Seção I
Dos Crimes contra a Liberdade Pessoal.
Constrangimento ilegal.
Art. 146. Constranger alguém,mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) anos, ou multa.
Aumento de pena.
§ 1º. As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.
§ 2º. Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.
§ 3º. Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II - a coação exercida para impedir o suicídio.
Ameaça.
Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Parágrafo único. Somente se procede mediante representação.
Seqüestro e cárcere privado.
Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
§ 1º. A pena é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos:
I- se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente;
II - se o crime é praticado mediante internação em casa de saúde ou hospital;
III - se a privação de liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.
§ 2º. Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
Redução a condição análoga à de escravo.
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
Seção II
Dos Crimes contra a Liberdade de Domicílio.
Violação de domicílio.
Art. 150. Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.
§ 1º. Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, além da pena correspondente à violência.
§ 2º. Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso de poder.
§ 3º. Não constitui crime a entrada ou a permanência em casa alheia ou em suas dependências:
I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência;
II -a qualquer hora do dia ou da noite, quando qualquer crime está sendo alí praticado ou na iminência de o ser.
§ 4º. A expressão “casa” compreende:
I - qualquer compartimento ocupado;
II- aposento ocupado de habitação coletiva;
III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
§ 5º. Não se compreendem na expressão “casa”:
I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do nº. II do parágrafo anterior;
II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.
Seção III.
Dos Crimes contra a Inviolabilidade de Correspondência.
Violação de correspondência.
Art. 151. Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Sonegação ou destruição de correspondência.
§ 1º. Na mesma pena incorre:
I - quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói;
Violação de correspondência telegráfica, radioelétrica ou telefônica.
II - quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas;
III - quem impede a comunicação ou conversação referidas no número anterior;
IV - quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal.
§ 2º. As penas aumentam-se de metade, se há dano para outrem.
§ 3º. Se o agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
§ 4º. Somente se procede mediante representação, salvo nos casos do § 1º, IV e do § 3º.
Correspondência comercial.
Art. 152. Abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial, para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
Parágrafo único. Somente se procede mediante representação.
Seção IV
Dos Crimes contra a Inviolabilidade dos Segredos.
Divulgação de segredo.
Art. 153. Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa causar dano a outrem:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
§ 1º - A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou bancos de dados da Administração Pública:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1º. Somente se procede mediante representação.
§ 2º. Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada.
Violação do segredo profissional.
Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de 3 (três)meses a 1 (um) ano, ou multa.
Parágrafo único. Somente se procede mediante representação.
6.1. Noções Iniciais.
Sem dúvida nenhuma a liberdade é um dos bens mais valiosos da existência humana. Portanto, não haveria justificativa para ficar à margem da tutela penal, em razão do que lhe é dedicado todo o último capítulo do Título que trata dos crimes contra a pessoa. Todavia, saiba: “o que a lei penal protege não é o pretenso direito natural à liberdade, ou seja, a faculdade (rectius: possibilidade) natural ao homem de fazer o que quer ou deixar de fazer o que não quer; mas, sim, a liberdade jurídica, isto é, a faculdade de exercer a própria vontade, sem entraves, na órbita da atividade livre que o Estado assegura ao indivíduo”1.
Com efeito, o foco de atenção da lei é a liberdade analisada sob o prisma da realidade jurídica, identificada como aquela parcela de atuação individual condicionada às exigências da vida em sociedade. Assim, o ordenamento estabelece limites ao arbítrio da cada um dos seus súditos apenando-os quando violarem o recato de seus semelhantes.
É intressante destacar que os crimes contra a liberdade individual, regra geral, possuem um nítido perfil de subsidiariedade, pois, não raro, integram o iter de infrações mais graves (constrangimento ilegal e ameaça, p. ex.). Confira, à guisa de exemplo, o que Paulo José da Costa Júnior adianta sobre o constrangimento ilegal:
“Trata-se de um crime subsidiário, pois só será punido o constrangimento se não fizer parte de um outro crime, como seu elemento essencial ou como agravante (generi per speciem derogatur). O constrangimento é intrínseco nas lesões ou no homicídio, já ensinava Carrara. Poderá integrar outros crimes, como o furto, o incêndio, o estupro, a extorsão, o dano. Em tais casos, será punido apenas o outro delito. Assim, enquanto delito, o constrangimento é uma figura de reserva: só intervém se a conduta não for punida como parte integrante de um outro delito”2.
Vamos, então, conhecê-los!
6.2. Constrangimento ilegal.
6.2.1 Introdução.
É o primeiro e mais “genérico” dos crimes que afetam a liberdade inidividual. Contudo não é uma incriminação antiga; ao contrário, é fruto de uma conquista recente da humanidade: a filosofia do direito natural.
Antes dela, as poucas iniciativas legislativas sobre a matéria arrimavam-se não propriamente no atentado contra a liberdade do indivíduo, mas na reprovação ao uso indiscriminado da violência.
“Com efeito, não se conhecia um conceito autônomo de constrangimento e o termo vis - inicialmente empregado para designar uma contrariedade ao ius -foi introduzido no Direito Penal Romano em fins da República. O crimen vis, porém, não significava uma limitação à liberdade pessoal, mas antes uma perturbação da paz e tranqüilidade públicas e da ordem estatal, ainda que realizada através de agressão contra a pessoa física (...) O Direito Penal Germânico, assim como o Direito Penal comum, também não estabeleceram o conceito de crime contra a liberdade”3.
Ocorre, entretanto, que a doutrina penal alemã, aos poucos, conceituou de forma genérica a ilicitude das interferências ou imposições que turvassem a liberdade psíquica e física das pessoas, culminando com a iniciativa de Tittmann em “rebatizar” o modelo legal de Nötigung (constrangimento), ao invés do outrora Gewalttätigkeit ( correspondente a vis do Direito Romano).
No ordenamento penal brasileiro o crime é previsto desde o Código de 1830, mas somente com o Projeto Sá Pereira recebeu o nomen iuris de constrangimento ilegal.
6.2.2. Objetividade jurídica.
Você bem sabe que a tutela da liberdade individual tem assento na própria Constituição Federal (art. 5º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”).
“Tal dispositivo constitui, antes de mais nada, uma garantia assegurada ao cidadão de não ter sua liberdade de ação ou omissão tolhida pela ação arbitrária do Estado e dos demais cidadãos, pois somente o comando legal poderá dizer o que lhe é permitido ou proibido fazer”4.
Resguardando o comando constitucional, impõe-se o art. 146 do Código Penal como escudo protetor da liberdade pessoal de autodeterminação, isto é, da possibilidade de que cada indivíduo, dentro da esfera de liberdade que lhe é assegurada pelo ordenamento, possa escolher a forma com que pautará seu comportamento, e assim, agir ou abster-se.
Observe, portanto, que a liberdade individual se manifesta pela possibilidade de livre formação da vontade e igualmente livre manifestação desta vontade. Liberdade de escolha (psíquica) e de atuação (física), eis a objetividade jurídica da incriminação!
No mesmo sentido a lição de Hungria:
“Compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e atuação de sua vontade, à sua tranqüila possibilidade e ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados pela lei. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa”5.
6.2.3. Sujeitos.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum). Todavia, se o constrangimento é praticado por funcionário público no exercício das funções ou a pretexto de exercê-la, o crime passa a ser o do art. 322 (violência arbitrária), ou até mesmo uma forma de abuso de autoridade.
O sujeito passivo há de ser uma pessoa que goze de, pelo menos, parcial capacidade de autodeterminação, pois o crime é estreitamente relacionado à liberdade de vontade do ofendido6. Assim, se esta lhe faltar por completo, não se pode reconhecer a espécie criminosa. Portanto, substituir-se ou impor-se à vontade de um insano ou de uma pequena criança, não configura constrangimento ilegal, podendo, outrossim, aperfeiçoar-se outra figura penal, desde que o resultado derradeiro da empreitada seja típico.
6.2.4. Conduta.
A conduta incriminada é a de “constranger alguém”. Porém, a lei delimita (ou indica) o processo executivo, ou seja, quais são os meios executivos deste constrangimento: “mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência”.
Observe, antes de qualquer outro comentário, que é indiferente, para efeitos de aperfeiçoamento do crime, o que o sujeito passivo é constrangido a fazer ou suportar, basta que sua ulterior ação ou omissão lhe seja imposta em detrimento de sua vontade, sempre com o emprego da violência, da ameça ou outro meio inibitório. Assim, por exemplo: eu gosto de jogar “WAR” (atividade lícita e penalmente irrelevante), mas se alguém, de arma em punho, me obriga a fazê-lo, pratica constangimento ilegal.
Vamos agora aos meios executórios:
a) violência –> é a vis corporalis ou vis absoluta, é a utilização da força física para inibir ou suplantar a resistência do ofendido. Note que a violência pode ser imediata (quando empregada sobre a própria vítima) ou mediata (quando recai sobre terceira pessoa ou é aplicada contra um bem que interesse ao coacto).
Veja, todavia, que, de acordo com o § 2º do art. 147, além das penas cominadas ao constrangimento ilegal, devem ser aplicadas as correspondentes à violência (reconhecimento do concurso de crimes).
b) ameaça –> é a vis compulsiva e aqui há de se ter uma certa cautela, pois a ameaça, quando for um fim em si mesma (propalada simplesmente para abalar a tranqüilidade psíquica do ofendido), constitui o crime previsto no art. 147 do CP. Agora, ao revés, a ameaça é a ferramenta utilizada pelo agente para, através do medo incutido, sobrepor-se à vontade da vítima e, com isto, dirigir-lhe a conduta. Esta ameaça que serve de meio executivo do constrangimento ilegal deve possuir idoneidade intimidativa, isto é, deve ser de tal sorte que realmente tolha ou influencie severamente a liberdade de escolha do coagido. Magalhães Noronha deixou consignado, no entanto, o que ele entedia ser o conjunto de requisitos da ameça. Veja:
“Impõe a lei seja grave, isto é, o mal prometido à pessoa deve ser para ela de capital importância, para sacrificar-se na sua liberdade de querer e agir. Compreende-se que o mal deva ser determinado, pois indefinível e vago não terá grandes efeitos coativos; verossímil também, ou seja, que se possa realizar e não fruto de mera fanfarronice ou bravata; iminente, isto é, suspenso sobre o ofendido: nem em passado, nem em futuro longíquo, quando, respectivamente, não teria força coatora, ou esta seria destituída do vigor necessário; inevitável, pois, caso contrário, se o ofendido puder evitá-lo, não se intimidará; dependente, via de regra, da vontade do agente, já que, se depender da de outrem, perderá muito de sua inevitabilidade”7.
Cautela: não é indispensável que tais características co-existam!
A ameaça que serve ao constrangimento ilegal não precisa vaticinar um mal injusto, assim até mesmo a promessa de um “mal justo” lhe aproveita, p. ex.: uma pessoa, que não possui qualquer vínculo funcional com a Administração, ameaça um foragido de denunciá-lo à autoridade policial, caso ele não lhe faça determinado favor.
Se diz que a ameaça é direta quando a promessa do mal recai sobre a própria pessoa que se deseja constranger e indireta quando tal promessa é feita em desfavor de terceiros ou de bens vinculados ao coagido. Em qualquer caso é desnecessária a presença física da vítima, pois o infortúnio pode lhe ser comunicado por via oblíqüa (recados, bilhetes, emails etc.).
c) qualquer outro meio idôneo a reduzir a capacidade de resistência do ofendido –> a úlitma previsão legal versa sobre a utilização de outros meios aptos a estorvar as possibilidades de oposição da vítima, tais como a sugestão hipnótica ou, mais comumente, o emprego de entorpecentes e inebriantes. Recentemente uma revista semanal de grande circulação veiculou matéria sobre o uso, por jovens da classe média, de drogas que enfraqueciam (ou anulavam) os freios inibitórios e, paralelamente, aumentavam a libido. Estas drogas eram servidas pelos garotos às meninas, em festas, para facilitar o enlace sexual. Eis um exemplo de constragimento ilegal, se o fato (cuidado!!!) não tiver conotação mais grave (estupro). De qualquer sorte as substâncias devem ser empregadas de maneira sub-reptícia ou mediante fraude, pois se o fossem através de violência ou grave ameaça, a ação estaria incluída nas hipóteses anteriores (“a” e “b”).
6.2.5. Consumação e tentativa.
Seguindo a sugestão de Hungria repare no tipo penal: a lei diz: constranger alguém... a não fazer ou fazer.... Portanto, é necessário que o coagido ao menos inicie a prática do ato a que é impelido ou abstenha-se de praticar o que desejava. Se a lei dizesse: constranger para fazer ou deixar de fazer, não precisaria que a vítima iniciasse nada, era suficiente o atitude constrangedora do criminoso.Lembre-se, contudo, que, no caso de conduta positiva (fazer), basta que o ofendido “dê partida” na ação compulsória, não precisa “ir até o fim”.
“Consuma-se o constrangimento ilegal com a efetiva realização, pelo coagido, da conduta visada pelo agente. É preciso que a vítima inicie a conduta imposta pelo coator (crime material). Agregue-se, porém, que ainda que o comportamento desejado seja parcial, e não integralmente realizado pela vítima tem-se como consumado o delito”8.
A tentativa é perfeitamente admissível.
6.2.6. Elemento subjetivo.
O elemento subjetivo é o dolo, consubstanciado na consciência e vontade de, ilegitimamente, empregar violência física ou moral contra alguém no afã de que, coarctado, faça algo ou deixe e fazê-lo.
Note, assim, que além do dolo genérico há um específico, consistente nesse “especial fim de agir”.
Fragoso nos lembra que
“Se a ação for praticada para satisfazer pretensão legítima ou supostamente tal, o crime será o de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no art. 345 do CP. Se não houver o propósito de forçar ou constranger a vítima a fazer ou não fazer algo, o crime será apenas o que resultar da violência ou da ameaça (lesões corporais, vias de fato, ameaça)”9.
Por fim, veja que não há previsão do crime na modalidade culposa!
