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Textos_Juridicos-->DIREITO A FELICIDADE. SETE CRÔNICAS E UM DESEJO -- 31/08/2011 - 11:20 (Alexandre José de Barros Leal Saraiva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ALEXANDRE JOSÉ DE BARROS LEAL SARAIVA












DIREITO À FELICIDADE
sete crônicas e um desejo






2010




Sumário


1. O pôr do sol.
Será razoável prever, na Constituição Federal, a busca pela felicidade como Direito Social e Objetivo da República?

2. O medo da criança.
As novas exigências da cidadania e os obstáculos ao projeto político democrático, na visão de Bobbio.

3. De poeta proscrito a embaixador post-mortem.
O princípio da dignidade humana e a remodelagem finalística do neoconstitucionalismo.

4. Desenho arriscado.
Uma proposta diferente de ordenamento jurídico.

5. Mais um pouco de atrevimento (ou confusão?!)...
Mito, fé e direito. O sistema circular em face da pirâmide kelseniana.

6. Time after time.
O sistema circular e a autopoiese.

7. Lendo a Piauí.
Globalização e sistemas constitucionais. O que nos espera?






DIREITO À FELICIDADE.

1. O pôr do sol.

“Todo homem quer viver feliz, mas quando se trata de ver claramente o que torna a vida feliz, eles tateiam em busca de alguma luz” .



Estou sentado no lado oeste da Ponte Metálica - um dos pontos turísticos mais interessantes de Fortaleza. O Sol ainda está no zênite, mas sei que em breve o céu assumirá o tom alaranjado e roxo dos finais de tarde à beira mar, inebriando de paixão nostálgica e sugestiva olhos e corações de muitos outros que, iguais a mim, e diferentes de mim, buscam no espetáculo da despedida algo que renove as esperanças que nos mantêm vivos expectadores desta caleidoscópica experiência terrena.
 “Tornamo-nos efetivamente tolerantes e entendemos o que significa respeito humano justamente quando aceitamos, de modo definitivo, sem dor e até com uma crescente sensação de alegria, que somos todos diferentes e que, lógico, viveremos de forma menos padronizada (...) A análise de qualquer tipo de diferença entre as pessoas tem ser feita com o máximo de critério e com a consciência de que tendemos ao erro por sermos naturais – e indevidos – defensores de nosso pontos de vista; isso deveria nos levar a uma postura de desconfiança em relação aos julgamentos que fazemos daqueles que não pensam como nós. Outro desdobramento derivado da consciência e alegre aceitação das diferenças que nos distinguem de nossos semelhantes é que não temos nenhuma informação útil nem vantagem alguma se continuarmos a nos comparar com os outros. Se somos todos diferentes, somos únicos”.
Perto de mim, crianças, casais, muitos surfistas e um homem de idade. Parado e calmo, em suas barbas brancas quieto, ocupado consigo mesmo e, ao que tudo indica, bem-aventuradamente extasiado com a beleza das águas salgadas desta terra de Iracema , sorri. Sozinho, o velho homem sorri...
Vejo o homem e penso: este provavelmente foi feliz! Traz consigo o olhar sereno e a atitude fraterna daqueles poucos que conseguiram fazer da jornada uma senda de tolerância , alteridade, diálogo, aprendizado, sabedoria e ternura vital.
 Ternura vital é expressão cunhada por Leonardo Boff significando cuidado especial com as pessoas e com as situações existenciais. “É um conhecimento que vai além da razão, pois mostra-se como inteligência que intui, vê fundo e estabelece comunhão (...) A ternura emerge do próprio ato de existir no mundo com os outros. Não existimos, co-existimos, com-vivemos e co-mungamos com as realidades mais imediatas. Sentimos nossa ligação fundamental como a totalidade do mundo. Esse sentimento é mais do que uma moção psicológica, é um modo de ser existencial que perpassa todo o ser” .
Talvez por isso eu tenha me lembrado do papel guardado no bolso da calça: uma cópia do projeto de PEC elaborado pelo Senador Cristovam Buarque que procura incluir a busca pela felicidade como objetivo fundamental da República e direito inerente a cada indivíduo e à sociedade ; em que pese o atraso histórico de 234 anos, pelo menos em relação à Declaração de Direitos da Virgínia que, no distante ano de 1776, já dispunha em seu artigo exordial:
 “Todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos que lhes são inerentes, dos quais, ao passar a viver em sociedade, não poderão, nem eles nem seus descendentes, por nenhum ajuste, ser despojados, a saber, o de gozar a vida e a liberdade, na posse dos meios para adquirir e manter a propriedade, e o de buscar e conquistar felicidade e segurança”.
Recordo que faz pouco tempo, a alimentação foi incluída no rol dourado do art. 6°, da CF, em face de proposta apresentada no ano de 2001, sendo que a providência gerou polêmicas porque, para muitos, aditamentos deste jaez ao texto constitucional são incômodos e desnecessários, ao menos no que diz respeito à melhor técnica de preservação da normatividade da Carta.
 Se é certo que não se pode determinar, a priori, o que deva ser o conteúdo de uma constituição, também é correto que suas normas devam obedecer a critérios seguros para a regulação completa dos problemas e exigências sociais, precisamente para não caírem no vazio, como tem sucedido ao longo dos anos da vigência da Carta de Outubro” .
Outros, no entanto, testemunham com altivez a incorporação dos mandamentos constitucionais na práxis social, o que indica uma forte sinalização da consolidação de um verdadeiro Estado Social Democrático de Direito. Nesse sentido, Walber Moura Agra:
“Quando se assevera que ela (a CF de 1988) desempenha a função de pacto vivencial da sociedade, tenciona-se afirmar que o Texto de 1988 é a base estrutural da sociedade, o alicerce sob o qual se erguem todas as demais instituições. Essa expressão denota que as normas que foram agasalhadas desempenham a função de força motriz, contribuindo para a conformação do tecido social, no que evita fissuras e o desenvolvimento de tensões. Constitui-se no mínimo denominador comum da sociedade, no núcleo normativo em que cada cidadão se reconhece como membro da coletividade”.
Instigado pelo embate, pego o papel e releio a proposição. A água de coco acaba de chegar, mas minha sede aumenta. O som das ondas quebrando nas rochas de tempos imemoriais parece murmurar: “o propósito da vida é ser feliz”.
 “O propósito da vida é ser feliz. Desde o momento do nascimento, cada ser humano deseja a felicidade e não quer o sofrimento. Nem o condicionamento social ou educacional nem a ideologia afetam isso. No fundo de nossos corações, nós simplesmente desejamos o contentamento. Não sei se o universo, com suas incontáveis galáxias, estrelas e planetas, tem ou não um significado mais profundo, mas para mim está claro que, pelo menos enquanto vivemos nesta terra, nos deparamos com a tarefa de construir uma vida melhor para nós mesmos. Portanto, é importante descobrir o que poderá gerar o maior grau de felicidade”.
 “Todo ser humano quer ser feliz. “A felicidade vem de dentro e é uma conquista que o ser humano realiza partindo da condição humana. Somos seres que têm a dimensão de luz e de sombra. Somos diabólicos, que dividem, odeiam e somos seres simbólicos, que unem, amam, são solidários. Essa é a condição humana. Não é um defeito, é a nossa marca. A felicidade vem do equilíbrio dessas duas dimensões, na medida em que faço uma opção pela dimensão luminosa e não deixo que a dimensão tenebrosa tenha a hegemonia da minha vida. Se parto dessa condição humana, diminuo as expectativas, a felicidade é mais alcançável, mais serena. Não significa que não tenhamos momentos especiais de felicidade. É a dimensão vertical. Um encontro com a pessoa amada, o irmão que estava no exílio volta... Aquele momento é supremo. Agora, tem aquele momento de estar, serenamente, feliz, que é o cotidiano da vida” .
Os ventos, que vêm de longe, arrebatam das minhas mãos a PEC da felicidade e ela se transforma em um simples papel branco sobrevoando o mar azul da minha terra; parece até que as velas de alguma jangada imaginária resolveram se transformar em asas e se outrora desafiavam a procela, agora flutuam na imensidão também azulada deste infinito céu de outono.
A tarde se transforma em noite. O Sol recepciona a dama da luz, repleta, cheia de si, imponente e majestosa. Eu, cheio de dúvidas, irei estudar. Revisitarei amigos antigos, conversarei com Walber de Moura Agra , passarei muito tempo em companhia (solitária de leitor) de Canotilho, Jorge Miranda, Paulo Bonavides e tantos outros; sei que ouvirei música, degustarei um bom cabernet sauvignon com poesias, muitos cafés afastarão sono e cansaço, enfim, só me aquietarei quando conseguir, ao menos, compartilhar com você muitas das possibilidades que o tema “Direito à Felicidade” apresenta à minha inquietação, e a primeira delas é: como a busca pela felicidade pode (ou deve) ser compreendida e/ou percebida, a ponto de consubstanciar norma constitucional?
 “Os conceitos de princípios e regras constitucionais “são históricos, contextualizados e devem ser construídos por todos, em processo permanente de diálogo entre todos os grupos sociais, pessoas e representantes nos poderes públicos e dos poderes públicos”.
Vejo que na justificativa da proposta o Senador considera que “a par, nada obstante, da felicidade ter sido ora conceituada como sentimento e estado de espírito, é certo que ela pode ser enquadrada no plano das coisas palpáveis e asseguráveis, consistindo, ao menos em parte, um direito de cada indivíduo e da coletividade social como um todo considerada”.
Cita, em abono, Opinião Consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos, assegurando que o objetivo primordial do Estado Democrático é a “proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam evoluir espiritual e materialmente e atingir a felicidade”.
Continua, na justificativa, fazendo a distinção axiológica entre a felicidade subjetiva e objetiva:
“Sob o viés da felicidade propriamente dita, é possível dicotomizá-la em seus aspectos subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo da felicidade condiz com os elementos internos de cada indivíduo que formam o sentimento e o estado de espírito felicidade. Sobre esses aspectos, afetos às sensações mais profundas do indivíduo, a legislação não pode tratar. Com efeito, a felicidade para um cidadão não será, no mais absoluto das vezes, a felicidade para outro. Todavia, sob seu aspecto objetivo, a felicidade é plenamente tutelável pela legislação. É justamente esse o objeto das modificações que a pontual proposta presta a tecer”.
Porém, ao que tudo sugere, o que se pretende com a proposição não é garantir a felicidade como ente personalíssimo de cada indivíduo em sua convivência particular com a Constituição – até porque isto seria impossível! - mas oferecer garantias de respeito e estímulo à formação e manutenção de um Estado prenhe de possibilidades para que homens e mulheres, brasileiros de todas as raças, cores, religiões e posturas, sintam-se imersos em um ambiente em que a busca pela felicidade deixe de ser um sonho distante e passe à categoria de evento possível e, digo mais, oxalá comum!
Ocorre que já de longa data o Estado eudemonológico é tido como poética utopia.
 “A história contemporânea do político inaugura-se com a questão da igualdade política e da cidadania. A democracia reveste-se de um certo grau de religião ao celebrar a mística sociedade de iguais. Neste sentido, Carl Schmitt considera a igualdade como uma utopia da democracia. Esta utopia, sobretudo sob a forma de democracia directa e participativa, aparece como o sonho da espontaneidade contra a formalização, da relação pessoal contra a burocracia, da aventura da liberdade contra a excessiva regulamentação. Mais utópico é ainda o Estado eudemonológico, cuja função principal consistiria em tornar as pessoas felizes, como se ao Estado competisse tal tarefa” .
Kant, por exemplo, defendendo o Estado liberal puro, sustentava que ao invés de tentar fazer os súditos felizes, o Estado deve lhes dar tanta liberdade quando seja necessária para que cada um deles procure, ache, conquiste e mantenha a sua própria felicidade .
Contudo, as premissas iniciais da proposta de emenda constitucional são outras. Agora, vai-se além do ideário liberal e aproxima-se de um novo construtivismo constitucional fundado na percepção do que se convencionou chamar de diritto vivente , sob uma nova hermenêutica de base zetética, prescrutadora dos múltiplos elementos e variados aspectos que giram em torno do pacto vivencial da sociedade.
 “Os critérios objetivos da felicidade podem, no contexto constitucional, ser entendidos como a inviolabilidade dos direitos de liberdade negativa, tais como aqueles previstos no art. 5° (variantes da vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança), além daqueles relacionados ao Estado prestacional – os direitos sociais, como os preconizados no art. 6° do Texto Constitucional. O encontro dessas duas espécies de direitos – os da liberdade negativa e os de liberdade positiva – redundam justamente, no objetivo da presente Proposta de Emenda à Constituição: a previsão do direito do indivíduo e da sociedade em buscar a felicidade, obrigando-se o Estado e a própria sociedade a fornecer meios para tanto, tanto se abstendo de ultrapassar as limitações impostas pelos direitos de égide liberal quanto exercendo com maestria e, observados os princípios do art. 37, os direitos de cunho social”.
Com efeito, a ampla intervenção constitucional na intimidade relacional de seus recipiendários, possui a nítida vocação de zelo para a construção de um ainda novo - e por isto mesmo não suficientemente maduro – ethos de convivialidade . É que, malgrado não tenha havido propriamente uma ruptura histórica entre o Regime pós-64 e a nova ordem constitucional, a Carta de 1988 representou o deságüe de muitas pretensões aprisionadas, deu azo a vôos intrépidos na afirmação das liberdades - algumas vezes até, chegou perto do exagero! -, mas, de qualquer sorte, conseguiu realocar a dignidade da pessoa humana no epicentro das preocupações constitucionais, fundando um pacto de compartilhamento da cidadania inédito em nosso país.
 “Como típica Carta-compromisso, a atual Constituição encarnou excelentemente a síntese de nossas contradições e ideais de mudança. Dada a mescla ideológica de seus autores, traduz o encontro das águas encapeladas entre as forças conservadoras e as aspirações mundancistas. Sua linguagem politicamente híbrida e que mistura dezenas de normas princípio com centenas de preceitos analíticos, de teor não raro inconcluso, nem sempre autoaplicável e dependente da aprovação futura de dezenas de leis complementares e ordinárias, transformou o texto supremo num estimulante manancial exegético para a discussão do ideário brasileiro e de um projeto crítico de nação”.
Acompanhando a inteligência de José Luiz Quadros de Magalhães, podemos compreender que a idéia de dignidade humana na Constituição de 1988, procura conciliar os conteúdos filosóficos humanistas com a existência de condições materiais (constitucionalmente garantidas) que permitam o florescimento da uma nova cultura social, na qual o respeito encontrado pela vida de cada cidadão seja recíproco .
O mais interessante de tudo é que este apelo vai muito além do reservado espaço de discussão jurídica. Para o Teólogo Leonardo Boff, por exemplo, “o desenvolvimento social visa melhorar a qualidade de vida humana enquanto humana. Isso implica em valores universais como vida saudável e longa, educação, participação política, democracia social e participativa e não apenas representativa, garantia de respeito aos direitos humanos e de proteção contra a violência, condições para uma adequada expressão simbólica e espiritual. Tais valores somente se alcançam se há um cuidado na construção coletiva do social, se há convivialidade entre as diferenças, cordialidade nas relações sociais, compaixão com todos aqueles que sofrem ou se sentem à margem, criando estratégias de compensação e de integração. Cuidado especial merecem os doentes, os idosos, os portadores de algum estigma social, os marginalizados e excluídos. Por eles se mede o quanto de sustentabilidade e de cuidado essencial realizou e realiza uma sociedade” .
Por outro lado, segundo as pesquisas realizadas pelo economista alemão Johannes Hirata, para sua tese pós-doutoral – “Happiness, Ethics, and Economics” -, o grau de participação da população nas decisões de um país está diretamente relacionado ao aumento do índice de felicidade coletiva.
Assim, parece claro que um sistema político de viés democrático e participativo estimula o bem-estar social e, em decorrência, permite a constante, sadia e harmônica fluidez do estado de felicidade.
Portanto, há interesse sim em que não apenas um mero sentimento individual, mas um status real, perceptível e mensurável da ambiência vivencial dos brasileiros reunidos, mereça ser reconhecido como direito social e objetivo fundamental da República!
 “... o conjunto de direitos fundamentais, relacionados estreitamente ao princípio da dignidade da pessoa humana, guarda notável conformidade com o direito à busca da felicidade, considerando-se a afinidade axiológica entre este e aqueles (...) Por outro lado, reconhecida a necessidade de se prover todos os cidadãos dos recursos necessários a uma vida com acesso à educação, à assistência médico-hospitalar, à cultura, ao lazer, a condições dignas de habitação, de transporte e de trabalho com remuneração adequada, indispensáveis como fatores materiais para a conquista da felicidade, a norma do art. 3°, II e III, da Constituição de 1988 consagra como objetivos fundamentais do Estado brasileiro a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. É possível, portanto, extrair-se do exame articulado desses preceitos constitucionais a idéia de que a aspiração à felicidade informa os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil...” .
Imagino agora, que já é tarde da noite, a quantas estará o velho e feliz homem que encontrei sobre as ondas de Iracema e, como por recorte, lembrei de algo que li sobre a esplêndida metáfora imaginada por Heine quando escreveu sobre o frêmito dos alemães ao receberem notícias da Revolução Francesa: “Quando em Paris, no grande oceano humano, as ondas da revolução subiam, agitavam-se e se enfureciam tempestuosamente, para além do Reno os corações alemães murmuravam e fremiam” . Quem sabe também não nos seja possível crer que novos murmúrios e frêmitos ecoarão nos corações mais distantes quando em breve receberem notícias felizes deste promissor arquipélago de esperanças chamado Brasil?!

“Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto?” .




DIREITO À FELICIDADE.

2. O medo da criança.

“Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou” .



