser necessariamente em dinheiro, podendo consistir, por exemplo, em uma promoção no emprego ou na aquisição de um direito patrimonial45.
É importante destacar um ponto polêmico, qual seja: se sobre o mandante (a pessoa que paga ou promete a recompensa) também incide a qualificadora. Acompanhe atentamente a citação:
“o homicídio mercenário é crime bilateral, exigindo o concurso de duas pessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicídio seria ou não qualificado para o mandante, respondendo uns afirmativamente, argumentando que a paga e a promessa são elementares do delito, comunicando-se ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP, enquanto outros respondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora é punir a cobiça, o móvel do lucro, na maioria das vezes ausente naquele que manda matar. Essa orientação é mais certeira (...) Anote-se que a paga e a promessa de recompensa não constituem elementares do delito, e sim, circunstâncias qualificadoras. Seria sumamente injusto imputar a qualificadora ao mandante. Sobremais, trata-se de circunstância subjetiva (motivo de paga ou promessa de recompensa), sendo incomunicável ao partícipe”46.
Essa última posição merece, em meu juízo, a preferência, pois as circunstâncias que qualificam o homicídio são a cupidez aviltante e o desprezo cínico à vida humana traduzidos na conduta do executor, que, na maioria das vezes, sequer conhece a vítima, nada tendo, portanto, a alegar ou irrogar contra ela.
Observe também que em diversas oportunidades o que se tem verificado é que o mandante age impelido por uma motivação que poderia até mesmo privilegiar o homicídio; assim, por exemplo, o pai, homem de bem e trabalhador, que ainda absorto no sofrimento, contrata um sícaro para matar o estuprador homicida que há pouco violentara e matara sua filha ainda criança.
Não obstante, é razoavelmente fácil encontrar jurisprudência em sentido contrário:
“O chamado homicídio mercenário (mediante paga ou promessa de recompensa) caracteriza a qualificadora do motivo torpe, devendo ser responsabilizado por atitude tão baixa e repugnante o seu executor, bem como o mandante do crime”47.
2) por motivo fútil.
Lembro-me que, assistindo a um desses programas policiais, chamou minha atenção uma matéria informando que um irmão havia matado o outro por causa de um ovo frito. Veja quanta desproporcionalidade e frivolidade, tirar a vida de uma pessoa por causa de um parca porção de comida barata, disputada feroz e animalescamente! É exatamente para regular situações como essa que a lei prevê a qualificadora do motivo fútil, que pode ser entendido como aquele “pequeno demais para que na sua insignificância possa parecer capaz de explicar o crime que dele resulta. O que acontece é uma desconformidade revoltante entre a pequeneza da provocação e a grave reação criminosa que o sujeito lhe opõe”48.
Note que a futilidade do motivo deve ser aferida de acordo com o senso comum, atentando-se, porém, que em determinadas circunstâncias o que pode parecer de somenos importância para uns, cobre-se de relevo para outros. Há pessoas, por exemplo, que se incomodam demais com certos apelidos ou alcunhas, e quando provocadas tendem a uma reação mais viril, o que, em tese, poderia até sugerir uma discussão tendente a reconhecer, ao invés do homicídio qualificado, a modalidade privilegiada. Vide Hungria49.
Há uma tradicional posição doutrinária no sentido de que a ausência de qualquer razão para o homicídio exclui a qualificadora, pois não é possível falar de frivolidade (ou futilidade) da motivação sendo esta inexistente. No entanto, tem ganhado corpo o entendimento segundo o qual:
“A ausência de motivo equipara-se,para os devidos fins legais, ao motivo fútil, porquanto seria um contra-senso conceber que o legislador punisse com pena maior aquele que mata por futilidade, permitindo que o que age sem qualquer motivo receba sanção mais branda”50.
3) com emprego de veneno,fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum.
Passa o código a qualificar o crime de homicídio em razão dos meios empregados na prática delitiva, valendo-se mais uma vez da fórmula exemplificativa.
É mister, portanto, que o meio utilizado seja insidioso, cruel ou, ainda, que dele possa resultar perigo comum.
Meio insidioso é todo aquele que se esconde sob uma fraude, numa mortal dissimulação da verdadeira intenção homicida do agente: as armadilhas e os venenos físicos (v. g., vidro moído na comida), por exemplo.
Cruel, por sua vez, é o meio impregnado de barbárie, que potencializa de forma deplorável o padecimento da vítima. Para a jurisprudência, “caracteriza a qualificadora do meio cruel (...) o propósito deliberado a alcançado, de aumentar, desnecessária e sadicamente, o sofrimento do ofendido”51.
Por derradeiro, qualifica o homicídio a utilização de meios que possam causar perigo generalizado, extensivo a um indeterminado número de pessoas. Acompanhe:
“Para a configuração da qualificadora do art. 121, § 2º, III, do CP, há necessidade de que o agente tenha procurado meio capaz de resultar perigo comum, com o desencadear de forças dificilmente controláveis, tais como inundação, incêndio, explosão, envenenamento de uma fonte ou substâncias alimentícias, que possam atingir indeterminado número de pessoas”52.
Idêntica solução será aplicada quando, por exemplo, o agente dispara contra sua vítima em meio à multidão53. Mas, na casuística, o CP enumera:
Veneno –> eis o meio insidioso por excelência, pois o venefício somente pode ser considerado quando o emprego da substância letal tiver se dado sub-repticiamente. Se, todavia, a vítima tiver sido obrigada a ingerir o veneno, o delito passa a ser qualificado pela crueldade do meio e não pela singular utilização da substância.
Essa particularidade levou muitos doutrinadores de outrora a defender uma pitoresca relação entre o venefício e as mulheres. Para muitos, a clandestinidade seria típica da personalidade feminina. É óbvio que as conclusões estavam recheadas de preconceito machista hoje indefensáveis, mas a citação vale por pitoresca. Veja, portanto, quais as causas pelas quais Impallomeni identificava o venefício como crime das damas:
“a) desconhece o manejo das armas de fogo; b) é débil, não podendo recorrer à força; c) conhece menos o progresso da ciência e acredita, portanto, nestas suas coisas inexatas - a eficácia absoluta do veneno e o desaparecimento dos indícios; d) é a cozinheira, a despenseira e a enfermeira e, nessas situações, é mais fácil a prática do crime”54.
Qualquer reclamação, favor falar com Impallomeni!
Bem, retornando ao que interessa observe que qualquer substância mineral, animal ou vegetal, possível de ser introduzida no organismo vivo e que, mediante ação química, bioquímica ou mecânica, seja capaz de debilitar a saúde ou ceifar a vida, é considerada veneno.
Aliás, vale a pena citar a advertência de Capez:
“Não há uma conceituação exata do que seja substância venenosa, na medida em que certas substâncias, embora não consideradas veneno, tendo em vista sua inocuidade, são capazes de matar em virtude de certas condições da vítima”55.
Vou aproveitar a oportunidade e te sugerir uma interessante leitura que trata de veneno, gula e de um estranho pacto de vida e morte: O Clube dos Anjos56, de Luis Fernando Veríssimo. Atreva-se!
Fogo ou explosivo –> no Brasil ficou famoso o caso do índio Galdino, queimado vivo em Brasília, por um grupo de jovens e adolescentes, enquanto dormia sob um abrigo destinado à parada de ônibus. Portanto não é difícil para você aquilatar a maior reprovabilidade da conduta do homicida que se vale de um meio absolutamente cruel para obter a morte dolorosíssima da vítima, destacando-se, ainda, que a utilização do fogo ou de explosivo, via de regra, gera perigo generalizado, haja vista a dificuldade de se controlar a propagação do fogo e as conseqüências diretas ou indiretas das explosões.
Observe, todavia, a necessidade de que a intenção do agente seja provocar a morte da vítima, através do fogo ou da ação do explosivo, pois se o desejo era tão somente o de provocar um incêndio ou causar uma explosão, sem nenhum resquício de dolo (direto ou eventual) homicida, aplicável à espécie os arts. 250 (incêndio) e 251 (explosão), qualificados pelo evento morte (art. 258).
Asfixia –> é a supressão da respiração que dá causa a anoxemia, isto é, à falta de oxigenação do sangue, levando à morte. Pode ser mecânica ou tóxica. São exemplos de asfixia por causas mecânicas a esganadura, o enforcamento, o imprensamento, a submersão, a inumação etc. Já a asfixia tóxica pode ser causada com a utilização de gases, agentes bioquímicos etc.
De qualquer sorte, “a asfixia assume perspectiva singular no confronto das qualificadoras, porque se apresenta como uma forma cruel da prática do homicídio. No seu conceito está ínsito o sofrimento atroz da vítima”57.
Tortura –> se há pouco eu disse que o veneno era o meio insidioso por excelência, agora afirmo que a tortura é o exemplo mais drástico de meio cruel, pois através dela o agente proporciona a potencialização máxima da dor e o prolongamento bárbaro dos sofrimentos prévios à morte da desafortunada vítima.
Com efeito, desejoso da morte de alguém, vale-se o homicida dos meios mais perversos e ignominiosos para proporcionar extremo e sofrido padecimento, para somente depois desferir-lhe “o golpe de misericórdia”, circunstância que demonstra a selvageria do criminoso em se valer de meios desnecessários e absolutamente supérfluos ao seu desiderato homicida, somente para se comprazer com o suplício atroz e martirizante.
Note que a tortura pode ser física ou moral, mas, de qualquer sorte, deve ter sido eleita como meio para a prática homicida.
Ao revés, se a intenção do agente era somente a de torturar e, por culpa, dá ensejo à morte do paciente, a hipótese a ser reconhecida é o de tortura qualificada pelo evento morte (art. 1º, § 3º,da Lei nº. 9.455/97).
É possível, também, haver concurso de crimes entre homicídio e tortura. Imagine a seguinte situação: um policial captura um delinqüente e o tortura para obter informações acerca de um crime que lhe cabia investigar. Após isto, com receio de ser reconhecido pela vítima, decide matá-la. Veja que as condutas são animadas por desideratos distintos e que o evento morte não foi causado (nem culposamente) pelo anterior, tortura. Portanto, a solução a ser dada é o reconhecimento do concurso material de crimes.
4) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
Passa a lei a enumerar, ainda de forma exemplificativa, os modos de execução do homicídio, que o tornam qualificado, por impedir ou dificultar a defesa do ofendido, particularidade que torna o delito mais aviltante e, portanto, merecedor de censura exacerbada, até mesmo porque “são circunstâncias que levam à prática do crime com maior segurança para o agente, que se vale da boa-fé ou desprevenção da vítima, e revelam a covardia do autor”58.