6.2.7. Causas especiais de aumento da pena.
Você deve recordar que o preceito-sanção do art. 146 contempla duas possibilidades de pena: detenção (de 3 meses a 1 ano) ou multa. Todavia, no § 1º, há a majoração destas penas, que passam a ser aplicadas cumulativamente e em dobro quando:
a) para a execução do crime se reúnem mais de três pessoas –> quando o constrangimento é imposto por um número considerável de agentes (no caso: de quatro a maior) é claro que o ofendido fica gravemente à mercê de seus algozes, perdendo ou tendo drasticamente reduzidas suas possibilidades de defesa e/ou resistência. Daí porque justifica-se a majoração da pena. Entretanto, saiba que essa pluralidade de agentes dispensa acordo prévio, bastando que cada um dos concorrentes tenha vontade consciente de colaborar com a ação dos demais. Vale lembrar, também, que podem integrar o número mínimo exigido pela lei (mais de três pessoas) os inimputáveis ou até mesmo aqueles que, embora tenham participado da empresa criminosa, não foram identificados.
b) com o emprego de armas –> aqui há uma curiosidade: a lei “fala” em armas (no plural), mas isto, insofismavelmente, não quer dizer que a lei exige, para a majoração pretendida, que o agente se valha de mais de uma arma; em verdade, cuida-se apenas de ter o legislador ser referido ao gênero do objeto. Tal como você sabe, as armas podem ser próprias ou imprórias. As de primeira categoria são aqueles instrumentos criados, produzidos, comercializados e utilizados como ferramentas de ataque ou de defesa, por lhes ser peculiar a aptidão de ferir ou matar (revólveres, rifles, fuzis, punhais, explosivos etc.). Já as armas impróprias são os objetos que, eventualmente, podem ser utilizados no esforço defensivo ou agressivo, sem que tenham sido projetados ou especificamente destinados a produzir lesões ou morte, p. ex.: extintores de incêndio, talheres, mesas e cadeiras, tesouras, pedras etc.). De qualquer sorte, independe se a arma utilizada for própria ou imprópria, basta que tenha servido ao próposito de intimidar ou perpetrar a violência. Não é preciso, tampouco, o efetivo emprego da arma, às vezes somente o porte ostensivo ou exibido serve com meio inibitório. Quanto ao emprego de arma de brinquedo, após o cancelamento da Súmula 174 do STJ, não caracteriza a majorante (lembre-se: a utilização de arma de brinquedo ou simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes, é delito previsto no art. 10, § 1º, II da Lei nº 9.437). Esta majorante também é plenamente justificada, pois avulta o desvalor da ação, considerando que a vítima tem sua vontade suplantada de modo que lhe dificulta ou torna impossível qualquer esboço de reação.
6.2.8. Casos especiais de exclusão da tipicidade.
Muito embora a maioria da doutrina considere que o § 3º trate de causas especiais de exclusão da ilicitude, penso que as excludentes em apreço interferem na própria tipicidade, e assim concluo pela redação mesma do dispositivo, que reza: “Não se compreendem na disposição deste artigo”. Ora, se não se há subsunção do fato à norma, não há tipicidade! Portanto, nas hipótese aventadas (art. 146, § 3º, inc. I e II) a conduta é atípica e não somente típica e lícita (assim seria se as normas excluíssem somente a ilicitude).
A primeira excludente é a intervenção médica arbitrária, isto é, a realizada sem a autorização do paciente ou de seus representantes legais. No entanto, para que a conduta do médico seja atípica é mister a presença de alguns requisitos: que a intervenção (inclusive a cirúrgica) seja necessária, urgente e inadiável, haja vista uma realidade objetiva e concreta de risco de morte (perigo de vida) para o paciente10. Sobre “perigo de vida”, favor consultar as consignações do item 2.9.2. Este tipo de procedimento médico é mais comum do que possa parecer, imagine por exemplo situações em que pacientes graves aportam nos hospitais e por questões religiosas seus parentes não permitem transfusões de sangue, mesmo quando imprescindíveis à manutenção da vida.
Seguindo o enunciado do parágrafo, também não constitui constrangimento ilegal a coação exercida para impedir o suicídio. Advoga-se que o indivíduo não pertence apenas a si próprio, mas integra-se à sociedade de tal forma que com ela constrói um pacto de sobrevivência, não lhe sendo deferido o direito de matar-se. Assim, você pode afirmar que o auto-exterminação contraria os interesses socias, sendo permitido portanto o uso dos meios eficazes a coibi-la, ainda quando revestidos da necessária violência.
6.2.9. Ação penal.
É crime de inciativa pública incondicionada. Por outro lado, a forma simples (caput) é crime de menor potencial ofensivo, sujeitando-se à Lei 9.099/95.
6.3. Ameaça.
6.3.1. Noções iniciais.
Coube ao direito germânico dar autonomia ao crime de ameça, antes visto apenas como elemento ou circunstância de outros delitos ou até mesmo tentativa do crime que consistia no mal ameaçado.
Todavia, em feliz momento se admitiu que “sob a influência do medo, o indivíduo sofre uma constrição moral, uma quebra de sua isenção de ânimo, uma restrição à espontaneidade de sua conduta. O homem intimidado deixa de estar integrado na plenitude de sua autonomia volitiva”11, sendo digno de louvor a iniciativa legislativa de incriminar condutas tais, conferindo-lhes independência, ainda que permeada pela característica peculiar da subsidiariedade.
Eu pelo menos creio que não há crime “mais subsidiário” do que a ameaça; até mesmo o constrangimento ilegal dela pode ser valer. Aliás, disse Noronha:
“A distinção que então se apresenta entre os dois é que no constrangimento ilegal o sujeito ativo tem o escopo de conseguir uma ação (em sentido amplo) do ofendido, ao passo que, na ameaça, ele objetiva lesar sua liberdade íntima (...) Mostrando a correlação entre a ameaça e o crime do art. 146, concomitantemente temos mostrado ser ela um delito subsidiário, mais ainda que aquele. O crime ora em exame só se concretiza quando não é elemento componente ou circunstância agravante de outro. O fim específico do agente faz com que a mesma ação dê lugar a outro delito: o apontar uma arma a alguém é, por certo, ameaça, mas pode ser também tentativa de morte, extorsão etc.”12.
6.3.2. Objetividade jurídica.
Outrora se chegou a discutir qual seria a verdadeira objetividade jurídica da ameça. Para alguns, a segurança da ordem jurídica. Contudo, hoje parece inquestionável que o crime afeta a liberdade psíquica do indivíduo.
Realmente a conseqüência curial da conduta ameaçadora é incutir medo, temor, pavor na consciência do ofendido, turvando-lhe a capacidade de iniciativa, provocando-lhe anseios, despertando-lhe insegurança e, assim, causando séria perturbação à paz espiritual do ameaçado.
Para Carrara,
“a verdadeira índole do delito de ameaça, considerando-se seus caracteres intrínsecos e seu modo de ser ordinário, o inclui na categoria dos delitos contra a liberdade individual. O critério que torna politicamente imputável a ameaça decorre da influência que ela exerce no ânimo do ameaçado: o temor suscitado pela ameaça faz com que ele se sinta menos livre, abstendo-se de muitas coisas que, sem isso, teria tranquilamente praticado, ou realizando outra que se teria abstido. A agitação que a ameaça desperta no espírito restringe a capacidade de refletir com calma e de autodeterminar-se, impede certos atos, e obriga a outros de prevenção e cautela; daí resulta uma constrição, quer da liberdade interna, quer, muitas vezes, da liberdade externa”13.
6.3.3. Sujeitos.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, pois trata-se de crime comum. Cuidado apenas quando o agente for funcionário público, pois se a ameça relacionar-se com o exercício de suas funções o crime passa a ser de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65).
O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa física desde que tenha capacidade de entender o mal prometido. Sendo assim, não há crime quando a ameça é lançada contra crianças de tenra idade, loucos, em desfavor daqueles que estão sob embriaguez completa etc. Note que esta falta de aptidão para compreeder o infortúnio anunciado há de ser absoluta, tratando-se na verdade de crime impossível (art. 17 do CP). Caso contrário - se a incapacidade for relativa - o delito subsiste.
O sujeito passivo também há de ser pessoa determinada ou, ao menos, identificável, afinal a lei diz: ameaçar alguém.
6.3.4. Conduta.
A ameaça é hoje um crime de forma livre. Digo hoje porque outrora (Código de 1890) a lei limitava os meios executivos à palavra oral ou escrita, providência que gerou inúmeras críticas da doutrina mais atenta.
Todavia, para o legislador de 1940 o agente pode utilizar-se da palavra, dos gestos, da escrita ou de qualquer outro meio simbólico capaz de transmitir a mensagem de terror. Daí resulta, inclusive, uma primeira classificação doutrinária da ameaça: oral, escrita, real ou simbólica.
Apenas à título de sugestão literária procure degustar o excelente livro “Corações Sujos”, de Fernando Morais, em que é feito um histórico da organização Shindo Renmei (Linha do Caminho dos Súditos). Para seus seguidores a notícia da rendição do Império era uma fraude e seus integrantes (Kachigumi, isto é: vitoriosos), inconformados com a postura dos japoneses residentes no Brasil que acreditaram na vitória americana, passaram a ameçar e executar os makegumi (derrotados). Pois bem, no livro você irá testemunhar várias formas sui generes de ameaça simbólica e escrita. Vale a pena conferir!
Voltando ao tema principal, saiba que a ameaça também pode ser classificada como:
1) direta –> quando o mal anunciado refere-se à pessoa ou ao patrimônio do ofendido;
2) indireta –> quando a promessa de mal recai sobre terceira pessoa, que possui com o ofendido relação de parentesco, apreço ou amizade;
3) explícita –> é a ameça feita às claras, sem sofismas ou ininteligibilidade;
4) implícita –> é a ameaça oblíqüa, vazada em subterfúgios, é a famosa atitude daquele que brada: “a minha honra só se lava com sangue” ou “não tenho medo, cadeia é para homens”;
5) condicional –> é a que sugere uma ligação entre o mal prometido a um comportamento da vítima, p. ex.: “se você não sair daqui agora eu lhe quebro os dentes”. Aqui tenha um certo cuidado para não confundir com o crime de constrangimento ilegal, pois neste o propósito primordial do agente é, através da ameaça, conseguir a prática ou abstenção de uma conduta. Já na ameaça condicional, prevalece a vontade de causar temor, pânico. Acompanhe a lição de Antolisei:
“Para que em tais hipóteses possa ver-se o delito em questão, é necessário que a ação não seja dirigida a obter imediatamente uma determinada conduta do sujeito passivo, porque de outro modo se apresentaria de acordo com o que antes foi dito, o delito de constrangimento ilegal. Certo é que, na ameaça condicional, o fim do agente é principalmente incutir medo ao ofendido”14.
De qualquer sorte, é indispensável que o mal prometido seja iminente ou futuro, injusto e grave. Note que a gravidade do vaticínio há de ser aferida de forma objetiva, isto é, equalizando a potencialidade ofensiva do mal prometido com as condições pessoais da vítima, inclusive de suportá-lo. Assim, v. g., um homem franzino e pacato dizer a um vitorioso lutador de “vale-tudo” que irá esbofeteá-lo, não é conduta capaz de intimidar, portanto....!
Ademais, não se confunde a ameça com as pragas ou esconjuros, pois nestes casos a efetivação da maldição independe do agente, p. ex., dizer a alguém: “Tomara que um raio caia sobre a tua cabeça”.
Por fim merece destaque dizer que a ameaça subsiste mesmo quando o ofendido estiver ausente, desde que o prenúncio lhe seja dado a conhecer. Aliás, na ameaça por escrito o mais comum é que a conduta seja praticada longe das vistas do ofendido, que só toma ciência da malsinada promessa ao receber o bilhete, a carta etc.
6.3.5. Consumação e tentativa.
Trata-se de crime formal, portanto aperfeiçoa-se no instante mesmo em que o ofendido toma conhecimento da ameaça, independente do mal prometido se concretizar ou de ter ela efetivamente lhe causado temor, desde que para isto fosse hábil.
A tentativa é possível quando o meio empregado admite fracionamento em sua fase executória (ex: ameaça por escrito).
6.3.6. Elemento subjetivo.
É o dolo (direto ou eventual) em manifestar o propósito de causar um mal grave e injusto a outrem. Acrescente-se a isto a consciência e vontade de intranquilizar o ofendido, causando-lhe medo e violando sua paz psíquica. Todavia, não é necessário que o agente tenha realmente a intenção de efetivar o infortúnio anunciado, basta o desejo de incutir temor. Veja a jurisprudência:
“O dolo da ameaça é a vontade consciente de manifestar o propósito de um mal injusto e grave, com o fim de intimidar, pouco importando que o agente, em seu íntimo, não tenha o intuito de realizar o mal prometido”15.
Assim, os sortilégios proferidos animo jocandi, por óbvio que não constituem o delito.
Amiúde se tem discutido sobre a ira e a embriaguez e seus reflexos na configuração do delito. Para alguns, o delito exige ânimo calmo e refletido, sem os quais não se poderia reconhecer o dolo específico da incriminação. Outros, entretanto, rebatem argüíndo que: 1) a ameaça proferida em um instante de cólera ou indignação é ainda mais temerária, isto é, causa ainda mais medo ao ofendido; ademais, não é correto afirmar-se peremptoriamente que a pessoa irada tem por excluída, invariavelmente, a vontade e a consciência de ameaçar; por outro lado, a lei penal não reconhece à emoção e a paixão a condição de excludentes da responsabilidade penal, quanto muito as prevê como circunstâncias atenuantes genéricas ou privilegiadoras; 2) quanto à embriaguez, ainda que completa e proveniente de caso fortuito ou força maior, também não há exclusão do dolo, pois ela (a embriaguez) interfere apenas na culpabilidade, isto é: o fato permanece criminoso, mas o agente pode ficar isento de pena ou tê-la diminuída16.
De minha parte, adoto esta posição.
6.3.7. Ação penal.
É pública condicionada à representação do ofendido, conforme se conclui pela leitura do parágrafo único.
O crime é de menor potencial ofensivo, sujeito, portanto, à disciplina da Lei 9.099/95.
6.4. Seqüestro e cárcere privado.
6.4.1. Considerações iniciais e objetividade jurídica.
Outrora, os crimes contra a liberdade de locomoção do indivíduo eram punidos de forma bem mais severa, inclusive com a pena de morte, época em que se considerava que somente o Rei ou Imperador detinham o poder de privar os súditos do jus ambulandi; assim, quando os particulares violavam o direito de locomoção de outras pessoas era como se, na verdade, estivessem usurpando a própria autoridade do monarca (crime de lesa-majestade).
Foi com Justiniano e sua famosa lei de Talião que abrandou-se o sancionamento, passando-se a punir o criminoso com prisão pelo mesmo período de tempo que havia suprimido a liberdade do ofendido (olho por olho, dente por dente).
Daí por diante destacaram-se os postulados do direito germânico com a previsão genérica do Freiheitsberaubung, modelo legal que compreendia tanto o cárcere privado, a detenção arbitrária e, por assim dizer, outras formas de cerceamento ilegal da liberdade deambular.