No meio da madrugada o menino acorda assustado. Ainda escuta a voz rouca do assaltante, horas atrás, revólver preto nas mãos, olhos inflamados de sangue e bestialidade, gritando com a mãe do garoto: “Passa a bolsa, v...”. Guardo as lágrimas infantis no aconchego do meu mais amoroso abraço e penso que quando eu era criança não me preocupava com segurança, não tinha medo de ser assaltado enquanto corria pelas ruas de calçamento da minha vizinhança ou quando voltava da escola na monareta que acabara de ganhar. Fico impaciente. Sinto-me impotente. A infelicidade bate à minha porta. Agora, somos dois espectros insones: eu e o menino!
Nós todos sabemos que a segurança é um dos direitos sociais gravados no art. 6° da Constituição e que, se dependesse exclusivamente da atenção legislativa, certamente viveríamos em um dos países mais seguros do mundo. Contudo, muito provavelmente ainda não percebemos que somos mais ‘puros’ na retórica de nossas reclamações cotidianas do que propriamente quando escolhemos o repertório de nossos comportamentos diários.
É que nos falta adesão firme e sincera a um pacto social retribuitivo, proativo e solene chamado co-cidadania que envolve, por sua vez, a aceitação de princípios e idéias de intenso valor moral, ético e político.
 “O ideal de participação ampla dos cidadãos em uma sociedade democrática só será mesmo construído a partir da mudança no modo de encarar a relação política”.
Portanto, é urgente a adoção de uma releitura ‘inclusiva’ do Direito a partir das primazias constitucionais, chegando-se às outras normas permeiam o ordenamento - providência a ser realizada não apenas pelos doutores da lei, mas por toda a sociedade, que merece ser convidada e estimulada ao engajamento político!
 A metodologia de pesquisa inclusiva (do Direito) determina-se pela incorporação de conhecimentos advindos de ciências sociais empíricas e variadas disciplinas jurídicas, além da dogmática do Direito Positivo, como a história, o Direito comparado, a filosofia jurídica e a Teoria do Direito na sua feição atual, sensível às contribuições das ciências formais contemporâneas, como ao desenvolvimento de uma lógica material própria do discurso normativo, onde ação e pensamento, ética e lógica, se encontram em posição de franco diálogo, fecundo na produção de novas interpretações e significações.
O marco inicial desta nova compreensão do fenômeno de percepção lúcida do Direito e da sociedade democrática participativa é a afirmação incondicional do respeito e da garantia à dignidade humana, núcleo essencial da expectativa presente e futura de convivência compartilhada nos caminhos do indivíduo, dele e de seus pares, e de todos com a nação.
 “Na sociedade contemporânea adota-se o sentido amplo de cidadania, e o termo cidadão recebe a conotação que verdadeiramente se pretende atribuir-lhe na sociedade moderna e democrática. Ser cidadão significa, antes de tudo, ser parte, no sentido próprio de compartilhar de uma mesma sociedade. A cidadania envolve, nesse aspecto, o reconhecimento do indivíduo como ser integrante da sociedade estatal e, portanto, incluído e acolhido pelo ordenamento jurídico. Valemo-nos daquele indivíduo que, conhecendo seus direitos e deveres, necessita também tê-los concretizados para alcançar o ideal de dignidade da pessoa humana”.
Todavia não se pode olvidar que é obrigação do Estado garantir as condições – senão ideais – mínimas para que todos se sintam à vontade no ágape da participação cívica. Para tanto, é necessário que seus direitos sejam, mais do simplesmente reconhecidos, garantidos eficazmente contra o arbítrio e a injustiça.
Isto não quer dizer que se pretenda construir uma sociedade de cidadania passiva, onde as tábuas de direitos e garantias condicionem homens e mulheres ao descanso e à leniência, protegidos e despreocupados – “deitados em berço esplêndido”. Ao contrário, as salvaguardas constitucionais devem servir de estímulo para atitudes questionadoras, posturas proativas, iniciativas de participação direta etc.
 A Carta Encíclica Pacem in Terris de João XXIII, sempre lembrada nos estudos comparados, enumera os direitos universais, invioláveis e inalienáveis dos seres humanos, dentre eles o de cidadania ativa: “Convém ainda à dignidade da pessoa o direito de participar ativamente da vida pública, e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos” .
Porém, infelizmente temos assistido ao triste espetáculo da apatia política contaminando até mesmo Estados Democráticos de elevada estatura. Não à toa o espetacular (e recentemente falecido) prêmio Nobel de literatura José Saramago escreveu um fantástico romance - Ensaio sobre a lucidez - retratando o ápice de abstenção política de uma população que, sem qualquer justificativa plausível, vota em branco: “Mau tempo para votar”, diz uma personagem!
 “Olhemos ao nosso redor. Nas democracias mais consolidadas assistimos impotentes ao fenômeno da apatia política, que freqüentemente chega a envolver cerca da metade dos que tem direito ao voto. Do ponto de vista da cultura política, estas são pessoas que não estão orientadas nem para o output nem para os input. Estão simplesmente desinteressadas daquilo que, como se diz na Itália com uma feliz expressão, acontece no palácio” .
Mas não é mero apelo ficcional. Hoje mesmo, às vésperas de eleições presidenciais, para governadores, senadores, deputados federais e estaduais, a maioria da população brasileira convive com assombroso distanciamento das disputas dos cargos eletivos, que muitos já consideram praticamente plebiscitárias, ao menos para o Executivo Federal.
À primeira vista parece bastante razoável crer que a imobilidade política desse novo querido povo brasileiro, guarda proporcionalidade direta com o crescente descrédito da gestão pública e da atividade parlamentar.
 Arnaldo Jabor, com sua incomparável inteligência satírica, publicou o “Se...” do canalha nacional: “Se puderes manter a cabeça erguida, quando todos te acusarem, chamando-te de ladrão ou corrupto por te terem pegado com a mão dentro da cumbuca,/ se mantiveres a aparente dignidade, mesmo diante de provas inabaláveis do teu crime e disseres com voz clara e serena: ‘tudo isso é uma infâmia sórdida de meus inimigos’, ou ainda: ‘não me lembro se esta loura de coxas douradas foi minha secretária ou não.../ se, no fundo do coração, achas que roubar o Estado ou os estados e as prefeituras ou os camelôs ou os lixeiros ou os mendigos é, portanto, uma causa nobre e um ato quase revolucionário, /que a mutreta, a maracutaia, a mão-grande, o apaga-luz, o ‘me dá aí o meu’ têm algo de transgressão pós-modera.../eu te direi que serás, sim, impune para sempre, um extraordinário canalha, meu filho, um grandioso...” .
Contudo, uma análise mais atenta pode nos revelar que o pano de fundo para o absenteísmo político é reflexo da tensão existente entre os dois modelos de pensamento político predominantes da modernidade/contemporaneidade: liberal e republicano.
 São duas formas antagônicas de se pensar a política, presentes até os dias de hoje.
Enquanto o modelo republicano pode ser ligado à idéia de soberania popular e autonomia política, o paradigma liberal pode ser entendido sob a concepção de autonomia privada e auto-determinação.
Esses dois conjuntos de princípios implicam interpretações diferenciadas quanto à relação entre a Soberania Popular, qual seja o poder auto-organizativo das comunidades, e os Direitos Humanos .

Para superar a dicotomia, existe a possibilidade de adoção do princípio do discurso de Habermas, instrumentalizando a comunicação entre componentes principiológicos dos modelos liberal e republicano através da ocupação dialogal das intercessões neutras, nas quais as decisões atinentes à ativa participação da cidadania se fundamentariam na discussão racional e no reconhecimento da oportunidade/idoneidade da solução apontada pela maioria dos interessados.
 O princípio do discurso, forma do direito e democracia: “A mencionada relação de co-originariedade entre o mundo jurídico e o moral só ocorre, conforme Habermas, através de um princípio neutro em relação a ambos, qual seja, o princípio do discurso. Assim, a questão inicial do direito racional é reformulada sob as premissas da teoria do discurso: ‘que direitos as pessoas têm que atribuir-se mutuamente, quando se decidem a constituir uma livre associação de parceiros do direito e a regular legitimamente sua convivência com os meios do direito positivo?’ Como resposta, temos formulado o princípio do discurso (D), do seguinte modo: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” .
Por outro lado, Bobbio identifica pelos menos três obstáculos ao projeto político democrático que, segundo seu entendimento, “foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa do que a de hoje”, o que acaba afetando a própria credibilidade do sistema e a participação ativa dos cidadãos.
O primeiro dos obstáculos é o “Governo dos Técnicos”, e representa um conflito axiológico difícil de ser superado, senão vejamos: partindo da premissa inicial de que democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos devem compartilhar o processo decisório, como aceitar que cada vez mais, diante mesmo da complexidade das demandas, sejam os técnicos, os expertos, os peritos, os que elaboram e apontam as políticas públicas a serem efetivadas?
 “Tecnocracia e democracia são antitéticas: se protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos” .
O segundo obstáculo apontado pelo filósofo italiano é o inesperado e contínuo crescimento do aparato burocrático essencialmente verticalizado up to down - exatamente por isto, ferozmente antagônico à fluência natural da democracia, cujo poder há de surgir da base (povo) e migrar para o vértice (gestores e parlamentares).
Por fim, Bobbio refere-se à “ingovernabilidade da democracia”: o crescimento significativo das demandas sociais aliado à complexidade procedimental da gestão pública congestionou de tal forma a prestação governamental que chegou a comprometer a eficiência e a eficácia dos governos.
 “O Estado liberal primeiro e o seu alargamento no Estado democrático depois contribuíram para emancipar a sociedade civil do sistema político. Tal processo de emancipação fez com que a sociedade civil se tornasse cada vez mais uma inesgotável fonte de demandas dirigidas ao governo, ficando este, para bem desenvolver sua função, obrigado a dar respostas sempre adequadas. Mas como pode o governo responder se as demandas que provêm de uma sociedade livre e emancipada são sempre mais numerosas, sempre mais urgentes, sempre mais onerosas? (...) Além do mais, diante da rapidez com que são dirigidas ao governo as demandas da parte dos cidadãos, torna-se contrastante a lentidão que os complexos procedimentos de um sistema político democrático impõem à classe política no momento de tomar as decisões adequadas. Cria-se assim uma verdadeira defasagem entre o mecanismo da imissão e o mecanismo da emissão, o primeiro em ritmo sempre mais acelerado e o segundo em ritmo sempre mais lento”.
Por mais que a crítica de Bobbio à solidez dos governos democráticos pareça irremediável e, por via oblíqua, a efetiva participação da cidadania na gestão coletiva também, o mestre de Turim termina seu discurso fazendo uma apologia de fé na democracia; não sem antes conclamar a todos, principalmente aos jovens, para que cultivem alguns valores ditos essenciais: 1°) ideal da tolerância; 2°) ideal da não-violência; 3°) o ideal da renovação gradual da sociedade através do livre debate das idéias e da mudança da mentalidade e do modo de viver, e; 4°) o ideal da irmandade.
Ora, os valores e ideais apresentados reforçam o compartilhamento das competências da cidadania. Somente com tolerância e respeito ao outro, através do diálogo constante, balizado pela idéia de movimento do ser e do mundo circundante, é que, todos juntos, haveremos de construir, passo a passo, nosso pedaço de chão pátria amada.
O menino, que antes chorava, agora dorme... e sonha, e sonha!

“A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria” .



















DIREITO À FELICIDADE.

3. De poeta proscrito a embaixador post-mortem.


“Sua vida poderia ser
Muito mais do que era.
O Imperador dos brasileiros
Os escritores muito preza.
Tardou o indulto mas chegou
É mais seguro vir por terra”.” .



Já passa um pouco da 20:30 hs. Estou trabalhando, escrevendo no escritório. As mãos passeiam pelo teclado tentado acompanhar a velocidade das muitas e coloridas idéias, enquanto os olhos (já cansados) descobrem a cada instante novos e indesculpáveis erros de digitação. Na sala ao lado, Alexandre Garcia informa que o “poetinha” será promovido a Embaixador. Corro para a televisão, acompanho a matéria e, por incrível que pareça, me aborreço!
Na TV um homem ilustrado, desses a quem devemos chamar de excelência, diz que será uma honra para o Itamaraty ter Vinícius de Moraes como Ministro de 1ª Categoria; logo ele que foi defenestrado por ordem de quepe expedida em bilhete de rasura: “Demitam esse vagabundo!”.
Diante da notícia é impossível não lembrar da “Carta aos Puros”: “O vós, homens da sigla; o vós, homens da cifra/ Falsos chimangos, calabares, sinecuros/ Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra.../ E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros”.
Será que Vinícius vaticinou a própria sorte? Vai ver que, além de poeta, diplomata e ‘vagabundo’, o branco mais preto do Brasil também era profeta. Sem matar deus em acessos nietzschiano ele - o proscrito - tornou-se, trinta anos depois, aquilo que sabia que era e nunca deixou de ser: o Embaixador mais versado sobre a beleza cotidiana da patriazinha amada.
Pena que as inteligências da diplomacia brasileira tenham demorado tanto tempo para reconhecer o óbvio. E agora, sorrisos amarelados pelas décadas não impedirão que o Poeta, entre doses generosas do escocês celestial, ao som de harpas afinadíssimas em dó maior, murmure nos ouvidos mulatos de beldades angelicais eternamente despudoradas: “Não comerei da alface a verde pétala.... há,há,há...”.
Ocorre que todos nós estamos sujeitos às ideologias de plantão, de ocasião ou da moda, e porque elas contaminam tanto as relações de poder quanto a formação e aplicação das ciências como um todo, acabamos por testemunhar reviravoltas mirabolantes nos fatos políticos e sociais.
 “Toda ciência é ideológica (porque qualquer saber é ideológico) e o poder, em cada caso, a manipulará segundo convenha à sua conservação, privilegiando uma ideologia e descartando (ou reprimindo, limitando o desenvolvimento ou ocultando) as que considere perigosas ou negativas para ela. Por maior que seja a aparência de seriedade e assepsia de uma ideologia, sempre será uma ideologia. A ilusão científica de ‘objetividade’ não passou de um elemento sedativo e anestésico que hoje não tem mais utilidade” .
Porém, ao menos no que diz respeito à aplicação de normas mínimas de proteção do corpo social, lastreadas no princípio da dignidade humana, há de perde-se o traço da demasiada volatilidade. E é isto que agora nos preocupa!
Que as constituições, assim como os homens, são (também) mundanas, disto dúvidas não há! Mas, deve haver algum suporte de eficácia continuada aos mandamentos constitucionais máximos, pois se assim não fosse, a própria função política da carta restaria pó.
 “A Constituição é uma obra aberta. Tal qual acontece com as obras de arte, cujo toque final se queda por esperar seus apreciadores, a Constituição também remanesce inacabada, complementando-se, construindo-se e perfazendo-se pelas gerações presentes e futuras. Possui pretensão de eternidade (...) O conteúdo das normas constitucionais interfere na realidade conformando-a (normatividade constitucional), mas, de igual modo, deixa-se influenciar pela evolução transformadora da sociedade, o que oportuniza um novo paradigma de compreensão da norma constitucional” .
É que o princípio de proteção à dignidade da pessoa humana extrapola os limites lineares de regra de direito positivo. Expande-se como luz esclarecedora em todas as direções (Sie ist auch die Lichtquelle). Na verdade consubstancia meta-princípio constitucional, forjado após duras pelejas e longa trajetória histórica de conquistas. É ponto de partida, manancial de comportamentos, fonte de definição de políticas públicas, reitor da interpretação e concretização constitucional e guia obrigatório nas relações de poder.
 “Este meta-princípio constitucional tem valor fundamental para a lógica e afirmação concreta dos direitos humanos, pois é a base positiva e racional da qual pode partir a construção normativa dos direitos fundamentais de um Estado-Nação. Trata-se, portanto, de um lugar-comum para o abrigo de todas as gerações de direitos humanos, dos de primeira aos de quarta dimensão. A partir daí pode-se dizer que a justiça não pode ser pensada isoladamente, sem o princípio da dignidade humana, assim como o poder não pode ser exercido apesar da dignidade humana” .
Essa multidimensionalidade remete à questão lógica da distinção entre as constituições e os sistemas constitucionais em que estão inseridas, pois não há como negar ou desprezar o fato de que nem sempre se consegue equalizar as identidades jurídica e política das constituições. Aliás, normalmente não se consegue! É que a vida do organismo social no cotidiano envolve uma rede tão intensa e fértil de tensões e conflitos, disputas de poder potenciais ou efetivas, e há tantas dicotomias como sói é possível imaginar, que acontece de, às vezes, as normas da constituição ‘colidirem’ com a realidade fática que lhe dá, e delas recebe, suporte.
 “Existe uma relação intrínseca entre a Constituição, a cultura e os valores da sociedade, de maneira que o Texto Maior não pode ser visto apenas como uma pauta de regras desvinculadas das influências do meio social” .
 “Todo o problema constitucional ainda hoje procede, contudo, da ausência de uma fórmula que venha combinar ou conciliar essas duas dimensões da Constituição: a jurídica e a política. A verdade é que ora prepondera uma, ora outra. No constitucionalismo clássico e individualista preponderou a primeira; no constitucionalismo social e contemporâneo, a segunda. E quando uma delas ocupa todo o espaço da reflexão e da análise, os danos e as insuficiências de compreensão do fenômeno constitucional se fazem presentes. O sistema constitucional surge pois como expressão elástica e flexível, que nos permite perceber o sentido tomado pela Constituição em face da ambiência social, que ela reflete, e a cujos influxos está sujeita, numa escala de dependência cada vez mais avultante” .
Exatamente por isso, várias vozes da contemporaneidade defendem a resincronização da dicção constitucional com os apelos da sociedade, nos moldes da interpretação construtiva levada a efeito, por exemplo, na Suprema Corte Americana, que superou os arreios da lógica pela lógica e inaugurou nova e progressista geometria constitucional.
Fenômeno parecido ocorre no Brasil, principalmente nas hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal é chamado a decidir sobre a implementação de políticas públicas deficitárias em situações particulares, notadamente!
Diversas são as ocasiões em que pessoas com enfermidades graves, v. g., socorrem-se do Judiciário para que determine ao Executivo o pagamento de tratamentos médicos avançados, a compra de medicamentos caríssimos etc., o que gera, desde logo, argüições quanto à interferência indevida entre esferas de poder.
Clássico já é o entendimento de Sua Excelência o Ministro Celso Mello: “... Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas na Constituição” .
Além disso, a compreensão de que os direitos atinentes à dignidade da pessoa humana - dentre os quais se pretende a busca pela felicidade - devem ter garantidos um mínimo de justiciabilidade, integra a Observação Geral n° 9 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas.
 “Em relação aos direitos civis e políticos, em geral, se parte da premissa de que é fundamental a existência de recursos judiciais frente à violação desses direitos (...) Às vezes se afirma que as questões que supõem a alocação de recursos devem ser confiadas às autoridades políticas e não a tribunais. Ainda que se deva respeitar as competências respectivas dos diversos poderes, é conveniente reconhecer que os tribunais já intervêm geralmente em uma gama considerável de questões que têm conseqüências importantes para os recursos disponíveis. A adoção de uma classificação rígida de direitos econômicos sociais e culturais que os situe, por definição, fora do âmbito dos tribunais seria, portanto, arbitrária e incompatível com o princípio de que os dois grupos de direitos são indivisíveis e independentes. Também se reduziria drasticamente a capacidade dos tribunais de proteger os direitos dos grupos mais vulneráveis e desprotegidos da sociedade”.
Contudo, como os direitos agregados à dignidade da pessoa humana possuem capilaridade elástica, surgem vários questionamentos, inclusive diante daquilo que se convencionou chamar de tragic choices , ou seja, como estabelecer prioridades na aplicação de recursos financeiros escassos diante de demandas igualmente ou aproximadamente idênticas e urgentes?
Além do mais é lícito perguntar se os juízes possuem legitimidade política para tanto, posto que suas investiduras nos cargos ocorrem por nomeações decorrentes de concursos públicos e não por eleições e, em derradeira análise, as sentenças judiciais modeladoras de gestão pública acabam interferindo nas escolhas, opções e decisões de pessoas democraticamente eleitas para este fim (membros dos Legislativos e Executivos).
 “Com a consolidação da nova cultura constitucional que emergiu no país em 1988, a jurisprudência brasileira deu um passo importante, ao reconhecer a plena justiciabilidade dos direitos sociais. No entanto, essas dificuldades devem ser levadas em conta. Vencido, com sucesso, o momento inicial de afirmação da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é chegada a hora de racionalizar esse processo. Para este fim, cumprem importante papel, como parâmetros a orientar a intervenção judicial nesta seara, duas categorias que vem sendo muito discutidas na dogmática jurídica: a reserva do possível e o mínimo existencial...” .
 “Não se nega que as políticas públicas em geral são extremamente importantes para as sociedades, devendo ser tomadas pelos órgãos legitimados democraticamente para tal, ou seja, pelos órgãos dos Poderes Executivo e Legislativo, sem ingerência, a princípio, do Poder Judiciário. Entretanto, segurando-se na mesma idéia de essencialidade da democracia, é importante que exista a possibilidade de, em ocasiões excepcionais, sejam as políticas públicas também passíveis de controle, pela esfera judicial, ou seja, pelos órgãos jurisdicionais. E, sem dúvida, o controle dessas políticas públicas através do Poder Judiciário se mostra ainda mais viável (ou mais que isso, se mostra necessário), quando houver incompatibilidade delas com os direitos fundamentais” .

