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Textos_Juridicos-->Adão & Eva Na Nova Era (PsycheCity) -- 19/11/2006 - 13:31 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130952595272432000
A BOATE
“BIG APPLE”


Apressada Halma entra no camarim de “star” da boate “Big Apple”. Os freqüentadores do bar convivem com a ansiedade por vê-la e espiá-la, através dos efeitos sonoros e visuais nos três shows noturnos de streaptease. Chegou de táxi quinze minutos antes de subir ao palco. Pede desculpas ao cabeleireiro e a manicura que se aproximam. Os freqüentadores ignoram: ela é mãe de uma garota de onze, Lilith, e de um menino de dez, Sasha Kadja.


As vinte e cinco primaveras revelam uma adolescente em pleno gozo de uma superlativa vitalidade. Mulata exportação, completa, para turista nenhum botar defeito, nem o Vargentelli. A pele transmite uma intensa embriaguez sedutora. Suprema sensualidade flui para a platéia estupefata com a elasticidade do corpo dançante, seminu.


Quando no palco, a excitação inusitada prolonga-se através da aura, estende-se a todos, dá-se em fluxos, expande-se pelos pêlos e poros da epiderme da platéia. Faz arrepiar. Ninguém precisa saber, nem se pergunta, como ela consegue esses efeitos especiais. As pupilas, duas esferas verde amareladas, insinuam-se na libido dos espectadores, reflexos da íris diamante, desafia, aumenta o desejo extasiado dos admiradores.


Insidioso calor quântico emana das moléculas dos espectadores e infiltra-se nas moléculas da dançarina. Como grãos de pólen que se irradiam de muitas células, torna-se a fêmea hospedeira, a exercitar a magia da intersensualidade. Contentam-se com simulação potencial, com sexo virtual. Ela simplesmente os expurga da sensação de, realmente, apesar das aparências, serem fracos e pusilânimes, quase indefinidos. Mesmo os que se acreditam garanhões, poucos poderiam ser páreo para ela.


Enquanto Halma não chega ao palco, as doses se multiplicam nos copos entornados pela ânsia voyeur dos clientes excitados pela virtualidade de uma cópula sem as condições essenciais para realizar-se. Contentam-se em vê-la e guardar a imagem da fêmea, segundo cada necessidade de idealização.


— Quando dança o Kama-Sutra ao vivo, ninguém se safa de sua sedução. Alguém comenta enquanto admira a stripper, a fazer arder as faces afogueadas:


— Exuberante excitação. Nunca me senti tão estimulado. Outro voyeur, mais idoso: “Com ela dispenso o Viagraw.”


— Por isso pagam ingresso: para desfrutá-la com o olhar:


— “Boa noite Cinderela”.


A imagem da cupidez, a formigar na polpa dos dedos, dos copos e palitinhos, às sinapses e neurônios. A filósofa de balcão, provoca a resposta:


— Quando chegam à cama privada, com o muito pouco que restar dessa volúpia, uma vez ao lado do corpo muito menos atrativo da cara-metade doméstica, vêem que conseguem, quando muito, uma ereção papai-mamãe, uma ejaculação de três segundos.


— O leito conjugal é quase sempre broxante. Os comentários continuam.


Quanto mais tarda a galgar o palco, mais fatura a gerência da casa noturna. A ansiedade transforma-se em drinques que se renovam e tira-gostos que somem dos pratos.


Raro privilégio vê-la, mais sensual que a stripper Semi Loore. Muito mais naturalmente dotada, Halma alimenta as chamas da fogueira noturna dos instintos saturnais, 50 reais por vez, três vezes por noite, muito aquém do cachê de 12 milhões de dólares da americana. Embora Halma seja incomparavelmente mais sensual, não atua em filmes pornôs.


Outra página do livro da volúpia arde aos olhos da platéia, quando ela empina o bumbum bulindo, moreno, atraente como uma grande maçã. Em volta do vinco entrecoxas, a angelical curvatura branca da linha do biquíni, cinturão de sacanagem, tatuado no corpo pelo mais picante dos arquitetos: o espaço solar da praia de Maresias, onde passou um ardente fim de semana.


A lascívia flui quente da música de fundo, em compassos que penetram a imaginação das testemunhas, chamas de uma estação que apenas começa: o verão na capital de São Paulo.


Halma sobe ao palco pela terceira vez, às duas horas e trinta minutos. No balcão frontal, Leandro verte um coquetel de vodka, pinga, suco de abacaxi e cerveja caracu. Psitransporta-se do olhar às coxas da striper para a intimidade familiar. Sente-se traído pela mulher, pela filha Sabrina, pelas atitudes padronizadas da rotina. As finanças em baixa, e a sexualidade. Ele faz justiça ao dito popular noturno: Quem não tem dinheiro nem sexo não consegue pensar em outra coisa.


Os ardentes pentelhos pintados de verde-amarelo do xibiu de Halma expandem-se em sua direção. A caverna rosachoque da mulher desnuda-se em prazerosos nichos ardentes, como se a apenas alguns centímetros da ponta da língua de Leo.


Ele viaja como se as chicotadas vindas do palco, fossem enlaçá-lo, envolvê-lo, fazê-lo participar de uma sessão de sexualidade sadomasô. A ponta do chicote de pelúcia e couro flamejante, estala a poucos centímetros do rosto. Ele solta a língua nas coxas entreabertas que se recolhem. Passa a ponta dos dedos pelas bordas do vinco oferecido. Repete, a sussurrar: “Sabrina minha filha, papai te ama... muito...”


A magia de Halma faz vibrar o tesão ambiental. O odor de bebida inflama-se, flameja na alimentação dos salgadinhos e coquetéis. Em derredor da bela da noite, as primeiras labaredas de um fogo azulado flamejam. Elas sobem pelas omoplatas, crescem como asas de um arcanjo ígneo, prestes a fazê-la flutuar.


O garçom observa Leo lamber avidamente o que sobrou da água cristalizada no copo. Está a querer fazer penetrar a carranca dentro do minúsculo aro de vidro. O órgão muscular do paladar, alongado, contorce-se para dentro, para cima e para baixo, como se as estrias finas do que resta das pedras de gelo, pudessem ser penetradas pela língua.


— Mais uma dose, doutor? Aceita.


— Essa xana é demais, penetra em tudo, parece assombração. Comenta um advogado que vê a cena com olhar esgazeado. Como se pego em flagrante, Leo desconfia da intrusão. Olha de lado recompondo-se:


— Ah, sim, certeza. E volta a concentrar-se no conteúdo da nova dose: as minúsculas pedras de gelo tilintam ao movimento rotativo do copo. Fundem-se à vodka. Sem conversa.


Rossi, um jornalista que está mais à esquerda do balcão, sorri. Há na cena algo de patético. Não sabe o quê. Acha engraçado. A mulher ao lado também sorri. Halma, de branco, está a se despir, exceto do véu e da tiara: O corpo a se contorcer ao som mais intenso dos acordes da Rai Orquestra interpretando o Bolero de Ravel sob a regência de Molinari-Prandelli.


Leandro fixa os olhos na dançarina, embasbacado com a beleza da singulasridade dos fenômenos luminosos. Chamas azuladas, mais parecem asas angélicas, se destacam dos ombros da stripper. Tremeluzem como se ela fosse um magnífico Serafim, empenhado numa mágica operação de alçar vôo sob a influência e a inspiração transcendental das chamas da música.


Os espectadores, surpresos, embasbacados, reclamam a interferência de um segurança que envolve a dançarina numa toalha úmida e a retira do palco com a ajuda de um garçom e de outra stripper. As testemunhas, estupefatas, presenciam o extravagante espetáculo. Afinal compreendem: o fogo blue, com chamas amareladas, não fazia parte da iluminação do show.


Ela estava ardendo mesmo, na sutileza das chamas. Literalmente. Halma foi substituída por outra dançarina. Pouco depois, deitada numa maca e embarcada numa ambulância, segue rumo ao pronto-socorro do Hospital das Clínicas.


“Corpo ardente no palco da boate inflama-se em faíscas de paixão”. Dia seguinte Leandro viaja sob a influência surrealista da manchete e do texto do jornal: “Corpo em chamas arde no tablado giratório do teatro...”


CINZAS
PARLAMENTARES

O Jornal Nacional noticia outro caso de combustão humana espontânea (CHE). Aconteceu com o deputado federal Tasso Dwarf, em plena sessão vespertina da Câmara Baixa em Brasília. A notícia desperta a curiosidade de Rossi. Estranha que o diretor da estação de tv da Câmara dos Deputados haja alegado não ter filmado o flagrante incandescente do parlamentar. Dos poucos membros do Parlamento, presentes à Câmara quase vazia, nenhum soube falar à reportagem com precisão.


Apenas vagas opiniões, tipo:


— Essa coisa de autocombustão ameaça transformar-se em epidemia?


O deputado Gondim Neto, do FLP, saiu-se com uma gracinha de mau gosto:


— Sua excelência fulminado por algumas chispas de chamas azuladas. Em poucos segundos transformou-se em cinzas. Que mais posso dizer? Ou é terrorismo dos sem-terra ou uma nova arma do PT.


Outra excelência, o deputado Inocêncio Useful, peremptório:


— Eu vi tudo, estava bem próximo, mas não sabia o que fazer. Levei um susto, uma coisa horrível, uma assombração. Quando aproximaram o facho do extintor de incêndio, o corpo não existia mais. Dissolveu-se sob o primeiro jato.


Os jornais escritos e tvvisivos, assim como as revistas semanais começaram a editar resenhas, artigos, ensaios, opiniões, promover debates sobre os enigmas do fogo. Num artigo da Folha, o articulista dizia que a Física moderna considera o fogo uma manifestação do quarto estado da matéria: o plasma. Não confundir com o plasma biológico. “O fogo é um plasma em baixa temperatura”.


A imprensa explora o sensacionalismo implícito nos casos de CHE, denominando-os de “casos malditos”. O “British Medical Journal” republicava a conclusão de uma pesquisa antiga, de 11 de janeiro de 1936, quando um grupo de cientistas chegou a conclusão de que a CHE era uma força natural desconhecida. Algumas tempestades de fogo surgiram em vários pontos do globo. Alguns articulistas lembraram que a cidade de Chicago havia sido destruída nos dias 8 e 9 de 1871. A destruição foi acompanhada de catástrofes a exemplo da destruição da pequena cidade de Peshtigo. Em Chicago, quase dezoito mil imóveis foram destruídos, morreram 250 pessoas. As pedras mais refratárias queimaram. Segundo artigo de Jacques Bergier na revista Planète, criada por ele e Pauwels, na França em 1960:


“O fogo tinha uma cor ora normal ora vermelha ou verde. Não se encontrou jamais nem causa nem sombra de uma explicação. Qualquer coisa no ar alimentava esse fogo que não era como os outros fogos. Se o pó de alumínio e de magnésio já existisse no tempo do incêndio de Chicago, se poderia crer que um estoque tivesse pegado fogo, mas esses pós ainda não existiam.”


O artigo de Bergier estava documentado com o testemunho do piloto de um avião experimental norte-americano, X-15, que havia observado uma tempestade de fogo a uma altitude de quase 246 700 pés. O piloto Joe Walker mostrou as fotos, mas não formulou nenhuma hipótese. A conferência dele foi amplamente noticiada pela “Asssociated Press”, em 11 de maio de 1962.


O astronauta John Glenn declarou que o problema merece um estudo sério e que há concentrações de energia radiante também na estratosfera (há 12 000 metros, onde há, principalmente nitrogênio), e em outras áreas no espaço além aeropausa. Tais concentrações não poderiam atravessar milhares de quilômetros de ar denso para incendiar, cidades nos Estados Unidos, Inglaterra, Espanha ou Portugal. No País de Gales, o jornal “Eco de Liverpool” noticiou, em 18 de janeiro de 1905, que “toda a região estava em mãos de forças sobrenaturais”. O “Times” de 7 de abril de 1947, citou o caso de Woodstock. O inquérito policial mostrou que os incêndios que os bombeiros não conseguiram debelar, não tinham sido criminosos e sim naturais.


As reportagens a propósito da CHE causavam estranheza no mundo científico, desde que o corpo humano é composto, sobretudo, de água. Ele não é naturalmente combustível, mas os casos de Combustão Humana Espontânea eram tantos, no segundo quartel do século XIX, que mereceram pesquisa e relatório da Academia de Ciências da França, em 1833. Em 1885, em seu “Tratado de Medicina Legal”, o doutor Dixon Mann descreve o caso de um fazendeiro norte-americano que, ao mesmo tempo em que sua mulher, incendiou-se. Considerou-se que os corpos haviam atingido a temperatura de 1 800 (mil e oitocentos) graus centígrados. O mais estranho é que nenhum dos objetos próximos aos corpos foi atingido pelo fogo.


As mídias escritas, e as outras, citavam casos passados e hipóteses. Dentre estas, a de que o hidrogênio era liberado da água que contém o corpo humano, e dessa forma, os tecidos que se concentravam nas cavidades do corpo pegavam fogo. O absurdo dessa teoria estava em que é preciso uma energia inacreditável para liberar o hidrogênio. Este, uma vez liberado, não há porque ficar concentrado num mesmo local (o corpo), desde que é mais leve que o ar.