A propósito, é necessário conceituar o seqüestro e o cárcere privado, bem como analisar se existem diferenças essencias entre eles. Diz Hungria:
“O seqüestro e o cárcere privado (sequestration, freiheitsberaubung, sequesto di persona) são formas criminosas de supressão ou restrição da liberdade pessoal, encarada esta, notadamente, como jus eundi ultro citroque ou liberdade de ir e vir (...) Parece-nos, entretanto, mais acertado dizer que o seqüestro é que é o gênero e o cárcere privado a espécie, ou, por outras palavras, o seqüestro (arbitrária privação ou compressão da liberdade de movimento no espaço) toma o nome tradicional de cárcere privado quando exercido em domo privata ou em qualquer recinto fechado, não destinado a prisão pública. Tanto no seqüestro, quanto no cárcere privado, é detida ou retida a pessoa em determinado lugar; mas no cárcere privado, há a circunstância de clausura ou encerramento. Abstraída esta acidentalidade, não há que distinguir entre as duas modalidades criminais, de modo que não se justificaria uma diferença de tratamento penal”17.
Evidente que a objetividade jurídica da incriminação é o livre gozo da liberdade de locomoção ou movimentação das pessoas, isto é, a lei tutela o direito individual de ir, vir e ficar.
6.4.2. Sujeitos.
Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Se a privação da liberdade é patrocinada por funcionário público no exercício da função, o crime passa a ser violência arbitrária (art. 322) ou exercício arbitrário ou abuso de poder (art. 350), bem como pode consistir em algumas das modalidades criminosas previstas na Lei 4.898/65 (Lei de abuso de poder).
O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, inclusive as que já sofram alguma espécie de limitação ou restrição da capacidade de locomoção, isto é, os aleijados, deficientes, estropiados ou as pessoas presas e internadas, desde que a conduta ofenda ainda mais esta prerrogativa, que não abrange “somente a liberdade de mover-se por si mesmo (ou com o auxílio de meios ortopédicos ou suplementares: muletas, cadeiras de rodas, etc.), senão também a de fazer-se mover ou poder ser movido por outrem”18. Assim, por exemplo, constitui crime manter paciente internado por mais tempo do que o necessário ou um preso acorrentar outro à cela, limitando ainda mais suas possibilidades de movimento (lembre-se que nestes casos, como não poderia deixar de ser, há de se comprovar o dolo próprio da espécie criminosa).
Há uma dissensão acerca da necessidade de que o sujeito passivo tenha plena capacidade de entendimento, isto é, que possa sentir, entender e “sofrer” com a privação de sua liberdade de ir, vir e ficar. Para alguns, tal discernimento é essencial, não consituindo seqüestro ou cárcere privado as condutas que recaem sobre inimputáveis, doentes mentais, embriagados etc. Outros advogam ser absolutamente dispensável que o ofendido possua consciência da privação ou restrição que lhe é imposta, até mesmo em face da indiferença da lei em relação ao grau de maturidade da vítima. Este é o meu entendimento. Com efeito, penso que dizer, por exemplo, que uma criança pequena não pode ser seqüestrada por que não tem discernimento suficiente para entender a arbitrária restrição ou privação que lhe é imposta, eqivale mais ou menos a sustentar que uma lesão corporal para existir necessita, invariavelmente, que a vítima experimente a sensação de dor.
No entanto, há de ser feita uma advertência: o consentimento do ofendido exlcui a ilicitude do seqüestro ou do cárcere privado. Destarte, se um parente meu, v. g., esforçando-se para passar em um difícil concurso público, me pede para que o tranque em casa por um mês, à guisa de dedicar-se exclusivamente ao estudo, e eu atendo ao seu rôgo, não estou praticando crime algum (Obs.: para ser justificada a minha conduta é preciso que eu tenha conhecimento da autorização e que eu não extrapole o que me foi solicitado).
Destarte, neste particular tem relevância a capacidade de discernimento e entendimento do ofendido, pois só aproveita à causa de justificação (exclusão da ilicitude) o consentimeno válido, isto é, oriundo de pessoa capaz. Acompanhe:
“Para que possa ser eficaz, o consentimento precisa ser expresso e outorgado por sujeito passivo capaz de consentir. Não é válido o consentimento outorgado pelos representantes legais do menor ou incapaz”19.
Por fim, acautele-se quando o ofendido foi criança ou adolescente, pois na hipótese pode incidir o art. 230 do ECA!
6.4.3. Conduta.
Já lhe foi dito que o crime de seqüestro ou cárcere privado consiste na indevida e arbitrária privação ou restrição da liberdade pessoal de ir, vir ou ficar. Também ficou resgistrado que o cárcere privado se particulariza pelo confinamento do ofendido (prender uma pessoa em um pequeno quarto ou aposento da casa, p. ex.), equanto que no seqüestro o atentado à liberdade de locomoção se dá sem cláusura: a vítima fica adstrita a um local ou ambiente maior (deixar uma pessoa retida em um sítio ou mantê-la internada em asilo, p.ex.).
Assim é fácil notar que o agente pode valer-se dos mais diversos meios constrigentes à liberdade de locomoção, desde a violência ou a ameaça, passando pela fraude e pelo uso de inebriantes ou entorpecentes. Admite-se, também, a conduta omissiva, desde que o sujeito ativo se encontre em qualquer uma das hipótese arroladas pelo art. 13, § 2º, alíneas a), b) e c).
Não é preciso que o meio eleito pelo criminoso seja infalível ou insuperável, isto é, que inexista possibilidade de a vítima conjurar a privação de liberdade. Esta possibilidade pode até existir sem descaracterizar a infração, basta que a fuga, por exemplo, implique em perigo, constrangimento, ou mesmo que o ofendido não tenha conhecimento ou destreza para tanto. Imagine trancar uma pessoa idosa em um quarto no terceiro andar de um prédio. Mesmo havendo uma janela no quarto, não seria razoável considerar que o ancião não teve sua liberdade de locomoção tolhida porque poderia dela (da janela) lançar-se!
Veja o que diz Hungria:
“Para que se integralize o crime, em qualquer de suas variantes, não é necessário que a vítima fique absolutamente impedida de retirar-se do local em que a põe o agente: basta que não possa afastar-se (transportar-se para outro lugar) sem grave perigo pessoal (...) É reconhecível o crime até mesmo no caso em que a vítima não possa livrar-se por inexperiência ou ignorância das condições do local, ou por estar sob vigilância, ou no caso, sempre figurado, da mulher honesta que é deixada, sem as vestes, num compartimento aberto ou à margem do rio em que se banhava”20.
É necessário que a privação da liberdade perdure por um período de tempo considerável. Caso seja instantânea ou muito rápida, se tem entendido que, no máximo, equivale a uma tentativa do crime ou, ainda, ao delito de constrangimento ilegal. Confira o excelente enxerto jurisprudencial:
“Indiscutível que há grande afinidade entre a privação de liberdade pelo seqüestro, ou pelo cárcere privado, com o crime de constrangimento ilegal, pois em ambos há uma constrição da liberdade pessoal. Porém, no delito do art. 148 do CP ou que se constringe é principalmente a liberdade de locomoção e a atividade antijurídica se protrai no tempo, ao passo que no constrangimento só há compressão da liberdade pessoal no tocante a determinada ação ou omissão e não há permanência do momento consumativo. Assim, privada a vítima de sua liberdade de locomoção não momentaneamente, em privação rápida ou instantânea, mas por longo espaço de tempo, caracteriza-se o seqüestro e não o constrangimento ilegal”21 (destaquei).
6.4.4. Consumação e tentativa.
Acabei de lhe falar sobre a permanência que caracteriza o delito em estudo, tópico que se relaciona intimamente com a questão da consumação, pois o crime atinge seu instante máximo quando a vítima tem tolhida sua liberdade de locomoção.
Trata-se de crime material e, como dito, permanente. Assim, equanto durar a conduta, renova-se o instante consumativo, fenômeno que autoriza, inclusive, a perpetuação da flagrância deitiva.
A tentativa é possível.
6.4.5. Elemento subjetivo.
É o dolo (consciência + vontade) de privar ou restringir, ilegitimamente, a liberdade de locomoção de outra pessoa.
Repare que não há “espaço” para o chamado dolo específico, ou seja, basta a intenção genérica de cerceamento físico do ofendido, até mesmo em razão do caráter subsidiário do delito:
“O elemento subjetivo do seqüestro é a vontade conscientemente dirigida à restrição da liberdade alheia. Deixa, portanto, de ser crime contra a liberdade pessoal, quando constitui meio ou elemento de outra infração”22.
Com efeito, quando a conduta do agente é animada por um desejo maior do que a simples constrição da liberdade de locomoção da vítima, regra geral se configura outro delito (extorsão mediante seqüestro, rapto, crime contra a segurança nacional etc.).
Não há previsão de seqüestro ou cárcere privado na modalidade culposa.
6.4.6. Formas qualificadas.
Nos §§ 1º e 2º do art. 148 estão previstas as formas qualificadas do delito. No primeiro caso, levou-se em consideração o maior desvalor da ação, enquanto que no § 2º a ratio legis arrima-se no maior desvalor do resultado (crime qualificado pelo resultado). Em frente:
1) se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente (art. 148, § 1º, alínea “a”) –> a primeira qualificadora prende-se à maior reprovação que merece a conduta de quem atenta contra a liberdade de alguém que lhe é extremamente próximo por íntima relação de parentesco, comportamento que revela grave desprezo e vilipêndio aos deveres de comunhão e assistência mútua. Sobre a extensão da norma, acompanhe a citação23:
“A norma qualificadora não pode interpretada extensivamente, de forma que não incide nas hipóteses de ser o ofendido padastro ou genro do sujeito ativo. O mesmo não se pode dizer a respeito dos companheiros reunidos pelos laços da união estável, pois a Constituição Federal, em seu art. 226, § 3º, reconhece expressamente a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Não se trata aqui de interpretação extensiva da norma penal, ou seja, da analogia im malam partem, mas, sim, de mera declaração do seu conteúdo de acordo com o preceito constitucional”24.
Idêntico raciocínio aproveita aos filhos adotivos (art. 227, § 6º, CF).
2) se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital (art. 148, § 1º, alínea “b”) –> nesta segunda hipótese avultam a insidiosidade e a perversidade do criminoso. A uma, porque há o emprego de “requintado meio fraudulento que aumenta a quantidade subjetiva e política do crime”25. A duas, porque, via de regra, o ofendido já se encontra debilitado por doença, velhice, etc., circunstância que propicia ao agente a escolha do meio sub-reptício, ressaltando sua indiferença e maldade. Note que se os médicos ou gestores do hospital, casa de saúde, etc., tiverem conhecimento da ação e, ainda assim, consentirem na internação, respondem em co-autoria.
3) se a privação de liberdade dura mais de 15 dias (art. 148, § 1º, alínea “c”) –> aqui se tem em relevo a maior lesividade objetiva do crime, posto que, quando mais prolongada for a privação ou restrição da liberdade de locomoção do ofendido, por óbvio que se lhe é hipertorfiada a angústia e o sofrimento. Ademais, a considerável permanência na violação da lei exacerba a culpabilidade do agente. (Obs: os 15 dias devem ser contados nos termos do art. 10 do CP, ou seja, incluindo-se o dia do começo).
4) se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção,grave sofrimento físico ou moral (art. 148, § 2º) –> esta é a qualificadora baseada no desvalor do resultado, pois leva em conta a exasperação do sofrimento infligido ao ofendido, que apesar de já se encontrar privado de sua liberdade de locomoção, ainda se vê submetido a tratamento cruel e degradante.
“Os maus-tratos impostos à vítima ou a natureza da detenção justificam a exasperação da pena por aumentarem inutilmente o sofrimento da vítima, ou demonstrarem uma disposição de ânimo cruel, em constraste com o mais elementar sentimento de piedade. Trata-se de qualificadora de natureza mista, que atua sobre a magnitude da culpabilidade e também do injusto”26.
Os maus-tratos englobam as ações que propiciam grave sofrimento à saúde física ou psíquica da vítima (privação de alimentos e vestuário, exposição a intempéries, zombarias, humilhações etc.). Observe, porém, que se forem produzidas lesões corporais, deve ser reconhecido o concurso de crimes.
Já quanto à natureza da detenção, volve-se a lei aos meios degradantes de aprisionamente ou constrição, p.ex.: uso de correntes ou algemas, insalubridade do cárcere etc.
6.4.7. Ação penal.
É crime de ação penal pública incondicionada. Somente no caput, em razão da pena mínima cominada (1 ano de reclusão), admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95).
6.5. Redução à condição análoga à de escravo.
6.5.1. Considerações iniciais.
O Direito Romano já punia a compra, a venda e o assenhoramento do escravo alheio (plagium), todavia o plágio difere em essência do crime de redução á condição análoga à de escravo, pois naquele a escravidão era reconhecida como uma instituição de direito, legalmente admitida e disciplinada27 e o que se incriminava era apenas a conduta irregular no trato do senhorio com o servo, enquanto que na infração em estudo o legislador se arrima na premissa de que todos os homens são livres, não há senhores nem escravos!
Coube aos Práticos classificar o plágio em político, literário ou civil. No primeiro, uma pessoa era alistada no exército de outra nação. O literário versa sobre a usurpação de obra. E finalmente, o civil, que era o apossamento do homem livre ou de servo, com intuito de lucro. Como você já deve ter notado, hoje o termo somente é empregado na segunda concepção.
No Brasil o delito foi previsto no Código Criminal do Império (1830), que “elaborado sob a égide do regime escravocata, tipificava tão-somente a sujeição de pessoa livre à escravidão”28. Confira:
“Art. 179. Reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade.
Penas - de prisão por três a nove annos, e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor que o do cativeiro injusto, e mais uma terça parte”.
O Código de 1890 não previu o crime, que retornou ao rol de delitos com o CP de 1940, sob a crítica de muitos que consideram a previsão supérflua, alegando que nos tempos modernos não se testemunha mais a redução de homens à situação de escravos.
Em que pese a autoridade dos que assim entendem, certo é que em nosso País temos assistido a inúmeras ocorrências, principalmente nas áreas rurais, de grandes proprietários que criminosamente subjugam seus funcionários, tolhendo-lhes a liberdade física e psíquica (é correntio, por exemplo, que em terras do nordeste, agricultores miseráveis sejam compelidos a adquirir alimentos, vestuário, etc. em mercearias dos próprios patrões, acumulando gradativamente dívidas que lhes servem de correntes, pois somente após saldá-las conseguem alforiar-se e recuperar o direito de ir embora). Hoje mesmo29 uma das principais manchetes dos telejornais brasileiros foi o assassinato de três fiscais da Delegacia Regional do Trabalho que investigavam denúncias de trabalho escravo na zona rural de Minas Gerais.