Ocorre que nem sempre as demandas apresentadas podem ser conciliadas com a realidade fática, especialmente no que diz respeito à gestão e distribuição de recursos orçamentários, por exemplo. Pessoalmente recordo-me de uma decisão lavrada em Fortaleza que determinava ao Diretor do Colégio Militar matricular um número bastante significativo de novos alunos, malgrado não houvesse mais espaço físico para acomodá-los na escola.
Coincidência ou não, a tese da reserva do possível surgiu em 1972, mediante lúcida e espetacular interpretação dada pela Corte Constitucional alemã , versando sobre a quantidade de vagas disponíveis e a pretensão de ingresso de um número maior de estudantes na faculdade.
O certo é que as decisões judiciais nas questões prestacionais tendem a gerar uma tensão séria, pois há uma demanda particular com potencialidade significativa de influenciar, ou mesmo prejudicar, a satisfação de demandas coletivas.
É este o argumento amiúde utilizado pelos poderes públicos quando interpelados judicialmente: de que a satisfação daquele interesse pessoal prejudica o atendimento dos demais co-cidadãos, igualmente destinatários das atenções estatais.
 Neste sentido, a Suspensão de Segurança n° 3073/RN, relatada pela Ministra Ellen Gracie: “Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde”.
Assim, por contra-ponto, é importante verificar: (1) a razoabilidade da demanda prestacional exigida – judicialmente – perante o Estado; e (2) a possibilidade financeira (disponibilidade orçamentária) para executá-la.
Mais do que isto, o Ministro Celso de Mello deixou registrado que o Estado não pode abster-se de atender ao socorro do indivíduo em matéria fundamental, alegando a reserva do possível, exceto em situações em que haja motivo justo objetivamente aferível:
 “... a cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, pude resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de fundamentalidade” .
Isso equivale a dizer que as alegações genéricas sobre falta de recursos ou iminência de prejuízo para a universalidade de atendimentos nos serviços e políticas públicas são insuficientes para impedir a co-participação ativa do Judiciário quando chamado à integração dos direitos sociais deficitários pela ação negativa do Executivo.
E essa nova perspectiva de ação (colaboração) do Poder Judiciário na efetivação das políticas públicas badala os sinos da memória histórica em homenagem a todos os povos, uma vez que a contemporânea compreensão da dignidade da pessoa humana é ensinamento forjado no terreno dantesco de dores e sofrimentos de tantas gerações de mártires da intolerância, do esquecimento e da violência multifocal.
 “A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista de ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos” .
Mas não é preciso nova onda de genocídios, perseguições etc., basta a rebeldia contra a ‘normalidade social’ de pessoas morrendo sem atendimento médico adequado, ou crianças permanecendo desnutridas em pele e osso, ou jovens sem as mínimas condições de acesso ao mercado de trabalho, enquanto os mais velhos são perseguidos por dívidas e larápios. É porque nos falta – e ainda carecemos, possivelmente, de amadurecimento político para tanto! - o sentimento constitucional, tal qual defendido por Pablo Lucas Verdù, “a expressão de afeição do cidadão pela justiça e pela equidade”, em simbiose direta com a normatividade constitucional.
Contudo, há o exemplo do Judiciário Brasileiro que, corajosamente, ousa ir além da geometria conhecida, afirmando pelos caminhos constitucionais de estilo que somente pela progressiva cimentação dos direitos humanos é que finalmente (re)nascerá o conceito essencial de homem, como ser que orbita em torno de sua própria dignidade! E, a partir dela, dá a mesma importância à dignidade dos outros homens e mulheres, próximos ou distantes, amigos ou nem tanto. Esta é a potencialização máxima do sentimento de pertença, filtrado dos limites geográficos, e expandido à vizinhança comum de todos nós, we the People...
Assim, é óbvio que ao Estado cumpre garantir um mínimo possível de condições materiais para a conquista e mantença de padrões benfazejos de vida aos seus cidadãos, sempre plasmado na convicção de fazê-lo com a perspectiva de preservar a dignidade da pessoa humana. Exemplo disto está na proposta do Senador Cristovão Buarque de criar limites mínimos e máximos de segurança e tolerância, dentro de sua proposta educacionista.
Convém lembrar que o Judiciário pode e deve se pronunciar sobre o atendimento deste minimun, malgrado haja muita discussão a respeito da amplitude desta intervenção.
É que o reconhecimento da dignidade da pessoa humana insurge-se contra a reificação das pessoas, enquanto insiste em percebê-las como um fim-em-si-mesmas, o que acaba implicando ao Estado: (1) o dever de abster-se das ações meramente prejudiciais; e, (2) o dever de esforçar-se na execução daquelas outras tarefas que fomentem a bem-aventurança de seus súditos.
 “... a idéia de que o princípio do tratamento da pessoa como um fim em si mesma implica não só no dever negativo de não prejudicar ninguém, mas também o dever positivo de obrar no sentido de favorecer a felicidade alheia constitui a melhor justificativa do reconhecimento, a par dos direitos e liberdades individuais, também dos direitos humanos à realização de políticas públicas de conteúdo econômico e social, tal como enunciados nos artigos XVIII a XXII da Declaração Universal dos Direitos Humanos” .
No final das contas, cabe a reafirmação da relação ¬tipicamente kiekardiana entre a Constituição que define o direito, o Judiciário que a interpreta, o Executivo que a pratica e o que há de comum a todos eles: o povo, que os suporta a todos!

“Tengo miedo a perder la maravilla
de tu ojos de estatua, y el acento
que de noche me pone em la mejilla
la solitaria rosa de tu aliento” .



















DIREITO À FELICIDADE.

4. Desenho arriscado.

“Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números pra os dias
E os nomes para as pessoas” .



Estou em Brasília. Há pouco almocei com os confrades da Academia Maçônica de Letras, logo depois de assistirmos a uma palestra do senador Cristovão Buarque sobre o educacionismo. Agora passeio entre centenas de títulos na Livraria Acadêmica, pouso de um grande e simpático amigo.
Sei que não poderia estar em melhor companhia! Ao meu redor o perfume da sabedoria se espalha como bálsamo: “Oh! Quão bom e quão suave é quando os Irmãos habitam em união...” .
Da ‘fala’ do Senador carrego algumas idéias interessantes, dentre elas a constatação de que as palavras que conhecemos já se tornaram insuficientes para subjetivar os mais importantes fenômenos da existencialidade contemporânea; e isto significa que estamos atravessando uma quadra de mudanças profundas na ambiência social!
Se é verdade - ou não - que os índios nativos “viam, mas não enxergavam” as caravelas portuguesas de 1500 simplesmente porque jamais as haviam subjetivado, o certo é que linguagem, pensamento e comportamento estão unidos no complexo processo de formação da cognição.
 “Nossos processo cognitivos são intricadamente relacionados. Quando resolvemos qualquer problema, do mais simples ao mais complicado, colocamos na solução nosso conhecimento prévio, nossa estrutura conceitual, nossos talentos relativos a imagens mentais e mesmo nossa habilidade para usar a linguagem”.
Ora, considerando real a tese de que a linguagem dos seres humanos da pós-modernidade está mudando, anunciando assim um novo instante paradigmático conceitual, o fenômeno deve igualmente ser válido para o Direito! Afinal, no calendário de hoje, em que prevalecem o princípio da dignidade da pessoa humana, o respeito incondicional aos direitos sem fronteiras de qualquer homem, mulher, idoso ou criança, as relações íntimas entre Estados em que há combate mútuo e contínuo às violações de cláusulas consideradas universais; termos d’outrora como soberania, propriedade, cidadania, marcos territoriais, princípio da não ingerência, ordenamento piramidal de Kelsen etc., estão aos poucos se desconstituindo em face do movimento natural de releitura fenomenológica do mundo e de todos nós que o habitamos.
 “Há letra que mata e letra que vivifica ou até ressuscita. O Direito é, infelizmente, em muitos casos, simples letra morta e a Justiça ainda mais. Quando não se volve mesmo em letra que mata. Pelo rigorismo ou pelo laxismo, pela burocracia ou pela tortuosidade. A regeneração do Direito tem vindo actualmente da letra viva da cidadania e dos direitos humanos, que são, antes de mais, matéria constitucional” .
Por outro lado surgem, a cada dia, novas palavras e idéias que, aos poucos, se incorporam no repertório dos ativistas do direito de vanguarda. Luiz Flávio Gomes e Valerio Mazzuoli, por exemplo, identificam a atualidade de discutir-se a existência de normas supraconstitucionais, como resultante de um longo processo evolutivo, ao final do qual ficou construída a ideologia fundante da aplicação de normas que estão topograficamente fora dos ordenamentos estatais, mas que devem ser integradas às próprias constituições singulares.
 “Para bem compreender e visualizar as normas supraconstitucionais (as quais, como veremos, pertencem à fase do direito universal), deve o jurista do terceiro milênio estudar detidamente a evolução histórica do Estado, do Direito e da Justiça. Quando se realiza um estudo nesse sentido, pode-se verificar que o Estado, o Direito e a Justiça passaram por aquilo que se pode chamar de ondas evolutivas, que vão desde uma concepção arcaica do sistema jurídico (a iniciar com o Estado absolutista), até evoluir a um momento moderno desse mesmo sistema (do legalismo ao internacionalismo, passando pelo constitucionalismo), para finalmente chegar (nos tempos atuais) à pós-modernidade jurídica (quando então já se fala em uma quarta onda do Estado, do Direito e da Justiça, que chamaremos universalismo”.
Neste novo modelo a compreensão do Estado, do Direito e da Justiça revelam o contorno humanista e universalista que as demandas da atualidade envolvem. Não se admite mais, portanto, o juiz eunuco, escravo da legalidade, alma sem esperança peregrinando nos limbos escuros das abstrações positivadas, marchando ao passo e à sombra das decisões dos tribunais.
Ao revés, os novos tempos exigem o juiz dialógico, capaz de reinterpretar os fatos do cotidiano à luz do Direito, da Psicologia, da Sociologia e da Política , atuando de forma crítica e assumindo as responsabilidades cívicas do múnus que exerce em nome das expectativas sociais e dos objetivos estatais.
 “O século XIX foi o século do legislador porque se acreditava na sua infalibilidade, no seu sendo de justiça etc. O juiz não tinha quase nada a fazer, era, assim, um ser inanimado (Montesquieu). Rousseau dizia que o cargo de juiz só servia para o sujeito conquistar méritos e probidade para o exercício de outras funções, não burocráticas. As sociedades modernas são extremamente complexas e todos os seus conflitos (ambientais, ecológicos, energéticos, bioéticos, concorrenciais, políticos etc.) são submetidos ao juiz, cuja atividade gera atrito em todo momento como todos os demais poderes republicanos; a morte do juiz cético, oculto e legalista já foi anunciada há muito tempo (só não dá ainda para marcar a sua missa de sétimo dia, porque ele ainda não foi sepultado)” .
Outra conseqüência dessa linha evolutiva foi e é a constitucionalização do Direito , ou seja, a (calma) percepção de que a Constituição é lei, dotada de valores e princípios, formando uma inédita moral constitucional, axiologicamente fértil, de onde devem brotar não apenas as instrumentalidades normativas necessárias ao cotidiano, mas também o alicerce teleológico de todo o ordenamento, diante, inclusive, das imperfeições que – não adianta negar! –habitam qualquer ordem jurídica (inconstitucionalidades, conflitos de leis, lacunas etc.).
 “Uma Constituição não é apenas um texto legal. É, antes, uma vivência coletiva, um carma histórico-político, uma saga a ser cumprida pelos povos na trilha da civilização. A Constituição de 1988, mesmo vergada pelo peso de 56 emendas de caráter ora supressivo, ora modificativo e ora aditivo, que alteraram, par o bem ou para o mal, sua original feição, longe de ser perfeita, tem cumprido galhardamente um papel de vanguarda para a superação dos vícios e deformações que desde a origem colonial marcaram a formação da nacionalidade”.
É exatamente em razão de ser a Constituição norma de vanguarda, isto é, de caminhar à frente na jornada de transformação dos Estados, que o antigo sistematicismo jurídico merece ser abandonado em favor de uma compreensão viva da Constituição.
 “Na urgência de reencontrar, em valores e virtudes republicanas, uma ética constitucional, ganha relevo a palavra de ordem ‘Constituição Viva’. Tal como a Metáfora Viva de Paul Ricoeur, a metáfora da constituição não é apenas uma mera metáfora (etimologicamente, um simples transporte, transposição ou tradição, traditio), mas um ser vivente, e interpelante, aqui e agora” .
Aliás, como sabemos, o festejado modelo kelsiano já não mais atende aos anseios do Estado Constitucional e Humanista. Luiz Flávio Gomes e Valerio Mazzuoli denunciam, com ênfase, o fenômeno:
 “Essa clássica estrutura de nossa pirâmide jurídica (ou seja, essa forma de compreender o direito sob a ótica legalista positivista ou civilista contratualista) este hoje absolutamente ultrapassada. Embora ainda ensinada (equivocadamente) em algumas faculdades, essa antiga pirâmide kelseniana foi definitivamente sepultada pelo STF, no dia 3 de dezembro de 2008” .
Todavia, não podemos praticar a injustiça de simplesmente descartá-lo negando-lhe a importância do passado, porém os tempos são outros e diversos também são os paradigmas, seus significados e sua simbologia.
 “O modelo legalista-positivista de outro lado, teve grande prosperidade porque se ajustou perfeitamente às necessidades das sociedades industriais, que jogam tudo no crescimento econômico – na sua prosperidade – e muito pouco ou quase nada na construção da cidadania e das liberdades. E, para atender a esse desideratum, nada melhor do que contar com um direito instrumentalizado, que se caracteriza pela separação kantiana entre moralidade, de um lado, e legalidade e positividade, de outro (...) Mas o inegável é que esse modelo legalista-positivista de atuação judicial está ultrapassado” .
Apenas para recordar: a construção piramidal de Kelsen caracteriza o ordenamento pela unidade, hierarquia, plenitude, coerência e economia. Eu, particularmente, sem possuir nenhuma estatura de constitucionalista – aliás, estou muito, muito..., demasiadamente longe disto! -, não consigo imaginar a Constituição no isolamento típico dos deuses, sentada no sólio dourado do Olimpo, distante e solene, distribuindo o dom da vida para sua criação, talhada no mármore branco de sua suprema potestates.
Penso em uma Constituição mais próxima da humanidade, mundana mesmo – sem perder o status de ‘norma-fundante’ - de tal sorte inserida na vida estatal, social (coletiva e individual de cada Ser), que a vejo não no topo de uma pirâmide, vertical e angularmente excludente, mas no centro de um círculo, aberta nas mãos de um homem que a lê, a compreende e com ela interage.
Enxergo o novo signo constitucional simbolizando a neo harmonia e proporcionalidade do Estado Constitucionalizado e Humanizado, tendo como fonte irradiadora de luz (sabedoria) a Constituição, aberta nas mãos do “SER”, e dela, partindo para todos os graus idênticos e perfeitos da circunferência, os mesmos eflúvios, as mesmas diretrizes, as mesmas oportunidades de redimensionamento da ordem jurídica.
Essa poderosa força motriz localizada no centro umbilical da ordem jurídica deve ser capaz de influenciar não somente a reorganização do Estado, a elaboração das leis, as concepções de gestão pública etc., mas principalmente possibilitar a convivência íntima dos homens com as suas aspirações constitucionais, e por assim dizer, com a regulação de suas próprias vidas em comunidade tendo como ponto central a dignidade da pessoa humana na sua busca natural pela felicidade.
Nesse ponto, o apelo à dimensão ética, moral, política e jurídica da dignidade humana saboreada pelas inteligências, singulares e coletivas, acaba consubstanciando o princípio normativo das Constituições pós-modernas, permitindo assim a superação da crise de identidade constitucional pós 2ª Grande Guerra (sobrepujamento do positivismo jurídico).
 “Os juristas, e em especial os constitucionalistas, têm a grave responsabilidade de dar alma e ser sinal de alarme num momento de viragem como o presente. Podem tranquilamente deixar-se na sua posição confortável de áugures das crises políticas e elaboradores de pareceres a pedido, representantes dignos do direito nos livros. Ou podem ser principais obreiros do direito em acção, explicando, antes de mais, que a Democracia e os Direitos Humanos não são dados adquiridos, mas conquistas quotidianas, que passam pela adesão das gerações mais novas, que já não conheceram o que é viver em ditadura (...) Esperemos que jamais...” .
Logo em breve estarei novamente em Fortaleza. Eu, e esta imagem que me acompanha:



“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” .