A primeira modalidade citada é a traição, método sorrateiro, pérfido e desleal de se atacar a vítima, que normalmente prostra-se totalmente indefesa nas mãos de seu algoz. Geralmente, o homicidium proditorium é aquele cometido “mediante ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima, descuidada e confiante, antes de perceber o gesto criminoso. A forma típica de acometimento à traição é o que colhe a vítima de chofre, pelas costas”59. Silva Ferrão chegou a dizer, em 1857, que na traição, “o aleivoso é semelhante ao réptil, que chega em silêncio, sem denunciar sua ira, e sem dar lugar à defesa”60.
São exemplos de homicídio proditório: matar pessoa durante o sono, matar companheiro(a) aproveitando-se dos instantes de atividade sexual, etc.
Em segundo lugar aparece a qualificadora da emboscada, isto é, a espera planejada da vítima. É a tocaia dos sertões nordestinos, muito bem lembrada no recente filme Abril Despedaçado. Nela, a covardia ulula, pois, ocultado e protegido, o criminoso fica absolutamente à vontade para atingir e matar a incauta vítima, apanhada de surpresa e, portanto, potencialmente indefesa. É uma verdadeira e insidiosa armadilha utilizada em uma caçada humana!
A seguir surge a dissimulação, o disfarce, a fraude que esconde o desígnio homicida e, assim, impede ou enfraquece a reação do ofendido. Note que na dissimulação, o misse-èn-scene precede à conduta de matar. Age com dissimulação, o agente que, v. g., conquista a amizade e confiança da vítima para, no instante oportuno, matá-la. Neste caso, a dissimulação pode ser classificada como moral. Todavia, ela também pode ser material: o criminoso se faz passar por carteiro para se aproximar da vítima e executá-la.
5) para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime.
Estas são as últimas circunstâncias qualificadoras e, a bem da verdade, poderiam ter sido enquadradas no inciso I, pois traduzem torpeza de motivo.
Contudo, como “unem” os crimes em conexão probatória, uma vez que a motivação do homicídio liga-se sempre a interesse relacionado com outro delito, preferiu o legislador conferir-lhes tratamento particularizado.
Na primeira situação, o homicídio torna-se qualificado em face do agente dele ter se valido para garantir a execução de outro crime, v.g., mata o esposo para se apoderar sexualmente da mulher. Observe que nesta hipótese o homicídio antecede a prática do segundo delito; porém não precisa que este chegue a consumar-se, basta que o agente tenha matado com tal finalidade.
A seguir, o homicídio é perpetrado no afã de ocultar outro delito, como ocorre freqüentemente nos casos de estupro seguido de morte, em que o criminoso violenta a mulher e depois a mata para ocultar o primeiro crime.
Na terceira hipótese, o homicídio é o meio utilizado para garantir a impunidade em relação a outro crime. É só você se lembrar de diversas situações em que testemunhas são assassinadas antes de prestarem seus depoimentos ou das ocorrências em que bandidos matam policiais que lhe davam voz de prisão em face de práticas criminosas pretéritas. Confira a jurisprudência:
“O recorrente agiu para forrar-se à confrontação com a autoridade pública, a qual, pelos seus antecedentes criminais em investigação, sabia ser-lhe desvantajosa. Foi visando à impunidade de seus crimes que resistiu e atirou. A conexão conseqüencial, no plano psicológico do agente, é perfeita”61.
Por fim, qualifica o homicídio a finalidade de, com ele, o agente assegurar vantagem decorrente de outro crime, por exemplo: o co-autor de um roubo mata seu parceiro para evitar a divisão do produto do crime e com isto ficar com a totalidade dos bens e valores subtraídos.
Observe que para alguns a vantagem a que se refere a lei há de ser patrimonial, todavia o entendimento predominante é no sentido de que “o propósito do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem, patrimonial ou não, direta ou indireta, resultante de outro crime”62.
Imagine a seguinte situação: um inveterado golpista resolve se esconder em uma cidade do interior e nela se apaixona pela inacessível filha do Prefeito. Para conquistá-la, se faz passar por um rico empresário da capital e, assim, consegue dela se aproximar, conquistando-a. Marcado o casamento, os convites começam a ser distribuídos e as cidades vizinhas comentam o “casório”. Eis que um antigo parceiro do golpista, já antevendo a possibilidade de ganhos, descobriu a “jogada” e foi ao encontro de seu “colega”, encontrando-o no átrio da Igreja, logo ao final da cerimônia, ocasião em que passa a extorquir o noivo ameaçando contar toda a verdade. O noivo, acuado, chama seu amigo para um “cantinho” e o estrangula. Veja: ao se casar fazendo-se passar por outra pessoa, o golpista cometeu o crime previsto no art. 236 (induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento) e para garantir as vantagens decorrentes deste primeiro crime, inclusive as de cunho moral (desposar a linda noiva, que até então não havia permitido qualquer intimidade) praticou um homicídio qualificado, nos termos do art. 121, § 2º, IV, do CP.
Agora, antes de estudarmos o homicídio culposo, resta-me falar sobre a nova previsão legal atinente ao homicídio doloso, consubstanciada na causa especial de aumento da pena (majorante) introduzida no Código Penal através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mediante acréscimo ao § 4º, do art. 121.
Com efeito, determina a lei que a sanção penal seja aumentada de 1/3, quando o homicídio doloso (simples, privilegiado ou qualificado) for praticado contra menor de 14 anos, devendo ser considerado para tanto o momento da ação, ainda quando o resultado se projete para data em que o limite etário já tenha sido ultrapassado.
Note que a providência legislativa feriu severamente a boa técnica legislativa, pois o prefalado § 4º cuidava somente das causas especiais de aumento da pena no homicídio culposo, contudo ...!
1.2.10. Homicídio culposo.
São elementos do delito culposo: 1) a prática de uma conduta finalisticamente dirigida a um resultado permitido; 2) a inobservância do dever de cuidado objetivo; 3) e a produção de um resultado típico, não querido e previsível.
Também chamei sua atenção para a excepcionalidade da incriminação do ilícito culposo, isto porque trata-se, na verdade, de (...)
“(...) uma ingerência de política criminal, que autoriza a incriminação do delito culposo somente quando o comportamento for assaz perigoso à incolumidade social ou quando o bem jurídico ‘violado/ameaçado’ for merecedor de especial tutela do Estado”63.
Fácil concluir, portanto, que em razão da relevância do bem jurídico focado no homicídio, seria natural que o legislador o tivesse previsto na forma culposa, como efetivamente o fez no art.121, § 3º.
Assim, você pode dizer que o homicídio culposo é aquele em que o evento morte, capaz de ser previsto, e embora não desejado pelo agente, por ele é produzido em conseqüência de um comportamento desobediente ao dever de cuidado objetivo, violação esta que é marcada pela imperícia, imprudência ou negligência.
Essa conduta do homicida por culpa pode ser positiva ou negativa, isto é, viola o dever de cuidado tanto o pai que manuseia sua arma de fogo na frente das crianças, vindo a dispará-la e atingindo-as (imprudente), quanto aquele que não fecha a gaveta em que guarda o revólver, permitindo com isso que os infantes se apoderem do armamento (negligente) e um, brincando, atire no outro.
De se ver, também, que não há possibilidade de tentativa em homicídio culposo, isto porque,
“todo crime culposo é delito material,vinculando-se à ação, de maneira indissolúvel, a produção do resultado. No delito de estirpe culposa, a ação é consciente, desejada ou querida, enquanto o evento projeta-se no campo do involuntário, não alcançado pela vontade do agente. Nessa conjuntura, se tentativa é o crime que, entrado na execução, não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do sujeito ativo, como falar-se em conatus, no delito culposo se não era ele desejado e querido em sua plenitude, se não o abrangia inteiramente o querer interno do agente?”64.
Por outro lado, é muito comum que se reconheça nos homicídios culposos o concurso de crimes, v.g., o técnico de som que ao montar um palanque no qual seria realizado um comício deixa de isolar um cabo de alta tensão que vem a gerar enorme descarga elétrica atingindo e matando vários expectadores.
Observe com atenção que a primeira parte, do § 4º, do art. 121, prevê causas especiais de aumento da pena no homicídio culposo, quais sejam:
1) quando o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício;
2) se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar a prisão em flagrante.
Na primeira hipótese o agente tem o exato conhecimento da habilidade exigida mas age com leviandade, ignorando-a e, assim, dando azo ao evento morte. Note que “esta majorante não se confunde com a imperícia (modalidade de culpa), que indica a inaptidão, inabilidade profissional ou insuficiência de capacidade técnica. Nesta majorante, o agente conhece a regra técnica, mas não a observa: haveria uma displicência a respeito da regra técnica”65.
Também agrava a reprovabilidade do homicida culposo o fato d’ele deixar de prestar imediato socorro à vítima, circunstância que, em geral, denota sua falta de caridade, sua indiferença e seu desprezo pela vida humana66. Todavia, nas ocasiões em que o agente omite a prestação de socorro para garantir a própria integridade física (receio de represálias, por exemplo), não há como defender-se a incidência da majorante.
Discute-se em doutrina se o socorro prestado por terceira pessoa elide o aumento da pena. Para alguns, sim67. Para outros, dentre os quais me incluo, não, uma vez que “a majorante tem natureza subjetiva, pretendendo punir mais severamente o agente que, após realizar uma conduta culposa, dolosamente omite socorro (...) É esse comportamento doloso, consistente no descaso para a vida alheia, que a lei pretende punir mais severamente, de modo que o desvalor subjetivo da conduta (descaso para com a vida alheia) não é diminuído pela atuação de terceiros que venham à atender à vítima”68.
Note bem: essa majoração da pena em razão da omissão em socorrer a vítima, só se aplica obviamente quando o omitente for a mesma pessoa que provocou o resultado culposo. Ao revés, se um outro indivíduo deixa de socorrer, estamos diante, em tese, da prática do crime previsto no art. 135, omissão de socorro.
Agora a lei é redundante, pois prevê o aumento da pena quando o agente não procura diminuir as conseqüências do seu ato, comportamento que se enquadra perfeitamente na previsão anterior de omissão de socorro, a não ser que o legislador tenha pretendido se referir, inclusive, a outros efeitos indiretos da conduta culposa, como, por exemplo, o amparo aos familiares da vítima, hipótese que me parece improvável.