É a verdadeira praga da escravatura branca, batizada por Silva Ferrão ao descrever as agruras impostas aos incautos nordestinos que, em busca de prosperidade no eldorado prometido, migraram para a Amazônia e, ao invés da riqueza profetizada pelos seringueiros, encontraram o pesadelo da escravidão.
E o que dizer do noticiado tráfico internacional e escravização de mulheres para fins de prostituição?
Aliás, o Pacto de San José da Costa Rica dispõe: “ninguém pode ser submetido à escravidão ou à servidão, e tanto estas como o tráfico de mulheres são proibidos sob todas as formas” (art. 6.1. - Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
Portanto, creio que infelizmente ainda somos merecedores da previsão de uma conduta tão primitiva como esta no elenco de crimes.
6.5.2. Objetividade jurídica.
Você já notou que a lei “fala” em redução à condição análoga à de escravo e não à condição de escravo. Ora, isto ocorre porque no ordenamento não se reconhece a possibilidade de haver escravidão. O que pode acontecer é que alguém seja subjugado a ponto de “parecer escravo” ou, como diria Bitencourt:
“Ao referir-se à ‘condição análoga à de escravo’, fica muito claro que não se trata de ‘redução à escravidão’, que é um conceito jurídico segundo o qual alguém pode ter domínio sobre outrem. No caso em exame trata-se de reduzir ‘a condição semelhante a’, isto é, parecida, equivalente à de escravo, pois o status libertatis, como direito, permanece íntegro, sendo, de fato, surpimido”30.
De qualqer modo, o bem jurídico tutelado é a liberdade, mais precisamente o status libertatis, interesse do indivíduo e do Estado. “Busca-se evitar que a pessoa humana seja submetida à servidão e ao poder de fato de outrem”31.
6.5.3. Sujeitos.
Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Caso seja funcionário público o crime pode ser o previsto no art. 350 do CP.
No pólo passivo pode figurar qualquer pessoa física, sem qualquer distinção de raça, idade, sexo, religião, grau de civilização, etc. Ainda que ela consinta na supressão de sua liberdade o delito se concretiza, pois a ninguém é dado abdicar ou dispor de seu status de ser humano livre.
6.5.4. Conduta.
A norma legal preceitua que o crime consiste em reduzir alguém à condição análoga à de escravo; portanto, trata-se de qualquer conduta (crime de forma livre) que subordine uma pessoa à outra, estabelecendo-se uma relação de servidão extrema, em que a vítima tem amplamente espoliada sua liberdade física e psíquica, sob o jugo constante daquele que se colocou na situação fática de senhor.
“A redução de uma pessoa à condição de objecto, de coisa (escravidão) é muito mais grave do que um atentado à liberdade física de movimento em que se consubstanciam o seqüestro e o rapto, pois que implica e significa a negação não apenas desta espécie de liberdade ou das outras manifestações da liberdade (de decisão, de acção, sexual, religiosa, etc.), mas a negação da raiz de todas as expressões da personalidade humana (liberdade, honorabilidade, etc.), que é a dignidade humana”32.
Assim, quando a conduta contemplar também outras formas de privação ou restrição da liberdade de locomoção do ofendido, tais eventos são absorvidos pelo crime de redução à condição análoga a de escravo, o que não impede se reconheça o concurso de crimes com delitos diversos (p. ex.: lesões corporais, crimes contra os costumes, etc.).
Os meios executivos do delito não foram previstos pela lei, pois, como dito, trata-se de crime de forma livre. Contudo, a doutrina tem indicado como exemplo a violência, a ameça, a chantagem ou a fraude. De qualquer modo, não é preciso que o ofendido seja transportado de um lugar para outro (de loco ad locum), ou que sofra efetivos maus-tratos ou violências. Tampouco é indispensável o confinamento ou detenção da vítima. O crime existe ainda que o ofendido goze de certa possibilidade de movimentação (p.ex.: a prostituta que tem autorização do cafetino para circular em determinadas ruas à procura de clientes, mas nas horas de ‘folga’ deve permanecer na casa em que trabalha).
É preciso, porém, que o estado de submissão tenha uma duração que não seja efêmera ou insignificante.
6.5.5. Consumação e tentativa.
Consuma-se o plagium no instante em que o autor impõe seu controle sobre o status libertatis da vítima, inaugurando uma relação de servidão e domínio.
Delito material que é, admite a forma tentada; basta que o agente inicie a prática de atos executórios, mas se veja frustrado na consumação, por circunstâncias alheias à sua vontade (p. ex.: o criminoso é preso em flagrante delito quando transportava trabalhadores rurais que iram trabalhar em suas terras em condições assemelhadas às de escravo).
6.5.6. Elemento subjetivo.
É o dolo, consciência e vontade de assenhorar-se de outrem, reduzindo-lhe a uma condição semelhante a de escravo.
6.5.7. Ação penal.
Crime que se apura mediante ação penal pública incondicionada.
6.6. Violação de domicílio.
6.6.1. Considerações iniciais.
É antiga a tutela da inviolabilidade dos lares. Em Roma a casa era tida como algo sagrado, representava um verdadeiro local de veneração, era um altar. Posteriormente, passou a ser considerada como extensão da personalidade de seu morador. No antigo direito alemão, de início punia-se somente a invasão armada de casa alheia (Heimsuchung), mas logo após foram incriminadas outras formas de violação. Na Idade Média ocorreu fenômeno interessante, pois em um primeiro instante o domicílio recebeu proteção ampla, que albergava quer a invasão do particular como a dos agentes públicos, que não podiam transpor os umbrais da habitação privada sine licentia ou sine mandato ad capiendum. Porém, em seguida, com a subversão dos estatutos municipais, a casa perdeu a tutela legal e só se fazia objeto da preocupação legislativa quando a violação de seu recato servia de meio para empresa criminosa mais grave. Apenas com a vitória do individualismo sobre o hiperestatismo medievo é que ressurgiu, e de lá para cá se consolidou, o especial resguardo da lei penal com a inviolabildade doméstica, perpetuada pelos ideais da Revolução Francesa (la maison de chaque citoyen est un asile inviolable)33.
Observe, todavia, que Hungria confere ao Direito Inglês a primazia de ter elaborado o mais categórico reconhecimento à inviolabilidade do domicílio (antes mesmo da Revolução Francesa), citando, inclusive, trecho do pronunciamento de Lord Chatam no Parlamento Britânico, palavras que, agora, ouso re-transcrever:
“O mais pobre dos homens pode desafiar na sua cabana as forças da Coroa. Embora a moradia ameace ruína, ofereça o teto larga entrada à luz, sopre o vento através das frinchas, a tempestade faça de toda a casa o seu ludibrio, nada importa: acha-se garantida a choupana humilde contra o Rei da Inglaterra, cujo poder vai despedaçar-se contra aquele miserável reduto”34.
No Brasil, desde o Código de 1830 se prevê o crime, embora com algumas variantes na descrição típica ou na escolha do bem jurídico protegido. Assim é que, “o Código Criminal do Império (1830), perfilhando um critério extensivo, incriminava a entrada em casa alheia, invito domini e non jure, mesmo sem o recurso de violência ou de ameaças, entre os crimes contra a segurança individual (Título II). O Código Penal de 1890, inspirado pelo Código Penal Italiano de 1889, elencou o delito em apreço entre os lesivos ao livre gozo e exercício dos direitos individuais (Título IV). O Código Penal vigente (1940) insculpiu a violação de domicílio no Capítulo referente aos crimes contra a liberdade individual.Todavia, demonstrando maior rigor técnico, a inseriu em uma seção própria (Dos crimes contra a inviolabilidade do domicílio)”35.
6.6.2. Objetividade jurídica.
Nem de longe merece prosperar a tese de que o foco da norma é a tutela do patrimônio, até mesmo porque não constitui crime de invasão de domicílio a turbação de imóvel desocupado.
A verdade não é outra senão que o ordenamento jurídico, a partir da própria Constituição Federal (art. 5º, XV: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação judicial), busca conferir excepcional custódia à esfera mais íntima da liberdade individual, que se encerra exatamente nos limites internos da habitação. Minha casa é o meu castelo!
“A intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual, assumem dimensão superior no recesso do lar e aí, mas que em qualquer outro lugar, necessitam de irrestrita tutela legal”36.
Portanto, você pode concluir pacificamente que a objetividade jurídica da espécie contiua sendo a liberdade individual, agora em sua esfera mais íntima e particular.
6.6.3. Sujeitos.
Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum), até mesmo o proprietário do imóvel, quando o bem estiver legitimamente sobre a posse de outrem. Assim, comete o delito em apreço o proprietário que, sem autorização de seu inquilino, invade a casa locada. Veja, portanto, como a lei preferiu proteger a tranqüilidade íntima e doméstica do indivíduo em detrimento da mera conotação patrimonial da conduta! Note, também, que sendo o agente funcionário público e a invasão se der em desconformidade com os preceitos legais, a infração passa a ser majorada (art. 150, § 2º) ou, ainda, crime de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65).
Talvez a questão mais interessante no estudo da violação de domicílio seja a pertinente ao sujeito passivo. Diz a lei: “Entrar ou permanecer clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito....”. Ora, daí se conclui que o sujeito passivo é exatamente a pessoa à qual a expressão“de quem de direito” se refere, cabendo ao estudioso identificá-la no caso concreto, ou seja, é mister estabelecer qual o morador que pode exercer o direito de anuir ou excluir a entrada ou permanência de outra pessoa no domicílio (jus prohibendi).
Para tanto, é necessário lembrar que, via de regra, as casas abrigam mais de um morador e que a co-abitação pode ser regulada por um regime de subordinação ou de igualdade. No primeiro caso, um ou alguns moradores deteêm a autoridade de controlar a entrada de pessoas na residência, permitindo ou vedando o ingresso de estranhos (é o que ocorre, por exemplo, nos ambientes hierarquizados: conventos, quartéis, colégios etc.). Já no regime da igualdade, todos os moradores possuem este poder (uma república de estudantes, p.ex.).
Todavia, ainda assim surgem questões que merecem cuidado rebobrado, senão vejamos:
1ª) Cônjuges: inicialmente devo lhe lembrar que marido e mulher (cônjuges, companheiros, etc.) partilham em igualdade de condições a direção do lar (art. 226, § 5º, CF), portanto, ambos exercem o jus prohibendi. Todavia, pode ser que um deles permita, enquanto o outro vede, a entrada ou permanência de determinada pessoa. Neste caso, deve prevalecer a negativa, “sob pena de haver violação de domicílio em relação ao dissente”37, reconhecendo-se assim o que poderíamos chamar de “direito ao veto” de qualquer um dos cônjuges ou companheiros.
2ª) Filhos : os filhos têm resguardado o direito de permitir que outras pessoas entrem em seus aposentos, desde que não haja proibição dos pais. Lembre-se que aqui, particularmente, há relação de subordinação e não de igualdade, ou seja, os filhos não partilham da direção da entidade familiar (a não ser que a casa seja do filho e os pais nela morem por dever de assistência).
3ª) Empregados domésticos : tal como os filhos, os empregados podem permitir a entrada de outras pessoas em seus aposentos, a não ser que impere ordem em contrário, emanda pelos dirigentes da casa (comumente, marido e mulher).
4ª) Relação de subordinação: prevalece sempre a vontade da pessoa que detêm a autoridade e o controle do local. Pode acontecer, porém, deste poder ou atribuição ser compartilhado, preponderando a proibição em caso de manifestação de vontades contraditórias.
5ª) Relação de igualdade: é o que acontece nos locais de habitação coletiva, onde cada morador exerce o direito de controlar a entrada e permanência em sua célula individual de moradia, sendo que nos espaços comuns (átrios, quadras esportivas, corredores, salões de festas, etc.) a autorização ou proibição pode emanar de qualquer dos moradores. Neste último caso (áreas comuns), havendo contrariedade de uns e permissão de outros, deve prevalecer a vontade da maioria ou, no caso de empate, a proibição (melior est conditio prohibentis).
6ª) Prostitutas: também podem ser vítimas do crime, desde que o aposento violado destine-se ao seu descanso e recato, ou, se for o mesmo em que exerce a prostituição, esteja fechado no instante da invasão.
6.6.4. Conduta.
Vamos com calma para que você possa aprender o que há de mais importante neste tópico. Mais uma vez recorde-se do enunciado legal: “Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”.
“Entrar ou permanecer” são os verbos que consubstanciam a conduta criminosa. Note que trata-se, portanto, de tipo misto alternativo (tanto faz uma ação ou outra, se o agente praticar as duas o crime continua sendo um só). Porém, a lei ainda diz: “clandestina ou astuciosamente ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito”. Assim, as ações descritas pelos verbos devem ser executadas de forma clandestina, astuciosa ou franca.
Entrar significa ingressar, penetrar, colocar-se no interior do ambiente. Saiba que este ingresso deve ser efetivo, completo. Lembro-me de um espisódio ocorrido em Brasília em que um ladrão, no afã de ingressar em uma mansão do lago sul, colocou a cabeça entre o pergolado e nele ficou preso, com a cabeça no interior da casa e o resto do corpo do lado de fora. Adaptando um pouco a situação (uma vez que na hipótese a invasão de domicílio era absorvida pelo furto), e somente para efeitos ilustrativos, você pode afirmar que neste caso não haveria crime de invasão de domicílio consumado, subsistindo apenas a tentativa.
Já a segunda espécie de conduta é mais intrigante, pois pressupõe uma entrada lícita. Assim, há na verdade dois instantes importantes na empreitada criminosa: o anterior, que contempla a entrada permitida; e o posterior, consubstanciado na permanência não querida ou não consentida. Lembre-se, todavia, que “a permanência não se refere apenas àquele que acaba de entrar, mas também ao que, morando, até, na casa, não mais tem permissão para ficar, tal qual acontece com a empregada despedida”38. Também caracteriza permanência ilícita a atitude do agente que, admitido ao interior da casa, adentra em recinto para o qual não foi convidado (quarto do casal, p. ex.) e lá permanece, contrariando a vontade dos residentes39. De qualquer maneira, para que se configure o delito é necessário que a permanência se dê por um intervalo de tempo razoável: a mera claudicância ou a hesitação pasageira em sair do interior da casa, não são suficientes!