DIREITO À FELICIDADE.

5. Mais um pouco de atrevimento (ou confusão?!)...

“Um menino caminha
E caminhando chega no muro
E ali logo em frente
A esperar pela gente
O futuro está” .



Passei o dia inteiro procurando um termo que, de alguma forma, conciliasse as forças centrípeta e centrífuga. Não desejo elaborar uma conceituação a partir da resultante dessas forças (uma excluindo ou atenuando a outra), mas apenas considerando – em tese - a possibilidade delas se harmonizarem e exercerem poder atrativo recíproca e concomitantemente.
Conversei com amigos engenheiros, professores de física e com o ambulante que vende fatias de abacaxi na orla de Fortaleza para os corredores de plantão. E foi ele que meu deu a dica mais interessante: Alexandre, procura na física quântica ou então lê “A Lei da Atração”.
Ora, como o subtítulo do livro indicado é “Peça, Acredite e Receba”, pedi licença aos volumes de Direito, Ciência Política, Psicologia e Sociologia e aqui estou com Michael J. Losier e com outros que discursam sobre fótons, radiações eletromagnéticas, análise espectral etc. (Se não achar uma saída para o problema que formulei, pelo menos aumento em muito minhas chances de enlouquecer de vez!).
Mas o que pretendo é, na verdade, bastante simples. No capítulo anterior, quando esbocei as primeiras linhas do meu arriscado desenho da ordem jurídica de um Estado Constitucional e Humanístico, por obrigação me referi às características da construção (e do mito) piramidal de Kelsen - unidade, hierarquia, plenitude, coerência e economia. Agora devo, ao menos, cotejá-las em face da ordem de compartilhamento e reciprocidade que anuncio.
Antes de tudo, é preciso lembrar que as ciências também recorrem aos mitos, às alegorias, às crenças, aos símbolos e aos signos para melhor se explicar e se mostrar ao mundo profano. Não é à toa que o Direito, por exemplo, pôs vendas alemãs em Têmis e exportou a cegueira criminosa da deusa mundo afora, com a finalidade de demonstrar a imparcialidade da Justiça . Também não causa espanto diversas alusões ao mito da sabedoria inigualável de Salomão que, não obstante ter bem solucionado a disputa das duas mulheres pelo recém-nascido, possuía setecentas mulheres e trezentas concubinas , portanto uma quantidade intoleravelmente tóxica de sogras. Da mesma forma, é raro o estudante que não tenha se deparado com a alegoria da caverna de Platão, ainda nas manhãs de verão nos cursos de Direito.
É que os mitos possuem, dentre várias outras funções, o afeto sociológico de estimular o reconhecimento das relações humanas, permitindo, assim, maiores possibilidades de comunhão dos ideais, objetivos e estratégias. E o mais importante de tudo: é a cimentação de um sentimento profundo de pertença e de propósito!
 “Nos tempos atuais, quando prevalece ainda o paradigma cartesiano nas ciências e o fundamentalismo nas tradições religiosas, quando as pessoas se sentem perdidas no meio de uma sociedade globalizada e impessoal, há uma busca crescente por um significado na vida. Os mitos podem nos levar ao encontro de realidades interiores que estavam esquecidas e obscurecidas, propiciando ao mesmo tempo a redescoberta do sagrado”.
 “Estimamos que as mitologias, mais que as ciências e as filosofias, encerram, junto com as religiões, os grandes elucidamentos da essência humana. Aí as culturas projetaram, geração após geração, grandes visões, acumularam reflexões, fizeram aprofundamentos e os passaram aos seus pósteros. Souberam usar de uma linguagem plástica, com imagens tiradas das profundezas do inconsciente coletivo, acessível a todas as idades e a todos os tempos. Além das visões e dos símbolos, suscitaram e continuam suscitando grandes emoções. E são essas que ficam e mobilizam as pessoas e os povos na história (...) Os mitos são linguagens para traduzir fenômenos profundos” .
Porém é preciso cuidado. Nem o Estado e muito menos a Constituição estão sendo propostos como mitos intangíveis ou meros símbolos da organização de um povo. O que digo é que ao lado da dimensão ‘real’ dessas duas entidades, coexiste uma importantíssima virtualidade simbólica que, além de ajudar a tornar mais compreensível a relação dos homens com a lei e com o Poder, pode lhes dar a rara e incomensurável sensação de acolhimento e participação em um cosmos de justa convivialidade política.
A percepção do Direito a que me refiro, ordem de compartilhamento e reciprocidade, permite ser compreendido como a regulação ótima - imperfeita, posto que fruto da inteligência e do trabalho humano, mas ótima diante da legitimidade que possui. E, mais do que ótima, sujeito e objeto de um manancial fecundo de relações – Eu e Tu, Eu e os Outros, Eu e a Lei, a Lei e os Outros, a Lei e as outras leis etc.
 “A vida humana, e, conseqüentemente, a evolução social e estatal são cheias de tropeços que restauram a humanidade, muitas vezes esquecida pela incessante razão iluminada na busca pela perfeição. Como pontua Jean Frémon a perfeição é uma superfície muda que abandonou a vida, a perfeição é de um outro mundo na porta do qual está escrito: não se entra!” .
Ademais, deve fecundar a sensação de melhor direito. Deve sim, conquistar e permanecer no imaginário da população como lei(s) boa(s), direito bom, decisões judiciais boas, enfim, substituir a desconfiança do senso comum no direito feito e aplicado por “eles”, pelo orgulho e fé no direito que permeia a vida de “nós todos”, sem sombras, sem esquinas, sem ângulos retos e excludentes.
Basta analisar, por exemplo, o fenômeno ocorrido com a legislação da criança e do adolescente no Brasil, considerada pelos técnicos como um das mais avançadas do mundo, mas que se incorporou na percepção popular como lei permissiva, incentivadora do crime e inepta.
Melhor, portanto, construir um repertório prático, simples, multidimensional, direto e plural, tendo como epicentro o movimento constante de afirmação e reafirmação da dignidade da pessoa humana, por meio de uma Tábua ao mesmo tempo real e simbólica; viva e metafísica; normativa e principiológica.
 “Os Direitos do Homem querem ser mesmo direitos, e mais: direitos superiores a esse Direito legislado, costumeiro, ou jurisprudencial que eventualmente (e este eventualmente pode ser mesmo freqüente) os não respeite. Prima facie, quer no plano da razoabilidade científica, quer no do bom senso institucional, este tipo de pretensões pareceria votado ao fracasso. Mas não: os direitos humanos não só estão sendo considerados Direito, como, de algum modo, no imaginário colectivo, acabam por figurar como uma espécie de mais-que-direito, ou, dito de outro modo, o verdadeiro Direito, o direito justo (...) É que os Direitos Humanos não são apenas Direito, como se elevaram a critério de Direito e do Bom Direito, e, na verdade, um signo de nossa contemporaneidade. Não por acaso se fala na idade ou era dos direitos” .
Assim é que, malgrado seja necessário reconhecer, por exemplo, a hierarquia entre as normas do ordenamento, a partir desse a priori da dignidade da pessoa humana permeando todo o texto e o entendimento constitucional, penso não ser necessário estabelecer um vínculo relacional verticalizado e de mão única. A Constituição, movimentando-se no centro do ordenamento, dá vazão ao tônus de vida que há no cosmos que ela própria ajuda a regular, e mantém sua primazia, em contato direto e imediato com qualquer outra norma, sem escalas, sem degraus, sem intermediações. Ao passo que legitima, a Constituição também é relegitimada pelo funcionamento harmônico de todo o ordenamento, posto que até no instante de aplicação da norma de pretensa menor importância, é à própria Carta que se está dando império.
Partindo da mesma hipótese, isto é, do centro do ordenamento, percebo que a Constituição se faz receptiva à intercessão com outras ordens jurídicas personalizadas, turvando a idéia de unicidade. Basta analisar o fenômeno de formação dos blocos continentais, cujo exemplo mais contundente é o da União Européia, em que os países membros transferem parcelas significativas de obediência e regulação constitucional, superando o tradicional princípio da não ingerência (domestic affair) pelo novíssimo modelo do international concern .
 “A Comunidade Européia revolucionou o conceito de soberania, caracterizado pela unidade, indivisibilidade e inalienabilidade, superprotegido sob a égide da segurança nacional, instituindo o direito comunitário. Na U.E. todas as constituições permitem a delegação do exercício de competências para um poder supranacional, permissão mister para a primazia do direito comunitário sobre o nacional” .
Ademais, como podemos negar que, na verdade, há uma multiplicidade de ordens legais não constitucionais interferindo na vida de cada um de nós. É que, ao lado do pluralismo sociológico, também há o pluralismo jurídico. Basta imaginar, por exemplo, a quantidade de ‘exigências legais’ que instituições privadas fazem para que os Estados sediem seus eventos (FIFA, Comitê Olímpico Internacional, FIA etc.). Além disso, na própria ordem doméstica existem subsistemas que normatizam, criam regras de condutas, estipulam sanções, e por aí vai.
 “A ordem jurídica estatal não é a única, como se crê e com muita freqüência é ensinado: ela encima ordens jurídicas infra-estatais (as dos grupos secundários) ou se avizinha delas e se inclina diante de ordens jurídicas supra-estatais (por exemplo, as ordens jurídicas européia ou internacional, ou ainda os ‘códigos de condutas’ das multinacionais. Graças à transnacionalidade delas, estas usufruem uma soberania normativa que lhes permite negociar com os Estados de soberano com soberano, e não de súdito com soberano). Portanto, o pluralismo jurídico permite superar a problemática do Estado de Direito ao afirmar que o Estado não tem o monopólio do direito oficial” .
Outro reflexo dessa comunicação entre a Constituição de um Estado com outros diplomas semelhantes (constituições de outros estados singulares ou de um bloco de estados, por exemplo, bem como por tratados e cartas políticas de direito universal, v.g.: direito humanitário), também modifica o antigo entendimento de plenitude que era dado ao ordenamento jurídico, pois o que é pleno, basta em si mesmo, prescindindo de qualquer complemento ou adição.
 “A idéia desse universalismo (que, como se pode perceber, é nítido produto da pós-modernidade jurídica e das mudanças pelas quais vem passando o direito internacional atual) está pautada na superposição que existe das normas de valor universal em relação àquelas de valor eminentemente doméstico, ainda que estas últimas sejam normas constitucionais” .
Ao contrário da autopoiética ermitã, precisa-se de um direito dialógico, não aut0-regulável ou fecundo apenas em si mesmo, não, não é esse o direito! A referência narcísica do direito pleno dificulta – ou até impossibilita – a comunhão de forças da legalidade com a multidimensionalidade da historicidade (lei versus fato), enquanto o que se quer é lei & fato. Os acontecimentos complexos da vida contemporânea exigem direito ágil, de certa forma plástico, não apenas em beleza, mas principalmente em sabedoria e, tecnicismos à parte, nada mais sábio do que compreender... conversando.
 “O jurista deve aprender a pensar o direito de outra maneira se quer ter uma chance de responder às legítimas questões que a sociedade lhe apresenta. Um direito ainda mais vinculado à moral, menos imperativo, mais maleável e menos espesso: essas são algumas direções que cumpriria abrir. Aliás, elas parecem iniciar-se” .
Econômico e coerente?! O ordenamento continua assim! Mas sem a hipócrita presunção de que é perfeito. É, apenas, obra cultural que foi concebida na perspectiva de oferecer soluções justas de equalização social, preferencialmente de forma não contraditória ou dicotômica E conta, hoje, com um ponto de apoio, uma pedra de arrimo de fortíssimo apelo argumentativo, que é a vocação de todo o ordenamento, a partir da Constituição, para tutelar a dignidade da pessoa humana, célula de união e identificação do conjunto de atores, naturais ou artificiais, da vida social pós-moderna.
Portanto, o ordenamento de compartilhamento e reciprocidade, ainda pretende ser econômico, coerente, mas não fechado em si mesmo, posto que permanentemente em construção, sendo que a Constituição inaugura um novo tipo de relacionamento hierárquico: do centro do sistema jurídico a Carta interpretada pelo Homem é o pólo irradiador da cultura jurídica, perfazendo todos os caminhos possíveis de orientação e regulação do ambiente social sem olvido de que, mesmo na aplicação do dispositivo mais singelo e específico, é ela própria – a Constituição, que está sendo resignificada. Aliás, a resignificação é uma constante, embora se reconheça o ímpeto primordial de proteção à dignidade dos homens e mulheres que peregrinam, mundo ao largo, em sua busca natural pela felicidade.
Estou saindo. Irei andar de moto, pensar um pouco. A circularidade que proponho tende a se chocar com o isolamento que combato. Preciso, portanto, de velocidade e liberdade. O mar à esquerda e o asfalto sem fim... uma felicidade passageira, como eu também sou.

“Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? Agente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê” .






























DIREITO À FELICIDADE.

6. Time after time.



“Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida” .