O escritor inglês Eric Russel, colecionador de fatos estranhos, no livro “Mistérios Inexplicáveis”, narrou que no dia 7 de abril de 1938, um marinheiro do navio inglês “Ulrich” estava calcinado na cabine de pilotagem. Ele se chamava John Greeley. Não era alcoólatra nem fumava. Os instrumentos da carlinga estavam todos intactos. O soalho encerado e os sapatos da vítima estavam ilesos. No mesmo dia, um caminhoneiro foi encontrado calcinado nos destroços de seu caminhão capotado. Nada mais no veículo havia se incendiado. Ao lado do motorista, uma larga mancha de óleo que não havia se inflamado.


Um dos articulistas do Estadão escrevia uma série de artigos intitulados “Os arcanos da CHE”, que de todos os espantosos testemunhos, um se destacava dos demais. E citava o americano Peter Vesey, que, em 1930, promovia um estudo sistemático da Combustão Humana Espontânea. Um dia ele pediu que a mulher e o filho se ausentassem do apartamento por algumas horas, durante as quais ele tentaria uma experiência. Quando a família voltou à residência encontrou-o calcinado. Os papéis dele que estavam a menos de quarenta centímetros do corpo parmaneceram intactos. Ele havia encontrado e reproduzido a causa das combustões humanas?


No dia 1° de julho de 1951, a senhora Mary Hardy Reeser inflamou-se em São Petersbourg, na Flórida. Restou delas um punhado de cinzas e a perna esquerda intacta até o joelho. Um dos agentes do FBI que investigou o evento disse: “Tudo se passou como se a senhora Reeser tivesse engolido uma pílula que liberou energia atômica”. Não existe esse tipo de pílula, nem de napalm, fósforo ou magnésio. Há quarenta centímetros do cadáver uma pilha de jornais estava a salvo.


As hipóteses, muitas, nenhuma delas conclusiva. Um corpo humano não pode liberar energia elétrica suficiente para se consumir ele mesmo. Seria preciso que o corpo humano, nesses eventos, exalasse energias totalmente desconhecidas pelos estudos experimentais. Uma revista semanal publicou que o doutor Gustaf Stromberg, astrônomo de Monte Wilson, publicou uma tese científica no gênero no “Newspaper of the Franklin Institute”, que se encontra arquivado no volume 239 do mesmo, páginas 27 a 40. Einstein, na época, se interessou por vários desses trabalhos publicados em 1950, apesar de serem teóricos, sem configuração experimental.


JUSSARA E VOLTAIRE

Rossi lembra-se, há dois meses, quando Jussara, a filha de 25 anos, chegou apavorada da faculdade de Química, após ser informada por amigas, que Juan Joseph Voltaire, um aluno de pós-graduação do curso de Geopolítica da USP, havia sido reduzido a cinzas num salão de exposição da faculdade de História. Ele apreciava instantâneos fotográficos de ruínas de uma cidade pré-colombiana. As fotos em preto e branco eram flagrantes ampliados da viagem de um fotógrafo argentino.


Jussara namorou JJ Voltaire, a vítima, daí ter ficado mais chocada. Rossi acha curioso que esses acontecimentos ainda não tenham merecido uma série de reportagens. Ele acredita que os leitores precisam saber mais sobre as causas desses sinistros. Quem sabe explicar ao certo, por que pessoas, supostamente saudáveis, viram cinzas em poucos segundos? Convence-se de que é preciso, urgente, desvendar esse mistério. Em salvando-se o corpo, mesmo que de uma maneira provisória, se salva também a alma dos sobreviventes do atual surto de CHE ?

SÍNDROME
DE PÂNICO

Hélio, sócio de um escritório de consultoria jurídica, mantém a filha de 21 anos, estudante do segundo semestre do 3º ano do curso de Direito na PUC, como secretária. Após ter presenciado Halma incendiar-se, sabedor de outros casos de combustão espontânea, passa a freqüentar a Igreja do Salvador dos Últimos Dias. Por trás desse motivo aparente, se oculta outra motivação: pertence ao grupo das relações de risco, transa com garotas de programa.


Uma hora após fazer doação de sangue no hemocentro do Hospital das Clínicas, em vez de receber o cartão de doador, chega um e-mail solicitando que se dirija a um banco de sangue na Av. Angélica para confirmar o resultado da análise sanguínea. Precisa fazer outra colheita e esperar mais dois dias pelo novo resultado.


Imagina estar soropositivo. Não poucas vezes as camisinhas usadas nas transas de motéis, rompem. Quando isso acontece não há como reverter a situação de risco de contaminação pelo H3V e derivações inusitadas do vírus.


Logo agora, falta menos de um ano para a aposentadoria. Passa a usar a Igreja para disciplinar a sexualidade e os excessos alcoólicos e de outras drogas. Quer reaproximar-se do Criador, pedir perdão pelos exageros, força moral para frear as taras em noites de lua cheia. A igreja segura os piques do pânico.


RASTEANDO
CINZAS

Rossi telefona da redação do jornal para a filha Jussara. Indaga se conhece os pais de JJ Voltaire.


— Você o freqüentou ? Sabe onde mora ? Quero saber: namorou ele ? Transou ? Fica ligada, essa coisa pode ser contagiosa, quem vai saber ao certo? Rossi cala as indagações que possam violentar a intimidade da filha.


Acha ridículo insinuar que combustão espontânea possa ser transmitida por contágio, como se fosse vírus. Paciência, poderia ter improvisado melhor argumento.


— Sim, responde Jussara, namoramos por dois meses. A família dele mudou de endereço. Que é isso, pai, todo mundo sabe que combustão espontânea não contagia.


— A exposição de fotografia mantém um livro para registro do nome e endereço dos freqüentadores? Posso ver se ele preencheu esses dados, se tem um vídeofone?


— Vejo isso hoje mesmo para você, pai. Calma, mais tarde a gente conversa. A idéia é boa, ele pode ter subscrito o novo endereço.


— Certo, vou chegar tarde...


— Se não cruzar com você, fica um bilhete na mesinha do vídeofone. Escrevo o que tiver anotado no livro de presença da exposição, certo?


— Tudo bem, até.


— Beijim, tchau-tchau.


VÊ SE
DESENCANA

Lisabeth chama Sabrina, 21, que está há mais de duas horas conversando no vídeofone com o namorado:


— Dá um tempo, mãe, estou falando com o Jamil.


— Não vai parar, Sá? Teu pai está chegando, ele não gosta de esperar. Você sabe, está ficando cada vez mais irritado por pouca coisa. Mais de duas horas de masturbação verbal. Amenidades. Não ouvi uma palavra que pudesse interpretar como conversa de bom senso. A conta do vídeofone vai estourar outra vez. Nossa! Não ensinam nadinha nos colégios? As fofocas de minha filha parecem as candinhagens avançadinhas de minha avó. A distância entre as idades e a cultura, em nada melhorou a cabeça dela.


— O intervideofone está chamando, deve ser ele. E você ainda não está pronta.


— Estou, mãe, tô pronta sim. Atendi o celular aqui no quarto. Falar no videofone não me impede de me vestir.


— Estamos descendo, Leo. Lisabeth fala no intervídeofone. Sim, Jamil vai nos encontrar no shopping.


— O carro está no calçadão da academia de ginástica. Enquanto desliga o vídeofone público, Leandro mentaliza: Sabrina será melhor se desencalhar logo. A faculdade de administração é apenas um pretexto para fisgar um trouxa mais ou menos abonado. Vai torrar a grana dele nos shoppings. Sabrininha, querida, quem te comprar vai pagar caro. Senão a vida toda, que ninguém é de ferro, uma boa parte de seus dotes.


O
PACIENTE
IRLANDÊS

Uma hora e meia depois, no Gran West Plaza Shopping, após comprar quatro ingressos para o filme “O Paciente Irlandês”, Leandro senta-se com a mulher e a filha em volta de uma das mesas da Praça da Alimentação, onde ficam tomando chope, refrigerantes, e consumindo uma pizza fatiada de escarola, à espera de Jamil e da sessão das 21:30 começar. O namorado de Sá se junta ao trio nos comes e bebes e comenta:


— Este filme lembra o nome de outro a que assistimos há alguns meses, “O Paciente Inglês”, numa retrospectiva de filmes da última década do milênio anterior.


— Vi com você, lembro dele.


— Vi esse filme, diz Lisabeth, sem memorizar enredo ou personagens.


— Vimos, o cara era um gato.


— Hummmm, rumina Jamil. Esta é a avaliação que ela faz da maioria dos filmes. Contava a história de um marido traído que se vinga da esposa e do amante, forjando um acidente na aterrissagem de um monomotor no deserto do Saara, no final da II Guerra Mundial. O marido morreu no acidente, o casal de amantes sai ileso do impacto. O nome do cara...Um aristocrata...Almasy...Isso mesmo está a serviço da Real Sociedade de Geografia. Ele vai buscar socorro para a mulher acidentada, através do deserto, mas não volta a tempo de resgatá-la com vida. A direção de Anthony Minghella.


— Isso mesmo, aprova Leo. Lembro das pessoas da platéia comovidas com o enredo, choramingando, passando a ponta dos dedos abaixo dos olhos para disfarçar a garoa de lágrimas. Um drama chorôrô para a glória da bilheteria e da conta bancária do produtor.


— Chorei sim, foi um filme muito bom mesmo, diz Sabrina.


— Este também é um drama, passado durante a 3ª Guerra do Golfo, opina Lisa. Internado com queimaduras por todo o corpo, ele conta a história do namoro para a enfermeira. Vamos, a sessão está começando. Você, hein Sá? Chorar não é motivo para se achar um filme bom. Um comentário inteligente, não diz, seria exigir demais de você, mas menos tolo, minha filha. Uma vezinha, por favor, seja menos superficial, menos boba.


Aconchegam-se em quatro poltronas da sala de projeção. Após 15 minutos de propaganda e thrillers, o filme começa. Sabrina e Jamil trocam beijinhos, carícias, palavras murmuradas ao ouvido. O enredo dosado, com muito suspense, mantém a platéia atenta. Sá sente a pele aquecer-se com a proteção do corpo enamorado. Na tela, uma mulher pálida, apavorada, contempla hipnotizada, a imagem obscurecida por uma feição vinda do outro lado da superfície embaçada do espelho. Quem ?


Os olhos da intérprete começam a ser penetrados por uma tênue névoa que, após se adensar por toda a superfície refletora, alonga-se rumo às pupilas. Finos tentáculos penetram a mente indefesa da personagem. Súbito, a persona cinematográfica desperta do sono para o sonho da realidade. Sai do encanto de Morfeu na direção das surpresas do quotidiano. A platéia aprova, num murmúrio coletivo, de momentâneo esvaziamento da tensão.


Sabrina aperta mais os dedos de Jamil, busca proteger-se da concentração intensa, física e mental, dos nervos retesados como cordas de uma guitarra sendo dedilhada como nos antigos tempos de Hendrix ou Clapton. Ela sente uma carga extra de estranha energia, proveniente de uma força vinda de um forte campo tensorial alhures. Sente que os dedos do rapaz correspondem, apertando-se ainda mais aos dela num morno, abandonado e idílico contágio.


No écran, fascínio, possessão e transfiguração da principal personagem feminina, até que, para alívio dos mais tensos na platéia, o surpreendente final é, finalmente, substituído pelos créditos da produção. As luzes acendem, os espectadores começam a sair da sala de projeção.


Sabrina levanta-se acompanhada dos pais. Chama a mão de Jamil para si, sente certa pressão no braço, volta-se para olhar, emite um incontido “ai meu Deus”. Em seguida abandona-se ao fascínio macabro ao encarar a mão descarnada do namorado frente ao rosto, juntamente com um pedaço do braço queimado de Jamil. Ela oscila por segundos, como se não acreditando. Começa então a balançar, a sacudir desesperadamente o braço. Deseja livrar-se a qualquer custo do adereço macabro, ao sacudi-lo com extrema aflição, para cima e para baixo.


Desespera-se, grita, berra, precisa desfazer-se do apêndice funéreo, fortemente agarrado ao pulso da delicada mãozinha de namorada em estado de choque. A comoção horrível, maior que suas forças, desmaia. As pessoas observam a garota desacordada que há pouco sacudia histericamente a mão cremada do namorado, no esforço de fazer sair entrededos, as cinzas do que restou dela. O braço de Jamil e o resto do corpo, reduzidos às migalhas, desfazendo-se frente ao olhar estupefato dos espectadores.


O medo real, a flagelação dos sentidos. Eles aterrorizaram-se com o padecimento atroz da garota, com este pavor que poderia estar acontecendo apenas na tela, enquanto obra de ficção. Os espectadores estão confusos com esse espetáculo macabro materializando-se frente aos olhos. Como se a realidade fosse um subproduto do que acontecera na tela. A pressão arterial cai, o colapso circulatório faz com que perca a consciência. Sabrina está em algum lugar muito, muito distante. Talvez sem volta.