Por fim, incrementa a sanção penal a fuga do agente para evitar a prisão em flagrante delito, cânone legal inspirado pelo histórico e sangrento drama das milhares de vidas perdidas em acidentes automobilísticos, cuja dinâmica dos fatos tem nas perícias o ponto alto da apuração de responsabilidades. Todavia, ainda que persista a majorante para os homicídios culposos em geral, é mister destacar que os delitos culposos de trânsito (homicídio, lesão corporal etc.) encontram-se, desde 1997, sujeitos aos ditames do Código de Trânsito Brasileiro, que prevê inclusive incriminação autônoma para a fuga do local do acidente (art. 305).
Aliás, no que diz respeito à particular tipificação dos delitos culposos de trânsito, a doutrina tem se manifestado a favor da opção legislativa, argumentado que:
“A ação que tipifica o crime culposo no trânsito de veículo automotor é consideravelmente mais desvaliosa do que as outras condutas produtoras de crimes culposos no quotidiano social. O maior desvalor das ações ‘descuidadas’ praticadas no volante está diretamente relacionado à quantidade produzida de resultados desvaliosos. O veículo transformou-se em instrumento de vazão da agressividade humana, de prepotência, de desequilíbrio emocional, que se extravasam nas pistas de rolamento”69.
Veja também, a título de curiosidade, as palavras de Hungria, ainda nos idos de 1955, e verifique como demoramos a acompanhar um raciocínio jurídico de vanguarda, pois a sugestão final de adequação da lei somente foi atendida após praticamente 5 décadas:
“O tráfego de veículos automotores fêz-se, na atualidade, uma causa quotidiana e alarmante de eventos lesivos contra a pessoa. A vida intensa criou a necessidade de vencer as distâncias no mais breve tempo possível. A velocidade dos transportes é uma injunção do século. Na competição dos negócios e interêsses, não há lugar para os lerdos. Dormientibus non sucurrit fortuna. O êxito é de quem chega primeiro. Já não se pode viver à câmara lenta, como no tempo do carro de bois ou do fiacre tirado por pilecas sonolentas. Hoje, o automóvel, devorador insaciável de distâncias, incorporou-se tão visceralmente às utilidades práticas, que sua supressão seria como a parada da circulação sangüínea no corpo humano. Mas o automóvel, no vaivém das correrias, pede caro pelo seu serviço. Com a freqüência dos funestos acidentes que provoca, quase se poderia dizer que êle passa matando, esmagando, estropiando. São assustadoras as estatísticas dos sinistros automobilísticos. O automóvel tornou-se um autêntico flagelo: mata mais do que a peste branca ou a peste céltica. Vem daí, que em todos os países, tem sido promulgada uma legislação especialmente rigorosa, no sentido de prevenção e repressão dos crimes de automóvel”70 (destaquei).
1.2.11. Perdão judicial.
O derradeiro dispositivo inserto no art. 121 trata de uma causa extintiva da punibilidade fundada na total inutilidade e desproporcionalidade da pena em face das graves conseqüências que o homicídio culposo acarreta para o próprio agente, fazendo com que a lei preveja, de forma excepcional, o perdão judicial.
Observe que não basta, por exemplo, que vítima e homicida sejam parentes ou amigos, é mister demonstrar o sério abalo e transtorno que o evento morte causou ao agente. Até mesmo porque, “a aplicação do perdão judicial deve ser feita com prudência e cuidado para que não se transforme, contra seu próprio espírito, em instrumento de impunidade e, portanto, de injustiça”71.
Acompanhe algumas decisões do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:
“É possível a concessão do perdão judicial, previsto no art. 121, § 5º, do CP, ao responsável pelo homicídio culposo de sua filha de apenas 7 anos de idade,vitimada por disparo de arma de fogo levada a efeito pelo seu outro filho de apenas 5 anos, pois as conseqüências da infração atingiram o réu de forma tão grave que a sanção se torna desnecessária”72.
“Para que seja concedido o perdão judicial na hipótese de homicídio culposo, é indispensável que o acusado forneça as provas que conduzam à certeza de que a morte da vítima o atingiu com gravidade suficiente para tornar a sanção desnecessária”73.
1.2.12. Ação penal.
É sempre ação penal pública incondicionada.
1.3. Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio.
1.3.1. Introdução.
Este delito que passamos a estudar - induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio - reúne uma série de curiosidades que tornam a análise um tanto mais empolgante.
Em primeiro lugar devo lembrar-lhe de que, normalmente, as leis penais não punem o suicida74, isto por razões óbvias, pois no caso do crime consumado, não haveria sentido nenhum em pretender-se punir um cadáver; por outro lado, na hipótese de tentativa, a punição só serviria para incrementar ainda mais a angústia e o desespero do agente.
No entanto, são vários os exemplos históricos de legislações que previam severas punições ao desertor da vida, sanções que eram aplicadas ora contra os seus despojos, ora em desfavor de seus herdeiros. Acompanhe alguns deles:
1) na Grécia antiga, se não precedia licença do Senado para a auto-eliminação, era o suicida declarado infame (atimos), não podia ter sepultura regular e era-lhe cortada a mão direita, para ser enterrada à parte, isto tudo por haver cometido uma injustiça contra o Estado;
2) Tarquínio Soberbo, na velha Roma, ordenou que os cadáveres dos suicidas fossem crucificados e abandonados às aves e animais selvagens, no afã de combater uma “epidemia de suicídios”;
3) o direito canônico equiparou o suicídio ao homicídio, renegando ao suicida a sepultura cristã e, em alguns casos, estatuindo outras sanções, tais como as mutilações no cadáver e o confisco de bens.
Ora, em segundo plano é de se perguntar por que então a lei pune o induzimento, a instigação ou o auxílio ao suicídio?
Ocorre que, apesar de ter-se optado pela não incriminação da conduta individual e singular do suicida, o Direito reconhece no auto-extermínio um fato nocivo aos interesses sociais, aviltante à moral e à ética do Estado, além do que, você bem sabe, a vida humana é bem jurídico indisponível. Assim, se por razões de política criminal não aproveita ao Direito punir o suicida, sobra-lhe, todavia interesse em sancionar a pessoa que, moral ou materialmente, presta-lhe auxílio!
Portanto, “razões de sobejo existem para a incriminação do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (...) O direito vê no suicídio um fato imoral e socialmente danoso, o qual cessa de ser penalmente indiferente, quando a causá-lo concorre, junto com a atividade do sujeito principal, uma outra força individual estranha. Este concurso de energia, destinado a produzir um dano moral e social, como o suicídio, constitui exatamente aquela relação entre pessoas que determina a intervenção preventivo-repressiva do direito contra o terceiro estranho, do qual exclusivamente provém o elemento que faz sair o fato individual da esfera íntima do suicida”75.
1.3.2. Objetividade jurídica.
É lógico que a objetividade jurídica visada é preservação da vida humana. Observe, com Hungria, que:
“O direito de viver não é um direito sobre a vida, mas à vida, no sentido de correlativo da obrigação de que os outros homens respeitem a nossa vida (...) a vida de cada homem diz com a própria existência da sociedade e representa uma função social”76.
1.3.3. Sujeitos.
O art. 122 dispõe sobre um crime dito comum, isto é, qualquer pessoa pode praticá-lo, basta que reúna capacidade para induzir, instigar ou auxiliar outro indivíduo a matar-se.
De igual sorte, qualquer pessoa pode ser sujeito passivo deste crime, sendo indispensável, outrossim, que possua entendimento e aptidão para determinar seu comportamento, isto é, em sendo a vítima desnudada de compreensão sobre o suicídio, o delito a ser reconhecido é o homicídio (autoria mediata), v. g., alguém instiga uma pessoa inteiramente entorpecida a pular da sacada de um apartamento, sugerindo-lhe que ela irá voar tal e qual um super-herói.
Observe ainda que o induzimento, a instigação ou o auxílio devem ser dirigidos à pessoa específica, não configurando o delito “quando se trata de induções ou instigações de caráter geral e indeterminado. Não há crime quando, por exemplo, um autor de obra literária leva leitores ao suicídio, pela influência das idéias de suas personagens, como ocorreu após a publicação de Werther, de Goethe, e René, de Chateaubriand”77.
1.3.4. Conduta.
O tipo penal contempla três modalidades de conduta - induzir, instigar ou auxiliar -, porém isto não quer dizer que se o agente a um só tempo induz, instiga e auxilia responde por três crimes, apenas, é óbvio, assim demonstra a elevada intensidade do dolo, circunstância esta que haverá de ser considerada na primeira fase da dosimetria penal (art. 59, CP).
No mesmo sentido, Bitencourt:
“Trata-se de um tipo penal de conteúdo variado, isto é, ainda que o agente pratique, cumulativamente, todas as condutas descritas nos verbos nucleares, em relação à mesma vítima, praticará um mesmo crime”78.
Induzir o suicídio significa criar na consciência do ofendido a idéia, até então inexistente, de dar cabo à própria vida. “Induz outrem a suicidar-se aquele que faz nascer em seu espírito a idéia do suicídio, convencendo-o a realizá-la. Haverá evidentemente do lado de quem é impelido a matar-se condições ocasionais ou permanentes, de ordem patológica, moral, social, que possam justificar aos seus olhos o ato com o qual põe fim à vida. Mas não é espontaneamente que surge no espírito do suicida a idéia de matar-se. É o estranho que a traz e a faz germinar naquele terreno apropriado”79.
Já na instigação o agente não cria, mas reforça, açula, consolida no indivíduo a vontade pré-concebida de matar-se; no linguajar comum, “dá uma força moral” ao suicida, influenciando-o através de palavras, sugestões e estímulos variados que destroem definitivamente as hesitações e claudicâncias que, porventura, ainda o mantivessem preso ao desejo de viver.
Por fim, trata a lei do auxílio, ou seja, da ajuda física ou material prestada pelo agente ao suicida, como por exemplo, emprestar a arma, ceder a corda, ficar de sentinela impedindo que outrem evite o auto-extermínio, prestar informações sobre o uso ou manejo do armamento etc.
Note, porém, que a atividade auxiliar deve ser meramente secundária (acessória), para não se transformar em ato executório de homicídio. Assim, se o agente não se contenta somente em ceder o veneno, v. g., mas também o aplica na veia da vítima, passa a ser considerado homicida.
Há um ponto muito interessante que diz respeito à possibilidade de o auxílio ser prestado de forma omissiva. Sobre o tema, três são as posições doutrinárias:
1ª) a conduta auxiliar há de ser necessariamente comissiva;
2ª) a conduta auxiliar pode ser positiva (comissão) ou negativa (omissão);
3ª) somente quando existir o dever jurídico e a possibilidade de evitar o resultado (nexo causal normativo dos crimes omissivos impróprios - art. 13, § 2º, do CP), a omissão pode ser considerada típica nos moldes do art. 122.