Contudo, não basta que o agente entre ou permaneça na casa, é mister que tanto o ingresso quanto a permanência se operem de forma clandestina, astuciosa ou franca.
Clandestina é a entrada ou permanência sub-reptícia, feita às ocultas, sorrateira, é aquela realizada ao avesso das vistas do morador. O agente penetra na casa sem ser visto ou nela se mantêm sem que o morador disto saiba (p.ex.: após entrar com permissão do morador, o agente se esconde debaixo de uma cama). É indiferente, no caso de entrada, que o criminoso utilize meio anormal de ingresso. Assim, tanto faz que entre pela porta da frente ou que destelhe a casa e nela ingresse. Todavia, se o criminoso se vale de violência contra a coisa, o crime torna-se qualificado, nos termos do § 1º, que brevemente ocupará nossa atenção.
Astuciosa é a conduta ludibriante, que induz o ofendido a erro, ao engano, à falsa percepção da realidade e, assim, exita o criminoso em obter, fraudulentamente, seu consentimento ou driblar, ardilosamente, sua vigilância. Observe bem: a astúcia pode servir, repito, para que o agente consiga permissão de entrar ou para escapar da vigilância do morador. Desta forma, comete o crime tanto o vigarista que ilude a vítima fazendo-se passar por fiscal da prefeitura e ingressando na residência sob a alegativa de realizar inspeção, como também o espertino que anuncia uma catástrofe ou um grave acidente na vizinhança, valendo-se da oportunidade em que determinado morador sai à rua no afã de ver o que tinha acontecido para entrar na casa desguarnecida.
Por último, a lei trata da entrada ou permanência franca, isto é, de forma ostensiva, induvidosa, às escâncaras, o agente não esconde ou simula sua intenção; ao revés, desafia abertamente o dissenso do morador. Este lhe diz: “Não entre”, mas mesmo assim ele ingressa! Saiba que o dissenso pode ser expresso (como no exemplo imediatamente acima) ou tácito (quando se deduz pelas atitudes do morador (p.ex.: o morador mantém as portas fechadas, ou deixa os sistemas de alarme ligados, etc.), mas de qualquer sorte é essencial que exista o desacordo (dissenso) para a configuração da entrada ou permanência ostensiva (franca).
Já nas formas de clandestinidade e astúcia o dissenso é presumido. Preste atenção: o dissenso tácito não se confunde com o presumido. Naquele, se deduz o descacordo em virtude da postura da vítima mesmo, enquanto que na presunção se conclui pelo dissenso tendo em vista a conduta do sujeito ativo, pois se não houvesse o desacordo percpetível do ofendido por quais motivos o agente utilizar-se-ia de subterfúgios ou simulações?
Concluindo:
1 - nas modalidades de ingresso ou permanência com astúcia ou clandestinidade o dissenso é presumido;
2 - quando a conduta for de franca oposição à vontade negativa do ofendido, esta vontade há de ser, expressa ou tacitamente, exteriorizada.
6.6.5. Consumação e tentativa.
Primeiro observe que o crime em apreço é daqueles classificados como de mera conduta, ou seja, ele não opera nenhuma modificação no mundo externo, basta a entrada ou a permanência arbitrárias para que o delito se complete.
Na conduta de entrar, a infração se tem por consumada quando ocorre o efetivo e total ingresso do agente no interior da casa violada. Nesta hipótese o crime é instantâneo. O mesmo não ocorre quando o agente permanece, pois agora sua conduta deve prolongar-se no tempo por intervalo considerável (crime permanente). Confira a boa lição de Prado:
“Na modalidade entrar, consuma-se o crime no momento em que o agente transpõe efetivamente o limite que separa a casa ou suas dependências do mundo exterior. Trata-se, então, de delito instantâneo. Não obstante, na modalidade permanecer, a consumação se verifica quando o agente persiste em continuar no local, por tempo juridicamente relevante, capaz de demonstrar o propósito de aí continuar contra a vontade da vítima. Cuida-se aqui de delito permanente cuja execução se protrai ao longo do tempo, perdurando até que o agente se retire”40.
A tentativa é prefeitamente possível, embora segundo alguns autores, de difícil configuração. Todavia, penso que não existam tantas dificuldades assim. Na modalidade de entrar, já lhe ofertei um exemplo (o do rapaz que ficou ‘entalado’ no pergolado). Na de permanecer basta que a pessoa seja encontrada e expulsa antes de ‘ter ficado’ no interior da casa por tempo suficiente para caracterizar a infração (p. ex.: após ter sido convidado para um aniversário, um dos convidados se esconde no quarto de empregados com o intuito de lá permanecer de forma clandestina, porém imedatamente é visto se escondendo e, em conseqüência, expulso).
6.6.6. Elemento subjetivo.
A violação de domicílio somente é prevista como espécie dolosa e o dolo agrega a consciência e a vontade de entrar ou permanecer em casa alheia, apesar do dissenso de seu morador.
“O que informa o delito do art. 150 do CP é a intenção de entrar ou permanecer, sem direito ou ilegitimamente, contra a presumível vontade do dono, na casa alheia, violando o objeto da tutela penal, que, na espécie, é a paz doméstica. Trata-se de infração de mera conduta, que não exige qualquer resultado danoso para se aperfeiçoar. O dolo genérico é bastante para sua configuração”41.
Assim, prescinde-se de qualquer motivação para a conduta, isto é, não interessa o porquê da invasão ou da permanência, a não ser que esta motivação dirija-se à execução de crime mais grave, hipótese em que a violação de domicílio, por ser delito subsidiário, resta absorvido pela infração gravior.
Como não há previsão de crime culposo, se o famoso “papudinho”, após “tomar todas”, entra na casa do vizinho pensando ser a sua, por óbvio que não comete o crime do art. 150. Você está pesando que é brincadeira e que isto não acontece? Então leia Abusado, de Caco Barcelos, e veja o que ele conta sobre o personagem (real) Dr.Obséquio!
6.6.7. Formas qualificadas.
O § 1º do art. 150 enumera as circunstâncias que qualificam o delito. Tais circunstâncias prendem-se ao tempo, ao local, ao modo de execução do delito e à quantidade de pessoas que cometem o crime. Ei-las:
1ª) se o crime é cometido durante a noite –> antes de qualquer outro comentário recomendo que procure ler a interessante lição de Hungria sobre os critérios utilizados pela doutrina para estabelecer o conceito de noite42. Digo, também, que houve época em que o legislador brasileiro optou por incriminar de maneira autônoma (um artigo próprio) a violação de domicílio noturna, porém este critério não mais prospera. Vamos ao que realmente interessa: noite há de ser entendida como o período do dia em que escasseia por completo a luz natural e, com isto, debilitam-se as defesas do ofendido, bem como são facilitadas as condições de impunidade do agente. Eis a razão da lei sancionar com mais rigor a hipótese.
“Mais uma vez, verifica-se o jogo entre a defesa privada e a pública. A noite, conforme a hora, enfraquece a defesa individual e torna mais fácil a empresa para o agente, e, então, a lei aumenta a defesa pública, com a majoração da pena”43.
Todavia, como as uma das razões da qualificadora é a debilidade ou o enfraquecimento das possibilidades de defesa da vítima, se isto não ocorrer o crime volta à sua formulação simples (caput). Assim acontece, por exemplo, quando no instante da tentativa de entrada os moradores estão participando de um jantar nos jardins da casa e, em conseqüência, permanecem atentos à proteção do lar.
2ª) se o crime é praticado em lugar ermo –> local ermo, no léxico, é o lugar deserto, desabitado, solitário, mas na acepção legal há de ser mais do que isto, precisa ser habitualmente isolado. Veja:
“Deve ser esta expressão entendida no sentido material ou geográfico: é o lugar habitualmente (quer de dia, quer de noite), e não acidentalmente solitário (...) É o lugar normalmente privado de socorro”44.
O isolamento (do local) que preocupa a lei é aquele que favorece o delinqüente na execução do crime e, paralelamente, que dificulta a defesa e o socorro da vítima. Desta forma, é lógico que se a casa a ser invadida localiza-se em local ermo, mas no momento da ilícita entrada o local estiver bastante freqüentado ou movimentado, a qualificadora não incide.
3ª) se o crime é cometido com o emprego de violência –> no item 6.2.4. lhe ofertei as noções doutrinárias necessárias sobre a violência como meio executivo de um delito. Agora ei-la de novo, sob nova roupagem: como qualificadora. Destarte, hipertrofia a sanção penal a utilização de força física a pretexto de se violar a tranqüilidade e o recato do lar. Note que o legislador não especificou ser a violência patrocinada contra a pessoa ou contra a coisa, em face do que, ambas aproveitam ao desiderato agravador. Aliás, Celso Delmanto defende que esta violência (§ 1º, do art. 150), só poderia ser a praticada contra a pessoa, sob pena de se chegar a um “contra-senso” da lei, pois nos casos de violência contra a coisa (arrombamento de uma porta, p. ex.) o crime seria qualificado, mas quando a ação criminosa envolvesse apenas violência moral (grave ameaça) a qualificadora não incidiria”.45 Todavia, em que pese a autoridade do crítico, certo é que a violência que qualifica a violação de domicílio é a física (portanto, excluída a moral), perpetrada quer contra a pessoa, quer contra coisa. Lembre-se que, como de regra, quando da violência resultam lesões corporais ou morte, deve ser reconhecido o concurso de crimes (confira o preceito-sanção do § 1º: “... além da pena correspondente à violência”).
4ª) se o crime é praticado com o emprego de arma –> sob o emprego de arma, por obséquio releia o que ficou consignado no item 6.2.7., “b”. De mais, apenas registro que para a perfeita caracterização da qualificadora o emprego da arma há de ser efetivo, isto é, o agente deve utilizar seu armamento para atacar a vítima ou para infundir-lhe medo, empunhando-a ou portando-a de forma ostensiva ou ameaçadora46.
“A ofensa è liberdade individual é, nestes casos, maior, pela intranqüilidade que gera o emprego da arma, não sendo de desprezar-se a circunstância de maior perigo que acarreta”47.
5ª) se o crime é praticado por duas ou mais pessoas –> por último, qualifica o delito a “desproporcionalidade de forças”48 entre os que atacam e o que defende. Com efeito, é indiscutível que a união de forças para a execução de um crime, portencializa a agressão e dificulta sobremodo as possibilidades de defesa ou contra-ataque do ofendido, circunstância que autoriza o tratamento mais rigoroso da lei.
6.6.8. Forma majorada.
Acabamos de ver as formas qualificadas (§ 1º) e logo em seguida, no § 2º, a lei trata da espécie majorada, isto é, do crime de violação de domicílio ornamentado por circunstâncias que contribuem para o incremento da sanção prevista no preceito básico (caput), na fração específica de 1/3 (um terço).
Nessas formas majoradas o delito há de ser praticado por funcionário público em uma destas situações: 1ª) fora dos casos legais; 2ª) com inobservância de formalidades previstas em lei; 3ª) com abuso do poder.
Os casos legais a que a norma se refere são aqueles que excluem a antijuridicidade (ilicitude) da violação de domicílio, nos termos do § 3º, que será objeto de nossa atenção dentro de instantes. Assim, se a conduta do agente público não se enquadrar em um dos incisos do referido parágrafo, a pena deve ser majorada de 1/3.
Porém não basta que o agente esteja autorizado pela lei para entrar ou permanecer no domicílio alheio, é preciso, ainda, que obedeça às formalidades previstas em vários dispositivos, tais como aquelas do art. 245 do Código de Processo Penal, sem o que incide a causa especial de aumento da pena.
Por fim, também enseja o agravamento da reprimenda a conduta do agente público contaminada pelo abuso de poder, i. e., quando o funcionário público diligencia com excesso (submetendo os moradores da casa a constrangimento desnecessário, p. ex.).
Note, todavia, a advertência de Capez:
“a Lei n. 4.898/65, no art. 3º, b, considera abuso de autoridade qualquer atentado à inviolabilidade domiciliar, e ‘considera-se autoridade, para efeitos desta Lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração (...) A lei de Abuso de Autoridade é uma lei especial em relação ao art. 150, § 2º, pois regula especificamente a responsabilização do agente público nas esferas adminsitrativa, civil e criminal. Assim, responderá ele nos termos da respectiva lei, e não nos termos do art. 150, § 2º, do CP, em face do princípio da especialidade”49.
6.6.9. Exclusão da ilicitude.
Falei à pouco dos casos legais em que a lei permite (justifica) a entrada em domicílio alheio ainda que contrariando a vontade do morador. São situações especiais de exclusão da ilicitude. Veja: são especiais porque não impedem a incidência das demais causas justificativas (genéricas) previstas na Parte Geral do CP (arts. 23), bem como em razão de se aplicarem somente ao crime em comento.
Diz a lei: Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências:
1ª) durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência –> aqui somente é permitida a entrada durante o dia, o que não impede contudo que, iniciada a diligência no período permitido (durante o dia), continue noite adentro. As formalidades legais, como já referi, são aquelas encontradas no CPP. Saiba, também, que esta causa de justificação se aplica quer para o cumprimento de uma ordem judicial de prisão (prisão cautelar ou decorrente de uma setença condenatória transitada em julgado), como também para a realização de diligências processuais ou mesmo administrativas. Assim, tanto faz a entrada de um oficial de justiça encarregado de penhora como a de um fiscal do Ministério da Saúde que necessita inspecionar as condições de salubridade da residência (combate à dengue, por exemplo). Apenas um lembrete final: uma ordem judicial que implique em entrada no domicílio alheio pode ser executada à noite, desde que o morador consinta na entrada do agente público;
2ª) a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser –> aqui não há limitação de horário, até mesmo em razão do caráter emergencial que envolve a permissão legal. No entanto, alguns autores de escol têm defendido uma tese interessante e merecedora de nossa melhor atenção, veja: a CF determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante, o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI). Ora, o CP fala em quando algum crime está sendo praticado ou na iminência de o ser. Na primeira parte não há problema: se o crime está sendo praticado, existe uma situação de flagrante delito. Porém, na segunda hipótese - crime iminente - não se pode falar em flagrância delitiva, em razão do que sustenta-se que a norma constitucional não teria recepcionado esta úlitma parte do inciso. Acompanhe:
“O art. 5º, XI, é expresso ao autorizar o ingresso na casa de alguém, durante à noite, somente quando houver flagrante delito, o que não estaria abrangendo a hipótese de iminência de cometimento do crime (...) Logo, não se pode invadir o domicílio de alguém, à noite, para impedir um crime que está prestes a ocorrer”50.