O PULSO
DA HALMA

Rossi, ao chegar ao apartamento, lê o bilhete da filha: “Alguém substituiu o livro de assinaturas por outro. Como a exposição de fotos está nos primeiros dias, não sei ao certo por que, ou quem fez isso. Vou obter o endereço com Isaac Rondon, um estudante de Geopoligrafia que se interessava pela tese de mestrado de JJ Voltaire. Não sei ao certo, acho que sobre cidades pré-colombianas perdidas na selva amazônica. Quem substituiu o livro não queria que soubessem dele. Meio misterioso, não? Beijo. Até.”


Ao preparar uma dose de JB com bastante gelo, Rossi conclui que o dia não foi promissor, com um calor de 40º que em nada ajuda. No Hospital das Clínicas, um muro de silêncio: nenhum médico ou enfermeira informou sobre a internação de Halma. Nenhum soube dizer em que apartamento ou enfermaria está, ou esteve, internada. Se as queimaduras foram graves, se já obteve alta. Nada. É como se Halma nunca houvesse existido.


O diretor-secretário do Conselho Editorial do jornal de Rossi, marca uma entrevista com o Superintendente do HC, dr. Albertinotti Karamurinja. Está na agenda para amanhã as 10:45. Às 11:45 do dia seguinte, o jornalista adentra a sala do médico.


— Desculpas por tê-lo feito esperar. A princípio mostra-se reticente, aos poucos vai se familiarizando com as perguntas.


Karamurinja afirma ao jornalista que esses casos de combustão humana espontânea não são normalmente divulgados, simplesmente não fazem parte do ensinamento acadêmico:


— Há poucas semanas, nem se sabia ao certo se existiam realmente, se não passavam de especulações de lunáticos.


Alega inexistir uma teoria coerente para analisá-los. O médico justifica o silêncio em torno dos casos de CHE:


— Não pretendo emitir opiniões precipitadas, nem espalhar pânico com explicações pouco ou nada científicas.


Uma hora depois do início da entrevista, o jornalista pergunta sobre o estado de saúde da stripper que havia sido trazida na madrugada de sexta para sábado, passada já uma semana:


— A stripper Alma, ninguém parece saber nada sobre ela. No entanto, eu estava na boate quando aconteceu o sinistro.


Karamurinja vacila, como se fosse dizer uma tolice, mas acaba por falar que a stripper, quando chegou ao HC estava reduzida a pó:


— O médico de plantão atormentou-se ao sentir o pulso da mulher desfazer-se sob a pequena pressão dos dedos. O protocolo de entrada e internação da paciente, nem chegou a ser preenchido. Ela era apenas um amontoado de cinzas.


DO ANTIGO AO
NOVÍSSIMO TESTAMENTO

Domingo, às 8 horas num dos templos da Igreja do Salvador dos Últimos Dias, Sheila, a mãe; Carla, a filha; Eduardo, o filho caçula e Hélio, o pai dirigem-se às respectivas salas de doutrinação. Sheila sente-se à vontade no papel de mulher eventual: da outra, da mãe e da dona de casa.


Ela aceita passivamente ter nascido para domesticar os filhos. Apesar de saber que não vai conseguir, fará todo o possível nesse sentido, ao transferir para esse objetivo toda a sexualidade reprimida que ficou a meio caminho de desenvolver-se. A intensidade dos desejos irrealizados, canalizada para a “educação” das crianças e a administração do lar. O fanatismo doméstico da mulher impeliu o marido aos contatos freqüentes com a prostituição feminina bem remunerada.


Em Hélio, o apetite sexual não domesticado, ferve, quando longe do ambiente íntimo ascético, das roupas, toalhas e panos de prato super limpinhos e arrumadinhos. Ele cisma com as vestimentas impecáveis dentro das gavetas dos armários, cômodas e guarda-roupas. Limpeza e esmero são partes da decência e da honradez familiar, mas irrita-se com as demonstrações de excesso. Uma certa intensidade instintiva requer mais que esse ambiente de excessivo zelo.


Ah ! Agora esses pensamentos. Estar soropositivo é um castigo por ter me afastado dos limites impostos pelas leis da vida familiar. A lei é dura mas é lei. Mulher e filhos para manter. Senhor, permite que não esteja com a peste. Hélio faz novos testes de sangue, em trinta horas saberá o resultado. Pensa que deve se conformar à idéia de estar contaminado.


Apavorado, não pode evitar o fluxo de pensamentos de autocensura. Teme, não a Aids apenas, mas os perigos de uma das variantes fatais, em curto prazo, contra as quais não há coquetel de medicamentos que possa conter a progressão rápida e deletéria dos sintomas:


Não teriam solicitado outro exame para confirmar os resultados. Os Princípios dos Evangelhos ensinam o arrependimento, mas como me arrepender dos melhores momentos de prazer, fora da assepsia do ambiente domesticado do larbirinto?


A alegria desapareceu, como por um milagre às avessas, das festas de aniversário e comemorações do calendário. As dez horas começa o culto público da Igreja. O ritual litúrgico, os depoimentos de fé dos irmãos, os supostos acontecimentos milagrosos narrados em voz embargada pela emoção, a leitura de versículos, os discursos pastorais, as orações.


Antunes, o Bispo, conhece a Bíblia como só os doutos rabinos ortodoxos de Israel. Ou os aiatolás as Suratas do Alcorão. Raros são os pastores pentecostais e evangélicos que possuem graduações, em Teologia (mestrado e doutorado), e outra em Administração de Empresas.


No discurso dominical, Antunes enfatiza a “chegada da hora dos filhos atenderem o chamado do Pai”. Os filhos da raça humana, segundo ele, estão prestes a abandonar esta morada:


— São muitas as moradas do Pai. A Terra está superpovoada de dor, ressentimentos, negação dos ensinamentos dos profetas. Antunes magnetiza a platéia:


— O Filho do Homem pregou, sofreu, morreu para nos doar a chance de ter uma Halma íntegra e sã, para migrar em direção às outras moradas, numa outra dimensão de existência. Que aconteceu com nossa alma pessoal? Com nossa alma coletiva? A morte é uma porta que se abre. Desta vida nada se leva, exceto transcendência espiritual. Quando a temos, o espírito encontra forças para sair da atração magnética deste planeta.


Perguntas dramáticas ecoam no silêncio interno da arca do templo. Apenas a persistente tosse de uma criança se faz ouvir. O discurso de Antunes prossegue veemente:


— A raça sapiens/demens degenerou-se, e ao meio ambiente, de forma irreversível. Mas para a generosidade de Deus não há limites. Perguntem-se: Quem danou minha alma e fez meu corpo a morada de interesses que nada têm com minha vontade nem com os desígnios do Pai?


O pastor silencia, ouve a expectativa calada dos fiéis:


— Perguntem-se: Quem perdeu minha geração e a geração de meus filhos? Quem lançou sobre eles a maldição do querer ter sempre mais, como se esta fosse a finalidade única, maior, definitiva, da vida? Quem transformou cada um de vocês em mercadores do Templo Terra? Que acham vocês que a conquista de Lua fez pelo homem, pelo mundo, pela raça humana? Na realidade, pouca coisa a mais do que dar pulinhos e fincar nela, pela primeira vez, a bandeira americana.


Parte dos discursos de Antunes normalmente permanece incompreensível para as pessoas mais simples da Igreja e até para as mais cultas. Interroga:


— Que têm as promessas do Pai com a degradação da natureza e da natureza humana? Quantas horas você passa em frente à tv, a degradar a condição espiritual? A alugar os sentidos para o ibope mais favorável? Quantas horas os filhos passam frente à telinha do computador, interessados unicamente em servir a um deus ex-máquina?


Após explicar que um deus ex-machina, no antigo teatro gregoromano, era personificado por um ator trazido à cena por meio de artifícios, que este ator agora é personificado por computadores de uma tecnologia de ponta, cada vez mais avançada, de última geração, prossegue:


— As gerações passam, mas a Terra continua. O Amor infinito do Criador trouxe o homem para este planeta. Mas a criação está destruindo cada vez mais e de maneira mais selvagem, os reinos deste Templo Terra. Milhares de espécies de aves, animais e plantas, terrestres e aquáticas, foram ou estão em fase de extinção. Estas espécies também são criação do Pai. Os homens não conseguem conviver pacificamente entre si, nem preservá-las. A cada dia a ação predadora do animal sapiens faz desaparecer, criminosamente, 300 espécies de animais e vegetais.


Antunes baixa a tonalidade, recomeçando outra vez a preleção, cita o antigo professor de biologia, geologia e história da ciência na Harvard University, Stephen Jay Gould, em meio a argumentos de verdade religiosa:


— Acreditamos em Cristo, mas sabemos que seus ensinamentos foram esquecidos, ridicularizados, principalmente por aqueles que se dizem seus representantes, bispos e pastores de diversas igrejas. O homem parece seguindo uma espécie de inteligência, um intelecto que não tem nenhum compromisso com a sobrevivência de sua espécie, das outras espécies que com ele convivem. O que chamam de progresso é um atalho para a sua própria extinção.


— Deus ama o homem sim, mas não a compulsão que destrói a vida natural e suas possibilidades. Não a compulsão que cria doenças e sofrimentos que a ciência médica não cura. As leis que garantem a permanência do homem sobre a Terra são mais antigas que o Sol e a Via Láctea, mas estão cada vez mais intensamente desprezadas. Todos os dias os homens dizem não a essas leis, como se tivessem sido feitas para não serem seguidas.


— Se a percepção do homem é falha em tantas e inumeráveis coisas, por que não haveria de ser na compreensão do que está reservado para o final da civilização neste planeta? Vocês estarão se perguntando: “De que maneira o Salvador vai agir para acabar com os sofismas que têm destruído a sua e as outras espécies”?


— Não, não será nada espetacular, sem sensacionalismo religioso. De modo que, rabinos, aiatolás, monges, padres, pastores e outras lideranças religiosas, não possam aumentar de maneira oportunista, seus faturamentos em dinheiro, com o aumento do medo, das tensões, da dor, das agressões subreptícias ao bolso e às economias dos fiéis. Quem sabe, Ele possa fazer o milagre de unir os seres humanos, em seus últimos dias, numa solidariedade sem demagogias.


— Vocês estão aqui pelos mais diversos motivos, não por serem puros e humildes de coração, pensamentos e ações. No tempo do Êxodo, em ocasiões remotas, o Pai tinha por intermediário os patriarcas, os profetas, os homens de fé: Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Josué, Davi, Isaías, Ezequiel, Daniel, Salomão, Jó, Oséias, Jonas, Naum, e tantos outros mencionados no Antigo Testamento.


— No Novo Testemunho, João Batista, Mateus, Marcos, Lucas, João, Tito, Tiago, Pedro. No Novíssimo, profetas e homens de Deus, Néfi, Jarom, Mosias, Helamã, Moroni e Joseph Smith, clamam à alma do homem, e a seu corpo, a volta ao Caminho.


— Mas quem poderá ouvi-los e seguir a Senda, se na vida moderna não há tempo para a meditação e a prática dos ensinamentos sagrados, senão para o esgotamento das energias do corpo e da alma na faina impetuosa, nas lidas diárias pelo aumento selvagem dos lucros, pela conquista de espaço para produtos industrializados, granjear o mercado, da pipoca importada à tecnologia bélica de domínio dos satélites.


— Qual o templo do homem moderno, de seus descendentes? Para onde são conduzidas a ambição, o melhor dos esforços, das metas, senão para os shopping center, as casas noturnas de diversões, a tv de 59 polegadas, as disneylândias, os comerciais de tênis, a glorificação da tecnologia, a robotização da vontade.


— Onde está a alma do homem moderno e de sua descendência, senão na propaganda de bancos, imóveis, seguros para carros e planos de saúde que excluem atendimento a doenças que não têm cura? Vocês acreditam que a alma e o coração do homem podem ser salvos por uma equipe médica num helicóptero?


— A alma do homem moderno é uma caixa de Pandora, uma sucessão infindável de males, injustiças e infortúnios.


O efeito das palavras do Profeta Antunes se faz sentir, a atenção é total. O discurso continua, as dúvidas dos fiéis se transformam em perguntas não verbalizadas.


— Vocês estão aqui porque, de alguma forma, fazem parte dos escolhidos, dos privilegiados pelas promessas e profecias. Há aqui algum covarde com medo de renascer para a vida em outra morada do Pai? Sim, porque a velha Terra não mais serve a Seus desígnios. A velha Terra está perdida, satanizada. Satã e suas legiões dominam a alma coletiva do homem transformada em mercado. Os mercadores do Templo Terra ganharam você, você, você e você. Ganharam todos, até a mim, homem que vive segundo a palavra dos Evangelhos. Não há inocentes, o justo paga pelos pecadores.


— Há nesta Igreja alguma alma tão vazia de sentido e digna de piedade, que ame estar a serviço da avassaladora lavagem cerebral da propaganda, que atrai seus filhos, com todos os adereços dos bezerros de ouro neo-pós-liberais da atualidade globalizada?


— Por que suas vidas perderam o sentido? Por que seus filhos se afundam nas drogas? Porque as mídias mostram todos os dias que os pilotos que fazem rodar os carros a mais de 350 km/ph nos traçados dos autódromos para justificar os anúncios da cultura globalizada.