De minha parte confesso que sempre entendi que o auxílio por omissão era cabível nas hipóteses em que havia o dever jurídico e a possibilidade prática de se evitar o resultado.
Contudo, após analisar com mais cautela, seguindo as luzes de Capez80, cheguei à conclusão de que nestas situações a conduta a ser imputada ao omitente é, na verdade, homicídio; senão, veja os exemplos ofertados pela doutrina: o pai que permite que o filho se mate; o diretor da prisão que se omite diante da greve de fome do preso que morre por inanição; o enfermeiro que, a par do propósito suicida do paciente, não lhe tira a arma das mãos etc.
Ora, em absolutamente todos os exemplos narrados se, além do dever jurídico, existia a possibilidade de ação para evitar o resultado, o juízo hipotético de eliminação leva ao homicídio e não ao auxílio ao suicídio, isto é, você perguntaria: se o diretor da prisão não tivesse se omitido o preso teria morrido? Como a resposta é negativa, e o diretor tinha por lei a obrigação de impedir o resultado, responde ele pelo resultado morte, pois se aperfeiçoou o nexo causal normativo próprio dos delitos comissivos por omissão.
Em assim sendo, passo a advogar a primeira linha de raciocínio acima exposta, citando, em abono, o que há de melhor em doutrina:
“O médico, na hipótese de greve de fome de prisioneiros, tem o dever legal de velar pela saúde e, por extensão, pela vida dos grevistas. Há determinado momento em que a não-intervenção, com alimentação, permitirá que o grevista sofra lesões irreversíveis. Nesse momento, a intervenção médica estará protegida pelo disposto no art. 146, § 3º, do CP. Ademais, o médico está na posição de garantidor e, pelo nosso direito, conjugando-se a previsão do dispositivo que acabamos de citar com a prescrição do art. 13, responderá pela morte do grevista, na forma omissiva imprópria”81.
Cito, de igual sorte, a posição jurisprudencial:
“Não há auxílio por omissão.Prestar auxílio é sempre conduta comissiva. A expressão usada no núcleo do tipo (a prestar auxílio para que o faça) do art. 122 do CP impede a admissão do auxílio omissivo”82.
“Não se concebe a prestação de auxílio ao suicídio por omissão, em virtude de não se puder ver assistência material na simples inépcia, na conduta puramente negativa, ou de quem nada faz...83”.
1.3.5. Consumação e tentativa.
Eis um ponto interessante e que merece, de sua parte, especial esmero na apreciação.
Desde logo é fácil perceber que o crime em estudo é um daqueles classificados como delito material, ou seja, produz uma “modificação no mundo exterior”; por conseguinte, dar-se-ia por consumado quando referida alteração se verificasse na totalidade de seus elementos. Assim, singelamente, poder-se-ia dizer que a consumação se daria com a ocorrência do evento morte.
Contudo, logo no preceito-sanção aparece uma novidade, qual seja, há uma textual indicação do resultado censurado pela norma. Observe:
“ Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”.
Em assim sendo, somente é relevante a conduta do indutor, instigador ou auxiliar, quando sobrevier um dos dois resultados enumerados pela lei (morte ou lesão corporal grave), cabendo-nos, portanto, identificar qual a natureza jurídica desta exigência legal.
Para alguns, dentre os quais se destaca Hungria, trata-se de condição de punibilidade, isto é,“o crime se consuma com a ação ou a omissão descrita no preceito legal, mas a punição fica subordinada ao advento (concomitante ou sucessivo) de um certo resultado de dano ou a um quid pluris extrínseco”84.
Adotando outro viés, entende a maior parte da doutrina que o evento morte ou lesão corporal integra o próprio tipo na condição de elementar, devendo, portanto, mobiliar o dolo do agente. Em conseqüência,“a participação em suicídio do qual não resulte lesão grave ou morte é fato atípico, sem enquadramento no modelo incriminador. Falta-lhe subsunção, correspondência formal. O problema não é de punibilidade, mas de atipicidade”85.
Diante disso tudo você pode concluir que:
1) a consumação do delito previsto no art. 122 se dá quando a vítima morre ou se lesiona gravemente;
2) não há espaço para o reconhecimento da forma tentada, pois se a vítima, v. g., salta, após ter sido induzida a tanto, do 3º andar de um edifício e sofre apenas uma lesão leve, o fato em relação ao agente indutor é atípico.
No entanto, para outros autores, três são as possibilidades, a saber:
a) com a morte, dá-se a consumação;
b) com as lesões corporais graves, ocorre a tentativa qualificada;
c) qualquer outro resultado é atípico86.
1.3.6. Elemento subjetivo.
É a vontade livre e consciente de induzir, instigar ou auxiliar outrem ao auto-extermínio. Veja que somente há previsão legal na modalidade dolosa, abrangendo o dolo direto e o eventual, excluída, portanto qualquer hipótese de tipicidade do comportamento culposo.
Como bem dito por Magalhães Noronha, o dolo deste delito consubstancia-se na “vontade de conseguir a morte de alguém, não pelas próprias mãos, mas pelas dele, o que constitui a essência do crime”87.
Quanto ao dolo eventual, é mister que o agente tenha a representação do evento típico e o aceite, embora não o queira direta ou prioritariamente, como nas hipóteses em que o agente inflige continuamente sérios maus-tratos em desfavor de pessoa portadora de síndrome depressiva, com a intenção de provocar-lhe grave sofrimento e, logicamente, prevendo e acolhendo como possível a prática suicída. Sobre a matéria, diz Olavo Oliveira:
“É possível na espécie o dolo eventual, quando o agente aceita conscientemente o risco de produzir suicídio alheio, equivalendo o seu proceder a um induzimento à prática da autoquiria: o pai expulsa de casa a filha, não obstante ter fundadas razões para saber que a desgraçada se mataria, em represália ao seu castigo, em face das declarações nesse sentido”88.
1.3.7. Formas qualificadas.
De acordo com o parágrafo único do art. 122, o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio terá sua pena duplicada quando:
1) o crime for cometido por motivo egoístico –> nesta hipótese a motivação do agente, reveladora de sua índole egocêntrica e demonstrativa de seu grave desprezo à vida humana, serve de critério para o incremento da sanção penal, sendo certo que a finalidade mesquinha alberga qualquer espécie de vantagem pessoal que aproveite ao criminoso; assim, terá a pena agravada tanto aquele que instiga alguém a matar-se para ocupar sua posição privilegiada no emprego, quanto o outro que auxilia seu rival a suicidar-se para, com isto, conquistar definitivamente a mulher desejada, outrora “dividida” entre ambos.
2) se a vítima for menor ou tiver diminuída a capacidade de resistência –> observe que a lei preocupa-se com a maior gravidade da conduta lançada contra uma pessoa débil em seus mecanismos de defesa (doentes, velhos, insanos etc.), conferindo especial destaque ao menor de idade que, de acordo com a melhor doutrina, deve ser considerado como aquele que estiver dentro da faixa dos 14 aos 18 anos de idade.
Nesta indicação genérica, observe bem que a norma fala em capacidade de resistência diminuída, isto é, a vítima ainda possui alguns mecanismos de defesa, mesmo que fragilizados. Se, por acaso, a pessoa vitimada estiver completamente destituída de tais ferramentas de proteção, o delito a ser reconhecido é o homicídio. Como diria Hungria:
“É preciso, para o reconhecimento da agravante, que o induzido ou auxiliado não seja um instrumento passivo, um súcubo à inteira mercê de um íncubo, pois, em tal caso, como diz Alimena, o suicida não é mais do que a longa manus do agente, e deve ser reconhecido não o crime de participação em suicídio, mas um autêntico homicídio”89.
No que concerne especificamente ao menor de idade, “a nossa lei não indica qual a menoridade a que ela se refere. Funda-se essa agravante na menor capacidade de resistência moral da vítima à criação ou estímulo do propósito suicida por parte do agente. Segundo a corrente doutrinária adotada por Damásio E. de Jesus, que é a mais aceita, a faixa etária que visa a lei compreende o maior de 14 e o menor de 18 (...) Ressalve-se que tal critério não é absoluto, nem sempre incidindo a agravante se a vítima for menor de 18 anos, na medida em que esta pode ser dotada de maturidade suficiente, fato que afastaria o agravamento da pena”90.
1.3.8. Ação penal.
É sempre ação penal pública incondicionada.
1.4. Infanticídio.
1.4.1. Noções iniciais.
Agora você terá a oportunidade de constatar como as normas de direito se acham inseridas em um constante processo de renovação, a par das evoluções do pensamento e do sentir humanos. Assim, podemos testemunhar as profundas mudanças ocorridas, por exemplo, no tratamento penal conferido ao delito de infanticídio, que já foi, outrora, considerado como um crime extremamente atroz: no direito romano de Justiniano o infanticida era cosido em um saco com um cão, um galo, uma víbora e uma macaca, e lançado ao mar ou ao rio; já na Idade Média, na Ordenação penal de Carlos V (Carolina), a pena consistia em dilaceramento com tenazes ardentes, empalamento e inumação (enterro) com o condenado vivo.
Todavia, a partir do século XVIII o crime passou a ser observado com “outros olhos”, pois ao invés de se dar destaque à aparente crueldade e perversidade na ocisão do neonato ou neonascente, passou-se a considerar que, na verdade, o infanticídio mais se aproxima de uma forma privilegiada de homicídio.
Tal raciocínio foi construído a partir de duas teses distintas.
A primeira, de cunho estritamente psicológico, defende o tratamento penal atenuado ao infanticida sustentando que a motivação do criminoso estaria albergada por preceitos honoríficos. Cita como exemplo maior o caso da mulher que dá a luz a uma criança concebida “ilegitimamente” e que, para manter a sua reputação de “mulher honesta” extermina o recém-nascido. Hungria, referindo-se ao tema, escreveu:
“o obsedante receio da descoberta de seu erro, que a sociedade não perdoa, cria na mulher engravidada fora do matrimônio (ou por indissimulável adultério), e que ainda não perdeu o pudor, um verdadeiro estado de angústia, em que, gradativamente, se lhe vai apagando o próprio instinto de piedade para com o fruto de seu amor ilegítimo”91.