Hoje é sábado. Estive fora. Na mesa da sala, ao lado, vários processos esperam por mim. De certa forma, também espero por eles. Gosto de estudá-los, revelá-los aos poucos, confrontá-los, enfim, gosto do caminho.
Já há alguns dias me vem a recordação do uso de compasso na escola. Talvez eu tenha sido negligente, mas não lembro de ter visto os meus filhos usando compasso, pelo menos com a freqüência que eu o usava; não só o compasso, mas vários tipos de réguas, esquadros etc.
Pego o antigo compasso e marco diversos círculos no paciente papel reciclado. Sei que o círculo representa a formação perfeita, a ordenação eterna e protegida pelos deuses. Por isso, sempre guardou importância nas escolas filosóficas, teosóficas, zodiacais, religiosas até! Também na cabala e na magia, na tradição islâmica e no Budismo, na mandala e no misticismo.
Ocorre que, ouvindo Sinatra, tracei um círculo diferente - sempre motivado pela idéia inicial de discutir a inclusão da busca pela felicidade na Constituição Federal. Embora sem rupturas em seus 360°, o círculo que pretendo é comunicativo, aberto a interseções. Tem em seu centro um homem com a constituição aberta, inteligível, dialógica, fecunda e capilar. Afinal, creio que a humanização do direito é a única maneira eficaz de ajudar o direito a ajudar o homem.
Inaugura-se, assim, espaço para a construção da convivialidade na ordem jurídica. Mas como fazer isto se ainda estamos aprisionados por paradigmas cartesianos e posturas senis do bacharelismo escravagista? Se as faculdades de direito continuam ensinando a subsunção dos fatos às normas, como se fosse a galinha dos ovos de ouro? Se os obreiros da justiça perderam o hábito de andar a pé ouvindo os sussurros dos becos, vilas, ruas e bairros das cidades? Se os paletós linha 120 e os carros pretos assustam as pessoas que deveriam se sentir à vontade com os juízes, os promotores e os advogados? Se não há mais lugar para a poesia no direito?
Muito provavelmente em virtude das chagas que eu mesmo carrego por também ter sido vítima dos grilhões e da mediocridade acadêmica – suprema violência esta, pois a academia deve ser o espaço máximo do questionamento, da criatividade, dos ensaios e ousadias intelectuais -, resisto inconscientemente a propor a desconstituição de um mito. Aliás, de vários e simultâneos mitos.
Se é verdade que desejo conversar sobre um direito que facilite a busca do homem por sua felicidade e que tenha como bússola a proteção da humanidade e que, também, pretendo mais inquietar do que propriamente explicar, creio ser de bom tom abordar, ao menos, a questão dos conflitos que a circularidade, em tese, provoca.
Quando o arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio propôs o modelo ideal do homem, a partir do estudo e da demonstração matemática das proporções do corpo, é óbvio que ele partiu de um paradigma cultural e pontual de beleza. Isto comprova que sempre há uma predeterminação um a priori, que inspira as inteligências e motiva o trânsito teórico.
Particularmente, estou contaminado pela idéia de humanização dialógica do Direito e, por conseqüência, da aproximação de todos seus obreiros com a cidadania. Perceber que os ofícios jurídicos possuem a bem-aventurança de se depararem cotidianamente com incontáveis e ricas possibilidades de efetivar a melhoria de vida, material, psicológica, sentimental e política de muitas e diferentes pessoas, em grande parte das vezes esquecidas ou invisíveis , é dom raro!
É por isso que insisto em rabiscar a ordenação jurídica em contornos circulares, de permeios contínuos e constantes, como se todo esse ecossistema de leis, normas, etc., estivesse imerso em um único oceano: a tutela da dignidade da pessoa humana.
Todavia, a circularidade oportuniza a crítica contundente à autopoiese e esta, por sua vez, destaca a auto-referência do direito assim pensado.
“A auto-referência tem como principal função fazer com que o sistema jurídico desenvolva-se, modifique-se e se reproduza a partir de seus próprios elementos, buscando suas respostas em si mesmo” .
Porém, fruto deste bastar-se em si, o Direito em sistema circular (autopoiético) tende a ser impenetrável, indeterminado e imprevisível.
A impenetrabilidade do sistema ocorre exatamente em virtude dele alimentar-se de si mesmo, isto é, seus elementos (normas) são produzidos de forma autônoma e hipercíclica (autogênese).
Ora, se os conteúdos do sistema são gerados por ele próprio, o meio externo acaba se tornando impotente para estabelecer, orientar ou mesmo conhecer analiticamente qualquer situação dentro desse particular sistema. Eis, despontando ao Norte, a característica da indeterminação.
Por fim, apenas o próprio sistema será capaz de perceber e prever sua aplicação e incidência, posto que desconhecido de tudo e de todos que estão à sua margem. Portanto, nenhuma outra ciência ou sistema está apto a elaborar repostas aos fenômenos que se apresentarem. Vem daí a imprevisibilidade.
Além disso, a disposição dos elementos na sistêmica circular poderia inviabilizar a teorização da hierarquia das normas.
Porém, creio que persiste um (pré)conceito, difícil de ser suspenso, a dificultar uma nova visão do ordenamento. Pretender uma convivialidade circular não importa, necessariamente, em isolamento do sistema, pois há diversas possibilidades de intercessão e, quando efetiva-se uma intercessão, as áreas e os conteúdos passam a ser totalmente compartilhados. Uma vez compartilhados, estabelece-se comunicação e interação, permitindo determinação e previsibilidade.
Se isto implica reconhecer que o sistema jurídico passa a ser considerado um subsistema de segundo grau, em face do sistema social de primeiro grau, tenho cá minhas dúvidas. Aliás, há pouco eu estava na praia lendo o clássico “Nos confins do direito”, saboreando uma das muitas questões de Rouland:
 “Mas a questão crucial é: de onde vem esse direito que limita o Estado? Do próprio Estado, ou de uma outra instância? Certos autores são pela autolimitação. O direito não preexiste ao Estado, que produz a ordem jurídica. Se o Estado se submete ao direito,é por seu próprio movimento (...) Donde uma segunda abordagem, que inverte o movimento: esse direito ao qual o Estado de direito aceita submeter-se não vem dele, mas de um princípio que lhe é anterior e superior (...) Essas duas abordagens resultam, portanto, num impasse: ou o Estado de direito só é limitado por si mesmo, o que não constitui um sistema de freamento muito confiável, ou se fracassa em encontrar no direito positivo os vestígios de uma hipotética limitação extrínseca da potência do Estado” .
Ora, o direito positivo jamais poderá encontrar os fundamentos do Estado e da ordem jurídica fora dela própria. É talvez esta a possibilidade da grande reconstrução do pensamento jurídico contemporâneo. A travessia do oceano desconhecido bem que pode conduzir à aceitação de que valores supralegais, supraestatais ou universais, como queiram, não só influenciam a aplicação das leis já vigentes, como guiam sutilmente a edificação de novas ordens jurídicas, até mesmo porque as idéias precedem a ação. A lei ou a Constituição que um dia ganhará forma escrita, obviamente que antes foi pensada, com todas as implicações dos a priori que nisto há.
Tomando por exemplo a inclusão da busca pela felicidade como objetivo da República e Direito Social e considerando esta providência marco histórico do presente, é lícito crer que doravante a idéia de que o Estado é responsável pela facilitação jurídica e política da satisfação desse direito, o fenômeno incorporar-se-á no inconsciente coletivo cívico e certamente influenciará toda a produção legislativa futura, até que mudem os paradigmas.
Mas essa idéia não veio dos constituintes de 1988, nem de nossa tradição constitucional. Por que surge agora?
Porque há movimento. E esse movimento carrega consigo veículos os mais diversos de comunicação intersistêmica. Não estou certo, portanto, que deve cristalizar-se, ou não se pode combater, o dogma de impenetrabilidade dos sistemas circulares. Nem tampouco que a idéia contrarie qualquer noção de hierarquia. Afinal, sobrevivemos em um sistema planetário que rende suas homenagens ao astro central, a mais importante personagem de nossa via, o Sol.
O Doutor em Economia Ladislau Dowbor, por exemplo, critica os arrimos da ciência econômica e desafia alguns de seus postulados clássicos, em nome de uma vida mais feliz da humanidade. Em síntese, ele afirma que a linearidade do sistema econômico, além de contrariar a lógica circular da própria dinâmica vencedora da natureza, é cruel e destrutiva, agressiva contra o homem e devastadora para os recursos naturais.
 “Quando olhamos para esse nosso pequeno planeta, percebemos que a natureza funciona em sistema circular. Os pássaros comem as frutas e espalham as sementes; as folhas que caem são incorporadas ao solo que, por sua vez, se torna fértil e permite o surgimento de outras plantas, ou seja, todo o sistema da natureza é circular, de reutilização dos diversos recursos existentes. A vida está baseada nisso. O sistema econômico que nós montamos não é circular, de reciclagem, e sim um sistema linear. Pegamos recursos naturais, transformando-os em uma indústria, consumimos, e jogamos no lixo sob a forma de plástico. Com isso, estamos acabando com o petróleo no planeta. E não estamos recolocando de volta as bases energéticas utilizadas. O petróleo se acumulou durante centenas de milhões de anos, e nós teremos acabado com ele em 200 anos. A conta que fazemos deste processo é o PIB, o Produto Interno Bruto. Ele é bruto porque não calculamos a reposição desses processos. O PIB não mede os resultados em termos de qualidade de vida da população. Ele mede o fluxo desse processo linear da rapidez com a qual estamos utilizando os recursos. Quando, por exemplo, jogamos dejetos em rios e depois somos obrigados a contratar equipes para fazer a limpeza desses rios, estamos aumentando o PIB, porque aumentamos o fluxo do uso de recursos. Mas quando pegamos a Pastoral da Criança, que por medidas preventivas, sem gastar medicamentos ou com hospitalização, reduz a mortalidade das crianças, percebemos que ela não está apenas não aumentando o PIB, mas está reduzindo-o, porque reduziu o gasto com medicamentos, hospitalizações, o uso de ambulâncias e o petróleo e a gasolina que o veículo usaria. Fica parecendo que quando o PIB aumenta é bom, que usar mais recursos também é, quando, na verdade, estamos gastando os recursos do planeta” .
Portanto, não defendo a misantropia do Direito nem de qualquer outra ciência social. Postulo, ao contrário, pela episteme que possibilite a maior e mais fecunda comunicação entre as múltiplas matizes de conhecimento. E parto da premissa de que a Constituição enxerga melhor o mundo ao movimentar-se no centro dos acontecimentos, dando fundamento à ordem circundante e interagindo, diuturnamente, com tudo e com todos, que igualmente se movimentam ao seu redor.
A dignidade da pessoa humana, o acesso universal à saúde, à educação, a boa moradia, o lazer restaurador, a busca pela felicidade, enfim, o acesso aos direitos sociais como um conjunto necessário, útil não só ao indivíduo isolado, mas a toda família social, servem como ponto de exclamação da organização política, jurídica e social do Estado.
Creio que este universo de sentimentos, possíveis de serem deduzidos em preceitos e materializados em ações efetivas (políticas públicas, direção das decisões judiciais, programas das parcerias público-privada etc.), podem sim dar suporte prévio ao renascimento da ordem do direito, à reformulação jurídica do próprio Estado. Nada mais nada menos foi essa a diretriz que fundou a estratégia de governo do rei Jigme Singye Wangchuck, pois no Butão “a felicidade do povo é o objetivo do Governo”.
Depois de ter ido tão longe, passeando pelo Himalaia, parei um pouco. Vi o compasso ainda aberto sobre o papel reciclado. É hora de tomar uma cerveja enquanto “A Voz” encantada canta, time after time...
“Sem dúvida, a maior invenção da história da humanidade é a cerveja. Eu admito que a roda também é uma grande invenção, mas a roda não desce tão bem com uma pizza.” .







DIREITO À FELICIDADE.

7. Lendo a Piauí.



“De um certo ponto adiante não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado” .


Um bom amigo de Brasília me ligou com insistência. Pedia para que eu não deixasse de ler as duas últimas edições da Revista Piauí que, particularmente, considero uma das publicações mais interessantes do mercado editorial brasileiro.
Marcelo, esse bom amigo de Brasília, estava impressionado com duas matérias sobre o funcionamento do Judiciário, em destaque, os bastidores do Supremo Tribunal Federal.
Agradeci.
Li!
Depois, pensei em comprar uma passagem para o Butão, conhecer sua Constituição e florestas, aprender sobre Gross National Hapiness (Índice de Felicidade Nacional Bruta) e Dragões Brancos, passear pelas nove dimensões de mensuração da felicidade do povo e escutar o lugar comum de todo butânes: “Se isto te torna feliz, sim, faça!”.
A idéia é verificar como a realidade pode ser pensada e reconstruída a partir de novos e eficientes modelos. Antônio Ozório Leme de Barros nos dá a boa nova de que no Butão a busca pela felicidade está muito longe da retórica sedutora. Efetivamente e a partir da Constituição Butanesa, várias ações são desencadeadas a fim de dar colorido a este específico objetivo do Estado.
“Assim é que a Constituição do Reino do Butão, no seu art. 9° (que cuida dos Princípios de Política do Estado), dispõe, no item 2, que o ‘Estado se empenhará para promover as condições que permitirão a busca da Felicidade Nacional Bruta’; além disso, o art. 20 (que disciplina as ações do Poder Executivo) estatui, no seu item 1, que o ‘Governo deverá proteger e fortalecer a soberania do Reino, provê-lo de bom governo e assegurar a paz, a segurança, o bem-estar e a felicidade do povo” .
Para concretizar e capilarizar o mandamento constitucional, no ano de 2008 foi criada a Comissão para a Felicidade Nacional Bruta, destinada a promover políticas públicas e outras medidas e ações voltadas à construção de uma ambiente social democrático, harmônico, tributário às tradições da Nação e ao zelo com a natureza.
Não é por acaso que no Reino não se tem notícia de fome, analfabetismo, mendicância e corrupção.
 “O país tem fome zero, analfabetismo zero, índices de violência insignificantes e nenhum mendigo nas ruas. Não há registro de corrupção administrativa e o povo adora o rei, Jigme Khesar Namgyal Wangchuck (...). Felicidade é levada a sério no país - único do mundo a ter Gross National Happiness (Felicidade Interna Bruta, na tradução para o português) como política pública. Ao Estado cabe prover as condições necessárias para que a população possa se concentrar na busca da felicidade” .
De mais a mais, a Felicidade Interna Bruta é amiúde aferida mediante o cruzamento de dados que, por censo, avaliam: (1) o bem estar psicológico da população; (2) o uso do tempo; (3) a vitalidade da comunidade; (4) cultura; (5) saúde; (6) educação; (7) padrão de vida; (8) ecologia; e (9) qualidade do governo.
Isso é importante porque demonstra que a busca pela felicidade, orientada por uma ordenação jurídica dialógica, deixa de ser vista como utopia metafísica e materializa-se no cotidiano das pessoas - e do meio ambiente como todo - perfumando toda uma práxis social e política realmente enamorada com a nova vocação do Estado. Construir casas aos desabrigados ou proclamar sentenças justas aos infortunados, deixa de ser apenas o cumprimento de um múnus ou o exercício da postestates para transfigurar-se na quintessência pós-moderna da Constituição.
 “O pós-positivismo é uma superação do legalismo, não com recurso a idéias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade. Estes valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico (...) Em um ordenamento jurídico pluralista e dialético, princípios podem entrar em rota de colisão. Em tais situações, o intérprete, à luz dos elementos do caso concreto, da proporcionalidade e da preservação do núcleo fundamental de cada princípio e dos direitos fundamentais, procede a uma ponderação de interesses. Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral” .

Mas é preciso que a cidadania se acostume com o compartilhamento das ideias, objetivos, esperanças e demandas comuns, bem como da utilidade desta percepção. Uma nova aliança de pertença se anuncia e, mal chega, já exige atitude e convicção! Homens e mulheres de papel carbono, pálidos e conformados com o destino não ajudam à nova ordem. Ao contrário, há vagas para os ativistas, questionadores, curiosos e empreendedores cívicos.
Em trabalho extremamente interessante sobre o sentimento de pertença, Mauro Guilherme Pinheiro Koury cita o caso de um casal que mesmo sabendo que o espaço público que há muitos anos freqüentam está abandonado, sujo, perigoso, mantém a rotina de caminhada diária, primeiro por sentirem-se parte do lugar e, em segundo plano, para protestarem contra o descaso dos administradores públicos.
 “É uma forma de resistência nós permanecermos a fazer nossa caminhada aqui no passeio. Lugar mais bonito impossível, já foi comparado as cinco maravilhas do mundo moderno e hoje é isso aí, sujeira, fedor, assaltos e atentados ao pudor. (...) Mas eu e minha mulher não largamos de vir aqui de manhãzinha e de tardinha, todo santo dia. É uma forma de dizer que o Parque é nosso, é uma forma de chamar a atenção para que cuidem dele, de sua beleza e ainda o coração verde da cidade” .
Outro homem, no mesmo estudo do Professor Koury, afirma: “a lagoa é um lugar que cabe dentro de mim”.
Então fico aqui pensando, porque a Constituição, esta fenomenal obra da cultura humana, também não pode caber dentro de cada um de nós?! Afinal, se é ela a grande e superior organizadora do Estado e supervisora das relações de poder e de convivialidade, merece ser tida e percebida como nota comum de harmonia social, ou seja, é a (nossa) boa lei de todos.
Imagine, assim, com a licença ficcional de Saramago, que o afeto, o apego e a pertença à Constituição se espalhem como vírus. Que cada homem, mulher, idoso e criança capte a sensação de que a vida cotidiana é cuidadosamente acompanhada por preceitos – princípios e normas – de uma Lei Reitora, cuidadosamente elaborada para sintetizar o conjunto de expectativas, esperanças, desejos e necessidades de uma Nação.
Talvez assim, por seqüenciamento lógico, pudéssemos passar para a aguardada redefinição da jurisdição constitucional, que parece ser o caminho mais correto na jornada de renovação do Estado e da Democracia.
 “... uma jurisdição constitucional democrática existe para além da imagem construída pela pirâmide normativa kelseniana. É preciso que se busque novas opções teóricas e perspectivas substanciais que levem em consideração a realidade sociopolítica, sobretudo no que diz respeito à compreensão da Constituição como uma referência normativa criada pelo povo e para o povo. Quando o Poder Judiciário, como sistema de justiça, aprecia o caso concreto e age de acordo com a acepção material da Constituição, revela-se a expressão da vontade popular. Na verdade, a jurisdição constitucional apresenta-se como uma possibilidade de se vencer as indeterminações dos textos legais, ou como uma potencial alternativa, para solução dos problemas sociais” .
Não é que ao Judiciário caiba, simplesmente, a parcela de maior importância na afirmação do neoconstitucionalismo. Ocorre que ele possui o dom sutil de compreender o direito como um vir-a-ser heideggeriano, e isto torna plausível a pulverização do Poder.
 “A compreensão, para Heidegger, opera no interior de um conjunto de relações já interpretadas, num todo relacional, vale dizer, que atua dentro de um "círculo hermenêutico", inseparável da existência do intérprete. Não se pode conceber a compreensão fora de um contexto histórico e social” .

Assim, o Judiciário tem a capacidade de tornar-se um órgão produtor de micropoderes , descentralizando a histórica e ineficiente hipertrofia que, por vocação da vaidade humana, sempre ombreou a tripartição iluminista do Senhor de La Brède.
Porém, essa redistribuição dos atores no cenário do poder (macro e micro), facilitada pela jurisdição constitucional, tem uma aptidão aparentemente invisível, malgrado importante demais! É que a atual mobilização mundial em torno da globalização pode produzir o cruel efeito da dispersão quase que total dos valores, tradições e mitos locais, e isto torna o Estado extremamente vulnerável, inclusive diante dos interesses, nem sempre claros ou humanistas, das megacorporações industriais, comerciais, financeiras etc.
 “... a globalização econômica representa o risco da decomposição do sistema jurídico pelo mercado, na medida em que o direito passa a se tornar um instrumento estratégico e concorrencial para atrair o capital internacional e investimentos econômicos sem nenhum compromisso com os projetos locais” .
Aliás, a própria globalização somente foi possível em face de uma releitura dos sistemas jurídicos mundo afora . Por isso, nada impede que novas ondas de tendências mundiais atinjam nosso litoral, destruindo toda fauna e flora cultural de nosso habitat, particularmente nosso e agora exposto a todos, inclusive no Google!
Daí a necessidade de, ao lado da dispersão global, insistirmos na consolidação local . E dentro deste movimento de preservação das singularidades sem o olvido do todo, ou seja, mantendo a lúcida inteligência de que o “Mundo é Plano”, já não se pode mais pensar ingenuamente que as constituições bastam para sozinhas dirigirem os destinos dos Estados.
 “Uma das conseqüências involuntárias do mundo plano é que ele coloca diferentes culturas e sociedades em contato direto muito mais amplo umas com as outras. Liga as pessoas entre si muito mais rapidamente do que estas e suas culturas possam estar preparadas para isto” .
Superar o dirigismo constitucional e avançar rumo ao constitucionalismo moralmente reflexivo é a meta; pelo menos para J.J. Canotilho – pai e algoz da constituição dirigente.
 “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias” .
De pronto surge uma pergunta: mas a Constituição Brasileira tem essa normatividade constitucional revolucionária que se outrora lhe brindou com a luz da vida, hoje lhe cobre com o véu da morte?
Para muitos, não! Isso porque entendem que a Constituição Brasileira jamais propôs operar transformações emancipatórias, como a Carta Portuguesa de 1976 - temperada com as aspirações revolucionárias socialistas de 1974 - que inspirou a tese de doutoramento do mestre de Coimbra .
Outros pensam que Canotilho nunca abandonou sua tese dirigente e que países tardiamente inclusos na pós-modernidade ainda necessitam de uma Constituição compromissária.
 “... a noção de Constituição dirigente e compromissária não pode ser relegada a um plano secundário, mormente em um país como o Brasil, onde, repito: as promessas de modernidade, explicitadas generosamente no texto constitucional de 1988, longe estão de ser efetivadas. Para tanto, há que se enfrentar/superar alguns dos problemas e/ou obstáculos que fizeram com que a expressiva parcela dos dispositivos da CF/88 não obtivessem, até hoje, efetivação” .
Antagonismos à parte, o que parece indiscutível é que novas formas de acoplamento das estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas reforçam a atualidade do debate sobre, inclusive, o neoconstitucionalismo; portanto, é óbvio que os operários do direito ocupem papel importante neste fórum mundial de reinvenção da vida coletiva.
O estudo constante do Direito deve nos aproximar dos diversos e multifacetados conteúdos desta época de transformações que coabitamos. De nada nos adianta conhecer bem os códigos, as leis e os mármores que a decifram, sem a fome pelo que ocorre no mundo. Numa época em que até a instalação de redes multinacionais de restaurantes serve de parâmetro sério para a teorização das relações geopolíticas , encerrar-se nos compêndios caros e nos também caros (queridos) salões de audiências, é opção perdulária.
Volto à Piauí. Boa revista, esta!