— Há alguém aqui tão alienado que não seja capaz de sentir-se o que realmente é? E o que você é, senão uma mercadoria que consome outras mercadorias? Quem está por trás da mercantilização de sua alma? O culto aos megaatletas, aos megaempresários, aos megasalários, aos mega-shows-off, aos iletrados cantores caipiras e de rock.


— O homem transformado num animal doméstico, a cultuar músicas de roça, para deleite de mentalidades colonizadas pelas rotinas da sala de jantar: beber, comer, arrotar, ir ao banheiro, fazer amor. As rotinas todas da tv que fazem as pessoas vazias e tolerantes.


— Sim, porque cada um de vocês, de seus vizinhos, seus professores nas escolas, seus pais profissionais liberais...Cada um de vocês não é mais que um idiota, por não conseguir ganhar os salários dos Billgathes, Spihellbergs, Steinbruches, Schumatchers, Kuerthens, das Xurxux e Ronalditos. Por não conseguirem as contas bancárias dos Lalaus, Gracciolas, dos Ejotas, verdadeiros ídolos dos costumes políticos domésticos sem espiritualidade. Vontades passivas às ingerências dos tchans, da dança da garrafa. Seus olhos estão fixados não em interesses, enquanto pessoas, enquanto coletividade, mas na ração diária dos noticiários das desgraças, da criminalidade, de uma cultura da quantidade, gerida pelo mercado, sem transcendência, sem alma, sem Deus.


— Alguém nesta Igreja acredita que o caminho ensinado por Cristo e pelas Escrituras é o consumismo desvairado, as perversões humanas? O que faz, o animal homem, do livre arbítrio? É certo que a opção pelo mal não terá um futuro em longo prazo. É chegado o momento do Salvador intervir.


— Chegou a hora do ser humano desabitar este planeta dominado por forças luciferinas, pelos excessos de horrores, de sofrimentos, de derramamento de sangue. Está próxima do “dia D”, a data terminal, o fim do exercício do megaegoísmo, da ultraganância, da globalização satanizada, do vampirismo político-econômico internacional.


— Os sinais estão presentes, o fruto está maduro, o tempo é chegado. Mais simples e surpreendente do que a mais inusitada ficção. No Gênese lemos que Deus criou o homem e a mulher. Hoje, na Gênese do fim, lê-se nos sinais que, em breve, não haverá mais nascimentos, a esterilidade da fêmea humana não propiciará descendentes. À reprodução dos modelos de degradação da realidade do homem e do meio ambiente gera conseqüências imprevisíveis.


A realidade ganhou o direito de ser mais inverossímil do que as invenções mais avançadas da tecnologia. A Lei da Causa e Efeito está começando a se cumprir. O tempo do Homo sapiens esgotou-se neste Templo Terra. O atalho agenciado pelos progressos do “Reich dos Mil Anos” terá fim.


Do resumo deste discurso, os fiéis compreendem: a Terra é apenas uma das muitíssimas moradas do Pai. As profecias e promessas do Criador vão se cumprir sem traumas, catástrofes espetaculares e admiráveis. Deus simplesmente fará com que as ilusões luciferinas de consumo sejam extintas, por falta de continuidade genética da espécie. A raça humana será substituída por outra raça neste planeta? De que forma? Sobre essas coisas o pastor Antunes nada disse.


A família de Hélio sai da Igreja com a sensação de que não absorveu adequadamente as mensagens, de que alguma coisa está por ser dita e acontecer. Algo importante e decisivo foi afirmado apenas nas entrelinhas. As palavras do pastor são como um puzzle sem todas as peças. Há uma promessa de redenção, mas ela permanece vaga para a compreensão dos membros da Igreja do Salvador dos Últimos Dias.


COMBUSTÃO
HUMANA
ESPONTÂNEA

Jussara telefona para Rossi no Jornal. Diz ter conseguido o endereço dos pais de JJ Voltaire com Sérgio Russo, mestrado na área de Geopoligrafia. Rossi dirige-se ao endereço. Encontra um casal sexagenário, simpático e receptivo, apesar da recente perda do filho em circunstâncias estranhas.


A dor dos pais do estudante vítima da CHE, está presente nos olhos, nas estrias das faces, na contida e penosa comoção da voz. Convidam-no a entrar no apartamento, em edifício localizado numa rua intranqüila no bairro do Alto de Pinheiros. Após aceitar um chá verde, pela gentileza do oferecimento, Rossi entra na intenção da visita, tornando-a menos velada:


— Minha filha Jussara estuda Química na USP, ela e seu filho namoraram-se, tinham afinidades, apesar dos currículos com diferentes orientações disciplinares


— Sim? Lígia, a mãe, mostra-se surpresa, o marido, Heitor, comenta:


— Ora, não será incômodo se ela vier fazer-nos uma visita. Quando o sr. telefonou, pareceu-me que estava marcando uma entrevista, investigando circunstâncias...


— Faltam respostas. Preciso tranqüilizar-me. Acalmar os ânimos. O sinistro que vitimou JJ Voltaire...Tenho me perguntado, “como aconteceu?”, de que forma outras pessoas estão sujeitas a ele?


— De que maneira podemos ajudar? Indaga Lígia.


— Seu filho disse à Jussara está preparando uma tese sobre cidades perdidas na Amazônia...


— Como pode isso se encaixar com o que aconteceu? ——Surpreende-se Heitor.


— Não sei ao certo, talvez não. Muitas pessoas estão cercadas por estranhas expectativas. Histórias de ameaças, preconceitos, violências. Essa coisa de combustão humana espontânea, que não tem nada de espontânea, um mistério. Ninguém parece ter uma pista. Nem a investigação policial e científica.


— Ora, ora, quer dizer, o sr. acredita mesmo nisso ou... O homem calou-se. Um reticente e incômodo silêncio seguiram-se à interrupção da fala do idoso. Este jornalista está pensando que sou trouxa? Que está querendo, afinal?


— Ele quer dizer, senhor Rossi. Lígia contemporiza, seu jornal não vai fazer sensacionalismo com a morte de nosso filho. Não é isso, Heitor?


Rossi retoma a palavra para dizer que de modo algum usaria de semelhante e mesquinho oportunismo.


— Que quer dizer o senhor com isto, a tese dele e a morte por, por... Olhando a mulher indaga: como é mesmo? Ela também se engasga nas palavras, como se recusando a acreditar nelas, ou talvez, por elas traumatizada.


— Combustão humana espontânea, pronuncia Rossi. Como podem esquecer destas palavras carregadas de tantas conotações intensas e presentes?


— Pode uma coisa dessa ter ligação com uma tese de Geopoligrafia? Com cidades perdidas na Amazônia?


— Como vou saber, sr. Heitor? Tenho razões para estar preocupado, poderia ter acontecido, com minha filha, ela também esteve na exposição. Esses incêndios espontâneos, têm sido mais freqüentes do que se poderia esperar de um fenômeno, até outro dia, raro. Precisa-se investigar o que pode haver por trás desses eventos funestos.


— Não saberia dizer nada, responde ele, gostaria de ajudar, não vejo como.


— Sobre a tese, há arquivo dela em dvd?


— Sim.


— Posso ter acesso a anotações, estudo, analisar indícios? Daí, uma pista, talvez, possa surgir algo. Uma esperança no fim do túnel.


— Aquele amigo de Voltaire. Virando-se para a mulher, pergunta, qual mesmo o nome dele ? Ah, sei, é esse, Janos... Não é mesmo?


A memória de Heitor, por vezes falha, a mulher, de pronto, ajuda-o a lembrar de nomes e fatos.


— Agassiz.


— Agassiz, sim, isto, esteve aqui ontem. Ligou o computador, veio buscar coisas, DVDs, acho. Interesses de estudo semelhantes, responde a mulher. Conheceram-se na Amazônia, ficaram amigos, Pesquisavam no sentido de descobrir a exata localização de cidades desaparecidas.


— Por favor, a senhora tem o endereço dele, posso anotá-lo?


— Não sei, acho que ele mora na Vila Madalena. Vou verificar nos arquivos de JJ. Se achar, telefono para o senhor amanhã mesmo.


— Obrigado dona Lígia. Esse rapaz, Janos, também estuda na USP?


— Acho que não, falava portunhol, reservado, monossilábico. Contando com ontem, esteve aqui uma... Duas vezes, não é isso Heitor ? Ele balançou a cabeça confirmando.


— Cismas de estudantes, justificou. Os jovens se iludem facilmente. Sabe como é, por vezes acreditam em miragens, tesouros e arcas perdidas, como se fantasias pudessem ser transformadas em realidades.


— Aventura, concluiu a mulher, como nos filmes dos tempos de nossos avós, tipo Indiana Jones. Esse jornalista não sabe como funciona a cabeça dos rapazes ? Esperanças, peripécias, proezas, experiências arriscadas, sonhos. Ele nunca foi jovem na vida?


Rossi nota a disposição do casal em ironizar as pesquisas do filho. Como se ele fosse um tonto, perdendo tempo com “bobagens” ficcionais que ficariam melhores num filme de Spielbergson, ou num roteiro de Tarantinoto, tipo “Um drink com Satã”. A dor de ambos, que notou ao chegar, talvez fosse apenas uma empatia imaginária. Agora não sabe ao certo os sentimentos deles.


Estão comovidos, atenuando a própria mágoa. A intensidade da mesma, se houve, se esvaiu. Não passava de uma encenação, uma farsa? Despedem-se, fica a promessa de, se encontrarem notas manuscritas, ou arquivos informatizados sobre a tese de Voltaire, telefonam.


INCESTO
MACABRO

Sabrina sobrevive em estado psi de letargia, extática e inédia. O corpo não aceita frutas, legumes, sopa, leite ou água. O prolongado jejum não afeta a juventude e a beleza. Sá prossegue jovem e linda, como se não precisasse de nada mais para manter-se viva, do que prana para respirar. Os médicos tentaram alimentá-la com soro. Mas a agulha sempre desconectava da veia até desistirem de repô-la. Analisaram-se os alimentos vomitados: há ausência de qualquer cheiro ou digestão. Seu peso permanece igual, sem atrofia de nenhum membro.


Leo, ao vê-la disponível, indefesa (uma mulher em todos os sentidos), lembra de quando ficava erotizando-se com a filha pequena, sentada entrecoxas, atraída para ele com um chocolate, um brinquedo. Ele a fazia permanecer no colo por tempo suficiente para ejacular no pijama ou na calça.


Ao perceber a adolescente mais linda e acessível que nunca, a paixão incestuosa aumenta. Ela está supostamente indefesa, o corpo ao longo da cama, os membros viçosos, os bicos dos seios durinhos, róseos, nacarados, um convite aos carinhos da língua. Como vai reagir se acontecer, você não vai fazer escândalo, não é filhinha?


Começa a chegar mais cedo no apartamento. Principalmente nos dois dias da semana nos quais a faxineira sai às 18 horas. Lisabeth, a mulher, dá aulas de inglês num instituto de línguas e em um cursinho pré-vestibular. De segunda a sexta, das 15 às 22 horas, está ausente.


Leo, a princípio, fica a contemplar Sabrina, pensando, “que desperdício”. Rumina entredentes: Talvez ela esteja assim por carência afetiva. Sua sexualidade juvenil precisa desenvolver-se. Sim, é isso, o papai vai te curar, filhinha.


Resmungando sacanagens Leandro chega mais cedo, às dezessete. Em uma hora a empregada vai sair. Banha-se e ouve um DVD World Music, Sons de Planeta. 7:25. Entra num hobby, vai ficar em casa. Veste-se outra vez como se fosse sair. Nádia, a doméstica, despede-se, “até a próxima semana seu Leonardo”.


— Meu nome é Leandro, Nádia. Que mulher estúpida. Mais de um ano aqui e não sabe meu nome.


— Até segunda, seu Leandro, desculpe. Um bom fim de semana. Leandro, Leonardo, pra mim não faz diferença, meu salário não vai aumentar se seu nome for Virgulino. Vê se morre esse fim de semana.


Leo destaca uma colher de chá, um açucareiro e a garrafa de uísque com medidor. Faz café com pó moído na hora. Abre uma lata de creme de leite, coloca um pouco de açúcar num copo quente, põe nele duas doses de Logan s, sobre três doses de café. O espaço superior do copo lambuza com creme de leite, enquanto mexe a mistura bem devagar. Sim, está ok. Leo observa satisfeito o creme flutuar na superfície do coquetel, mas sem nele se misturar. “Delicioso”, diz, molhando os lábios.


Chega ao quarto da filha, senta-se na cama, começa a envolvê-la com os braços, as mãos, a boca, a língua.


— Você está linda, querida, mais do que antes. Está gostando dos carinhos do papá? Vou curar você filhinha. Sei do que você precisa. Após um instante de silêncio, os músculos da moça parecem vibrar levemente. Leo sente nesse brevíssimo tremelicar da epiderme da filha, como se um incentivo. E continua às apalpadelas.