É claro que os comentários geralmente estão contaminados com idéias preconceituosas, principalmente em detrimento da verdadeira condição das mulheres como protagonistas vitoriosas da história. Veja, a guisa de curiosidade, descrição de Michele Longo sobre o sofrimento da mulher engravidada ilegitimamente:
“Um abismo de trevas, de tempestade de inescrutáveis mistérios se escarva em sua alma: a piedade, até a piedade lhe é negada, porque é vergonha pedi-la, é desonra merecê-la e esperá-la é sinal de maior aviltamento da dignidade e do decoro pessoal. E o dia chega e aproxima-se a hora: à agitação sucede o turbamento e o afanar-se inconsciente, qual o do náufrago à procura, na desesperada agonia, de uma tábua de salvação. Afinal a surpresa do parto tira à desventurada o último raio de luz mental, o último baluarte de salvação, a esperança de um remédio imprevisto; e ela, em um momento reativo de conservação instintiva, é levada, automaticamente, a fazer desaparecer a prova da vergonha, da miséria, da desonra ... e o infanticídio se consuma!”92.
Certo é que em nosso atual ambiente social já não causa escândalo uma mulher solteira engravidar e assumir sozinha a educação da prole, realidade que deve ser considerada nos casos submetidos ao olhar perspicaz do operador do direito.
Por outro viés surgem situações nitidamente constrangedoras e excepcionais neste caleidoscópio que é a vida. Lembro-me de um caso, não de infanticídio, mas de abandono de recém-nascido (art. 134), em que uma religiosa, após ter escondido a gravidez “espúria”, abandonou seu filho neonato no interior de uma Igreja, querendo com isto, esconder o “fato desonroso”.
A segunda tese conducente ao reconhecimento do infanticídio como modalidade de crime menos grave do que o homicídio baseia-se em um critério fisio-psicológico, ou seja, considera que o estado gravídico, principalmente o “padecer no paraíso” do parto pode vir a causar sérias alterações psíquicas na mulher, culminando com o comprometimento sério de sua capacidade de comportamento e entendimento. É exatamente esta teoria a adotada pelo legislador penal brasileiro de 1940, ao exigir como elementar do tipo que a conduta infanticida se dê, “sob a influência do estado puerperal”, tema que ocupara em breve nossa atenção mais detalhada.
Em arremate, a conceituação de infanticídio assinada por Capez:
“Trata-se de uma espécie de homicídio doloso privilegiado, cujo privilegium é concedido em virtude da influência do estado puerperal sob o qual se encontra a parturiente. É que o estado puerperal, por vezes, pode acarretar distúrbios psíquicos na genitora, os quais diminuem a sua capacidade de entendimento ou auto-inibição, levando-a a eliminar a vida do infante”93.
1.4.2. Objetividade jurídica.
É a preservação da vida humana, aqui representada pelo ser recém-nascido (neonato) ou pelo ser que está nascendo (neonascente).
Para Noronha,
“é o interesse do indivíduo e do Estado na proteção da pessoa física, desde o começo de seu nascimento. É a vida humana que se tutela, vida do nascente (transição da vida endo-uterina e extra-uterina) e do neonato”94.
1.4.3. Sujeitos.
Mesmo na rápida leitura do art. 123 se pode verificar que o infanticídio é crime próprio; portanto, somente a mãe em estado puerperal possui a titularidade ativa do delito.
Contudo, ainda assim é necessário que você tenha cuidado com a possibilidade de ser reconhecido o concurso de agentes, isto porque sendo o estado puerperal elementar do crime, há perfeita comunicação desta condição pessoal do agente aos demais co-autores e partícipes, conforme determina o art. 30 do CP, verbis:
“Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias e condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”.
Destarte, por mais estranho que possa parecer, contudo por razões de pura técnica jurídica, o pai que, v. g., auxilia a mãe a cometer o delito em tela, por ele também responde, à título de co-autoria ou participação.
Mas tenha cuidado. Muito embora o posicionamento acima apresentado seja o largamente predominante na doutrina, não é raro encontrarmos teses opostas, construídas sempre com zelo e maestria. Acompanhe, por exemplo, a lição de Luiz Vicente Cernicchiaro:
“O infanticídio, portanto, é um tipo que pensa uma agente. Ela e só ela. O juízo de reprovabilidade é exclusivo à pessoa descrita no tipo. A mais ninguém. O estranho à narração do modelo quando, de qualquer modo concorre para matar alguém, amolda-se a outro tipo de culpabilidade, ao tipo de sua reprovabilidade, no caso, do homicídio”95.
Quanto ao sujeito passivo, refere-se a lei ao filho neonato ou neonascente, independente da viabilidade da vida em apreço, ou seja,“a vitalidade, isto é, a possibilidade de adaptação durável (ou presunção dela) às condições normais da vida extra-uterina é inteiramente estranha ao essentialia do infanticídio. Ainda que só se apresente uma aparência de vida, e a não ser que se trate de um mero resíduo de palpitação análogo ao da sobrevivência de um órgão ou sistema, a supressão dela é infanticídio. Tão intangível é o minuto de vida de um recém-nascido quanto o último instante de vida de um moribundo”96.
Note, também, que o infanticídio exige, no mínimo, que os trabalhos de parto tenham se iniciado, antes do que somente se pode cogitar do crime de aborto.
1.4.4. Conduta.
Logo no início lhe adverti que o infanticídio é quase que um “homicídio privilegiado”; portanto, assim como neste delito a ação material é matar, o que pode ser concretizado através de condutas positivas (estrangulamento, sufocamento, traumatismos graves etc.) ou negativas (deixar a mãe de amamentar o recém-nascido ou deixar de retirar mucosidades que impeçam a respiração do neonato, por exemplo).
Note, todavia, que a ação dirigida à causação do óbito deve se desenvolver durante ou logo após o parto, não obstante o evento morte se verifique após este período.
Tenha cuidado com a hipótese de abandono do recém-nascido e sua morte conseqüente, pois a depender da intenção da agente o “enquadramento legal” pode variar substancialmente, senão vejamos:
1) se o abandono do recém-nascido foi eleito (dolo direto) ou aceito (dolo eventual) pela mãe como meio de execução do neonato, estamos diante do infanticídio;
2) se a intenção da mãe, no afã de ocultar sua desonra, era somente a de abandonar a criança, sobrevindo-lhe a morte (por culpa), o delito a ser considerado é o previsto no art. 134, § 2º, exposição ou abandono de recém-nascido qualificado.
1.4.5. Consumação e tentativa.
Dá-se a consumação com o óbito do neonato ou neonascente, sendo perfeitamente possível o reconhecimento do delito na forma tentada, sempre que, iniciada a execução, o evento morte não se verifique por interferência de circunstâncias alheias à vontade do agente.
1.4.6. Elemento subjetivo.
Somente há previsão de infanticídio na modalidade dolosa (dolo direto ou eventual). No entanto discute-se na doutrina qual seria a solução legal mais pertinente quando a mãe, sob a influência do estado puerperal, dá causa à morte de sua prole agindo por culpa.
Hungria e outros luminares apostam na configuração do homicídio culposo, enquanto Damásio defende a atipicidade desta conduta sustentando serem inconciliáveis o estado puerperal com as exigências de cautela (dever de cuidado objetivo), cuja desobediência leva ao reconhecimento da culpa.
Em nosso sentir deve ser aceita a tipificação do homicídio culposo, até mesmo porque, “a capacidade pessoal de previsão do agente (afetada pelo estado puerperal) pertence ao terreno da culpabilidade e não do fato típico. Por essa razão, sendo o fato objetivamente previsível e a conduta qualificada como imprudente, negligente ou imperita, quando comparada ao comportamento de uma pessoa normal, estará presente a culpa. As deficiências de ordem pessoal da gestante devem ser vistas posteriormente, na culpabilidade”97.
1.4.7. Considerações sobre o estado puerperal.
Você já deve ter observado que a “essência” deste delito de infanticídio reside no reconhecimento legal das alterações fisio-psíquicas pelas quais pode vir a passar a mulher, durante ou logo após o parto (estado puerperal).
Assim, admite a lei a menor reprovabilidade (em relação ao homicídio) da conduta de quem se acha seriamente abalada pela resultante amalgâmica de profundas emoções, dores constantes e variadas descargas hormonais.
Todavia, se é certo que a “odisséia” do parto é capaz de produzir efeitos tão contundentes à parturiente, também é induvidoso que nem sempre isto a influencia ao ponto de perder, ainda que parcialmente, a capacidade de auto-determinação, em razão do que torna-se imprescindível a comprovação de um nexo causal ligando o estado puerperal ao obnubilamento da vontade responsável pelo extermínio do infante.
Sobre esta advertência, acompanhe o que diz a Exposição de Motivos do CP:
“O infanticídio é considerado um delicctum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Esta clausula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averiguado ter esta sobrevindo realmente em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio”98.
Note, também, que ao estado puerperal o legislador “ligou” outra elementar normativa, qual seja, a elementar temporal: durante ou logo após o parto.
Contudo, aliado ao fato de não existir na lei qualquer indicação dos instantes iniciais ou derradeiros do parto e considerando-se, de igual sorte, que os efeitos do puerpério variam muito de mulher para mulher, é aceito em doutrina que a referida elementar deve ser analisada de forma conjugada com a primeira, isto é, ainda que a conduta se desenvolva decorrido razoável período após o parto, sem que tenha ocorrido qualquer “intervalo lúcido”, e sendo o crime comprovadamente animado pela influência do estado puerperal, permanece íntegra a figura do infanticídio.
Confira a lição de Damásio:
“A melhor solução é deixar a conceituação da elementar ‘logo após’ para análise do caso concreto, entendendo-se que há delito de infanticídio enquanto perdurar a influência do estado puerperal. Enquanto permancer a influência desse estado,vindo a mãe a matar o próprio filho, estaremos diante da expressão ‘logo após o parto”.
No mesmo sentido, veja a jurisprudência selecionada:
“Se a criança nasceu com vida, respirando e se alimentando normalmente, assim permanecendo até o outro dia, em companhia da mãe, na mesma cama, sendo aí encontrada passando mal, com sintomas de asfixia mecânica que a levou à morte, tais fatos constituem indícios suficientes da autoria: a gravidez clandestina, mantida oculta dos familiares até o dia do parto, fator agravante dos distúrbios fisio-psicológicos denominados estado puerperal, é outro indício a apontar a recorrida como autora da morte de seu filho”99.
Todavia, unicamente para ilustrar seu estudo, em Medicina Legal o parto pode ser conceituado como “o conjunto de fenômenos mecânicos, fisiológicos e psicológicos expulsivos do feto a termo, ou já viável, e de seus anexos, do álveo materno para o exterior”100.
Note, pela bem lançada definição técnica, que a parturiente é submetida a uma série de fenômenos mecânicos, fisiológicos e psicológicos, em razão dos quais pode:
1) não vir a sofrer nenhuma alteração em sua capacidade de discernimento ou comportamento, hipótese em que se vier a matar o próprio filho comete homicídio;
2) sofrer os efeitos do puerpério e, neste estado, eliminar sua prole, praticando infanticídio;
3) perder completamente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de comportar-se de acordo com este entendimento, situação que a torna inimputável, nos termos do art. 26, caput; ou,
4) perder parcialmente a capacidade de entendimento ou de comportamento frente à ilicitude do fato, tornando-a, assim, semi-imputável, de acordo com o disposto no art. 26, parágrafo único, do CP.