Porém, se é certo que a iminência de um delito não configura a situação de flagrância exigida pela Carta, também é induvidoso que nestes casos a autorização de entrada pode arrimar-se no permissivo constitucional de prestar socorro, isto é, quando o agente se vê diante de um crime iminente, pode invadir a residência para socorrer a vítima potencial do delito que se avizinha.
6.6.10. Compreensão da expressão “casa”.
Muito embora o crime verse sobre violação de domicílio, e este não se confunda com o conceito de casa, por ser ela (a casa) o objeto material comumente atacado na conduta em foco, optou o legislador por fixar (interpretação autêntica) a abrangência jurídico-penal deste conceito, e o fez no § 4º, muito embora se saiba que casa é qualquer construção ou espaço utilizado por alguém (ou por sua família) como moradia, permanente ou transitória.
Observe que usei a expressão “espaço” exatamente porque, às vezes, o local eleito como abrigo não é uma construção propriamente dita, tal como ocorre com os residentes em homecars, traillers, barcos, barracas, etc.
Portanto, o inciso I do § 4º (qualquer compartimento habitado) contempla as hipóteses anômalas ou especiais de moradia, bem como as construções habituais (de alvenaria, madeira, etc.). Apenas à título de curiosidade faço referência a um servidor público aposentado que mora numa casa de madeira rusticamente construída nos galhos de uma árvore (mangueira) dentro da Base Aérea de Fortaleza. Entretanto, é mister que que a construção ou o espaço estejam sendo efetivamente habitados, ainda que possam estar eventualmente vazios.
“O que se deve ter presente é que todos os lugares mencionados sirvam de habitação ou centro de atividade, ainda que o sujeito passivo esteja ausente no momento do fato, pois como diz Cuello Calón, precisamente la morada del ausente es la mas necesitada de protección”51.
Em seguida rFebruary 24, 2004efere-se a lei ao aposento ocupado de habitação coletiva (quartos de pensão, apartamentos de hotel, etc.). Para Hungria, a referência pode ser considerada desnecessária, pois “ninguém pode duvidar que, numa casa de cômodos, por exemplo, o aposento ocupado privativamente por uma pessoa ou família é sua casa, no sentido de lar doméstico”52. Realmente, se moro em um hotel, por óbvio que o apartamento que ocupo é minha casa, merecendo o resguardo e o amparo da lei.
No inciso III contempla-se o compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. É a lei protegendo o escritório do advogado, a sala de atendimentos do médico, o atelier do artista plástico, enfim o local de exercício profissional ou de qualquer outra atividade lícita. Lembre-se: as dependências destes locais abertas ao público ficam fora da proteção legal.
Em outro viés, passa a lei a excluir do conceito de casa (§ 5º):
1º) as habitações coletivas em seus espaços abertos ao público;
2º) as edificações destinadas à prática de jogos, ao consumo de bebidas e outras do mesmo gênero. Lembre-se, porém, que a lei protege a parte interna desses locais, nos termos do já comentado § 4º, inciso III.
6.6.11. Ação penal.
A violação de domicílio é crime de ação penal pública incondicionada. No caput e no caput c/c § 2º, incide a Lei 9.099/95, mas em todas as hipóteses do artigo admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95).
6.7.Violação de correspondência.
6.7.1. Considerações iniciais.
A partir de agora iremos estudar a Seção que trata dos crimes contra a inviolabilidade de correspondência; sendo esta considerada pelo legislador como importante expressão da liberdade individual .
“A tutela da correspondência justifica-se por si mesma: sem ela não haveria, em sua plenitude, liberdade de manifestação de pensamento”53.
Esta proteção já é antiga, conhecida desde o Direito Romano, mas coube à Revolução Francesa adorná-la com a concepção vanguardista de que o sigilo das correspondências integra o multifacetário campo das liberdades individuais. Acompanhe:
“No direito intermédio, considerava-se falsum não só o fato de rasgar (lacerare), queimar (comburere) ou ocultar (celare) cartas alheias, como também o de abri-las (aperire, desigillare), para revelar (ostendere) o seu texto. Neste último caso, se não havia revelação a outrem, configurava-se o crimen stellionatus (...) Nenhum privilégio, porém, acobertava a correspondência privada contra a sindicância dos delegados do Príncipe, que, quando julgassem conveniente, podiam devassar-lhe o conteúdo. As cartas missivas estavam expostas à livre espionagem oficial. Somente com a Revolução Francesa e o seu sistema de ‘direitos do homem e do cidadão’ foi que se proclamou a irrestrita inviolabilidade da correspondência” (grifei)54.
No Brasil, “as Ordenações Filipinas (1603) estabeleciam para a abertura de cartas penas que variavam segundo a condição social do remetente, do destinatário e do agente”55, culminado com a pena de morte quando a missiva pertencia ao Rei, à Rainha ou ao Príncipe.
No Código Criminal do Império havia uma previsão interessante que considerava prevaricação a subtração, supressão ou abertura de cartas por funcionários públicos (art. 129, § 9º)56. De lá para cá, o crime sempre mereceu a atenção dos legisladores brasileiros, sofrendo, é lógico, algumas variações ao sabor dos influxos constitucionais.
Hoje, há na Seção III o rol de quatro modalidades delituosas, sendo que uma parte delas foi tacitamente revogada pela Lei 6.538/78 (que dispõe sobre os crimes contra o serviço postal e o serviço de telegrama).
De qualquer sorte é preciso que você, antes de analisar os crimes em espécie, se cientifique de algumas curiosidades, ou melhor, singularidades desta Seção.
Em primeiro turno, saiba tratar-se de direito penal sancionador do constitucional, isto é, os crimes aqui previstos (e suas respectivas sanções) servem como resposta do Estado às condutas que, em derradeira análise, violam a própria Constituição Federal.
Com efeito, diz o art. 5º, XII:
“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Por outro lado, as infrações previstas nesta parte do código são tidas como de definição anômala, isto é, “não são de mera descrição objetiva, pois contêm elemento normativo que diz respeito à antijuridicidade, enunciado pelo advérbio indevidamente”57, o que indica a vontade do legislador em enfatizar a natureza estritamente dolosa das condutas tipificadas.
Também fica clara a natureza subsidiária dos crimes de violação de correspondência. Assim, se dita violação serve à prática de delito mais grave, por este resta incorporada (extorsão ou estelionato, p. ex.).
Passando especificamente ao estudo do crime previsto no art. 151 (violação de correspondência), preciso lhe advertir que este modelo legal foi parcialmente revogado (revogação tácita) pela Lei 6.538/78, referida instantes atrás.
Realmente, o art. 151 do CP previa em sua estrutura original:
a) no caput: o crime de violação de correspondência;
b) no § 1º, inciso I: o crime de sonegação ou destruição de correspondência;
c) no § 1º, incisos II, III e IV: variantes do crime de violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica.
Pois bem, com a publicação da Lei dos Serviços Postais o disposto no art. 151, caput e 151, § 1º, inciso I (violação de correspondência e sonegação ou destruição de correspondência, respectivamente) foram revogados, passando a vigir os preceitos do art. 40, caput e 40, § 1º, da nova lei.
Todavia, nos dois casos, o conteúdo descritivo do crime permaneceu inalterado, apenas a sanção sofreu atenuação, verifique!
6.7.2. Objetividade jurídica.
Já afirmei, e volto a fazê-lo, que a tutela à inviolabilidade das correspondências insere-se no largo campo de defesa das liberdades individuais, mais precisamente na esfera da liberdade de manifestação do pensamento e na proteção da intimidade e privacidade do ser humano.
Hungria já dizia que:
“Perfeitamente justificada é a classificação dos crimes contra a inviolabilidade de correspondência entre os crimes contra a liberdade individual. O direito de correspondência é uma expressão da liberdade do indivíduo no tocante à sua imprescindível comunicação com os outros. A livre manifestação da nossa vontade, na vida de relação, estaria impedida ou seriamente perturbada, se fosse dado a qualquer um devassar ou desviar a nossa correspondência”58.
6.7.3. Sujeitos.
Tratando-se de crime comum, qualquer pessoa pode praticá-lo, exceto, é claro, o remetente e o destinatário da correspondência violada.
Note que se o agente comete o crime com abuso de função em serviço postal, o crime passa a ser qualificado, nos termos do art. 151, § 3º.
O crime em estudo é de dupla subjetividade passiva, isto é, a conduta viola bens jurídicos de dois personagens distintos. No caso, são ofendidos tanto o remetente quanto o destinatário da correspondência devassada.
6.7.4. Conduta.
A fórmula utilizada pela lei - devassar - contenta-se com a impertinência indevida (elemento normativo do tipo) do agente. Ele toma ciência, total ou parcialmente, do conteúdo de correspondência alheia.
“Por via de regra, o agente se inteira da correspondência pela abertura. Nada impede, para a configuração do delito, que a devassa se faça pondo a espístola contra a luz, ou mediante a utilização de outro meio. Indiferente, da mesma forma, que o agente, depois de inteirado do conteúdo da correspondência, venha a fechá-la”59.
O objeto material do crime é a correspondência; portanto, precisamos conhecer seu conceito e as questões que sobre ela grassam.
Doutrinariamente se tem conceituado correspondência como toda e qualquer forma de comunicação interpessoal, diversa da conversação, realizada por instrumento ou meio hábil à transmissão do pensamento humano. Contudo, na Lei 6.583/78 se definiu correspondência como “toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta, através de via postal ou por telegrama”, providência tímida que limitou em demasia o alcance do enunciado. Veja, por exemplo, que a definição legal não acolhe um dos mais utilizados meios de comunicação da atualidade, os e-mails!60
Mas não basta que a ação recaia sobre uma correspondência, é mister que esteja ela fechada, pois caso contrário presume-se a renúncia do remetente à sua inviolabilidade. “É próprio da correspondência aberta que ela possa ser lida por todos. Somente a correspondência fechada indica a vontade do remetente no sentido de acobertá-la da curiosidade alheia”61.
Também deve ser pessoal, ou seja, dirigida à pessoa determinada, ainda que anônima ou que o remetente proteja-se com o uso de pseudônimo. O destinatário é que deve ser certo!
Outro traço essencial é a atualidade da correspondência. “Com o decurso do tempo, assume ela aspecto retrospectivo, afetivo, histórico. Poderá prestar-se a colecionadores, à comprovação de fatos, mas não tem correlação com a liberdade individual”62.
No que diz respeito ao conteúdo, não há restrições. A correspondência pode ser séria ou jocosa, escrita em vernáculo ou em língua estrangeira, criptografada ou não, basta que o agente a devasse.
Observe que a lei não fez qualquer restrição quanto à natureza da correspondência, se pública ou privada, portanto...!
Por fim lembre-se que a devassa há de ser indevida. A expressão indevidamente, como já consignado, é elemento normativo do tipo e realça a necessidade de que a conduta se opere non jure. Assim se, v. g., o agente, autorizado pelo remetente, toma conhecimento do conteúdo de uma missiva, não comete crime de violação de correspondência.
6.7.5. Consumação e tentativa.
Consuma-se o delito no instante em que o agente absorve o conteúdo da correspondência. Observe que apenas a abertura do envelope ou do lacre não são suficientes à consumação. É preciso que ocorra, efetivamente, a devassa da correspondência. Assim se, por exemplo, o agente abre envelope que abriga missiva dirigida a outrem e é surpreendido antes de iniciar a tradução do texto que fora escrito em língua estrangeira, o crime não passa da forma tentada.
6.7.6. Elemento subjetivo.
É o dolo, somatório da consciência e vontade de devassar o conteúdo de uma correspondência e de o fazê-lo de forma indevida.
Diz Mirabete:
“O dolo é a vontade de conhecer o teor da correspondência. O erro afasta o dolo; não pratica o crime aquele que lê, por engano, correspondência dirigida a outrem, ainda que por negligência no verificar o nome do destinatário, uma vez que a lei não consagra a forma culposa do delito”63.
6.7.7. Sonegação ou destruição de correspondência.
Já te alertei sobre a revogação do § 1º, inciso I, do art. 151. Portanto, cumpre-me analisar o art. 40, § 1º, da Lei 6.538/78, que diz: “Incorre nas mesmas penas (refere-se ao caput) quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte”.
Observe o que há de essencial:
A objetividade jurídica permanece sendo a liberdade individual, em sua vertente da livre comunicação e expressão. Tutela-se o direito ao recato das manifestações pessoais e intersubjetivas de pensamento.
O objeto material do crime é a correspondência alheia, aberta ou fechada, traço que distingue esta modalidade criminosa da anterior (violação de correspondência). Todavia, “se a correspondência estava fechada e, antes da sonegação ou destruição, foi devassada pelo agente, não haverá dois crimes, mas um crime único (o de sonegação ou destruição), pois tais atos não são, afinal de contas, senão modalidades, penalmente equivalentes, de um mesmo malefício”64.
A conduta tipificada refere-se ao apossamento. O agente deve apoderar-se da correspondência alheia, com o especial fim de sonegá-la (escondê-la, ocultá-la) ou destruí-la (inutilizá-la). “Apossar-se significa não só subtrair, tirar a correspondência de quem legitimamente a detém, como transformar a detenção ou mera disposição dela (empregado, funcionário postal etc.) em posse indevida para sonegação ou destruição”65. Observe, todavia, que tendo a correspondência valor econômico a sua sonegação constituirá furto e a destruição, dano. Verifique, com igual esmero, que a lei não exige completo ocultamento ou inutilização da correspondência, persistindo o delito nas hipóteses de parcial sonegação ou destruição.
Consuma-se o delito com o mero apossamento da correspondência pelo agente. A posterior sonegação ou destruição, pertencem ao exaurimento do crime.
O elemento subjetivo é composto pelo dolo genérico (consciência e vontade) do agente em apoderar-se indevidamente da correspondência alheia, acrescido do dolo específico de o fazê-lo para sonegá-la ou destruí-la.
6.7.8. Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica.
Continuando o estudo do art,151, § 1º, você nota que os incisos II, III e IV integram o crime de violação de comunicação telegráfica, radielétrica ou telefônica. Assim, para facilitar seu aprendizado irei tratar de cada inciso de forma autônoma.
1º) no inciso II a lei diz: “quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas”.