Ela está gostando, cicia, enquanto ingere outro gole do coquetel. As carícias continuam. Sente-se libidinalmente motivado. Pega outra vez o copo em cima do criado-mudo, entorna o que sobrou com um estalo de língua. Volta-se para o corpo inerte da adolescente. Você vai ficar boa, filhinha, papai promete. Juro. Tenho tudo que você precisa.


A jovem está a flutuar a poucos centímetros acima do colchão. Perplexo, Leo admira-se com o fenômeno da levitação. Ao contrário de sentir-se inibido face à extraordinária manifestação de uma força antinatural. Sente-se atraído pelo vinco juvenil, pelas coxas entreabertas, pela penugem do púbis moreno. Extasiado, observa o corpo de Sabrina flutuar, agora, pouco abaixo do queixo. Incentivo à paixão incestuosa.


Movido por dissoluta libido, lança os lábios em direção aos grandes lábios. Após puxar para os pés da jovem a calcinha branca com motivos florais desenhados na superfície transparente, a camisola decai solta sob o corpo. Começa a lamber a parte externa adentrando aos poucos a vulva semi-aberta da jovem. A razão nega a se interpor ao desejo irracional.


Leo “tomou a nuvem por Juno”. Na insensatez dos sentidos, confunde os sussurros plangentes que se fazem ouvir no quarto, provenientes de um murmurar cavernoso, como se originado de cânticos coletivos, monacais, um incentivo à volúpia. Para ele não passavam de murmúrios de prazer.


Se os sentidos estivessem isentos de excitação, poderia reconhecer nessas tonalidades melancólicas e longínquas, o mugir fanhoso de um rebanho de ruminantes, tendo por leitmotiv os badalos de um pêndulo gótico, a marcar, lânguido, a passagem da meia-noite numa remota igrejinha alpina. Como se um coro de anjos houvesse resolvido ampará-la, sentiu a presença de uma energia amorosa e fluida, vinda, não sabe como, de uma grande distância, para, de alguma forma impedir ou castigar o responsável pelo delito torpe. Mas Leo não tinha sentidos para advertências. Tudo que desejava: usufruir a beleza da juventude de Sabrina, e sair incólume do incesto.


No melhor do bem-bom, sente a pressão inexorável, austera, o implacável fechar de coxas ao redor do pescoço. Começa a debater-se como um bailarino tresloucado a tentar em vão equilibrar-se na ponta dos pés para não perder contato com o chão. A ponta dos dedos dentro do sapato distancia-se aos poucos do piso do quarto. Já não consegue contato com ele, as pernas se debatem no vazio.


A cabeça roça a luminosidade do lustre no teto. Agarra-se em desespero de causa às coxas da filha, mas o diáfano tecido da camisola não permite a aderência dos dedos. As mãos escorregam. Ele tenta falar, gritar, se desculpar, argumentar, pedir socorro. A força estranha não quer saber de diálogo. O corpo de Sabrina levita em direção ao pequeno terraço do quarto, no nono andar do edifício.


Nos olhos esbugalhados de Leandro, uma esperança: as janelas de vidro, acesso ao terraço, estão fechadas. Dura pouca a expectativa de permanecer, ainda que incômodamente, no interior do ambiente. As janelas da sacada correm através dos trilhos para os lados, como se alguém as estivesse abrindo. Escancaram-se à esquerda e à direita. Na sala penetra um vento úmido e frio.


Milhares de pingos da garoa gelada adentram o quarto, umedecem os lindos cabelos castanhos, longos e soltos, da jovem. Suspensos na vertical do couro cabeludo, fazem-se esvoaçar lindamente, como se personagem de uma pintura surrealista de Ernst Fisher, Salvador Dali, De Chirico, ou de um desenho de Peticov ou de André Carneiro.


O rosto de Leo, colado aos pentelhos de Sabrina, começa a ficar afogueado ao roçar as proximidades da xereca. Ele move o pescoço para os lados, quer ver a progressão inusitada do estranho evento. O corpo dela, na horizontal, passa quase atritando com a parte superior da meia-lua da janela de formação convexa, arredondada, que separa o interior côncavo e arqueado do vazio. Os vidros das janelas adjacentes estouram.


Lascas rasgam, em cortes profundos, a coxa direita, a face esquerda, as costas e a testa da garota. Ele olha admirado os ferimentos fecharem-se, a pele dela voltando ao normal. Os cortes superficiais em seus próprios braços e na testa continuam abertos. Atrita as pernas, os pés debatem-se inutilmente. No peitoril do terraço, as pontas dos sapatos tentam em vão prender-se nele e impedir que o corpo fique suspenso no espaço que separa da calçada.


A enfermeira de uma senhora idosa, vizinha ao prédio em frente, distraída, está a olhar para algum lugar à esquerda. O velho puxa insistentemente a manga comprida do avental branco da mulher na altura do braço. A princípio ela ignora e afasta-se. Logo depois, virando o rosto para a direita, não consegue sustar o espasmo de espanto ao deparar-se, pasma, hirta, boquiaberta, com o espetáculo fantástico:


Os membros de Leandro a debaterem-se desesperadamente dessa altura fatal, na iminência de despencar. O corpo preso pela cabeça entre as coxas de Sabrina, luta, patético, em extrema aflição, para não despencar da grande altura. As mãos buscam firmarem-se, ora na ilharga esquerda, ora na direita. Mas o baixo-ventre da moça não oferece nenhum ponto de apoio adequado. Dá graças à pressão das coxas dela que o mantém suspenso.


Um senhor idoso e o rapaz próximo, seu neto, provavelmente estão absorvidos pelo inusitado do acontecimento. Do apartamento em frente, observam a cena. O homem velho recua um passo, a testa sobressaltada, os músculos contraíram, os olhos atônitos, pupilas fixas e dilatadas. As mãos do jovem desprendem-se do parapeito, como se temendo a altura até então subestimada, retrocede dois passos. A enfermeira, levando as mãos ao rosto, pasma-se. Inquieta, ajoelha, volta a apoiar as mãos no peitoril.


O paciente da cadeira de rodas mantêm os olhos esbugalhados na direção do evento, numa atitude de quem está possuído de uma indizível curiosidade e ao mesmo tempo tentando esconder-se dela. Apavorados, aos poucos, nem sentem que recuam para dentro da sala, apoiando-se nas cortinas. A brisa molhada do entardecer atinge-os, e os torna mais vulneráveis a essas absurdidades surreais, inacreditáveis.


Trêmula, a mulher persigna-se, enquanto tenta balbuciar a fórmula litúrgica: “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos”. A seguir entra na sala onde o paciente havia se estatelado. Tenta ajudá-lo a erguer-se, mas não pode fazer nada, exceto ligar para os paramédicos da UTI do plano de saúde. Está em curso um ataque cardíaco.


Hesitante ela faz um chamado de urgência, mas as palavras mal conseguem ser pronunciadas. Ao desligar o vídeofone, olha para fora para certificar-se de que, realmente, a imagem surreal continua lá, onde não deveria estar. Sim, essa coisa fere o bom senso, as regras básicas da lógica e da razão: prenuncia algum outro acontecimento estranho e trágico.


A enfermeirachefe do Heart Point liga de volta, após anotar a seqüência numérica do vídeofone através de um identificador de chamadas. A mulher, à meia voz, atende o vídeofone e suplica: “Urgente, depressa, por favor”: as palavras não saem corretamente da boca. Ela gagueja outra vez os apelos. Do outro lado da linha uma ambulância especialmente equipada é acionada para atender um chamado tipo “Código Cacau”: urgência máxima. As sirenes são ligadas em direção ao endereço.


Ao sentir as coxas de Sabrina entreabrirem-se mais, a superfície molhada do peignoir rasga-se. Ele fica pendente por rápidos momentos. Até as últimas fibras diáfanas da camisola romperem-se por inteiro. Os membros aflitos debatem-se em desespero. Ele berra rumo as pontas afiadas do gradeado de proteção. O baque surdo próximo a um casal de inúteens que estavam sentados num banco a namorar.


O corpo cai a poucos centímetros do casal. Assustados, interrompem um chupão de língua. A agitação dos músculos, as contrações involuntárias do corpo não cessam logo. Súbito, parece, por momentos, imobilizar-se no piso do pátio. O zelador liga para a “justa”. Os tremores continuam até uma ambulância chegar, estacionar em frente. Em poucos minutos Leo é conduzido ao necrotério.


“INIMIGOS
INVISÍVEIS”

Ao caminhar do escritório ao estacionamento, Hélio sente que já não pertence por inteiro a esse mundo. Deve estar realmente infectado pelo H3V ou, pior, por uma de suas malditas variantes. Um dos pés pisa na calçada da rua e o outro no barro turvo da cova. Os transeuntes passam ao redor, mais longe que próximos dele. A sensação esquisita: nem aqui nem além. Como será do outro lado? Haverá mesmo outra dimensão? Sente o corpo a meio caminho dos vermes.


A alma, se existe, vai estar aonde, como? As percepções reduzidas a quê ? Se um vírus tem esse poder, Deus também é um vírus? Depois de passar dessa para a melhor, serei também um microrganismo invisível? Ou servirei, apenas e suficientemente, à mesa farta do corpo inerte, banquete dos tapurus ?


As indagações do advogado multiplicam-se num contraditório de sensações. Pode ser que não seja hospedeiro, mas, se não, por que os médicos solicitariam outro exame não fosse para confirmar o resultado positivo do anterior ? Uma simples macromolécula, invisível a olho nu, tem poder para despachar milhares de seres humanos para nenhures, milhões.


Hélio especula de si para consigo sobre a gênese do H3V e as temíveis variantes. Acredita ser o vírus extraterreno. Como pode ser terrestre, se causa tamanho estrago, engana e aniquila as defesas normais do corpo humano? Se alguém ou um grupo político realmente zelasse pelo futuro da humanidade, o antídoto deveria ter sido pesquisado e descoberto, logo no primeiro ano da manifestação viral. Hélio balbucia frases, numa tentativa para manter-se atualizado na vigília à saúde:


Da primeira vítima identificada na década de cinqüenta, muito tempo passou. O registro mais antigo de um caso de Aids, de 1959: um homem de etnia banto, em Leopoldville, atual Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, ex-Zaire.


Mas os cientistas, os políticos, os militares, estão ocupados com verbas para pousar em Marte. Com sondas em direção a Saturno. No momento, toda a água potável da Terra não chega a 1% da água doce disponível...Mas os cientistas e os políticos estão querendo colonizar outros planetas. Se os EUA são mesmo uma democracia, aonde está o plebiscito que autorizou o uso dessas verbas? Ele permanece a especular com seu Eu interior, subjetivamente:


Talvez a Aids tenha sido plantada por inteligências de fora, com a finalidade de diminuir a quantidade de habitantes, para que a Terra possa prosseguir habitável no 3ª Milênio. Hélio segue nessa mórbida auto persuasão: Alguém está sabendo que precisa fazer alguma coisa, ou este planetinha estará, se administrado por terrestres, em vias de se transformar num pasto de moscas.


Está nítido, ele é hospedeiro do H3V. E do ponto de vista do vírus ? Essa coisa a ganhar espaço em suas entranhas, a contaminar e multiplicar-se no sangue, nas células, a infestar corpo e mente, um pouco mais, a todo inevitável instante de medo, angústia em cada palavra, ação, pensamento:


Está aqui comigo, vivendo de minhas células, de meus fluidos, compartilha minhas percepções. Existe comigo. Talvez seja melhor assim. A velhice é uma humilhação das células. Há males que vêm para bem.


Divide comigo o ar que respiro, os alimentos que ingiro. Não é animal, vegetal ou mineral. Talvez seja uma maneira, dentre outras, de algum ser superior, sem conflito, ir retirando aos poucos a raça humana da Terra para que uma outra espécie venha habitá-la. Talvez insetos... Vai saber. As especulações terminam ao avistar a filha.


Carla o espera. Na entrada da garagem, cumprimenta:


— Tudo bem, filha?


— Sim, você está bem, pai? Entram no carro, posicionam a fivela na extremidade fixa dos cintos de segurança. O trânsito está “normal”, ou seja: em transe. Os carros avançam aos poucos, como se aprendendo a fazer rodar os pneus. Os motoristas demoram meia hora para vencer um único meio quilômetro em direção às residências. O de Carla e os outros 10,9 milhões de carros nas ruas e avenidas de Sampa.


Nada está bem, por que perguntar? Hipocrisia: Perguntar se tudo está bem quando tudo está obviamente mal. Esses pensamentos outra vez. Serão influências do vírus ? O farol aberto no verde, mas os carros permanecem parados. Um e outro buzinam nos ouvidos saturados de poluição sonora. O celular contribui com uma sonoridade a princípio tímida, que logo se torna insuportável pela repetição. É desligado.


Em poucos minutos a quantidade de queixas sonoras aumenta. Até que, gradativamente, a poluição auditiva ganha de vez o ar. Os ouvidos doem, as cabeças fervem, os palavrões fluem, a princípio, apenas para dentro, numa implosão do protesto coletivo. Das entranhas dos ressentimentos, as agressões pipocam guturais. Uma aqui, outra ali, garganta abaixo, garganta afora, somatiza-se a inquietação coletiva.