Destarte, para a perfeita caracterização, no caso concreto, de que a mulher se encontrava sob a influência do estado puerperal, em que pesem respeitáveis posicionamentos no sentido de que o referido estado é presumido na parturiente, existe a perícia conhecida como crucis peritorum, cuja complexidade de intervenções permite um diagnóstico sério e confiável.
Por último, e em sua homenagem, trago o resumo da experiência do Prof. Delton Croce, pronunciando-se sobre o perfil comum da mulher infanticida:
“As acometidas deste efeito psicofisiológico de todo e qualquer parto são mulheres que engravidaram inconscientemente, ou contra sua vontade consciente, e que, não tendo por qualquer motivo provocado aborto, ocultam por disfarces a prenhez até o termo, quando, então, são obrigadas a parir o filho, ao qual ocisam, durante o parto ou logo após, como castigo para si mesmas e uma vingança para seu meio ambiente. Não é, portanto, o parto que as leva a cometer o nefando ato, mas, sim, o conflito social grave em que se encontram ao dar à luz. A simples consulta aos repertórios de jurisprudência demonstra que o infanticídio é, inegavelmente e antes de tudo, um delito social praticado, na quase-totalidade dos casos, por mães solteiras, o mais das vezes paupérrimas e incultas, ou mulheres abandonadas pelos maridos e pelos amásios”101.
1.4.8. Ação penal.
O crime é de ação penal pública incondicionada.
1.5. Aborto.
1.5.1. Introdução.
Agora você vai estudar o polêmico delito que consiste na interrupção da gravidez e conseqüente destruição do produto da concepção humana, denominado pela lei de aborto.
Na verdade, iremos constatar que o Código Penal Brasileiro prevê quatro modalidades abortivas criminosas, quais sejam:
1ª) Auto-aborto –> previsto na primeira parte do art. 124 (Provocar aborto em si mesma ....);
2ª) Aborto consentido –> previsto na segunda parte do art. 124 (... ou permitir que outrem lho provoque.);
3ª) Aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (aborto na dissenciente) –> tipificado no art. 125;
4ª) Aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (aborto consensual) –> art. 126.
Note, desde logo, que nas duas primeiras incriminações ocupa-se a lei da conduta praticada ou aceita pela gestante, enquanto que nas duas últimas a norma incide sobre o comportamento de terceira pessoa, aquela que efetivamente pratica o abortamento na mulher grávida, com ou sem seu consentimento.
Preliminarmente devo lhe dizer algo,ainda que sumariamente, sobre o tratamento histórico que as mais diversas legislações têm conferido ao aborto.
Na maioria dos ordenamentos pretéritos o aborto era uma prática aceita, variando somente os fundamentos de sua pretensa licitude. Para alguns, o feto não passaria de uma parte do organismo feminino e a lei não poderia limitar o direito da mulher de dispor de seu próprio corpo. Para outros, incluindo aí Aristóteles, o aborto era visto como uma ótima ferramenta para manter-se o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência. Também defendia-se o abortamento para as grávidas maiores de 40 anos de idade, e até mesmo por razões estéticas se procurou justificar a abactio partus.
A título de curiosidade, acompanhe a discussão doutrinária travada entre Irureta Goyena e García Pintos, sobre a tese do direito à mulher sobre o feto como parte integrante de seu próprio corpo:
Para Goyen: se a mãe tem o direito de destruir a própria existência ou o conjunto de seus órgãos, por que não há de ter o direito de eliminar o feto, que é só uma das vísceras componentes do organismo? Uma mãe pode privar-se de um braço. Como não pode perfurar as membranas que limitam o processo da concepção?
Em resposta, García: se a mãe,não dispusesse senão de seu corpo, poder-se-ia dizer que o direito reside na mãe; mas, no aborto, a mãe dispõe de seu corpo e do corpo do filho. Só por um sofisma poderia dizer-se que um continente absorve os direitos do conteúdo. O fato de que um filho esteja materialmente contido no corpo da mãe não implica que esta possa absorvê-lo também juridicamente. O feto concebido tem todos os atributos da pessoa humana, pois é uma perfeita individualidade. Não é parte de coisa alguma, mas um todo completo; não é um órgão, mas um organismo. Ele fará seu próprio sangue, seu verdadeiro meio interior,e com a mãe não terá nenhuma outra relação que não seja a de uma justaposição.102
Hodiernamente ainda persiste uma discussão sobre a conveniência de se incriminar o aborto, sendo que algumas iniciativas radicalizam em ousadia e extravagância como, por exemplo, aquela em que médicos utilizam um navio matriculado em um país que não pune o aborto e percorrem o mundo inteiro realizando abortos em águas internacionais, prevalecendo-se, assim, da garantia de aplicação da lei de origem da embarcação.
Certo é que geralmente a querela em torno da (i)licitude do aborto é “contaminada” pelo apego a ideologias, modismos, preceitos religiosos, éticos e morais, o que torna o opinamento costumeiramente viciado do ponto de vista puramente científico. Contudo, podemos afirmar que na atualidade existem três tendências legislativas. A primeira, que foi seguida pelo legislador brasileiro, é bastante restritiva, incriminando o aborto como regra geral. A segunda, de cunho mais permissivo, contempla um maior número de hipóteses em que o aborto é legalizado (idade avançada da gestante, morte ou incapacidade do pai, gestante não casada, controle da natalidade etc.). Por fim, os ordenamentos de viés mais liberal, deixam praticamente ao arbítrio da gestante decidir pelo abortamento (Japão, Suécia, Hungria, dentre outros)103.
1.5.2. Objetividade jurídica.
Antes uma curiosidade: disse-lhe à pouco que diversas legislações pretéritas albergavam a licitude do aborto, valendo-se das motivações mais variadas. Ocorre que, por influência primordial do Direito Canônico, o abortamento passou a ser considerado crime pela maioria dos ordenamentos, sendo que para Santo Agostinho, v. g., o delito só existiria se o feto já possuíse alma, o que, no mínimo, é um exemplo inusitado de objetividade jurídica. Acompanhe:
“Foi, porém, com o cristianismo que se consolidou a reprovação social do aborto. Sob seu influxo, os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio reformaram o antigo direito e assimilaram o aborto criminoso ao homicídio (...) No começo da Idade Média, os teólogos disputaram em torno da incriminação do aborto. Santo Agostinho, com fundamento na doutrina de Aristóteles, dizia que o aborto só era crime quando o feto já tivesse recebido alma, o que se julgava ocorrer 40 ou 80 dias após a concepção, segundo se tratasse de varão ou mulher (...) Para o direito canônico, o que importava era a perda da alma do nascituro, que morria sem batismo”104.
Para nós, entrementes, o foco da preocupação e da tutela do legislador é a vida humana, ainda que considerada como mera expectativa (spes personae). Na verdade, fico com Carrara:
“Não é de modo algum incerto que o feto seja um ser vivente: impossível negá-lo quando, cada dia, a gente o vê crescer e vegetar. Que importa, pois, definir fisiologicamente tal vida? Admita-se que seja uma vida agregada, acessória a outra vida, da qual um dia se destacará para viver por conta própria. Mas que se trata de um ser vivo não se pode negar; e, assim, nessa vitalidade presente, acompanhada da probabilidade de uma vida futura independente e autônoma, encontra-se suficientemente a objetividade do crime de quem, perversamente, a destrói”105.
Ou, como dizia Hungria: quem pratica um aborto não opera in materiam brutam, mas contra um ser humano na ante-sala da vida civil.
Além da proteção da vida humana representada pelo produto da concepção, no aborto provocado por terceiro a objetividade jurídica também alcança a integridade física e a vida da própria gestante.
Capez adverte que “na hipótese de embriões mantidos fora do útero, em laboratório, há um vácuo na legislação. Sua eliminação não configura aborto, uma vez que não se trata de vida intra-uterina (o feto está fora do útero) ... nem homicídio, pois o embrião não pode ser considerado pessoa humana”106.
Por derradeiro, lhe oferto uma preciosa lembrança de Paulo José da Costa Jr.:
“O legislador pátrio, a exemplo do argentino, tipificou o aborto entre os crimes contra a vida. Outros códigos incluem o aborto entre os crimes contra a vida e a saúde. O código suíço classifica o aborto como crime praticado contra a família, e o código belga, como crime contra a ordem da família e a moralidade pública. Finalmente, o código italiano elencou o aborto entre os crimes contra a integridade e a sanidade da estirpe, consistindo a objetividade jurídica no interesse demográfico do estado”107.
1.5.3. Sujeitos.
Nos crimes de auto-aborto (art. 124, primeira parte) e aborto consentido (art.124, segunda parte) o sujeito ativo é a gestante. Nos delitos de aborto praticado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (art. 126 e 125, respectivamente), o provocador - que pode ser qualquer pessoa - é o sujeito ativo. Note, porém, que nos casos em que a gestante permite que outrem lhe provoque o aborto há uma exceção à unidade de infração no concurso de agentes, pois a mãe responde por aborto consentido (art. 124, segunda parte) e o terceiro provocador por aborto consensual (art. 126). Observe a nota jurisprudencial:
“Quando se trata de aborto provocado com o consentimento da gestante. há duplo crime: o daquele que praticou o aborto e o da gestante que consentiu no ato. Há aqui, como dizem os comentadores, uma exceção à regra do art. 25 (atual art. 29). porque embora haja concurso na mesma ação delituosa, os agentes praticam crimes autônomos”108.
O sujeito passivo, por sua vez, é a vida humana em formação e no aborto praticado por terceira pessoa acrescenta-se a integridade física e a vida da própria gestante, caso lhe sobrevenham lesões ou morte em decorrência das manobras e/ou práticas abortivas.
1.5.4. Conduta.
A conduta descrita pela lei é a de provocar o aborto, isto é, ensejar, ocasionar, dar causa à morte do ovo, embrião ou feto, interrompendo, assim, o ciclo gravídico. Lembre-se que o aborto é dito ovular quando realizado nos dois primeiros meses da gravidez. Embrionário, quando praticado nos terceiro e quarto meses. E, fetal, após o quarto mês de gestação109.
A morte do produto da concepção pode ser produzida no claustro materno ou fora dele, sendo que neste último caso a ocisão do feto (feticídio) deve anteceder ao parto, pois se lhe é posterior o crime a ser reconhecido é o de infanticídio ou homicídio, conforme as particularidades do fato.