“A característica de um período de transição como o atual é precisamente o fato de todos fazerem as perguntas erradas.” .




















BIBLIOGRAFIA





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ALEXANDRE JOSÉ DE BARROS LEAL SARAIVA












DIREITO À FELICIDADE
sete crônicas e um desejo






2010




Sumário


1. O pôr do sol.
Será razoável prever, na Constituição Federal, a busca pela felicidade como Direito Social e Objetivo da República?

2. O medo da criança.
As novas exigências da cidadania e os obstáculos ao projeto político democrático, na visão de Bobbio.

3. De poeta proscrito a embaixador post-mortem.
O princípio da dignidade humana e a remodelagem finalística do neoconstitucionalismo.

4. Desenho arriscado.
Uma proposta diferente de ordenamento jurídico.

5. Mais um pouco de atrevimento (ou confusão?!)...
Mito, fé e direito. O sistema circular em face da pirâmide kelseniana.

6. Time after time.
O sistema circular e a autopoiese.

7. Lendo a Piauí.
Globalização e sistemas constitucionais. O que nos espera?






DIREITO À FELICIDADE.

1. O pôr do sol.

“Todo homem quer viver feliz, mas quando se trata de ver claramente o que torna a vida feliz, eles tateiam em busca de alguma luz” .



Estou sentado no lado oeste da Ponte Metálica - um dos pontos turísticos mais interessantes de Fortaleza. O Sol ainda está no zênite, mas sei que em breve o céu assumirá o tom alaranjado e roxo dos finais de tarde à beira mar, inebriando de paixão nostálgica e sugestiva olhos e corações de muitos outros que, iguais a mim, e diferentes de mim, buscam no espetáculo da despedida algo que renove as esperanças que nos mantêm vivos expectadores desta caleidoscópica experiência terrena.
 “Tornamo-nos efetivamente tolerantes e entendemos o que significa respeito humano justamente quando aceitamos, de modo definitivo, sem dor e até com uma crescente sensação de alegria, que somos todos diferentes e que, lógico, viveremos de forma menos padronizada (...) A análise de qualquer tipo de diferença entre as pessoas tem ser feita com o máximo de critério e com a consciência de que tendemos ao erro por sermos naturais – e indevidos – defensores de nosso pontos de vista; isso deveria nos levar a uma postura de desconfiança em relação aos julgamentos que fazemos daqueles que não pensam como nós. Outro desdobramento derivado da consciência e alegre aceitação das diferenças que nos distinguem de nossos semelhantes é que não temos nenhuma informação útil nem vantagem alguma se continuarmos a nos comparar com os outros. Se somos todos diferentes, somos únicos”.
Perto de mim, crianças, casais, muitos surfistas e um homem de idade. Parado e calmo, em suas barbas brancas quieto, ocupado consigo mesmo e, ao que tudo indica, bem-aventuradamente extasiado com a beleza das águas salgadas desta terra de Iracema , sorri. Sozinho, o velho homem sorri...
Vejo o homem e penso: este provavelmente foi feliz! Traz consigo o olhar sereno e a atitude fraterna daqueles poucos que conseguiram fazer da jornada uma senda de tolerância , alteridade, diálogo, aprendizado, sabedoria e ternura vital.
 Ternura vital é expressão cunhada por Leonardo Boff significando cuidado especial com as pessoas e com as situações existenciais. “É um conhecimento que vai além da razão, pois mostra-se como inteligência que intui, vê fundo e estabelece comunhão (...) A ternura emerge do próprio ato de existir no mundo com os outros. Não existimos, co-existimos, com-vivemos e co-mungamos com as realidades mais imediatas. Sentimos nossa ligação fundamental como a totalidade do mundo. Esse sentimento é mais do que uma moção psicológica, é um modo de ser existencial que perpassa todo o ser” .
Talvez por isso eu tenha me lembrado do papel guardado no bolso da calça: uma cópia do projeto de PEC elaborado pelo Senador Cristovam Buarque que procura incluir a busca pela felicidade como objetivo fundamental da República e direito inerente a cada indivíduo e à sociedade ; em que pese o atraso histórico de 234 anos, pelo menos em relação à Declaração de Direitos da Virgínia que, no distante ano de 1776, já dispunha em seu artigo exordial:
 “Todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos que lhes são inerentes, dos quais, ao passar a viver em sociedade, não poderão, nem eles nem seus descendentes, por nenhum ajuste, ser despojados, a saber, o de gozar a vida e a liberdade, na posse dos meios para adquirir e manter a propriedade, e o de buscar e conquistar felicidade e segurança”.
Recordo que faz pouco tempo, a alimentação foi incluída no rol dourado do art. 6°, da CF, em face de proposta apresentada no ano de 2001, sendo que a providência gerou polêmicas porque, para muitos, aditamentos deste jaez ao texto constitucional são incômodos e desnecessários, ao menos no que diz respeito à melhor técnica de preservação da normatividade da Carta.
 Se é certo que não se pode determinar, a priori, o que deva ser o conteúdo de uma constituição, também é correto que suas normas devam obedecer a critérios seguros para a regulação completa dos problemas e exigências sociais, precisamente para não caírem no vazio, como tem sucedido ao longo dos anos da vigência da Carta de Outubro” .
Outros, no entanto, testemunham com altivez a incorporação dos mandamentos constitucionais na práxis social, o que indica uma forte sinalização da consolidação de um verdadeiro Estado Social Democrático de Direito. Nesse sentido, Walber Moura Agra:
“Quando se assevera que ela (a CF de 1988) desempenha a função de pacto vivencial da sociedade, tenciona-se afirmar que o Texto de 1988 é a base estrutural da sociedade, o alicerce sob o qual se erguem todas as demais instituições. Essa expressão denota que as normas que foram agasalhadas desempenham a função de força motriz, contribuindo para a conformação do tecido social, no que evita fissuras e o desenvolvimento de tensões. Constitui-se no mínimo denominador comum da sociedade, no núcleo normativo em que cada cidadão se reconhece como membro da coletividade”.
Instigado pelo embate, pego o papel e releio a proposição. A água de coco acaba de chegar, mas minha sede aumenta. O som das ondas quebrando nas rochas de tempos imemoriais parece murmurar: “o propósito da vida é ser feliz”.
 “O propósito da vida é ser feliz. Desde o momento do nascimento, cada ser humano deseja a felicidade e não quer o sofrimento. Nem o condicionamento social ou educacional nem a ideologia afetam isso. No fundo de nossos corações, nós simplesmente desejamos o contentamento. Não sei se o universo, com suas incontáveis galáxias, estrelas e planetas, tem ou não um significado mais profundo, mas para mim está claro que, pelo menos enquanto vivemos nesta terra, nos deparamos com a tarefa de construir uma vida melhor para nós mesmos. Portanto, é importante descobrir o que poderá gerar o maior grau de felicidade”.
 “Todo ser humano quer ser feliz. “A felicidade vem de dentro e é uma conquista que o ser humano realiza partindo da condição humana. Somos seres que têm a dimensão de luz e de sombra. Somos diabólicos, que dividem, odeiam e somos seres simbólicos, que unem, amam, são solidários. Essa é a condição humana. Não é um defeito, é a nossa marca. A felicidade vem do equilíbrio dessas duas dimensões, na medida em que faço uma opção pela dimensão luminosa e não deixo que a dimensão tenebrosa tenha a hegemonia da minha vida. Se parto dessa condição humana, diminuo as expectativas, a felicidade é mais alcançável, mais serena. Não significa que não tenhamos momentos especiais de felicidade. É a dimensão vertical. Um encontro com a pessoa amada, o irmão que estava no exílio volta... Aquele momento é supremo. Agora, tem aquele momento de estar, serenamente, feliz, que é o cotidiano da vida” .
Os ventos, que vêm de longe, arrebatam das minhas mãos a PEC da felicidade e ela se transforma em um simples papel branco sobrevoando o mar azul da minha terra; parece até que as velas de alguma jangada imaginária resolveram se transformar em asas e se outrora desafiavam a procela, agora flutuam na imensidão também azulada deste infinito céu de outono.
A tarde se transforma em noite. O Sol recepciona a dama da luz, repleta, cheia de si, imponente e majestosa. Eu, cheio de dúvidas, irei estudar. Revisitarei amigos antigos, conversarei com Walber de Moura Agra , passarei muito tempo em companhia (solitária de leitor) de Canotilho, Jorge Miranda, Paulo Bonavides e tantos outros; sei que ouvirei música, degustarei um bom cabernet sauvignon com poesias, muitos cafés afastarão sono e cansaço, enfim, só me aquietarei quando conseguir, ao menos, compartilhar com você muitas das possibilidades que o tema “Direito à Felicidade” apresenta à minha inquietação, e a primeira delas é: como a busca pela felicidade pode (ou deve) ser compreendida e/ou percebida, a ponto de consubstanciar norma constitucional?
 “Os conceitos de princípios e regras constitucionais “são históricos, contextualizados e devem ser construídos por todos, em processo permanente de diálogo entre todos os grupos sociais, pessoas e representantes nos poderes públicos e dos poderes públicos”.
Vejo que na justificativa da proposta o Senador considera que “a par, nada obstante, da felicidade ter sido ora conceituada como sentimento e estado de espírito, é certo que ela pode ser enquadrada no plano das coisas palpáveis e asseguráveis, consistindo, ao menos em parte, um direito de cada indivíduo e da coletividade social como um todo considerada”.
Cita, em abono, Opinião Consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos, assegurando que o objetivo primordial do Estado Democrático é a “proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam evoluir espiritual e materialmente e atingir a felicidade”.
Continua, na justificativa, fazendo a distinção axiológica entre a felicidade subjetiva e objetiva:
“Sob o viés da felicidade propriamente dita, é possível dicotomizá-la em seus aspectos subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo da felicidade condiz com os elementos internos de cada indivíduo que formam o sentimento e o estado de espírito felicidade. Sobre esses aspectos, afetos às sensações mais profundas do indivíduo, a legislação não pode tratar. Com efeito, a felicidade para um cidadão não será, no mais absoluto das vezes, a felicidade para outro. Todavia, sob seu aspecto objetivo, a felicidade é plenamente tutelável pela legislação. É justamente esse o objeto das modificações que a pontual proposta presta a tecer”.
Porém, ao que tudo sugere, o que se pretende com a proposição não é garantir a felicidade como ente personalíssimo de cada indivíduo em sua convivência particular com a Constituição – até porque isto seria impossível! - mas oferecer garantias de respeito e estímulo à formação e manutenção de um Estado prenhe de possibilidades para que homens e mulheres, brasileiros de todas as raças, cores, religiões e posturas, sintam-se imersos em um ambiente em que a busca pela felicidade deixe de ser um sonho distante e passe à categoria de evento possível e, digo mais, oxalá comum!
Ocorre que já de longa data o Estado eudemonológico é tido como poética utopia.
 “A história contemporânea do político inaugura-se com a questão da igualdade política e da cidadania. A democracia reveste-se de um certo grau de religião ao celebrar a mística sociedade de iguais. Neste sentido, Carl Schmitt considera a igualdade como uma utopia da democracia. Esta utopia, sobretudo sob a forma de democracia directa e participativa, aparece como o sonho da espontaneidade contra a formalização, da relação pessoal contra a burocracia, da aventura da liberdade contra a excessiva regulamentação. Mais utópico é ainda o Estado eudemonológico, cuja função principal consistiria em tornar as pessoas felizes, como se ao Estado competisse tal tarefa” .
Kant, por exemplo, defendendo o Estado liberal puro, sustentava que ao invés de tentar fazer os súditos felizes, o Estado deve lhes dar tanta liberdade quando seja necessária para que cada um deles procure, ache, conquiste e mantenha a sua própria felicidade .
Contudo, as premissas iniciais da proposta de emenda constitucional são outras. Agora, vai-se além do ideário liberal e aproxima-se de um novo construtivismo constitucional fundado na percepção do que se convencionou chamar de diritto vivente , sob uma nova hermenêutica de base zetética, prescrutadora dos múltiplos elementos e variados aspectos que giram em torno do pacto vivencial da sociedade.
 “Os critérios objetivos da felicidade podem, no contexto constitucional, ser entendidos como a inviolabilidade dos direitos de liberdade negativa, tais como aqueles previstos no art. 5° (variantes da vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança), além daqueles relacionados ao Estado prestacional – os direitos sociais, como os preconizados no art. 6° do Texto Constitucional. O encontro dessas duas espécies de direitos – os da liberdade negativa e os de liberdade positiva – redundam justamente, no objetivo da presente Proposta de Emenda à Constituição: a previsão do direito do indivíduo e da sociedade em buscar a felicidade, obrigando-se o Estado e a própria sociedade a fornecer meios para tanto, tanto se abstendo de ultrapassar as limitações impostas pelos direitos de égide liberal quanto exercendo com maestria e, observados os princípios do art. 37, os direitos de cunho social”.
Com efeito, a ampla intervenção constitucional na intimidade relacional de seus recipiendários, possui a nítida vocação de zelo para a construção de um ainda novo - e por isto mesmo não suficientemente maduro – ethos de convivialidade . É que, malgrado não tenha havido propriamente uma ruptura histórica entre o Regime pós-64 e a nova ordem constitucional, a Carta de 1988 representou o deságüe de muitas pretensões aprisionadas, deu azo a vôos intrépidos na afirmação das liberdades - algumas vezes até, chegou perto do exagero! -, mas, de qualquer sorte, conseguiu realocar a dignidade da pessoa humana no epicentro das preocupações constitucionais, fundando um pacto de compartilhamento da cidadania inédito em nosso país.
 “Como típica Carta-compromisso, a atual Constituição encarnou excelentemente a síntese de nossas contradições e ideais de mudança. Dada a mescla ideológica de seus autores, traduz o encontro das águas encapeladas entre as forças conservadoras e as aspirações mundancistas. Sua linguagem politicamente híbrida e que mistura dezenas de normas princípio com centenas de preceitos analíticos, de teor não raro inconcluso, nem sempre autoaplicável e dependente da aprovação futura de dezenas de leis complementares e ordinárias, transformou o texto supremo num estimulante manancial exegético para a discussão do ideário brasileiro e de um projeto crítico de nação”.
Acompanhando a inteligência de José Luiz Quadros de Magalhães, podemos compreender que a idéia de dignidade humana na Constituição de 1988, procura conciliar os conteúdos filosóficos humanistas com a existência de condições materiais (constitucionalmente garantidas) que permitam o florescimento da uma nova cultura social, na qual o respeito encontrado pela vida de cada cidadão seja recíproco .
O mais interessante de tudo é que este apelo vai muito além do reservado espaço de discussão jurídica. Para o Teólogo Leonardo Boff, por exemplo, “o desenvolvimento social visa melhorar a qualidade de vida humana enquanto humana. Isso implica em valores universais como vida saudável e longa, educação, participação política, democracia social e participativa e não apenas representativa, garantia de respeito aos direitos humanos e de proteção contra a violência, condições para uma adequada expressão simbólica e espiritual. Tais valores somente se alcançam se há um cuidado na construção coletiva do social, se há convivialidade entre as diferenças, cordialidade nas relações sociais, compaixão com todos aqueles que sofrem ou se sentem à margem, criando estratégias de compensação e de integração. Cuidado especial merecem os doentes, os idosos, os portadores de algum estigma social, os marginalizados e excluídos. Por eles se mede o quanto de sustentabilidade e de cuidado essencial realizou e realiza uma sociedade” .
Por outro lado, segundo as pesquisas realizadas pelo economista alemão Johannes Hirata, para sua tese pós-doutoral – “Happiness, Ethics, and Economics” -, o grau de participação da população nas decisões de um país está diretamente relacionado ao aumento do índice de felicidade coletiva.
Assim, parece claro que um sistema político de viés democrático e participativo estimula o bem-estar social e, em decorrência, permite a constante, sadia e harmônica fluidez do estado de felicidade.
Portanto, há interesse sim em que não apenas um mero sentimento individual, mas um status real, perceptível e mensurável da ambiência vivencial dos brasileiros reunidos, mereça ser reconhecido como direito social e objetivo fundamental da República!
 “... o conjunto de direitos fundamentais, relacionados estreitamente ao princípio da dignidade da pessoa humana, guarda notável conformidade com o direito à busca da felicidade, considerando-se a afinidade axiológica entre este e aqueles (...) Por outro lado, reconhecida a necessidade de se prover todos os cidadãos dos recursos necessários a uma vida com acesso à educação, à assistência médico-hospitalar, à cultura, ao lazer, a condições dignas de habitação, de transporte e de trabalho com remuneração adequada, indispensáveis como fatores materiais para a conquista da felicidade, a norma do art. 3°, II e III, da Constituição de 1988 consagra como objetivos fundamentais do Estado brasileiro a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. É possível, portanto, extrair-se do exame articulado desses preceitos constitucionais a idéia de que a aspiração à felicidade informa os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil...” .
Imagino agora, que já é tarde da noite, a quantas estará o velho e feliz homem que encontrei sobre as ondas de Iracema e, como por recorte, lembrei de algo que li sobre a esplêndida metáfora imaginada por Heine quando escreveu sobre o frêmito dos alemães ao receberem notícias da Revolução Francesa: “Quando em Paris, no grande oceano humano, as ondas da revolução subiam, agitavam-se e se enfureciam tempestuosamente, para além do Reno os corações alemães murmuravam e fremiam” . Quem sabe também não nos seja possível crer que novos murmúrios e frêmitos ecoarão nos corações mais distantes quando em breve receberem notícias felizes deste promissor arquipélago de esperanças chamado Brasil?!

“Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto?” .




DIREITO À FELICIDADE.

2. O medo da criança.

“Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou” .



No meio da madrugada o menino acorda assustado. Ainda escuta a voz rouca do assaltante, horas atrás, revólver preto nas mãos, olhos inflamados de sangue e bestialidade, gritando com a mãe do garoto: “Passa a bolsa, v...”. Guardo as lágrimas infantis no aconchego do meu mais amoroso abraço e penso que quando eu era criança não me preocupava com segurança, não tinha medo de ser assaltado enquanto corria pelas ruas de calçamento da minha vizinhança ou quando voltava da escola na monareta que acabara de ganhar. Fico impaciente. Sinto-me impotente. A infelicidade bate à minha porta. Agora, somos dois espectros insones: eu e o menino!
Nós todos sabemos que a segurança é um dos direitos sociais gravados no art. 6° da Constituição e que, se dependesse exclusivamente da atenção legislativa, certamente viveríamos em um dos países mais seguros do mundo. Contudo, muito provavelmente ainda não percebemos que somos mais ‘puros’ na retórica de nossas reclamações cotidianas do que propriamente quando escolhemos o repertório de nossos comportamentos diários.
É que nos falta adesão firme e sincera a um pacto social retribuitivo, proativo e solene chamado co-cidadania que envolve, por sua vez, a aceitação de princípios e idéias de intenso valor moral, ético e político.
 “O ideal de participação ampla dos cidadãos em uma sociedade democrática só será mesmo construído a partir da mudança no modo de encarar a relação política”.
Portanto, é urgente a adoção de uma releitura ‘inclusiva’ do Direito a partir das primazias constitucionais, chegando-se às outras normas permeiam o ordenamento - providência a ser realizada não apenas pelos doutores da lei, mas por toda a sociedade, que merece ser convidada e estimulada ao engajamento político!
 A metodologia de pesquisa inclusiva (do Direito) determina-se pela incorporação de conhecimentos advindos de ciências sociais empíricas e variadas disciplinas jurídicas, além da dogmática do Direito Positivo, como a história, o Direito comparado, a filosofia jurídica e a Teoria do Direito na sua feição atual, sensível às contribuições das ciências formais contemporâneas, como ao desenvolvimento de uma lógica material própria do discurso normativo, onde ação e pensamento, ética e lógica, se encontram em posição de franco diálogo, fecundo na produção de novas interpretações e significações.
O marco inicial desta nova compreensão do fenômeno de percepção lúcida do Direito e da sociedade democrática participativa é a afirmação incondicional do respeito e da garantia à dignidade humana, núcleo essencial da expectativa presente e futura de convivência compartilhada nos caminhos do indivíduo, dele e de seus pares, e de todos com a nação.
 “Na sociedade contemporânea adota-se o sentido amplo de cidadania, e o termo cidadão recebe a conotação que verdadeiramente se pretende atribuir-lhe na sociedade moderna e democrática. Ser cidadão significa, antes de tudo, ser parte, no sentido próprio de compartilhar de uma mesma sociedade. A cidadania envolve, nesse aspecto, o reconhecimento do indivíduo como ser integrante da sociedade estatal e, portanto, incluído e acolhido pelo ordenamento jurídico. Valemo-nos daquele indivíduo que, conhecendo seus direitos e deveres, necessita também tê-los concretizados para alcançar o ideal de dignidade da pessoa humana”.
Todavia não se pode olvidar que é obrigação do Estado garantir as condições – senão ideais – mínimas para que todos se sintam à vontade no ágape da participação cívica. Para tanto, é necessário que seus direitos sejam, mais do simplesmente reconhecidos, garantidos eficazmente contra o arbítrio e a injustiça.
Isto não quer dizer que se pretenda construir uma sociedade de cidadania passiva, onde as tábuas de direitos e garantias condicionem homens e mulheres ao descanso e à leniência, protegidos e despreocupados – “deitados em berço esplêndido”. Ao contrário, as salvaguardas constitucionais devem servir de estímulo para atitudes questionadoras, posturas proativas, iniciativas de participação direta etc.
 A Carta Encíclica Pacem in Terris de João XXIII, sempre lembrada nos estudos comparados, enumera os direitos universais, invioláveis e inalienáveis dos seres humanos, dentre eles o de cidadania ativa: “Convém ainda à dignidade da pessoa o direito de participar ativamente da vida pública, e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos” .
Porém, infelizmente temos assistido ao triste espetáculo da apatia política contaminando até mesmo Estados Democráticos de elevada estatura. Não à toa o espetacular (e recentemente falecido) prêmio Nobel de literatura José Saramago escreveu um fantástico romance - Ensaio sobre a lucidez - retratando o ápice de abstenção política de uma população que, sem qualquer justificativa plausível, vota em branco: “Mau tempo para votar”, diz uma personagem!
 “Olhemos ao nosso redor. Nas democracias mais consolidadas assistimos impotentes ao fenômeno da apatia política, que freqüentemente chega a envolver cerca da metade dos que tem direito ao voto. Do ponto de vista da cultura política, estas são pessoas que não estão orientadas nem para o output nem para os input. Estão simplesmente desinteressadas daquilo que, como se diz na Itália com uma feliz expressão, acontece no palácio” .
Mas não é mero apelo ficcional. Hoje mesmo, às vésperas de eleições presidenciais, para governadores, senadores, deputados federais e estaduais, a maioria da população brasileira convive com assombroso distanciamento das disputas dos cargos eletivos, que muitos já consideram praticamente plebiscitárias, ao menos para o Executivo Federal.
À primeira vista parece bastante razoável crer que a imobilidade política desse novo querido povo brasileiro, guarda proporcionalidade direta com o crescente descrédito da gestão pública e da atividade parlamentar.
 Arnaldo Jabor, com sua incomparável inteligência satírica, publicou o “Se...” do canalha nacional: “Se puderes manter a cabeça erguida, quando todos te acusarem, chamando-te de ladrão ou corrupto por te terem pegado com a mão dentro da cumbuca,/ se mantiveres a aparente dignidade, mesmo diante de provas inabaláveis do teu crime e disseres com voz clara e serena: ‘tudo isso é uma infâmia sórdida de meus inimigos’, ou ainda: ‘não me lembro se esta loura de coxas douradas foi minha secretária ou não.../ se, no fundo do coração, achas que roubar o Estado ou os estados e as prefeituras ou os camelôs ou os lixeiros ou os mendigos é, portanto, uma causa nobre e um ato quase revolucionário, /que a mutreta, a maracutaia, a mão-grande, o apaga-luz, o ‘me dá aí o meu’ têm algo de transgressão pós-modera.../eu te direi que serás, sim, impune para sempre, um extraordinário canalha, meu filho, um grandioso...” .
Contudo, uma análise mais atenta pode nos revelar que o pano de fundo para o absenteísmo político é reflexo da tensão existente entre os dois modelos de pensamento político predominantes da modernidade/contemporaneidade: liberal e republicano.
 São duas formas antagônicas de se pensar a política, presentes até os dias de hoje.
Enquanto o modelo republicano pode ser ligado à idéia de soberania popular e autonomia política, o paradigma liberal pode ser entendido sob a concepção de autonomia privada e auto-determinação.
Esses dois conjuntos de princípios implicam interpretações diferenciadas quanto à relação entre a Soberania Popular, qual seja o poder auto-organizativo das comunidades, e os Direitos Humanos .

Para superar a dicotomia, existe a possibilidade de adoção do princípio do discurso de Habermas, instrumentalizando a comunicação entre componentes principiológicos dos modelos liberal e republicano através da ocupação dialogal das intercessões neutras, nas quais as decisões atinentes à ativa participação da cidadania se fundamentariam na discussão racional e no reconhecimento da oportunidade/idoneidade da solução apontada pela maioria dos interessados.
 O princípio do discurso, forma do direito e democracia: “A mencionada relação de co-originariedade entre o mundo jurídico e o moral só ocorre, conforme Habermas, através de um princípio neutro em relação a ambos, qual seja, o princípio do discurso. Assim, a questão inicial do direito racional é reformulada sob as premissas da teoria do discurso: ‘que direitos as pessoas têm que atribuir-se mutuamente, quando se decidem a constituir uma livre associação de parceiros do direito e a regular legitimamente sua convivência com os meios do direito positivo?’ Como resposta, temos formulado o princípio do discurso (D), do seguinte modo: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” .
Por outro lado, Bobbio identifica pelos menos três obstáculos ao projeto político democrático que, segundo seu entendimento, “foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa do que a de hoje”, o que acaba afetando a própria credibilidade do sistema e a participação ativa dos cidadãos.
O primeiro dos obstáculos é o “Governo dos Técnicos”, e representa um conflito axiológico difícil de ser superado, senão vejamos: partindo da premissa inicial de que democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos devem compartilhar o processo decisório, como aceitar que cada vez mais, diante mesmo da complexidade das demandas, sejam os técnicos, os expertos, os peritos, os que elaboram e apontam as políticas públicas a serem efetivadas?
 “Tecnocracia e democracia são antitéticas: se protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos” .
O segundo obstáculo apontado pelo filósofo italiano é o inesperado e contínuo crescimento do aparato burocrático essencialmente verticalizado up to down - exatamente por isto, ferozmente antagônico à fluência natural da democracia, cujo poder há de surgir da base (povo) e migrar para o vértice (gestores e parlamentares).
Por fim, Bobbio refere-se à “ingovernabilidade da democracia”: o crescimento significativo das demandas sociais aliado à complexidade procedimental da gestão pública congestionou de tal forma a prestação governamental que chegou a comprometer a eficiência e a eficácia dos governos.
 “O Estado liberal primeiro e o seu alargamento no Estado democrático depois contribuíram para emancipar a sociedade civil do sistema político. Tal processo de emancipação fez com que a sociedade civil se tornasse cada vez mais uma inesgotável fonte de demandas dirigidas ao governo, ficando este, para bem desenvolver sua função, obrigado a dar respostas sempre adequadas. Mas como pode o governo responder se as demandas que provêm de uma sociedade livre e emancipada são sempre mais numerosas, sempre mais urgentes, sempre mais onerosas? (...) Além do mais, diante da rapidez com que são dirigidas ao governo as demandas da parte dos cidadãos, torna-se contrastante a lentidão que os complexos procedimentos de um sistema político democrático impõem à classe política no momento de tomar as decisões adequadas. Cria-se assim uma verdadeira defasagem entre o mecanismo da imissão e o mecanismo da emissão, o primeiro em ritmo sempre mais acelerado e o segundo em ritmo sempre mais lento”.
Por mais que a crítica de Bobbio à solidez dos governos democráticos pareça irremediável e, por via oblíqua, a efetiva participação da cidadania na gestão coletiva também, o mestre de Turim termina seu discurso fazendo uma apologia de fé na democracia; não sem antes conclamar a todos, principalmente aos jovens, para que cultivem alguns valores ditos essenciais: 1°) ideal da tolerância; 2°) ideal da não-violência; 3°) o ideal da renovação gradual da sociedade através do livre debate das idéias e da mudança da mentalidade e do modo de viver, e; 4°) o ideal da irmandade.
Ora, os valores e ideais apresentados reforçam o compartilhamento das competências da cidadania. Somente com tolerância e respeito ao outro, através do diálogo constante, balizado pela idéia de movimento do ser e do mundo circundante, é que, todos juntos, haveremos de construir, passo a passo, nosso pedaço de chão pátria amada.
O menino, que antes chorava, agora dorme... e sonha, e sonha!

“A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria” .



















DIREITO À FELICIDADE.

3. De poeta proscrito a embaixador post-mortem.


“Sua vida poderia ser
Muito mais do que era.
O Imperador dos brasileiros
Os escritores muito preza.
Tardou o indulto mas chegou
É mais seguro vir por terra”.” .



Já passa um pouco da 20:30 hs. Estou trabalhando, escrevendo no escritório. As mãos passeiam pelo teclado tentado acompanhar a velocidade das muitas e coloridas idéias, enquanto os olhos (já cansados) descobrem a cada instante novos e indesculpáveis erros de digitação. Na sala ao lado, Alexandre Garcia informa que o “poetinha” será promovido a Embaixador. Corro para a televisão, acompanho a matéria e, por incrível que pareça, me aborreço!
Na TV um homem ilustrado, desses a quem devemos chamar de excelência, diz que será uma honra para o Itamaraty ter Vinícius de Moraes como Ministro de 1ª Categoria; logo ele que foi defenestrado por ordem de quepe expedida em bilhete de rasura: “Demitam esse vagabundo!”.
Diante da notícia é impossível não lembrar da “Carta aos Puros”: “O vós, homens da sigla; o vós, homens da cifra/ Falsos chimangos, calabares, sinecuros/ Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra.../ E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros”.
Será que Vinícius vaticinou a própria sorte? Vai ver que, além de poeta, diplomata e ‘vagabundo’, o branco mais preto do Brasil também era profeta. Sem matar deus em acessos nietzschiano ele - o proscrito - tornou-se, trinta anos depois, aquilo que sabia que era e nunca deixou de ser: o Embaixador mais versado sobre a beleza cotidiana da patriazinha amada.
Pena que as inteligências da diplomacia brasileira tenham demorado tanto tempo para reconhecer o óbvio. E agora, sorrisos amarelados pelas décadas não impedirão que o Poeta, entre doses generosas do escocês celestial, ao som de harpas afinadíssimas em dó maior, murmure nos ouvidos mulatos de beldades angelicais eternamente despudoradas: “Não comerei da alface a verde pétala.... há,há,há...”.
Ocorre que todos nós estamos sujeitos às ideologias de plantão, de ocasião ou da moda, e porque elas contaminam tanto as relações de poder quanto a formação e aplicação das ciências como um todo, acabamos por testemunhar reviravoltas mirabolantes nos fatos políticos e sociais.
 “Toda ciência é ideológica (porque qualquer saber é ideológico) e o poder, em cada caso, a manipulará segundo convenha à sua conservação, privilegiando uma ideologia e descartando (ou reprimindo, limitando o desenvolvimento ou ocultando) as que considere perigosas ou negativas para ela. Por maior que seja a aparência de seriedade e assepsia de uma ideologia, sempre será uma ideologia. A ilusão científica de ‘objetividade’ não passou de um elemento sedativo e anestésico que hoje não tem mais utilidade” .
Porém, ao menos no que diz respeito à aplicação de normas mínimas de proteção do corpo social, lastreadas no princípio da dignidade humana, há de perde-se o traço da demasiada volatilidade. E é isto que agora nos preocupa!
Que as constituições, assim como os homens, são (também) mundanas, disto dúvidas não há! Mas, deve haver algum suporte de eficácia continuada aos mandamentos constitucionais máximos, pois se assim não fosse, a própria função política da carta restaria pó.
 “A Constituição é uma obra aberta. Tal qual acontece com as obras de arte, cujo toque final se queda por esperar seus apreciadores, a Constituição também remanesce inacabada, complementando-se, construindo-se e perfazendo-se pelas gerações presentes e futuras. Possui pretensão de eternidade (...) O conteúdo das normas constitucionais interfere na realidade conformando-a (normatividade constitucional), mas, de igual modo, deixa-se influenciar pela evolução transformadora da sociedade, o que oportuniza um novo paradigma de compreensão da norma constitucional” .
É que o princípio de proteção à dignidade da pessoa humana extrapola os limites lineares de regra de direito positivo. Expande-se como luz esclarecedora em todas as direções (Sie ist auch die Lichtquelle). Na verdade consubstancia meta-princípio constitucional, forjado após duras pelejas e longa trajetória histórica de conquistas. É ponto de partida, manancial de comportamentos, fonte de definição de políticas públicas, reitor da interpretação e concretização constitucional e guia obrigatório nas relações de poder.
 “Este meta-princípio constitucional tem valor fundamental para a lógica e afirmação concreta dos direitos humanos, pois é a base positiva e racional da qual pode partir a construção normativa dos direitos fundamentais de um Estado-Nação. Trata-se, portanto, de um lugar-comum para o abrigo de todas as gerações de direitos humanos, dos de primeira aos de quarta dimensão. A partir daí pode-se dizer que a justiça não pode ser pensada isoladamente, sem o princípio da dignidade humana, assim como o poder não pode ser exercido apesar da dignidade humana” .
Essa multidimensionalidade remete à questão lógica da distinção entre as constituições e os sistemas constitucionais em que estão inseridas, pois não há como negar ou desprezar o fato de que nem sempre se consegue equalizar as identidades jurídica e política das constituições. Aliás, normalmente não se consegue! É que a vida do organismo social no cotidiano envolve uma rede tão intensa e fértil de tensões e conflitos, disputas de poder potenciais ou efetivas, e há tantas dicotomias como sói é possível imaginar, que acontece de, às vezes, as normas da constituição ‘colidirem’ com a realidade fática que lhe dá, e delas recebe, suporte.
 “Existe uma relação intrínseca entre a Constituição, a cultura e os valores da sociedade, de maneira que o Texto Maior não pode ser visto apenas como uma pauta de regras desvinculadas das influências do meio social” .
 “Todo o problema constitucional ainda hoje procede, contudo, da ausência de uma fórmula que venha combinar ou conciliar essas duas dimensões da Constituição: a jurídica e a política. A verdade é que ora prepondera uma, ora outra. No constitucionalismo clássico e individualista preponderou a primeira; no constitucionalismo social e contemporâneo, a segunda. E quando uma delas ocupa todo o espaço da reflexão e da análise, os danos e as insuficiências de compreensão do fenômeno constitucional se fazem presentes. O sistema constitucional surge pois como expressão elástica e flexível, que nos permite perceber o sentido tomado pela Constituição em face da ambiência social, que ela reflete, e a cujos influxos está sujeita, numa escala de dependência cada vez mais avultante” .
Exatamente por isso, várias vozes da contemporaneidade defendem a resincronização da dicção constitucional com os apelos da sociedade, nos moldes da interpretação construtiva levada a efeito, por exemplo, na Suprema Corte Americana, que superou os arreios da lógica pela lógica e inaugurou nova e progressista geometria constitucional.
Fenômeno parecido ocorre no Brasil, principalmente nas hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal é chamado a decidir sobre a implementação de políticas públicas deficitárias em situações particulares, notadamente!
Diversas são as ocasiões em que pessoas com enfermidades graves, v. g., socorrem-se do Judiciário para que determine ao Executivo o pagamento de tratamentos médicos avançados, a compra de medicamentos caríssimos etc., o que gera, desde logo, argüições quanto à interferência indevida entre esferas de poder.
Clássico já é o entendimento de Sua Excelência o Ministro Celso Mello: “... Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas na Constituição” .
Além disso, a compreensão de que os direitos atinentes à dignidade da pessoa humana - dentre os quais se pretende a busca pela felicidade - devem ter garantidos um mínimo de justiciabilidade, integra a Observação Geral n° 9 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas.
 “Em relação aos direitos civis e políticos, em geral, se parte da premissa de que é fundamental a existência de recursos judiciais frente à violação desses direitos (...) Às vezes se afirma que as questões que supõem a alocação de recursos devem ser confiadas às autoridades políticas e não a tribunais. Ainda que se deva respeitar as competências respectivas dos diversos poderes, é conveniente reconhecer que os tribunais já intervêm geralmente em uma gama considerável de questões que têm conseqüências importantes para os recursos disponíveis. A adoção de uma classificação rígida de direitos econômicos sociais e culturais que os situe, por definição, fora do âmbito dos tribunais seria, portanto, arbitrária e incompatível com o princípio de que os dois grupos de direitos são indivisíveis e independentes. Também se reduziria drasticamente a capacidade dos tribunais de proteger os direitos dos grupos mais vulneráveis e desprotegidos da sociedade”.
Contudo, como os direitos agregados à dignidade da pessoa humana possuem capilaridade elástica, surgem vários questionamentos, inclusive diante daquilo que se convencionou chamar de tragic choices , ou seja, como estabelecer prioridades na aplicação de recursos financeiros escassos diante de demandas igualmente ou aproximadamente idênticas e urgentes?
Além do mais é lícito perguntar se os juízes possuem legitimidade política para tanto, posto que suas investiduras nos cargos ocorrem por nomeações decorrentes de concursos públicos e não por eleições e, em derradeira análise, as sentenças judiciais modeladoras de gestão pública acabam interferindo nas escolhas, opções e decisões de pessoas democraticamente eleitas para este fim (membros dos Legislativos e Executivos).
 “Com a consolidação da nova cultura constitucional que emergiu no país em 1988, a jurisprudência brasileira deu um passo importante, ao reconhecer a plena justiciabilidade dos direitos sociais. No entanto, essas dificuldades devem ser levadas em conta. Vencido, com sucesso, o momento inicial de afirmação da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é chegada a hora de racionalizar esse processo. Para este fim, cumprem importante papel, como parâmetros a orientar a intervenção judicial nesta seara, duas categorias que vem sendo muito discutidas na dogmática jurídica: a reserva do possível e o mínimo existencial...” .
 “Não se nega que as políticas públicas em geral são extremamente importantes para as sociedades, devendo ser tomadas pelos órgãos legitimados democraticamente para tal, ou seja, pelos órgãos dos Poderes Executivo e Legislativo, sem ingerência, a princípio, do Poder Judiciário. Entretanto, segurando-se na mesma idéia de essencialidade da democracia, é importante que exista a possibilidade de, em ocasiões excepcionais, sejam as políticas públicas também passíveis de controle, pela esfera judicial, ou seja, pelos órgãos jurisdicionais. E, sem dúvida, o controle dessas políticas públicas através do Poder Judiciário se mostra ainda mais viável (ou mais que isso, se mostra necessário), quando houver incompatibilidade delas com os direitos fundamentais” .