O objeto jurídico permance o mesmo, a liberdade de correspondência. Porém, “claro que a correspondência a que aqui se alude não é a que constitui objeto dos delitos do art. 151, § 1º.: é a comunicação telegráfica ou radioelétrica e a conversação telefônica em si, independentemente de serem gravadas ou escritas em telegrama ou fonograma. Em tais hipóteses, o agente capta a corrente elétrica ou onda hertziana ou toma conhecimento do despacho telegráfico ou da conversação telefônica”66. Observe que, pelo menos na correspondência telegráfica, o agente dos telégrafos tem perfeito conhecimento do conteúdo que lhe cumpre transmitir, e é exatamente por isto que o inciso II não incrima a devassa, mas a indevida divulgação e/ou transmissão ou uso abusivo desse conteúdo. São estas, pois, as forma de conduta:
Divulgar é tornar público, publicar, propalar. Todavia, não é preciso que um grande número de pessoas tome conhecimento do teor da correspondência, já que se somente uma o fizer o crime igualmente se aperfeiçoa, sendo que pela segunda forma de conduta, transmitir a outrem. Por fim, incrimina-se a utilização, isto é, o agente serve-se da correspondência para qualquer finalidade, desde que o uso não se destine à prática de delito mais grave (extorsão, p. ex.), caso em que impera a absorção (majort absorbet minorem)67.
Destaco novamente que não é qualquer divulgação, transmissão ou uso da comunicação alheia que configuram o delito. É indispensável que a divulgação e a transmissão sejam indevidas e que a utilização se dê de forma abusiva.
“O tipo descrito pelo legislador não é de mera descrição objetiva, é anormal, caracterizado pelo elemento normativo, condizente com a anjtijuridicidade - indevidamente e abusivamente. A ação há de ser non jure, ilícita ou ilegítima”68.
O dolo se traduz na consciência e vontade de praticar as condutas típicas e o delito consuma-se com a efetiva divulgação, transmissão ou utilização da comunicação, sendo perfeitamente possível a forma tentada.
No que concerne especificamente ao sigilo das comunicações telefônicas - a única aqui que admite interceptação, segundo a interpretação corrente do art. 5º, XII, da CF -, você deve saber que a Lei nº 9.296/96 dispõe sobre a matéria, permitindo a providência quando: a) houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; b) a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis; c) o fato constituir infração penal punida, no mínimo, com reclusão (a contrario sensu do art. 2º). A diligência será determinada sempre por juiz, de ofício ou a requerimento da autoridade policial, no inqúerito ou do Ministério Público, tanto na fase inquisitorial como durante a instrução processual.
Saiba, também, que o art. 10 da Lei 9.296 prevê um crime que se aproxima muito deste que agora estudamos; verifique: “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”. Não obstante as semelhanças, não houve revogação do art. 151, § 1º, II, do CP!69 Aliás, antes da vigência da Lei 9.296/96, os repertórios de jurisprudência continham, às mancheias, decisões no sentido de atipicidade da conduta de interceptar, quando não se desse a posterior divulgação ou o uso daquilo que fora “grampeado”. Veja:
“A interceptação telefônica, para a caracterização do crime do art. 151, § 1º, II do CP (violação de comunicação telefônica), pressupõe que de algum modo tenha havido difusão, para terceiro, da matéria conhecida clandestinamente (gravada), eis que o simples ato de interceptar conversação telefônica, não caracteriza delito algum perante o Código Penal”70.
Ora, agora a simples interceptação basta para caracterizar infração penal, circunstância que comprova a autonomia dos modelos legais em comparação (art. 10 da Lei nº 9.296 e art. 151, § 1º, II do CP).
2) inciso II: “quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior”.
Neste turno pune a lei a conduta de obstar (impedir), de por empecilho, de interromper a comunicação telegráfica ou radioelétrica e a conversação telefônica de outras pessoas. Repare que o crime é de forma livre, admitindo um sem-número de ações aptas a causar a interrupção da comunicação ou conversação. Assim, tanto comete o delito aquele que corta os fios da rede telefônica, quanto o outro que, valendo-se de meios eletrônicos, por exemplo, obstaculiza uma transmissão radioelétrica. É indiferente que a interrupção se dê no início da comunicação ou já em seu final, pois “tanto se ofende o bem aqui tutelado, obstando que a telecomunicação tenha início, como interrompendo-a, de modo que a correspondência não se complete, ignorando uma pessoa o que a outra lhe queria dizer. Por ambos os modos impede-se a comunicação”71. A espécie criminosa só admite a modalidade dolosa e encontra seu momento consumativo no exato instante em que surge o obstáculo à comunicação ou conversação. A tentativa é possível.
1º) inciso IV: “quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal”. Você pratica algum esporte “radical” (off road, vôo livre, tracking, etc...) ou já participou da organização de algum evento de grande porte (congressos, desfiles, shows, etc.)? Em caso afirmativo, é bem possível que, mesmo ignorando, você tenha praticado um ilícito penal, pois quer nas práticas esportivas conhecidas como radicais, quer na organização de eventos, é comum a utilização de rádios de comunicação e, na maioria das vezes, os operadores não possuem habilitação para tanto. Porém, este inciso IV foi tacitamente revogado pelo disposto no art. 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/62), que diz:
“Constitui crime punível com a pena de detenção de um a dois anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos.
Parágrafo único. Precedendo ao processo penal, para os efeitos referidos neste artigo, será liminarmente procedida a busca e apreensão da estação ou aparelho ilegal”.
Da leitura você pode observar que trata-se de norma penal em branco, uma vez que condiciona a tipicidade à inobservância das norma regulamentares da atividade de exploração das comunicações radioelétricas.
As condutas incriminadas pela lei são a instalação ou a utilização de emissores e receptores radioelétricos, desde que tais condutas se desenvolvam à margem das disposições legais e regulamentares.
Consuma-se o delito quando se efetiva a instalação ou a simples utilização, sendo que a pena é majorada da metade nos casos em que da conduta implique dano a terceiro.
Observe com cautela que a norma em comento carrega consigo uma condição de procedibilidade, qual seja, antes de iniciado o processo penal é mister que tenha sido realizada a busca e apreensão do aparelho (ou instalação) radioelétrico (parágrafo único).
Por fim, cito o lúcido comentário de Fragoso (referindo-se ao Código de Telecomunicações da época - Lei 4.711/62):
“A lei penal, incriminando a instalação e utilização ilegal de aparelhos e instalações de rádio, emissores e receptores, atendeu ao perigo que tal atividade pode representar para a livre correspondência telegráfica ou radiotelegráfica. O conteúdo do fato é, porém, nitidamente contravencional, e melhor avisado andaria o legislador se o incluísse na lei de contravenções”72.
6.7.9. Causa especial de aumento da pena.
O § 2º trata de uma majorante que incide somente nas hipóteses criminosas previstas no CP, até mesmo porque na Lei 6.538/78 (art. 40, § 2º), há idêntica previsão.
Refere a lei que a pena há de ser acrescida da metade quando ocorrer dano para outrem. Note, porém, que o dispositivo se ocupa “não do dano ínsito, inerente à devassa ou destruição, mas a qualquer outro, econômico ou moral, causado a qualquer pessoa”73. Na verdade, o dano causado pode ainda ser público ou privado e recair sobre o remetente, destinatário ou qualquer outra pessoa que não seja, obviamente, o agente do delito. De qualquer sorte, é indiferente se este, o agente, obtem algum tipo de vantagem, basta o dano à terceiro74.
6.7.10. Formas qualificadas.
Quando o agente viola, sonega ou destrói correspondência alheia com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico, incide a qualificadora prevista no § 3º, que aumenta a pena para detenção, de 1 a 3 anos.
Note que a lei não “fala” em abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65), mas de abuso de função, isto quer dizer que “só é qualificativo o abuso quando praticado na função específica do agente”75 (telegrafista, carteiro, telefonista, operador de rádio, etc.). Portanto,
“a violação de correspondência por funcionário do Correio, configura o delito do art. 151, § 3º, do CP e não o previsto no art. 3ª da Lei 4.898/65, pois nem todo funcionário público pode ser considerado autoridade, no conceito penal, para o efeito de distinguir crimes funcionais do de abuso de autoridade, previstos aqueles no Código e estes na citada lei”76.
6.7.11. Ação penal.
A ação penal é pública condicionada à representação (art. 151, § 4º). Havendo mais de um ofendido - remetente e destinatário, p.ex. - e ocorrendo divergência entre ambos quanto ao exercício do direito de representação, basta que um deles o faça para que o MP possa deflagrar a actio poenales.
Nas hipóteses do art. 151, § 1º, IV e § 3º, a ação passa a ser pública incondicionada.
No caput e nas hipóteses dos §§ 1º e 2º, aplicam-se as disposições da Lei 9.099/95.
6.8. Correspondência comercial.
6.8.1. Objetividade jurídica.
Agora lhe apresento uma modalidade especial do delito de violação de correspondência, voltado exclusivamente à tutela da correspondência comercial. Assim, muito do que já foi consignado nos itens anteriores serve ao estudo deste crime, em razão do que abordarei somente suas particularidades.
O bem jurídico protegido é, de igual sorte, a liberdade individual, na vertente específica da liberdade de comunicação.
Bitencourt adverte que:
“o bem jurídico protegido aqui também é a inviolabilidade do sigilo da correspondência, acrescido de duas condições especiais, não exigidas no artigo anterior: uma relativa ao sujeito ativo, que só pode ser ‘sócio ou empregado’; outra referente à natureza do destinatário da correspondência, que é limitado a ‘estabelecimento comercial ou industrial’”77.
6.8.2. Sujeitos.
Leia o caput e veja que estamos diante de um crime próprio, uma vez que a lei elegeu como sujeito ativo da figura típica somente o indivíduo que seja sócio ou empregado do estabelecimento comercial ou industrial, remetente ou destinatário.
Portanto, outras pessoas que possuam vínculos diversos com a entidade não praticam o delito, ressalvada a hipótese de co-autoria. Por exemplo: os vendedores autônomos e os representantes comerciais.
É desnecessário que o sujeito ativo seja o sócio ou empregado responsável por lidar com a correspondência, pois a lei exige apenas que o agente abuse de sua condição (de sócio ou de empregado) e não que abuse da função.
Sujeitos passivos são os estabelecimentos comerciais ou industriais, remetentes e/ou destinatários da correspondência.
A doutrina tem se referido ao sujeito passivo no singular. Penso eu que, invariavelmente, tanto a empresa remetente quanto a destinatária figuram ombreadas no pólo passivo da incriminação, pois a conduta do agente (sócio ou empregado de uma delas) atingiu o interesse de ambas em preservar a inviolabilidade das correspondências.
6.8.3. Conduta.
Trata-se de crime de ação múltipla. A lei “fala” em: desviar (dar destino diverso), sonegar (ocultar, deixar de entregar a quem de direito), subtrair (surrupiar, furtar, retirar), suprimir (destruir, eliminar) ou revelar (dar conhecimento, divulgar) o conteúdo de correspondência comercial.
Lembre que a conduta deve revestir-se de uma condição essencial: o agente atua com abuso de condição, isto é, age indevidamente, contrariando suas obrigações e deveres (inclusive os de lealdade) para com o estabelecimento. Sua ação, ademais, pode recair na correspondência de forma integral ou parcial. Assim, tanto faz ter sonegado o inteiro teor de uma carta comercial, como tê-lo feito somente em relação a determindado trecho do expediente. Todavia, é indispensável tratar-se de correspondência comercial.
“Caso a comunicação do pensamento não compreenda qualquer assunto relacionado à atividade comercial ou industrial, ainda que a correspondência seja remetida ou destinada ao estabelecimento, só poderá ocorrer o delito de violação de correspondência comum”78.
Por outro lado, se o sócio ou empregado praticar mais de uma das condutas previstas no artigo, ainda assim responderá por um só crime. É o caso, p. ex., do empregado que subtrai e destrói a correspondência.
Por fim, saiba com Hungria que, “é preciso, para a existência do crime, que haja, pelo menos, possibilidade de dano, seja este patrimonial ou moral”79.
6.8.4. Consumação e tentativa.
Consuma-se o crime no instante em que se efetiva qualquer uma das condutas descritas pelo legislador (desvio, sonegação, subtração, supressão ou revelação do conteúdo da correspondência).
Sendo todas as modalidades executivas passíveis de fracionamento (crime plurissubsistente), não há obstáculos ao reconhecimento da forma tentada.
6.8.5. Elemento subjetivo.
É o dolo (direto ou eventual) de violar a correspondência comercial, praticando qualquer das condutas previstas no artigo, cônscio de estar agindo com abuso de sua condição de sócio ou empregado.
6.8.6. Ação penal.
O crime é de ação penal pública condicionada à representação do ofendido.
“Titular do direito de representar serão tanto a pessoa jurídica quanto os sócios, quando o sujeito ativo houver sido um empregado; quando, porém, o sujeito ativo tiver sido um dos sócios, serão a própria pessoa jurídica e os demais sócios. Sócios e pessoa jurídica podem representar conjunta ou separadamente. A renúncia de qualquer deles não prejudica o direito dos demais”80.
6.9. Divulgação de segredo.
6.9.1. Noções iniciais.
Na Seção IV, o legislador ocupou-se de salvaguardar a inviolabilidade dos segredos, elegando-a como derradeira manifestação da liberdade individual e reconhecendo a todos o direito de proteção contra as indébitas indiscrições na vida privada.
“Trata-se de um interesse que diz com a liberdade individual, pois esta sofreria grave restrição se o indivíduo não tivesse a exclusiva disponibilidade dos próprios segredos ou não pudesse fazer confidências sem ficar exposto ao ‘cair na boca do mundo’. Perfeitamente explicável, portanto, é a tutela penal desse relevante interesse, bem como a inclusão dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos entre os crimes contra a liberdade individual”81.
Assim foram originariamente previstos dois modelos penais: Divulgação de segredo (art. 153) e Violação do segredo profissional (art. 154). Todavia, a Lei nº 9.983/2000 acrescentou novo molde criminal (art. 153, § 1º - A), que, apesar de inominado, trata da divulgação ilícita de informações sigilosas ou reservadas contidas ou não nos bancos de dados ou nos sistemas de informações da Administração Púbica.
É hora, então, de avançarmos no estudo da Divulgação de segredo.
6.9.2. Objetividade jurídica.
É, como dito, a liberdade individual no que tangencia o direito ao resguardo da intimidade pessoal, bem jurídico protegido a partir mesmo da Carta Excelsa (art. 5º. X).
Note, contudo, que a tutela penal não goza de amplitude demasiada, pois incide somente em favor dos segredos, confidências ou intimidades veiculadas em documento particular ou correspondência confidencial.
6.9.3. Sujeitos.
Aqui você precisa redobrar a atenção. Sujeito ativo somente pode ser o destinatário ou o detentor da correspondência, ainda que, neste último caso, o agente a possua de forma ilegítima, isto é, “tanto pode ser sujeito ativo do crime aquele que possui licitamente o documento ou correspondência, in nomine proprio ou in nomine alieno, como o sonegador ou o possuidor furtivo”82.