Atente à jurisprudência:
“A ação de provocar o aborto tem por objeto interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção (....) Consuma-se o crime com a morte do feto ou do embrião. Pouco importa que a morte ocorra no ventre materno ou fora dele. Irrelevante é, ainda, que o evento se dê com a expulsão do feto ou sem que este seja expelido das entranhas maternas110.
Saiba também que para a provocação do aborto podem ser utilizados processos químicos (orgânicos ou inorgânicos), farmacológicos, físicos (mecânicos, térmicos e elétricos), cirúrgicos (microcesariana ou a curetagem uterina), por indução (punção da cavidade uterina com extração do líquido amniótico) e psíquicos (sustos, ameaças etc.)111.
1.5.5. Consumação e tentativa.
O aborto é crime contra a vida e, de igual sorte, delito material. Por conseguinte, consuma-se com a interrupção da gravidez e a conseqüente morte do produto da concepção, independentemente de sua maturidade ou viabilidade. Observe bem: a morte do feto deve ser provocada pela interrupção da gravidez, em decorrência das manobras abortivas efetivadas, pois se a morte ocorrer por causa diversa, haverá apenas tentativa de aborto. Se, por outro lado, o feto já se encontrava morto, a hipótese é de crime impossível.
Quanto à tentativa, esta é perfeitamente possível. Aliás, no parágrafo anterior já há explícita referência ao conatus.
Agora, à título de curiosidade, sugiro que você leia o interessante exemplo ofertado por Magalhães Noronha:
“Certo indivíduo, por motivos que não foram apontados, desfere uma facada no ventre da mulher grávida de nove meses, sem matá-la; dias depois nasce a criança, que, entretanto, vem a falecer dez dias após, devido à lesão que lhe foi produzida, quando no ventre materno”112.
Em relação à tentativa de homicídio em desfavor da mulher, dúvida não há. Porém, no que pertine à morte do recém-nascido, qual delito deve ser imputado ao agente, aborto ou homicídio? Observe que a ação do agente continha dolo em relação à morte do feto e, orientada por este desiderato, desenvolveu-se materialmente; contudo, a criança nasceu viva, só vindo a falecer alguns dias após seu nascimento.
Noronha inicialmente argumenta sobre o delito de aborto tentado para em seguida pontificar que o delito a ser reconhecido é o de homicídio, acompanhe:
“é exato que a ação do agente deve incidir sobre quem está vivo, mas excepcionalmente pode o crime ocorrer, desde que o exício se verifique, tendo já a criatura vida autônoma, embora a lesão tenha sido praticada quando ela se achava no ventre materno. Em tais circunstâncias, não é absurdo considerar-se, desde o instante do ferimento, o feto como pessoa (...) Cremos, destarte, que o crime é homicídio, sob pena de ficar impune o agente, já que abortamento não houve, e tentativa de aborto com homem morto não só não corresponde a princípios elementares de justiça como também nos parece um contradictio in adjecto”113.
De minha parte, prefiro a solução segundo a qual deve o agente responder por aborto consumado, preservando-se assim o princípio da responsabilidade subjetiva, um dos sustentáculos do direito penal moderno. Aqui, faço-me acompanhar das luzes de eminentes doutrinadores, tais como Frederico Marques e, em tempos mais atuais, Fernando Capez. Veja:
“A morte do feto em decorrência da interrupção da gravidez deve ser resultado direto do emprego dos meios ou manobras abortivas. Realizada a manobra abortiva, se o feto nascer com vida e em seguida morrer fora do útero materno, em razão das lesões provocadas pelo agente, responderá este último pelo crime de aborto consumado, uma vez que, embora o resultado morte tenha se produzido após o nascimento, a agressão foi dirigida contra a vida humana intra-uterina, com violação desse bem jurídico. A responsabilização por homicídio implicaria violar o princípio da responsabilidade subjetiva, já que o dolo foi dirigido à realização das elementares do aborto e não do homicídio”114.
1.5.6. Elemento subjetivo.
O aborto é delito que só admite a forma dolosa.É mister, portanto, que o agente queira o resultado (dolo direto) ou, ao menos, assuma o risco de produzi-lo (dolo eventual). Confira alguns enxertos jurisprudenciais:
“Inexiste no direito brasileiro a figura do aborto culposo. Assim, indispensável à configuração do delito é ter o agente atuado dolosamente”115.
“Se o réu não quis diretamente o resultado morte do feto, assumiu inegavelmente o risco de produzi-lo, ao agredir a esposa grávida com golpes de machado. Dolo eventual patente”116.
“O aborto não é punível à título de culpa, somente sendo punível à título de dolo. Ao eliminar com um tiro uma mulher, sabendo-a grávida, assumiu o agente o risco de sofrer a mesma um aborto, pelo que, ocorrendo a morte do feto, fica configurado tal delito, presente o dolo eventual”117.
Nesta última citação pretoriana você deve ter observado que foi destacado o trecho em que há uma referência expressa sobre o conhecimento da gravidez pelo agente. Isto foi feito porque é necessário lhe alertar que quando o aborto for provocado por conduta de terceira pessoa não conhecedora da condição de grávida da mulher, o delito a ser reconhecido é o de lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º, inc. V), uma vez que não existe crime de aborto preterintencional! Neste sentido, confira a doutrina:
“É inegável que o ânimo de provocar aborto (dolo direto), como a anuência de tal resultado (dolo eventual), pressupõe o conhecimento da gravidez, por parte do agente, pois, em caso contrário, a sua vontade jamais poderia dirigir-se no sentido de atingir esse resultado (...) Se a morte do feto, efetivamente ocorrida, não se compreendia na vontade ou intenção do agente, somente se poderia cogitar do crime de lesão corporal gravíssima”118.
1.5.7. Particularidades sobre as espécies de aborto criminoso.
1.5.7.1. Auto-aborto.
Como já consignado anteriormente, na primeira parte do art. 124 a lei prevê o delito de auto-aborto, crime classificado como “de mão-própria”, haja vista que somente pode ser praticado pela gestante.
Note que a incriminação consiste em provocar em si mesma, o que não afasta a possibilidade de participação delituosa, constatável quando terceira pessoa induz, instiga ou auxilia de forma secundária a mulher grávida ao abortamento. Todavia, se esta terceira pessoa for além da mera atividade acessória, intervindo na realização propriamente dos atos executórios, responderá não como co-autor do auto-aborto, pois a natureza do crime isto não permite (crime de mão própria), mas como autora do crime do art. 126 (aborto consensual)119.
1.5.7.2. Aborto consentido.
Nesta modalidade, prevista ainda no art. 124, agora em sua segunda parte, a mulher não provoca o aborto em si mesma, mas permite que outrem o faça. Agora, a conduta criminosa da gestante consubstancia-se em seu consentimento.
Apesar disto, não se pode conceber o consentimento como uma conduta de somenos importância. Ao revés, além de ser circunstância elementar do tipo (nesta segunda incriminação), a “atuação não é secundária, como pode parecer a alguns, razão tendo Maggiore para observar que a gestante não é inerte, mas coopera, consentindo nas práticas abortivas, isto é, sujeitando-se a estas com movimentos corpóreos (ao menos, pondo-se em posição obstétrica): não omite, age”120.
Quanto ao concurso de agentes - sempre na forma de participação - valem aqui as considerações feitas no item anterior.
1.5.7.3. Aborto provocado por terceiro (dissenciente).
Eis a modalidade mais grave do crime, pois nela o agente provocador do aborto age contra a vontade da gestante ou à sua revelia. Assim, o delito assume especial relevo pois multiplica, inclusive, a titularidade passiva da incriminação, pois além de tutelar o produto da concepção, a norma também protege a integridade física e a vida da mulher gestante.
Note bem, o criminoso pode agir contra a vontade da vítima ou à sua revelia, isto é, ocorre o crime quer quando o agente provoca o aborto sem que a mulher, por exemplo, tivesse conhecimento da gravidez; quer quando a mulher sabe-se gestante, não deseja e não consente o aborto, que mesmo assim lhe é provocado ao revés de seu desejo.
Veja: nestas duas hipóteses, a mulher não permite a prática abortiva, daí porque estamos diante da modalidade pura do crime de aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante.
Contudo, há situações em que a mulher consente no abortamento provocado por outrem, sem que a lei, entretanto, considere válida a permissão concedida, isto em face de algumas condições pessoais da gestante ou da forma como a autorização foi obtida. Eis, assim, o por quê do parágrafo único do art. 126 - artigo que trata do aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (aborto consensual) - , determinar que seja aplicada a pena do art. 125, quando a gestante for menor de 14 (quatorze) anos, for alienada ou débil mental, ou, ainda, quando o consentimento tiver sido obtido através de fraude, grave ameaça ou violência.
1.5.7.4. Aborto consensual.
Se o crime do art. 125 destaca-se por sua maior gravidade, este do art. 126 ganha realce por constituir uma espécie rara de exceção à disciplina penal do concurso de agentes.
Com efeito, incide nas penas do art. 126 quem provoca o aborto com o consentimento válido da gestante. Porém, tal e qual já restou consignado, a mulher que autoriza a prática abortiva não responde por este delito, mas por aquele previsto na segunda parte do art. 124 (aborto consentido).
Esse consentimento da gestante - que configura elementar do tipo - não precisa ser expresso, admitindo-se, portanto, seu reconhecimento tácito. É mister, contudo, que persista durante todo o iter criminis do agente provocador do aborto. Desta forma, se a gestante autoriza o abortamento, mas no início da intervenção médica, p. ex., desiste da prática e comunica sua decisão ao médico que, não obstante, prossegue no procedimento até sua consumação, o delito a ser reconhecido é o do art. 125.
1.5.8. Formas qualificadas.
Em primeiro lugar é necessário dizer que muito embora a lei tenha “batizado” o art. 127 como forma qualificada de aborto, trata-se na verdade de modalidade majorada, isto é, há somente um incremento no preceito-sanção dos tipos penais de aborto em suas formulações básicas, e não novos comandos punitivos, como ocorre nas qualificadoras e privilegiadoras!