Lábios silenciosos, as buzinas ferem os tímpanos. Na tela colorida da telepublish multimídia, da esquina, o grande painel luminoso mostra as figuras risonhas, supostamente simpáticas, de um banqueiro, se sucedem, a prometer todas as benesses do paraíso perdido para quem abrir uma conta no “Banco que realiza os sonhos. Os sonhos de felicidade de todos os seus correntistas”.


Pai e filha, outros milhares de leitores de jornais, sabem, via reportagens da imprensa escrita, que o banqueiro da propaganda está investindo na imagem institucional, arranhada com o novo escândalo da venda irregular de títulos públicos. A CPI não puniu uma única pessoa física dentre os mandantes. Ao contrário, o “chefe dos chefes” do escândalo ficou mais forte, candidatou-se ao desgoverno do Estado, com a conivência do Legislativo benevolente, do Judiciário complacente e do Executivo incompetente.


Carla e o pai leram os jornais do dia. Eles noticiaram: “O Presidente recebeu, por solicitação pessoal, o candidato mais sub judice que São Paulo já teve”. Noticiaram também a opinião do deputado Inocêncio Pefelia: “O Congresso está cheio de esqueletos nos armários”. Não se sabe ao certo se estava referindo-se aos desafetos assassinados da bancada de parlamentares ruralistas do Congresso.


Enquanto o trânsito permanece inerte, Carla pensa: Esse sujeito devia estar na cadeia, mas está aí, ampliado, confiante, colorido. Zombando das instituições, em centenas de out-doors e painéis, na Paulista, na Consolação, na Henrique Schaumann, na Av. Brasil, nos shoppings centeres, nas revistas, nos jornais, nos cinemas, nas emissoras de rádio e na tvvisão.


Carla desperta destas conjeturas, assustando-se com sucessivas trombadas no espelho retrovisor. Ele fica avariado pelas batidas dos guidons de motos yuppies e de boys motorizados. As motocicletas continuam colidindo nas laterais dos carros. Os motoqueiros apressam-se em seguir adiante, como se nada tivesse acontecido. A estridente sirene de uma ambulância força passagem entreveículos, outra, a do corpo de bombeiros, em um minuto a substitui.


Outros dois carros do corpo de bombeiros descem a pista do lado oposto da Avenida Paulista, abrindo passagem em direção ao bairro do Paraíso. As diferentes vibrações sonoras das sirenas policiais se misturam à poluição das buzinas, irritam ainda mais a membrana interna dos ouvidos. Os motoristas comprimem os carros para os lados, obtêm espaço para a ambulância, as viaturas, e os bombeiros passarem.


A poucos metros de Carla e Hélio, um carro bate no pára-choque traseiro de outro. O motorista da frente, irritado, começa a praguejar, enquanto o outro responde as agressões aos berros. Um deles saca a arma e atira seguidas vezes na direção do pára-brisa adversário. Os tiros estilhaçam o vidro, ouve-se o grito de uma pessoa atingida por um balaço. Outro motorista, próximo, liga, no celular, para a polícia.


Em quatro minutos uma viatura abre caminho em meio ao engarrafamento. Alarma estridente, aberrações sonoras em direção ao sinistro. A sirena de outra ambulância reforça os ruídos da poluição auditiva. Os tímpanos sobrecarregados, ouvem os berrantes das viaturas pedindo passagem para outro paciente cardíaco com urgência de chegar a UTI mais próxima. Carla sente os ouvidos sangrarem enquanto olha o motorista agressor, ainda empunhando uma pistola calibre 45, tentar fugir para não ser preso em flagrante.


As crianças nos carros estão por demais quietas, concentradas. A mocidade de Carla, ao lado do pai, está em transe. Olhos fechados, rosto inexpressivo. Talvez esteja a acontecer um contato inconsciente entre mentes infantis e juvenis, ou entre todas as mentes afeitas a uma certa onda de vibração psi. O certo é que, pela primeira vez na vida, muitos desses jovens não estão sentindo-se escravizados e inúteens.


Um contato psi coletivo, secreto, inusitado, está em andamento. Alguns adultos praguejam e buscam acalmarem-se ouvindo os Cds e as fitas, os vidros dos carros levantados, o ar refrigerado ligado.


Os mais jovens, como que indiferentes à inadequada realidade perceptiva dos que atingiram a idade vigorosa e, presume-se, o privilégio do uso da razão, estão em outro nível de vibração, adentrados num universo mental paralelo. Uma sonoridade inusitada permeia os níveis mais profundos das mentes. Um timbre de acústica imperceptível, suave e harmonioso, possivelmente acessível apenas às crianças e aos inúteens, se faz presente. A intensidade da ressonância influi no sistema nervoso central de algumas pessoas de idade intermediária.


Carla, de olhos fechados, fixa o olhar interior no atirador fugitivo. Para ela é como se o criminoso estivesse num campo de força dentro do qual ela tem condições de fazer valer a vontade. O asfalto falta sob os pés do criminoso. Outra vez ele tenta equilibrar-se e sair correndo, mas os sapatos não aderem ao solo. O corpo curva-se em direção ao chão, ele protege-se da queda frontal com as mãos, para logo descobrir, estupefato, que está flutuando a poucos centímetros do asfalto. É um acontecimento tão fantástico, que outras pessoas que estão a observá-lo nem notam.


O cara não sabe ao certo o que está acontecendo. Mesmo achando muito estranho, supersticioso, indaga-se: Talvez algum tipo de energia da pessoa que acertei com os tiros esteja a impedir-me a fuga. A tentativa repete-se outras vezes com o mesmo resultado inútil, até que um policial pega a arma e o conduz ao calçadão onde é revistado. Pernas abertas e mãos estendidas na vertical da parede. O prisioneiro é algemado e conduzido à viatura estacionada sobre a calçada. Carla sente a incrível sensação de ver tudo sem precisar abrir os olhos.


Dentro de um carro Ford ultraracing, uma senhora reclama do trânsito cada vez pior. Olha para o menino ao lado, superconcentrado, olhos fechados como se em transe. Ela apenas intui, sem admitir racionalmente, que ele está somando forças, provocando os eventos, de alguma forma fazendo parte deles. A mulher começa a sacudir o braço do garoto e a chamá-lo:


— Laércio, queridinho, fale comigo, vai, pára de fingir que está dormindo. Fica esperto que eu te levo no McDonald s.


Neste momento o capô do carro começa a vibrar, ameaçando desprender-se da parte frontal, a partir de uma força que ameaça se transformar em violência generalizada. Uma espécie de névoa impede a visualização através do vidro do pára-brisa. A mulher grita, berra, entra em pânico.


Em seu histriônico desassossego, imagina estar num pesadelo. O traseiro do filho flutua a quinze centímetros acima do banco de passageiro. Ela pressiona os joelhos da criança para baixo na tentativa de fazê-lo voltar à posição normal. Não consegue. Fica ainda mais histérica e abre a porta, sai do veículo aos brados, no momento em que o capô faz ranger as dobradiças, impulsionando-se para o alto com vigor extraordinário, a desafiar a força da gravidade.


O capuz de outro carro, impelido por uma energia física semelhante e sobre-humana, voa sobre sua cabeça, forçando-a a voltar para a proteção "uterina" dessa sua extensão, desse deus ex-máquina, o automóvel. Ela acompanha a trajetória de outro capô que também escapuliu da estrutura mecânica de outro carro, entortando-se com estardalhaço frente ao pára-brisa de um veículo próximo. Alguns estilhaços do vidro frontal a atingem. Ela está a apenas cinco metros. Apressada, apavorada, volta, abre a porta, e senta-se outra vez no banco do motorista.


— Está possessa. Esta avenida está endemoninhada. Esta cidade está enfurecida. Acorde Laercinho, filhinho. Pelo amor de Deus, acorde. Fale com a mãe. A mamãe te ama filhinho, fale comigo, agora, prometo que te compro aquele nike novo.


Em outro carro, outra mãezinha promete à filha: “Meu bem, pare com isso e mamãe te dá aquele conjunto recém lançado da Nikeplus.” Lançamento novo. Aquele que você viu na tv.


Logo após ganhar outro absurdo e inexplicável impulso para o alto, como se fosse levantar vôo e levar o carro na vertical consigo, a parte anterior de uma camioneta Cherokee 2035, cabine dupla, é suspensa. Os faróis acesos do veículo apontados em direção às nuvens. Parece querer acelerar ruma a elas, a frente projetando-se para o alto.


Quando a frente do carro, de volta ao chão, impacta no asfalto da avenida, a água transborda do radiador em jatos quentes que se projetam à distância, provocando reações extravagantes e barulhentas do motor. Ao voltar à posição original, as rodas mais se pareciam as superfícies elásticas de um iô-iô gigante. A visão é absolutamente impressionante. Por fim pára, ao bater as rodas do lado direito no teto de outro automóvel e virar, ficando com as quatro rodas para cima, capô com capô, sobre o Vectros 8 ao lado.


Pessoas que apenas observam ficam cada vez mais assustadas. A coisa acontece com outros automóveis, em breve poderá acontecer também com elas. Um motoqueiro surpreende-se ao cair da moto sobre o teto de uma banca de revistas, enquanto a motocicleta projeta-se para dentro de um basculante semi-aberto de vidro fumê, no segundo andar de um prédio de escritórios.


O cantor e apresentador João Grow, ao lado da Lila Couto, estão num carro da MTVex. Enquanto o Grow sorri inquieto, ela olha para os lados como quem delira, a querer acreditar, mas sem conseguir, nos muitos efeitos especiais que se desdobram ao redor. Parecem estar divertindo-se, pelo menos enquanto não são atingidos por nenhum estilhaço.


As dobradiças do capuz do utilitário de cabine dupla, próximo à perua da MTVex, não suportam o peso total do veículo e desprendem-se. Uns e outros capôs flanaram sobre outros carros como se fossem leves folhas-de-flandres ao impulso de um forte vento que, paradoxalmente, fazem-nos flutuar em câmera lenta.


Uma delas cai sobre o teto de uma viatura policial e a outra se arrasta na superfície superior e lateral de alguns carros. Após bater num porte, atinge o teto e as partes laterais de outros carros, causando arranhões na lataria de meia dúzia de veículos. As pessoas encolhem-se nos bancos, amedrontadas. Os eventos acontecem como se em câmara lenta. A parte dianteira de um carro desloca-se para cima e desaba, a seguir, sobre o porta-malas de outro automóvel. Um policial pede reforços pelo rádio, enquanto observa, atônito, o capuz de um carro girar veloz e ameaçadoramente entre os automóveis.


Algumas luminárias dos postes da Av. Paulista, em forma de flor das almas (malmequeres-negros, trevos de quatro folhas), esfacelam-se em milhares de fragmentos. Suas sombras, à luz vespertina, projetam-se no asfalto da avenida como se fossem condecorações nazistas, em forma de cruz gamada.


As sirenas de ambulâncias fazem-se ouvir, os carros de bombeiros e as viaturas policiais concentram-se no perímetro das quadras onde ocorrem os fenômenos. Barricadas policiais são erguidas, fitas de plástico amarelo estendidas ao redor da área privativa, ligam-se aos vários cavaletes, após traçados os limites impróprios para circulação, entrada e saída de pessoas ou veículos. A área está sendo interditada.


Alguns dos motores de explosão alternada dos automóveis explodem, literalmente, pegam fogo. O combustível e o ar de dentro dos cilindros inflamam-se, as labaredas sobem de debaixo dos capuzes, mesmo dos que se mantêm em vibração ou fechados. Pessoas tentam apagar os focos de fogo com extintores de incêndio dos carros. Sirenes ligadas dos bombeiros fazem-se ouvir. Incêndios foram detectados em vários prédios no perímetro da Paulista. Há grande movimentação de viaturas e ambulâncias.


As luzes, ora apagadas, ora acesas, das luminárias em trevo, continuam pipocando. Os sinais de trânsito piscam do vermelho para o verde, sem interrupção. As cores mudam em cintilações coloridas, fundem-se com as dos vidros estilhaçados. Os cacos, sob a influência de uma luminosidade prismática, caem sobre o asfalto e os veículos, como se fossem parte desprendidas de cristais. Os passageiros saem dos coletivos e dos táxis, refugiam-se sob as marquises dos prédios, lugares supostamente mais seguros onde buscam abrigo. Os estilhaços das paredes de vidro dos prédios continuam a projetarem-se, ora para dentro, ora para fora dos ambientes fechados. Algumas pessoas estão caídas, com membros a sangrar. Transeuntes tentam protegê-las, conduzindo-as para dentro das portarias dos prédios, à revelia das dificuldades impostas pelas normas de segurança dos condomínios, onde esperam ser socorridas.


Os porta-malas abrem-se subitamente, são puxados para cima, forçados a um movimento surpreendente de verticalização. Os veículos balançam a partir da mesma força ascensional atuante nos capuzes. Como se fossem cavalos bravios recusando-se a serem domados pelos motoristas. Algumas portas e capôs se desprendem dos gonzos. A ruptura acontece quando o peso torna-se demasiado para a resistência dos eixos que prendem as dobradiças. Elas abrem e fecham, entortam, giram nas portas dos portabagagens, impelidas para cima, contra a força gravitacional. O espetáculo alucina. As pessoas não sabem como reagir. As que estão dentro desesperam-se com as dificuldades para sair, as que estão fora não ousam aproximarem-se. Alguns carros permanecem como se os eventos estranhos não lhes atingissem.