Nesse último caso, lembre-se que a subtração de correspondência constitui crime; porém, quando a subtração destinar-se somente à posterior divulgação, surge uma relação de crime meio/crime fim, em razão do que apenas a divulgação de segredo absorve o delito transeunte.
Note, também, que não figura como sujeito ativo deste crime a pessoa que divulga o conteúdo da correspondência ou do documento por tê-los vistos ou por “ouvir dizer”, pois a lei exige a condição de destinatário ou detentor (crime próprio).
Quando ao remetente, “somente poderá figurar como agente em caso de participação, quando determinar, por exemplo, ao destinatário ou detentor a divulgação do segredo contido no documento ou correspondência”83.
Sujeito passivo, por sua vez, pode ser qualquer pessoa, desde que lhe interesse a não-divulgação do segredo ou confidência contidos na epístola ou no documento.
Via de regra, o sujeito passivo é o remetente ou o autor do documento, mas nada impede que seja o próprio destinatário ou detentor, nos casos em que, por exemplo, o detentor divulga o segredo contra a vontade do destinatário, e vice-versa.
6.9.4. Conduta.
O núcleo da incriminação é indicado pelo verbo divulgar, que significa tornar público, comunicar a um número significativo de pessoas, sendo indiferente o meio utilizado pelo agente (rádio, televisão, discurso, etc.), haja vista tratar-se de crime de ação livre.
Observe a necessidade de existir uma difusão extensiva do segredo, ou seja, que o meio eleito pelo agente propicie a uma quantidade considerável de pessoas o seu conhecimento. Desta forma, se o conteúdo protegido é repassado para uma só pessoa, não há crime. Acompanhe a lição de Mirabete:
“Segundo alguns doutrinadores, basta que o segredo seja comunicado a uma só pessoa, mas a maioria exige que seja ela feita a várias. A circunstância de ter o legislador empregado o verbo divulgar e não o de transmitir a outrem ou revelar, como o fez nos arts. 151, § 1º, inciso II e 154, dá apoio à segunda orientação”84.
Por outro lado, é mister que a divulgação ocorra sem justa causa (elemento normativo do tipo). Assim, se o agente propala segredo contido em uma missiva, mas o faz na defesa de direito ou interesse legítimo, p. ex., não aperfeiçoa o delito.
Lembre-se que a conduta deve recair necessariamente sobre documento particular ou correspondência confidencial, sendo indispensável, em qualquer caso, que a divulgação torne público algo realmente tido como segredo, pois o delito encontra-se elencado na Seção que trata dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos. Todavia, não é bastante que o autor do documento ou o remetente da epístola classifiquem-nas por confidenciais, é preciso ainda que a reserva em torno do conteúdo protegido corresponda a razoável motivo ou interesse (econômico ou moral), do autor, do remetente ou de terceira pessoa85. Afinal,“exige-se que o informe divulgado pelo sujeito ativo seja portador de alguma relevância, pois, se inócuo ou frívolo, a conduta do agente será atípica. Não são, portanto, todos os fatos da vida privada merecedores da proteção jurídico-penal. A vontade da vítima, por si só, não basta para conferir caráter sigiloso ao fato: é preciso que aquela manifestação de vontade coincida com a objetiva valoração do dano que se busca afastar”86.
Dessa forma, você pode concluir que não haverá crime se da divulgação do fato não resultar a possibilidade de dano para outrem.
6.9.5. Consumação e tentativa.
Você acabou de ver que o crime de divulgação de segredo exige a possibilidade de dano para alguém. Portanto, você pode afirmar com tranqüilidade que trata-se de crime formal, isto é, tem seu momento consumativo antecipado pelo legislador - a lei não espera a ocorrência do dano, tem por perfeita a infração ante a mera possibilidade de prejuízo; se, por ventura, ele vem a ocorrer, há apenas o exaurimento do delito.
Destarte, o momento consumativo é aquele em que o agente divulga o segredo contido na missiva ou no documento particular.
A tentativa é possível, embora de difícil configuração.
“A tentativa é de difícil configuração, mas teoricamente possível, pois não se trata de crime de ato único, e o fato de prever a potencialidade de dano decorrente da conduta de divulgar, por si só, não a torna impossível”87.
6.9.6. Elemento subjetivo.
É o dolo (consciência e vontade) de divulgar conteúdo de documento particular ou correspondência confidencial, cônscio da possibilidade de, com isto, causar prejuízo para outrem.
Não há dolo específico nem previsão do crime na forma culposa.
6.9.7. Divulgação de informações sigilosas ou reservadas definidas em lei.
Já lhe disse que a Lei nº 9.983/2000 acrescentou ao art. 153 um novo modelo criminal que versa sobre a divulgação de informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, constantes ou não dos sistemas de informações ou bancos de dados da Administração Pública, prevendo uma sanção de 1 (um) a 4 (quatro) anos de detenção e multa.
A mim me parece que a providência legislativa fere a boa técnica. Primeiro porque a previsão deveria ter sido feita de forma autônoma (no capítulo que trata dos crimes contra a Administração Pública), sem vinculação necessária com o delito de divulgação de segredo, até porque o sujeito passivo dessa novel infração é sempre o Estado. Em segundo turno, entendo que a redação do dispositivo é perdulária, pois se as informações podem ou não constar dos bancos de dados ou sistemas de informações da Administração, para que então mencioná-los?
No mais, resta salientar que o tipo é norma penal em branco, pois exige uma norma complementar que classifique as informações em sigilosas ou reservadas (Lei nº 8.159/91).
6.9.8. Ação penal.
Em regra é pública condicionada à representação do ofendido (§ 1º). Contudo, devido às inovações trazidas pela Lei 9.983/2000, quando houver prejuízo para a Administração Pública, a ação será pública incondicionada.
Observe: sempre que “a informação divulgada envolver interesse da Administração Pública, é de se presumir o prejuízo, que não precisa ser concretamente demonstrado”88.
No que se refere ao art. 153, caput (divulgação de segredo), constitui ele crime de menor potencial ofensivo e, portanto, inteiramente sujeito aos ditames da Lei 9.099/95.
6.10. Violação de segredo profissional.
6.10.1. Noções iniciais.
Durante a nossa existência muitas vezes precisamos confiar particularidades, intimidades e segredos pessoais a indivíduos que exercem determinadas funções, ministérios, ofícios ou profissões. É o que acontece, por exemplo, quando nos consultamos com um médico, ou procuramos conforto e orientação espiritual junto ao sacerdote, ou, ainda, nas oportunidades em que somos sinceros ao advogado que contratamos para patrocinar uma defesa criminal.
Essas pessoas são conhecidas como confidentes necessários e entre elas e os segredos que lhe são confiados deve se estabelecer uma relação inquebrantável de lealdade, a ser preservada pelo interesse de ordem pública em combater a iniqüidade ou a má-fé destes que desempenham papel relevante na manutenção da saúde, no acesso à justiça ou no amparo espiritual do corpo social.
Hungria, sempre citado, lembrado e homenageado, escreveu com tinta de ouro sobre a matéria. Acompanhe (peço desculpas pelo longo trecho, mas você merece esta citação por completo):
“Dizia Kant que, para aferir-se da moralidade ou imoralidade de um fato, o melhor critério era imaginá-lo, hipoteticamente, transformado em norma geral de conduta: se a vida social ainda fosse possível, o fato é moral; do contrário é imoral. A antinomia de um fato humano com a moral positiva está na razão direta de sua nocividade social. É bem explicável, portanto, que entre as ações imorais que, por sua maior gravidade, constituem o injusto penal, figure a violação do segredo profissional. Se fosse lícita a indiscrição aos que, em razão do próprio ofício ou profissão, recebessem segredos alheios, estaria evidentemente criado um entrave, muitas vezes insuperável, e com grave detrimento do próprio interesse social, à debelação dos males individuais ou à conservação e segurança da pessoa (...) Suponha-se que o médico e o advogado, por exemplo, não estivessem, no exercício de sua atividade profissional, adstritos a silêncio em torno de fatos que lhes são necessariamente confiados, ou que vêm a conhecer por dedução, mas cuja publicidade acarretaria sacrifício à reputação, à razoável vaidade (que é um dos mais imperiosos e despóticos sentimentos humanos), ao crédito, ao interesse moral ou econômico, enfim, de seus clientes: não há dúvida que grande número de pessoas preferiria deixar-se roer de certas moléstias vergonhosas ou imolar-se à mais temerária das lides a recorrer à ciência de um facultativo ou ao patrocínio de um causídico (...) O Estado tem vital interesse na saúde do povo, no império do direito e da justiça, na segurança dos negócios, na tranqüilidade dos ânimos...”89.
6.10.2. Objetividade jurídica.
Mais uma vez a lei ocupa-se em tutelar a liberdade individual, agora sob o prisma especial da esfera íntima dos segredos.
Lembre-se que a própria Constituição Federal determina que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X).
Essa esfera íntima dos segredos, “é o núcleo mais profundo da intimidade, que engloba a aspiração individual de conservar intocadas a tranqüilidade de espírito, a paz interior, fatalmente perturbadas pela publicidade ou intromissão alheias”90.
6.10.3. Sujeitos.
Analisando a descrição típica você logo conclui tratar-se de crime próprio, pois o sujeito ativo há de ser alguém que tem ciência do segredo ou da confidência alheia em razão de sua função, ministério, ofício ou profissão.
É interesante destacar que o legislador pátrio evitou uma enumeração taxativa daqueles que podem vir a figurar como sujeitos ativos da incriminação, preferindo uma referência genérica (sistema aberto), mas que, de qualquer sorte, limita as possibilidades de adequação ao modelo legal.
A lei refere-se, como visto, a função, encargo permanente ou temporário derivado de lei, convenção, contrato social, decisão judicial ou administrativa; ministério, atividade geralmente de origem religiosa ou de assistência social; ofício, serviço manual ou mecânico; profissão, toda e qualquer modalidade de atividade laboral marcada pela habitualidade e voltada ao lucro.
Em qualquer hipótese é preciso que o agente obtenha o conhecimento do segredo em razão desta sua especial condição de confidente necessário, ainda que a confidência que lhe seja confiada fosse, em verdade, desnecessária. Acompanhe:
“mesmo que uma confidência não tenha sido efetivamente necessária, merecerá a tutela penal se houver um liame de causa e efeito entre o conteúdo do serviço prestado e o que, em virtude dele, é revelado pelo paciente (...) Assim, se no curso de uma entrevista médica o cliente explica que o seu depauperamento orgânico se origina de dificuldades financeiras que atravessa, é manifesto que este último informe não carecia ser fornceido, mas também estará abrangido pelo dever de sigilo”91.
Observe que não é indispensável ao agente desempenhar a função, o ministério, o ofício ou a profissão no tempo do crime, basta que tenha tido conhecimento do segredo à época em que o fazia. Desta forma, p. ex.: se um psiquiatra passa a revelar, após aposentar-se, as confidências que recebia de seus clientes quando os tratava, pratica violação de segredo.
“Podem igualmente cometer o crime os auxiliares ou ajudantes das pessoas obrigadas ao sigilo profissional, desde que venham a ter conhecimento do segredo em razão de suas atividades”92.
Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa. Repare que nem sempre a pessoa que revela o segredo é a prejudicada com sua divulgação. Como de regra, o sujeito passivo é sempre o indivíduo que tem a intimidade violada com a quebra do segredo sobre si.
6.10.4. Conduta.
A conduta típica é revelar, que significa transmitir, por qualquer forma (crime de forma livre), a outra pessoa o segredo ou a confidência de que teve conhecimento em razão da condição de confidente necessário.
Note que a conduta de revelar é menos ampla do que a de divulgar, pois enquanto nesta se exige a comunicação para diversas pessoas, na revelação basta que o segredo seja repassado a um indivíduo.
Atente ao fato de que a revelação deve ser sem justa causa, uma vez que o dever de segredo, às vezes, cede espaço até mesmo ao seu revés, isto é, em alguns momentos é o próprio ordenamento que compele o confidente a transmitir o que sabe em razão de seus misteres. É o que ocorre, por exemplo, com os médicos que devem notificar à autoridade pública certos diagnósticos, sob pena de incidirem na descrição do art. 269, omissão de notificação de doença. Por outro lado, em determinadas ocasiões excepcionais o dever de sigilo também é desconstituído diante de excludentes da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, etc.), v. g., o advogado que revela ser seu cliente o verdadeiro autor de um delito, para impedir que um inocente seja levado ou mantido na prisão injustamente. Há, ainda, exclusão do crime, quando o titular do segredo permite sua revelação. Porém,
“caso o segredo pertença a mais de uma pessoa - e a todos estiver vonculado o confidente, por um dever jurídico de fidelidade -, o assentimento para a revelação daquele deverá partir de todos os seus titulares. Em havendo conflito de vontades quanto à conservação do caráter sigiloso do fato, reputa-se desautorizada sua revelação”93.
De qualquer sorte, da revelação há de surgir ao menos possibilidade de dano ao titular do segredo; veja bem: a lei contenta-se com a mera possibilidade, assim não precisa que o dano realmente ocorra. Contudo, as revelações de conteúdo frívolo não concretizam o tipo! Esta possibilidade de dano refere-se tanto ao prejuízo material, como ao moral, público ou privado.
6.10.5. Consumação e tentativa.
Consuma-se o crime no instante mesmo em que o segredo alheio é revelado, presente a potencialidade danosa.
Quanto à tentativa há uma certa dissidência doutrinária, sendo majoritária a opinião de que é possível embora de difícil configuração.
6.10.6. Elemento subjetivo.
É somente o dolo, representado pela vontade livre e consciente de revelar segredo alheio, sem justa causa para fazê-lo.
Por outro lado,
“por mais grave que seja a culpa (stricto sensu), não faz surgir a punibilidade do fato. Assim, o médico que deixa, com inescusável negligência, sobre a mesa de um restaurante a carta em que um cliente lhe comunica uma doença secreta, estará isento de pena, ainda quando, lida a carta por outrem, se torne amplamente divulgado o seu conteúdo. A mesma isenção de pena beneficiará o advogado que, por exemplo, conversando imprudentemente em voz alta com o seu constituinte, mencione o fato secreto, de modo que um terceiro, inapercebido, venha a inteirar-se dele”94.
6.10.7. Ação penal.
Trata-se de ação penal pública condicionada à representação. A violação de segredo é crime de menor potencial ofensivo, sujeito assim aos preceitos da Lei 9.099/95.