Com efeito, a pena deve ser aumentada de um terço se, em decorrência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave, ou, ainda, incrementada pelo dobro, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Note que tanto as lesões corporais graves quanto a morte devem ser resultados produzidos culposamente, extrapolando o dolo do agente (preterintencionalidade), pois se assim não fosse, tais resultados de maior gravidade consubstanciariam crimes concorrentes (concurso material ou formal) com o delito de abortamento. Neste sentido, destaco a objetiva lição de Noronha:
“Trata-se de crime preterdoloso: há dolo no antecedente e culpa no conseqüente, isto é, dolo quanto ao aborto e culpa quanto à morte ou lesão corporal. Nesta modalidade, o delito consuma-se quando se verifica um dos eventos que majoram a pena. Claro é que, se, além do aborto, o terceiro quer, ainda que eventualmente, o ferimento ou a morte da gestante, haverá aborto ou lesão corporal grave ou homicídio em concurso”121.
Também deve ser destacado que as lesões idôneas a majorar o aborto são somente aquelas graves que não sejam necessariamente compreendidas na intervenção abortiva, que é traumática por si mesma. Assim, somente as lesões extraordinárias ao procedimento é que são aptas a incrementar a sanção penal.
Veja que as majorantes somente incidem nas figuras do aborto provocado por terceiro (art. 125) e aborto consensual (art. 126), até mesmo porque não haveria como punir a auto-lesão ou a morte da gestante quando for ela o sujeito ativo da incriminação (auto-aborto e aborto consentido –> art. 124).
Por derradeiro, saiba você que para aplicar-se a majorante em comento não é indispensável a efetivação do aborto, uma vez que o art. 127 dispõe que os resultados mais graves podem ocorrer por causa do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo.
Observe, entretanto, que nessa última hipótese, em que a mãe sofre as graves lesões ou falece em decorrência das manobras abortivas, mas o feto sobrevive, pode parecer estranho tipificar-se a conduta como crime de aborto qualificado consumado, uma vez que a criança nasceu. É por isto que alguns autores de escol defendem a tipificação por tentativa de aborto qualificado122.
Eu, particularmente, prefiro a primeira das teses apresentadas (aborto qualificado consumado) e o faço porque:
1) a lei prescinde do resultado “morte do feto” para caracterizar a majorante, satisfazendo-se com o nexo causal entre as manobras abortivas e a produção das lesões graves ou do óbito da gestante;
2) contraria a boa técnica falar-se em tentativa de crime preterdoloso, pois a tentativa pressupõe a não produção do resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente e em relação ao resultado além da intenção, por óbvio que inexiste o dolo em produzi-lo.
“Entedemos que, nessa hipótese, deve o sujeito responder por aborto qualificado consumado, pouco importando que o abortamento não se tenha efetivado, aliás como acontece no latrocínio, o qual se reputa consumado com a morte da vítima, independentemente de o roubo consumar-se. Não cabe mesmo falar em tentativa de crime preterdoloso, pois neste o resultado agravador não é querido, sendo impossível ao agente tentar produzir algo que não quis: ou o crime é preterdoloso consumado ou não é preterdoloso”123.
1.5.9. Aborto legal.
Você acabou de estudar as espécies ilícitas de aborto. Agora, cumpre-lhe conhecer as hipóteses em que a interrupção da gravidez é permitida pelo ordenamento jurídico.
Trata a lei, em seu art. 128, do aborto necessário (inciso I) e do aborto humanitário (inciso II), duas causas de exclusão da antijuridicidade, muito embora pela redação do dispositivo (Não se pune ...), possa parecer que estaríamos diante de causas excludentes da culpabilidade.
1.5.9.1. Aborto necessário.
O aborto necessário revela-se como uma previsão especial de estado de necessidade, em que permite-se o sacrifício do feto para, com isto, salvar-se a vida da gestante, sem a exigência, contudo, de que o perigo seja atual, ou seja, basta que a gravidez apresente risco, ainda que futuro, à vida da gestante.
Na verdade, há uma aferição de importância dos dois bens jurídicos ameaçados: de um lado, a vida da mulher grávida; de outro, a manutenção de um ser ainda não completamente formado ou independente; diante do que, parece extremamente razoável entender-se que a preservação da vida da gestante deva prevalecer. Noronha chega a dizer que “não sacrificar um é sacrificar os dois”124. São, portanto, requisitos do aborto necessário: 1) que a vida da gestante corra perigo em razão da prenhez; 2) que não haja outro meio de conjurar o perigo a não ser o abortamento.
Veja que o aborto necessário pode ser terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo), sendo que em qualquer dos casos é o médico quem goza do arbítrio de decidir pela necessidade ou não da intervenção, mesmo que contra isto se oponha a própria gestante, até mesmo porque “a gestante, muitas vezes, não poderia prestá-lo (consentimento), por estar inconsciente, e, outras vezes,poderia querer sacrificar-se em holocausto ao filho. O marido e os parentes, de seu lado, poderiam ser inspirados por interesses inferiores, preferindo a morte da mãe ao do filho, conforme o caso, por motivos de sucessão hereditária. Além disso, poderia ser desperdiçado, com a obtenção do consentimento, um tempo precioso”125.
Observe também que não é preciso ao médico requerer autorização judicial para provocar o abortamento, tendo em vista que a lei penal já lhe permite a conduta quando estiverem presentes os requisitos deste especial modelo de estado de necessidade.
Por outro lado, pode acontecer de o aborto necessário ser praticado por outra pessoa que não o médico: parteiras ou enfermeiras, p. ex. Como o art. 128 trata especificamente do médico, não aproveita aos demais personagens. Todavia, se o agente, embora não sendo médico, provoca o aborto para salvar a vida da gestante, o fato continua sendo lícito, pois albergado pelo art. 24 do CP (estado de necessidade).
1.5.9.2. Aborto humanitário.
A segunda forma de exclusão da ilicitude no aborto é encontradiça no art. 128, inciso II, dando conta do aborto humanitário ou sentimental, hipótese reservada aos casos em que a gravidez é resultante de estupro e ao abortamento é precedido de autorização da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Logo após o primeiro grande conflito mundial, (1914-1918), em razão da grande quantidade de mulheres que, mediante estupro, foram engravidadas por soldados invasores, surgiu a discussão em torno da possibilidade de, a elas, ser reconhecido o direito de abortar.
Para alguns, a origem criminosa de uma vida não poderia servir de justificativa para o seu aniquilamento. Ademais, a permissão poderia ensejar às mulheres uma perigosa oportunidade para interromper gravidezes indesejadas.
Em giro diverso, não haveria (e não há) como negar a crueldade de se impor a uma mulher devassada em seu recato sexual suportar o que seria uma verdadeira via cruxis, inaugurada com a violência, mantida em todo o período de gestação e, por derradeiro, perpetuada pelo nascimento de um ser que servirá como onipresente recordação da barbárie, da humilhação e do terror.
Assim, seguindo essa orientação mais humanística, previu o legislador pátrio o aborto sentimental, exigindo, destarte, que a intervenção médica seja precedida de autorização da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal. Observe, com atenção, que em nenhum instante a lei exige permissão ou alvará judicial. Aliás, sobre o tema, acompanhe a citação:
“A autorização judicial, cuja existência a imprensa nacional tem emprestado tanto destaque nos mais variados recantos do País, é figura absolutamente alheia, estranha aos requisitos da tipicidade especial, insculpidos na moldura da norma descrita no art. 128, Ie II, do CP”126.
Em arremate, veja o que diz o Juiz Ovídio Rocha Barros Sandoval:
“No estágio atual do Direito Positivo, não existe comando legislativo que ampare, por qualquer ângulo que examinada a questão, autorização judicial para a prática do aborto. Juiz que autorize a prática do aborto, por via de conseqüência, não está a praticar ato afeto à prestação jurisdicional, pela simples razão de inexistir em tal caso, prestação jurisdicional a ser exercida”127.
Novamente lhe digo que a norma de exclusão da ilicitude dirige-se somente ao médico, portanto, não aproveita àquele que não detenha tal qualidade.
No entanto, cumpre reconhecer que o comando legal peca em restringir a possibilidade de aborto somente quando a gravidez for resultante de estupro, pois é indiscutível que a prenhez resultante de outras formas de violência sexual (coito inter-femural, p. ex. e/ou demais atos libidinosos) é de igual sorte traumática para a ofendida, em razão do que doutrina e jurisprudência são unânimes em admitir a aplicação da excludente de ilicitude em casos tais, isto sem ferir a técnica de hermenêutica, pois como se trata de norma penal não-incriminadora permissiva, torna-se possível a analogia in bonam partem.
1.5.10. Aborto eugenésico.
O aborto eugenésico anima muitas discussões em doutrina. Atualmente continua no campo da ilicitude, pelo menos na ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, de vez em quando ocorrem situações extremes nas quais, devidamente provocado, o Judiciário, em face da cristalina prova de inviabilidade do ser em gestação, tem expedido autorizações (alvarás) à prática do abortamento.
No passado, a eugenia foi largamente utilizada para justificar os hediondos esforços de “purificação da raça”, mormente a ariana. Spencer chegou a afirmar que:
“Promover o aumento dos inúteis à custa dos úteis constitui uma extrema crueldade; é querer, intencionalmente, multiplicar as desgraças das gerações futuras. Não se pode infligir à posteridade maldição mais grave do que permitir que em uma população cresçam os imbecis, os ociosos e os delinqüentes. Favorecer a multiplicação dos maus é, praticamente, a mesma coisa do que dá aos nossos descendentes uma falange de inimigos”128.
Hodiernamente o conceito tem sido interpretado de modo restritivo, objetivando somente “impedir o nascimento de seres infelizes marcados por uma carga degenerativa”129. Assim, como foi referido no início deste tópico, não se pode negar a tendência pretoriana brasileira em admitir, de forma excepcionalíssima, a provocação do aborto eugênico, reconhecendo na hipótese a inexigibilidade de conduta diversa (causa excludente da culpabilidade).
Verifique as seguintes decisões:
“Afigura-se admissível a postulação em juízo de pedido pretendendo a interrupção de gravidez, no caso de se constatar a má-formação do feto, diagnosticada a ausência de calota craniana ou acrania fetal, com previsão de óbito intra-uterino ou no período neonatal. Apesar de não se encontrar prevista dentre as causas autorizadoras do aborto, dispostas no art. 128 do CP, a má-formação congênita exige a situação anômala específica à adequação da lei ao avanço tecnológico da medicina que antecipa a situação do feto”130.
“Diante da solicitação de autorização para a realização do aborto, instruída com laudos médico e psicológico favoráveis, deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro, e evidenciado o risco à saúde desta, mormente a psicológica, resultante do trauma emocional a que estará submetida caso leve a termo a gestação, pois comprovada cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina, outra solução não resta senão autorizar a requerente a interromper a gravidez”131.
1.5.11. Ação penal.
É pública incondicionada. Nos crimes previstos nos arts. 124 (auto-aborto e aborto consentido) e 126, caput (aborto consensual) admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei nº 9.099/95).