Alarmes contra roubos começam a soar incômodos. Os estrépitos, os sons patológicos da cidade, parecem reunidos num campus manicomial, popularmente conhecido por avenida Paulista.


Hélio observa com apreensão as nuvens escuras e muito baixas, encobrindo os últimos andares dos prédios, em incansável convulsão cerúlea. A impressão de um cenário excêntrico, pleno de extravagâncias, pronto a engolfar de vez, e fazer desaparecer sem complacência, os carros e seus ocupantes. Hélio percebe que Carla está ausente dos fatos, como se a alienação reinante, deus queira que provisória, não tivesse ganhado seu coração, sua mente, para a estranha natureza paranormal do evento. O carro de Hélio é um dos que permanecem sem alteração. Não sai do veículo porque Carla está em transe e ele não quer que ela fique sozinha. E há também o medo de ser atingido pelos milhares de fragmentos de vidros projetados para todos os lados.


O olhar de Hélio desloca-se para a vidraça inteira que separa a entrada do banco, principal agente do mais recente escândalo financeiro, que se esfacela com grande estardalhaço. Exceto pelas luminárias de teto das viaturas e ambulâncias, e por algumas luzes das janelas dos prédios, o trecho da Paulista entre a rua da Consolação e a ministro Rocha Azevedo, permanece às escuras, iluminado, de quando em vez, pelas faíscas que se projetam dos motores fumegantes e das luminárias em curto circuito.


Dir-se-ia que os enigmáticos incidentes estão sob severa investigação, e que os policiais não foram de todo surpreendidos por eles. Os socorros são providenciados com presteza, e agem dentro de uma estratégia previamente elaborada, como se já tivessem, em outro lugar da capital, enfrentado ocorrência semelhante.


— Improvável, pensa Hélio, que outro acontecimento análogo tenha ocorrido, sem que a imprensa tivesse noticiado.


Quando os estranhamentos pareciam ter cessado, uma camioneta, impulsionada por uma catapulta invisível, sobe em arco das proximidades do Museu de Arte de São Paulo, e vai cair sobre uma viatura policial estacionada na calçada, frente ao prédio da Justiça Federal.


Dos policiais que ouviram o estrondo e observaram a incrível impulsão do veículo, alguns deitaram na calçada embaixo das viaturas, outros, saíram correndo às pressas das proximidades, distanciando-se do local do impacto. Duas camionetas da PF ficaram esmagadas. A velocidade de atrito foi posteriormente calculada em 150 km/h. Um cineasta amador filmou tudo e negociou o filme com a Rede Globo, que passou a exibi-lo em seus telejornais.


As pessoas que permaneceram dentro dos apartamentos comerciais, mantiveram as expressões faciais apavoradas e apreensivas, devido às ameaças sucessivas: marcas sangüíneas de ferimentos, rasgos nas vestimentas. Os programas normais das emissoras de rádio e tv vão sendo substituídos por flashes do enigmático evento. Os jornais e revistas não falam de outra coisa. As tiragens aumentam em até três vezes. Para a imprensa escrita, falada e tvvisiva, a coisa estava influenciando os espectadores, ampliando os lucros, fazendo crescer o faturamento.


A “TEORIA
DONE”

Jussara atende ao vídeofonema da mãe de JJ Voltaire, solicitando presença numa visita:


— Estou curiosa para conhecê-la. Só agora sei que meu filho tinha grande carinho por você. Até ontem ignorava, quando achei este envelope, entre seus pertences, com um bilhete e um DVD para ser entregue a você, se algo acontecesse. Aconteceu.


Jussa ignorava ser tão especial. O namoro com o sinistrado pela CHE foi inconseqüente. Não para ele. Atração sexual à primeira vista. Um fogo de palha, noventa dias, sem prejuízo da amizade, das afinidades intelectuais.


Achou estranho que ele estivesse sob pressão. Apressa-se em fazer uma visita à mãe de Voltaire. No dia seguinte, ao chegar ao apartamento dela, sente-se pouco à vontade para confidências, com essa mulher que, nesse momento, parece desolada e sozinha.


Trocam impressões sobre os acontecimentos. Jussara interessada em saber: Voltaire deixou para ela um DVD, por quê? Contém a curiosidade. Conversam, mostrando-se mutuamente impressionadas com os desdobramentos dos fatos.


— O Jornal Nacional está se transformando num evento noticioso mais fantástico do que o Fantástico dominical. Lígia provoca-se: As pessoas estão se dando conta de estranhamentos incomuns. As autoridades não conseguem explicá-los.


— Não há padrão de explicação convincente, exceto a teoria de um escritor brasileiro. Ele concluiu que a mente está revoltando-se contra forças sociais minoritárias muito fortes, que fazem questão de manter as forças sociais majoritárias deformadas e desinformadas.


— Sei, a “teoria Done”. Segundo esse escritor, o império da mídia tvvisiva, através da propaganda subliminar, transforma a mente das crianças dos países pós-neopsicolonizados, em fanáticas ruminantes de hambúrgueres e programas de infantilização mental irreversível.


— Cultura trash, lixo informacional em todos os lugares, a mente coletiva revolta-se, forças virtuais ganham realidade. Eventos parapsicológicos substituem a falta de participação e a política de exclusão social.


— Reação inconsciente, coletiva e subliminar, às pressões que anulam os esforços diários das pessoas por crescer, impedindo-as de desenvolver e progredir, mental, intelectual, espiritualmente.


— Há uma revolta calada contra as impossibilidades. Vêem frustrados seus esforços por melhor qualidade de vida e sobrevivência. Pressões inconscientes chegaram a um tal limite... Tensor das tensões... Ao tentarem se libertar das pressões, criaram um Horizonte Maligno de Eventos.


A resposta de Lígia surpreende a visitante. Ela não é apenas uma mulher de meia idade, mas uma mulher com uma percepção em estado de vigília, bem mais jovem e informada do que a média dos tvespectadores que se informam via programas de domingo.


Jussara percebe: Voltaire tinha uma mãe cabeça.


Talvez não precise de contato mais íntimo com a realidade. Jussara muda de tom. Cria-se uma atmosfera de respeito mútuo e não de mútua pusilanimidade. A realidade das pessoas é mais que uma mandala neo-pós-new age, como querem alguns.


— Quem diria, hein, o que é “bom” repete: todo pilantra político quer se reeleger.


— Os políticos continuam deliberadamente ignorando o significado da palavra Ética. Sem Ética, está como sempre esteve. Sem Ética qualquer edifício da cultura e da civilização, desaba, os pilares da argamassa política dos conchavos entre os três poderes da “Lei de Jérseyton”.


A conversa aos poucos se desdobra rumo aos interesses pessoais de Jussara e Lígia:


— O que me surpreendeu mais é que JJ estava prevendo algo estranho. Algum acontecimento nefasto. Por que sentia-se ameaçado? Jussa pensava nas frases: “Se algo me acontecer, entregue este DVD a Jussara”.


— Não tenho a menor idéia do que poderia fazê-lo sentir-se ameaçado. Ele não era de falar muito. Andava cismado, apreensivo, inquieto, após ter voltado da última das viagens à Amazônia, por parte das pesquisas sobre cidades desaparecidas. Nela conheceu esse Agassiz.


— Agassiz, esse nome não me é estranho...


— Espere um momento por favor. Dizendo isto Lígia sai da sala. Ao voltar traz uma foto de uma dúzia de pessoas numa hospedaria no meio da selva.


— É esse, à direita dessa senhora.


— Lembro-me. Era um cara muito “na dele”. Fazia mestrado em Engenharia Florestal na Universidade de Manaus. Espanhol, se não me engano. Antes de vir estudar no Brasil, concluiu um curso... Não sei bem... De Topogeografia, na Argentina. Vidrado nos mistérios da floresta.


— Voltaire sabia convencer, comenta Jussa. De início achei as pesquisas sobre cidades perdidas, veleidades, quimeras. Estava sendo mais realista que o rei. Agora acredito que essas cidades existam mesmo. Uma intuição me diz que elas têm muito com esses eventos fantásticos.


— Por que a mudança de opinião?


— Ele sabia defender as idéias nas quais acreditava. Quando leio sobre Manoa, das evidências que havia colhido nas pesquisas sobre ela, fico achando que existe mesmo. Onde há fumaça há fogo.


— Os índios na Amazônia acreditam que os que buscam por ela sempre desaparecem. É fato que muitos membros de expedições não puderam ser encontrados, apesar das buscas.


— Umas poucas pessoas mais afoitas não despertariam suspeitas, mas dezenas delas sumirem, não é um pouco demais? Pode parecer realismo fantástico, mas a realidade por vezes sabe ser mais surpreendente que a imaginação.


— Perdoe, Jussara, se mudo de norte bruscamente. Você se importa em me dizer o que sabe sobre combustão humana espontânea? As condições nas quais pereceu Voltaire são como as das outras vítimas? Essa coisa ameaça tornar-se epidêmica?


— O pouco que sei, talvez a senhora saiba. Um odor forte, adocicado e pegajoso, como se da queima de incenso produzido com resina natural, no local em que as pessoas são reduzidas a pó. Por algum tempo, nele permanece uma espécie de neblina azulada.


Jussara não se sente bem em falar do ocorrido. A senhora parece ter superado o trauma da perda de Voltaire mais rapidamente do que eu. Lígia empatiza o incômodo de Jussara:


— Desculpe minha filha, tudo que sei sobre isso é o que publicam os jornais. Meu marido não fala, nem lê, parece isolar-se, querer esquecer. Você é jovem, está quase todo dia próxima ao local onde aconteceu. Deve saber mais. Se não quiser falar... Compreendo.


— Tudo bem, essa coisa é ainda muito estranha para ser aceita. Há uma teoria estúpida sobre alcoolismo. Pessoas que bebem demais estariam mais sujeitas à CHE, nada científico. Voltaire bebia pouco, não faz sentido. Nas cinzas, finíssimas, há sempre a presença de um líquido arroxeado.


Para Jussara a conversa está mesmo incômoda, pensa em sair o mais breve possível da presença de Lígia. Quer estar sozinha, precisa olhar o que contém o DVD, mas não deseja mostrar-se ansiosa. Afinal, não fosse ela, não teria esta última ligação com a memória de JJ Voltaire. Prossegue como se estivesse à vontade:


— Por vezes sobra algo das extremidades do corpo. Um pé ligado a um pedaço de perna, uma mão, ou o crânio não é de todo queimado. Aconteceu sobrar uma mão, um pé de Voltaire? Gostaria de perguntar. Pelo amor de Deus, que pergunta mais macabra. Não, não vou fazê-la.


— De meu filho só me devolveram cinzas, balbucia Lígia, como se tivesse captado a interrogação da moça. Sim, agora lembra, a cor arroxeada impregnada numa parte das cinzas. A princípio supôs que fosse do colorido do piso, ou de algum objeto que tivesse se dissolvido próximo à combustão. Sombria, essa conversa, por mais amigável e íntima que seja, termina parecendo uma fofoca medonha. Ela, a princípio tão curiosa, sugere:


— Se você não se importa, não vamos falar mais nisso, por favor.


Lígia, agora sim, parece ser uma mãe ainda traumatizada com o desaparecimento do filho. Que preconceituosa, por que deveria ela comportar-se como uma mãe padrão, com sentimentos e reações triviais? Na realidade, tudo que fiz até agora foi impregnar de preconceitos esta conversa.


As duas mulheres ficaram emocionadas ao memorizar o evento. Toda ausência é atrevida, como disse o poeta. Menos quando se trata de uma pessoa morta, exceto em casos extremos, tende naturalmente a ser positiva. Ao se despedir de Lígia, fica a impressão de confiança e amizade.


Ao sair da casa da mãe de Voltaire, Jussara, ansiosa lê a mensagem dirigida a ela em DVD por Voltaire, adia outros compromissos. A ansiedade a conduz para o quarto no apartamento onde se encontra o micro MMX/Live//BG. JJ costumava trabalhar no programa NEW/2035. Se os arquivos gravados em DVD tiverem nele, ela não terá dificuldade em acessá-lo.


Ligou o micro, encaixou o DVD no drive, a telinha solicitou uma senha. Senha? Como vou saber qual? Tentou uma, duas, várias vezes. Uma crescente ansiedade dela se apodera à proporção que digita nomes que não permitem acesso. Até que, como não pensou nisso? Simples, mais simples do que poderia imaginar. Voltaire a chamava de JU. Após digitar a primeira sílaba do próprio nome, o “Arquivo Jângal” abre-se, afinal. A ansiedade dilui-se. Esses breves momentos pareceram anos-luz.


O “ARQUIVO
JÂNGAL”

Após digitar a senha Jussara vê aparecer na tela do monitor um bilhete: JU, alguma coisa definitiva aconteceu comigo para que Lígia tenha entregado este arquivo em mãos. Por que você? Porque pessoa de minha confiança. Seu pai jornalista, quem sabe possa se interessar pela história. Os fatos podem parecer fantásticos, mas pertencem ao mundo real.


Muitas pistas sobre Manoa (cidade perdida da Amazônia), consegui ainda em São Paulo, em contatos aleatórios dentro da USP. Informações foram investigadas pessoalmente, quando estive em Manaus e Santarém, nas bibliotecas de universidades do norte, através de pesquisas de campo. Outras chegaram às minhas mãos por meio de pessoas que não perderiam tempo com leviandades.


Relatos verbais indígenas confirmam a existência da cidade perdida, mas as tribos estão determinadas a calar. Não fornecem informações mais precisas sobre a localização dessas e de outras cidades. Os índios mencionam vagamente um sítio hostil, na zona leste da Serra do Roncador, no Mato Grosso, próximo aos leitos dos rios Xingu e Verde (também conhecido por Teles Pires ou São Manuel), vizinhos do Rio das Mortes, numa localidade onde pouca gente se aventura a penetrar. Faz justiça ao nome.


O lugar está defendido por membros guerreiros das tribos Xavantes e Morcegos. Eles protegem o lugar de invasores. Lançam flechas com pontas embebidas em substância resinosa, vermelho-escura, solúvel em água e extraída da casca de certos cipós (Strychnos), que contêm curarina, alcalóide venenoso de ação paralisante e mortal.


Neste lugar lendário, falam da existência de ofídios com 25 metros, da ferocidade de cãeslobos que perseguem os intrusos, por vezes os estraçalham. Pouca gente ousa dele se aproximar. É difícil falar um pouco mais deste sítio tabu. Os nativos têm medo, muito medo. Em suas proximidades ocorrem coisas que “até Deus duvida”. No dizer popular do folclore regional.


— Já conversamos isso, “aqueles que buscam Manoa desaparecem para sempre...” Ju interessa-se mais pela narrativa.


Manoa, dizem alguns temerários aventureiros que conseguiram sair com vida das proximidades de seu “campo de força”, é habitada por uma raça estranha (“Eles”) que, exceto raras exceções, não deseja contato com civilizados, nem com os demais povos da floresta.


Expedições de americanos e europeus, pesquisadores científicos, antropólogos, geólogos, caçadores do tesouro Inca, perderam a vida na tentativa de chegar até ela. As evidências de que uma força estranha atua nessa região são muitas e incontestáveis.


Há indícios de que Manoa permite acesso à entrada de túneis que ligam a América do Sul à capital Tule, da Cidade dos “Muito Antigos” na Antártida. Acreditam alguns historiadores: através dessas passagens subterrâneas, os Incas conseguiram escapar dos colonizadores espanhóis levando um fabuloso tesouro sobre onze mil lhamas.


Uma das entradas desses túneis está na Serra do Roncador. Através dela foram acolhidos pela raça subterrânea, tanto os Incas em fuga dos colonizadores espanhóis, quanto soldados nazis, no período anterior à 2ª Grande Guerra, e no final da mesma. Nazis fugitivos dos exércitos aliados encontraram refúgio nos subterrâneos da selva amazônica. Segundo orientação dos “Muito Antigos”, o “Reich dos Mil Anos” começou pra valer com o fim da II Grande Guerra.


Das histórias noticiadas pela imprensa, esta se destaca por constar dos registros da polícia do Rio de Janeiro: Em janeiro de 1984, o jornalista alemão Karl Albert Brugger passeava no calçadão da praia de Ipanema na companhia de outro jornalista também alemão, quando foi fuzilado à queima-roupa por um suposto assaltante que nada roubou, usando uma arma sofisticada de grosso calibre. O tal amigo saiu ileso, e em depoimentos posteriores se contradisse, como se na tentativa de confundir os investigadores.


Estranha “coincidência”: Karl Brugger estava a escrever reportagens sobre a existência de colônias nazistas fortificadas na floresta amazônica. Milhares de dirigentes e subalternos da Gestapo dirigiram-se para aquela região, tanto no início do conflito, como após a derrota para os aliados, no vôo denominado “O Último Pássaro do Terceiro Reich”.


A trágica saga de Brugger começa em 1971, em Manaus, quando o comandante piloto da Swissair, Ferdinand Schmidt, acompanhado de outros membros da equipe de vôo, ouviu um mendigo aproximar-se do grupo e pedir, numa perfeita pronúncia da língua germânica, uma esmola para uma refeição.


O pedinte poliglota chamou a atenção da tripulação. Enquanto devorava um repasto, disse ter nascido de mãe indígena, da tribo dos Ugha Mugulala (até então desconhecida), o suposto pai era soldado alemão.


Ficou patente, de suas informações, que entre 1937 (pouco antes do inicio do II Conflito Mundial) e 1941, dois mil soldados nazistas se instalaram em locais inacessíveis da floresta amazônica, levando consigo armas e sofisticados equipamentos tecnológicos. Os historiadores sabem que os cientistas nazistas obtiveram auxílios técnicos, ignorava-se de quem, para seus experimentos bélicos, muito avançados para a época.


De volta a Alemanha, o comandante Schmidt conheceu o mencionado jornalista, Karl Brugger, a quem contou o estranho contato. Em 1972 Brugger chega ao Brasil interessado na investigação da história para a revista Der Spiegel.


Após uma semana de buscas em Manaus, consegue localizar o mendigo descrito por Schmidt, conquista sua confiança e fica sabendo da cidade das três pirâmides com nomes indígenas de Akahim, Akakor e Akanis, que designariam três diferentes cidades, mas que na realidade são três sítios de uma mesma localidade.


Em seus subterrâneos teriam sido abrigados os remanescentes do III Reich, acolhidos por seres de uma época muito remota, denominados “guardiães silenciosos do destino final da humanidade”: os lemurianos. Este povo “subway” teria desencadeado o movimento nazi enquanto ponto de partida do “Reich dos Mil Anos”.


Disposto a obter mais evidências, Karl Brugger começa a investigar por conta própria. Acessa documentos da II Guerra catalogados na Biblioteca do Congresso e no Departamento de Defesa dos EUA. Entrevista militares aliados que participaram do desembarque na Normandia, território francês, e da Invasão da Berlim devastada em 1945. Consegue contactar ex-membros do exército Aliado. Compara informações obtidas de várias fontes em diversos países.


Há quase unanimidade na confirmação de que uma esquadrilha de caças da Lufwaffe decolou em vôo de escolta a uma grande aeronave no mesmo dia em que as tropas aliadas invadiam Berlim. Os passageiros que nela embarcaram, eram nada menos que os mais destacados membros do partido nazista, incluindo Hitler e a amante Eva Braun. A essa viagem aérea os Aliados denominaram, repito, “O Último Pássaro do Terceiro Reich”.


Esse vôo bizarro conseguiu burlar os bloqueios Aliados e seguir na suposta direção do Tibet, onde os mais graduados membros da ordem negra da organização militar e paramilitar SS, em cerimônias com rituais geridos pelos “superiores desconhecidos”, tinham acesso a graus mais elevados de conhecimentos tecnológicos muito avançados para a época.


Brugger reuniu depoimentos que confirmam ter “O Último Pássaro do Terceiro Reich” pousado num aeroporto secreto, nas proximidades de um local até então impenetrável da selva amazônica, construído pelos oficiais e soldados nazis que aportaram no norte do Brasil entre 1937/1941.


A localização de Manoa, de muito difícil acesso, estava sendo precisada pelo jornalista alemão. Nesse local, onde a natureza ramificou tanto a vegetação das copas das árvores, é impossível, mesmo aos raios solares, penetrarem no emaranhado de folhas da gigantesca flora florestal. Em suas proximidades, a presença de OVNIs e de outros objetos estranhos em locais próximos à Serra do Roncador, são vistos como se saídos, supõe-se, de bases espaciais não identificadas através das tecnologias fotográficas dos satélites.


Hitler e o estado-maior nazi teriam se deslocado para Manoa ? No mesmo dia à Invasão da Berlim devastada pelos bombardeiros Aliados, em 30 de abril de 1945, num bunker subterrâneo do alto comando nazista, recentemente descoberto, um oficial SS disparou dois tiros com uma pistola modelo Walker: um na têmpora do suposto führer e outro na da fiel Eva Braun. A seguir queimou os corpos com o “fogo renovador”, morte para iniciado nenhum botar defeito.


A encenação não passou de uma farsa: os corpos eram de um casal de atores sósias do ditador e de sua amante, cujas arcadas dentárias tinham sido tratadas de modo a fazer crer que eram originárias de ambos. Em verdade Hitler bateu as botas na região norte do Brasil. O casal de atores que se prestou à farsa no bunker subterrâneo, no dia da tomada de Berlim, morreu confiante no futuro do “Reich dos Mil Anos”.


Nos primórdios do Partido Nazista, em 1923, o mago negro fundador da hierarquia da sociedade secreta Tule (!) Dietrich Eckardt, afirmara que Hitler conhecia as técnicas de contato com “ELES”, e que ele, Eckardt, teria influenciado o futuro da história mais que qualquer outro humano.


Parece-me evidente que hoje, o “Reich dos Mil Anos” está em pleno andamento. Em todas as partes do planeta há a presença de uma forte inquietude e de uma intensa tendência para o mal. Os seres humanos estão como que submergidos na inversão de valores, no consumismo desvairado, nas vibrações de conflito, e numa aviltante involução da dimensão do espírito. O mago negro Eckardt, aonde quer que esteja, deve sentir-se vitorioso na profecia de “influenciar o futuro da história do planeta mais do que qualquer outro humano”.


Dez anos depois da fundação da sociedade secreta Tule, a 30 de janeiro de 1933, a hierarquia da ordem negra treinara e iniciara os SS da Gestapo, os oficiais comandantes e os fanáticos soldados da morte. Forças satânicas dominavam a Alemanha e se preparavam para expandir esse domínio por toda a Europa, África, Ásia e Américas. A crença de que, direta ou indiretamente, sairiam vitoriosas, persistiu. Confirmou-se.


Por que vieram? Quantos nazis seguiram para a Amazônia ? Dos setenta mil oficiais nazistas, apenas vinte mil foram localizados no pós-guerra. Ninguém substituiu o trabalho de Simon Wisenthal na caça aos boches evadidos do führer? Ou o Mossad teme enfrentar a magia dos “Muito Antigos” nos túneis subterrâneos quilométricos, que supostamente ligariam a Amazônia à cordilheira do Himalaia e à Terra de Mary Byrd na Antártida?


Ao ler este Arquivo, Jussara sente-se inquieta, inflacionada com estas informações sobre os “Muito Antigos”. E sobre o mago negro instrutor do führer nas técnicas de “entrar em contato com “ELES”. Ela certamente precisa de um tempo para pesquisar a presença nazi na Amazônia.


Pensou: A II Guerra configurada como atalho para a satanização globalizada da sociedade.


Associou o mendigo que falava corretamente a língua alemã, ao jornalista assassinado em Ipanema, às supostas trilhas subterrâneas e túneis que ligam a América do Sul à Antártida.


A coisa toda parece fantástica. Um povo que reside no subsolo, uma civilização subterrânea, habitada por uma raça alienígena que mantém contato com OVNIs: É muita areia para meu caminhãozinho mental.


Difícil, para uma mente condicionada a olhar o mundo e a estudar história de modo convencional, aceitar. Não é fácil acreditar nessas informações, mesmo sendo provenientes do estudioso e pesquisador sério e confiável, que foi JJ Voltaire.


Parou a leitura. Carece de um tempo para reordenar estas informações. Desconhece de que forma associar os fatos. Eles parecem saídos de uma história tipo realismo fantástico. Desconhece onde possam estar as associações deste Arquivo, com casos reais, cada vez mais assíduos, de combustão humana espontânea.


O dia foi cansativo, ela não está absorvendo de maneira satisfatória, todas as informações. Elas giram dentro da cabeça, sem encontrarem o nicho propício para se ordenarem de maneira racional, convincente.


Preciso de um sono tranqüilo, onde os fios finos dessa teia de Ariadne, de infinitas ramificações, possam vir a tornar-se críveis e coerentes. Posiciona papel na impressora e aciona uma série de rotinas que permitem uma 1ª edição do “Arquivo Jângal”. Antes de ir dormir, posiciona uma pasta azul com a cópia sobre a mesa da sala, e um bilhete dirigido a Rossi:


— Papa, leia e segure a onda. Não se surpreenda, se for capaz. Até, Ju.


Planeta Terra, 03 de dezembro, 08

Caro leitor: este romance, Adão & Eva No Éden Neo-Pós-Moderno
(PsycheCity), está à sua disposição no site www.biblioteca24x7.com.br.
Nele você poderá fazer a opção de leitura virtual ou impressa,
conforme sua preferência. O autor agradece seu interesse intelectual
na leitura deste romance.

Nesse momento da transferência de leitores de um para outro
Portal literário, este livro está com 16.435
(dezasseis mil quatrocentas e trinta e cinco) leituras. O autor
agradece o interesse literário dos mais de 500.000 (meio milhão)
de leitores em dois portais literários e se desculpa pela
breve interrupção na leitura desse romance neste Portal.

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