Ocorre que nem sempre as demandas apresentadas podem ser conciliadas com a realidade fática, especialmente no que diz respeito à gestão e distribuição de recursos orçamentários, por exemplo. Pessoalmente recordo-me de uma decisão lavrada em Fortaleza que determinava ao Diretor do Colégio Militar matricular um número bastante significativo de novos alunos, malgrado não houvesse mais espaço físico para acomodá-los na escola.
Coincidência ou não, a tese da reserva do possível surgiu em 1972, mediante lúcida e espetacular interpretação dada pela Corte Constitucional alemã , versando sobre a quantidade de vagas disponíveis e a pretensão de ingresso de um número maior de estudantes na faculdade.
O certo é que as decisões judiciais nas questões prestacionais tendem a gerar uma tensão séria, pois há uma demanda particular com potencialidade significativa de influenciar, ou mesmo prejudicar, a satisfação de demandas coletivas.
É este o argumento amiúde utilizado pelos poderes públicos quando interpelados judicialmente: de que a satisfação daquele interesse pessoal prejudica o atendimento dos demais co-cidadãos, igualmente destinatários das atenções estatais.
 Neste sentido, a Suspensão de Segurança n° 3073/RN, relatada pela Ministra Ellen Gracie: “Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde”.
Assim, por contra-ponto, é importante verificar: (1) a razoabilidade da demanda prestacional exigida – judicialmente – perante o Estado; e (2) a possibilidade financeira (disponibilidade orçamentária) para executá-la.
Mais do que isto, o Ministro Celso de Mello deixou registrado que o Estado não pode abster-se de atender ao socorro do indivíduo em matéria fundamental, alegando a reserva do possível, exceto em situações em que haja motivo justo objetivamente aferível:
 “... a cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, pude resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de fundamentalidade” .
Isso equivale a dizer que as alegações genéricas sobre falta de recursos ou iminência de prejuízo para a universalidade de atendimentos nos serviços e políticas públicas são insuficientes para impedir a co-participação ativa do Judiciário quando chamado à integração dos direitos sociais deficitários pela ação negativa do Executivo.
E essa nova perspectiva de ação (colaboração) do Poder Judiciário na efetivação das políticas públicas badala os sinos da memória histórica em homenagem a todos os povos, uma vez que a contemporânea compreensão da dignidade da pessoa humana é ensinamento forjado no terreno dantesco de dores e sofrimentos de tantas gerações de mártires da intolerância, do esquecimento e da violência multifocal.
 “A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista de ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos” .
Mas não é preciso nova onda de genocídios, perseguições etc., basta a rebeldia contra a ‘normalidade social’ de pessoas morrendo sem atendimento médico adequado, ou crianças permanecendo desnutridas em pele e osso, ou jovens sem as mínimas condições de acesso ao mercado de trabalho, enquanto os mais velhos são perseguidos por dívidas e larápios. É porque nos falta – e ainda carecemos, possivelmente, de amadurecimento político para tanto! - o sentimento constitucional, tal qual defendido por Pablo Lucas Verdù, “a expressão de afeição do cidadão pela justiça e pela equidade”, em simbiose direta com a normatividade constitucional.
Contudo, há o exemplo do Judiciário Brasileiro que, corajosamente, ousa ir além da geometria conhecida, afirmando pelos caminhos constitucionais de estilo que somente pela progressiva cimentação dos direitos humanos é que finalmente (re)nascerá o conceito essencial de homem, como ser que orbita em torno de sua própria dignidade! E, a partir dela, dá a mesma importância à dignidade dos outros homens e mulheres, próximos ou distantes, amigos ou nem tanto. Esta é a potencialização máxima do sentimento de pertença, filtrado dos limites geográficos, e expandido à vizinhança comum de todos nós, we the People...
Assim, é óbvio que ao Estado cumpre garantir um mínimo possível de condições materiais para a conquista e mantença de padrões benfazejos de vida aos seus cidadãos, sempre plasmado na convicção de fazê-lo com a perspectiva de preservar a dignidade da pessoa humana. Exemplo disto está na proposta do Senador Cristovão Buarque de criar limites mínimos e máximos de segurança e tolerância, dentro de sua proposta educacionista.
Convém lembrar que o Judiciário pode e deve se pronunciar sobre o atendimento deste minimun, malgrado haja muita discussão a respeito da amplitude desta intervenção.
É que o reconhecimento da dignidade da pessoa humana insurge-se contra a reificação das pessoas, enquanto insiste em percebê-las como um fim-em-si-mesmas, o que acaba implicando ao Estado: (1) o dever de abster-se das ações meramente prejudiciais; e, (2) o dever de esforçar-se na execução daquelas outras tarefas que fomentem a bem-aventurança de seus súditos.
 “... a idéia de que o princípio do tratamento da pessoa como um fim em si mesma implica não só no dever negativo de não prejudicar ninguém, mas também o dever positivo de obrar no sentido de favorecer a felicidade alheia constitui a melhor justificativa do reconhecimento, a par dos direitos e liberdades individuais, também dos direitos humanos à realização de políticas públicas de conteúdo econômico e social, tal como enunciados nos artigos XVIII a XXII da Declaração Universal dos Direitos Humanos” .
No final das contas, cabe a reafirmação da relação ¬tipicamente kiekardiana entre a Constituição que define o direito, o Judiciário que a interpreta, o Executivo que a pratica e o que há de comum a todos eles: o povo, que os suporta a todos!

“Tengo miedo a perder la maravilla
de tu ojos de estatua, y el acento
que de noche me pone em la mejilla
la solitaria rosa de tu aliento” .



















DIREITO À FELICIDADE.

4. Desenho arriscado.

“Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números pra os dias
E os nomes para as pessoas” .



Estou em Brasília. Há pouco almocei com os confrades da Academia Maçônica de Letras, logo depois de assistirmos a uma palestra do senador Cristovão Buarque sobre o educacionismo. Agora passeio entre centenas de títulos na Livraria Acadêmica, pouso de um grande e simpático amigo.
Sei que não poderia estar em melhor companhia! Ao meu redor o perfume da sabedoria se espalha como bálsamo: “Oh! Quão bom e quão suave é quando os Irmãos habitam em união...” .
Da ‘fala’ do Senador carrego algumas idéias interessantes, dentre elas a constatação de que as palavras que conhecemos já se tornaram insuficientes para subjetivar os mais importantes fenômenos da existencialidade contemporânea; e isto significa que estamos atravessando uma quadra de mudanças profundas na ambiência social!
Se é verdade - ou não - que os índios nativos “viam, mas não enxergavam” as caravelas portuguesas de 1500 simplesmente porque jamais as haviam subjetivado, o certo é que linguagem, pensamento e comportamento estão unidos no complexo processo de formação da cognição.
 “Nossos processo cognitivos são intricadamente relacionados. Quando resolvemos qualquer problema, do mais simples ao mais complicado, colocamos na solução nosso conhecimento prévio, nossa estrutura conceitual, nossos talentos relativos a imagens mentais e mesmo nossa habilidade para usar a linguagem”.
Ora, considerando real a tese de que a linguagem dos seres humanos da pós-modernidade está mudando, anunciando assim um novo instante paradigmático conceitual, o fenômeno deve igualmente ser válido para o Direito! Afinal, no calendário de hoje, em que prevalecem o princípio da dignidade da pessoa humana, o respeito incondicional aos direitos sem fronteiras de qualquer homem, mulher, idoso ou criança, as relações íntimas entre Estados em que há combate mútuo e contínuo às violações de cláusulas consideradas universais; termos d’outrora como soberania, propriedade, cidadania, marcos territoriais, princípio da não ingerência, ordenamento piramidal de Kelsen etc., estão aos poucos se desconstituindo em face do movimento natural de releitura fenomenológica do mundo e de todos nós que o habitamos.
 “Há letra que mata e letra que vivifica ou até ressuscita. O Direito é, infelizmente, em muitos casos, simples letra morta e a Justiça ainda mais. Quando não se volve mesmo em letra que mata. Pelo rigorismo ou pelo laxismo, pela burocracia ou pela tortuosidade. A regeneração do Direito tem vindo actualmente da letra viva da cidadania e dos direitos humanos, que são, antes de mais, matéria constitucional” .
Por outro lado surgem, a cada dia, novas palavras e idéias que, aos poucos, se incorporam no repertório dos ativistas do direito de vanguarda. Luiz Flávio Gomes e Valerio Mazzuoli, por exemplo, identificam a atualidade de discutir-se a existência de normas supraconstitucionais, como resultante de um longo processo evolutivo, ao final do qual ficou construída a ideologia fundante da aplicação de normas que estão topograficamente fora dos ordenamentos estatais, mas que devem ser integradas às próprias constituições singulares.
 “Para bem compreender e visualizar as normas supraconstitucionais (as quais, como veremos, pertencem à fase do direito universal), deve o jurista do terceiro milênio estudar detidamente a evolução histórica do Estado, do Direito e da Justiça. Quando se realiza um estudo nesse sentido, pode-se verificar que o Estado, o Direito e a Justiça passaram por aquilo que se pode chamar de ondas evolutivas, que vão desde uma concepção arcaica do sistema jurídico (a iniciar com o Estado absolutista), até evoluir a um momento moderno desse mesmo sistema (do legalismo ao internacionalismo, passando pelo constitucionalismo), para finalmente chegar (nos tempos atuais) à pós-modernidade jurídica (quando então já se fala em uma quarta onda do Estado, do Direito e da Justiça, que chamaremos universalismo”.
Neste novo modelo a compreensão do Estado, do Direito e da Justiça revelam o contorno humanista e universalista que as demandas da atualidade envolvem. Não se admite mais, portanto, o juiz eunuco, escravo da legalidade, alma sem esperança peregrinando nos limbos escuros das abstrações positivadas, marchando ao passo e à sombra das decisões dos tribunais.
Ao revés, os novos tempos exigem o juiz dialógico, capaz de reinterpretar os fatos do cotidiano à luz do Direito, da Psicologia, da Sociologia e da Política , atuando de forma crítica e assumindo as responsabilidades cívicas do múnus que exerce em nome das expectativas sociais e dos objetivos estatais.
 “O século XIX foi o século do legislador porque se acreditava na sua infalibilidade, no seu sendo de justiça etc. O juiz não tinha quase nada a fazer, era, assim, um ser inanimado (Montesquieu). Rousseau dizia que o cargo de juiz só servia para o sujeito conquistar méritos e probidade para o exercício de outras funções, não burocráticas. As sociedades modernas são extremamente complexas e todos os seus conflitos (ambientais, ecológicos, energéticos, bioéticos, concorrenciais, políticos etc.) são submetidos ao juiz, cuja atividade gera atrito em todo momento como todos os demais poderes republicanos; a morte do juiz cético, oculto e legalista já foi anunciada há muito tempo (só não dá ainda para marcar a sua missa de sétimo dia, porque ele ainda não foi sepultado)” .
Outra conseqüência dessa linha evolutiva foi e é a constitucionalização do Direito , ou seja, a (calma) percepção de que a Constituição é lei, dotada de valores e princípios, formando uma inédita moral constitucional, axiologicamente fértil, de onde devem brotar não apenas as instrumentalidades normativas necessárias ao cotidiano, mas também o alicerce teleológico de todo o ordenamento, diante, inclusive, das imperfeições que – não adianta negar! –habitam qualquer ordem jurídica (inconstitucionalidades, conflitos de leis, lacunas etc.).
 “Uma Constituição não é apenas um texto legal. É, antes, uma vivência coletiva, um carma histórico-político, uma saga a ser cumprida pelos povos na trilha da civilização. A Constituição de 1988, mesmo vergada pelo peso de 56 emendas de caráter ora supressivo, ora modificativo e ora aditivo, que alteraram, par o bem ou para o mal, sua original feição, longe de ser perfeita, tem cumprido galhardamente um papel de vanguarda para a superação dos vícios e deformações que desde a origem colonial marcaram a formação da nacionalidade”.
É exatamente em razão de ser a Constituição norma de vanguarda, isto é, de caminhar à frente na jornada de transformação dos Estados, que o antigo sistematicismo jurídico merece ser abandonado em favor de uma compreensão viva da Constituição.
 “Na urgência de reencontrar, em valores e virtudes republicanas, uma ética constitucional, ganha relevo a palavra de ordem ‘Constituição Viva’. Tal como a Metáfora Viva de Paul Ricoeur, a metáfora da constituição não é apenas uma mera metáfora (etimologicamente, um simples transporte, transposição ou tradição, traditio), mas um ser vivente, e interpelante, aqui e agora” .
Aliás, como sabemos, o festejado modelo kelsiano já não mais atende aos anseios do Estado Constitucional e Humanista. Luiz Flávio Gomes e Valerio Mazzuoli denunciam, com ênfase, o fenômeno:
 “Essa clássica estrutura de nossa pirâmide jurídica (ou seja, essa forma de compreender o direito sob a ótica legalista positivista ou civilista contratualista) este hoje absolutamente ultrapassada. Embora ainda ensinada (equivocadamente) em algumas faculdades, essa antiga pirâmide kelseniana foi definitivamente sepultada pelo STF, no dia 3 de dezembro de 2008” .
Todavia, não podemos praticar a injustiça de simplesmente descartá-lo negando-lhe a importância do passado, porém os tempos são outros e diversos também são os paradigmas, seus significados e sua simbologia.
 “O modelo legalista-positivista de outro lado, teve grande prosperidade porque se ajustou perfeitamente às necessidades das sociedades industriais, que jogam tudo no crescimento econômico – na sua prosperidade – e muito pouco ou quase nada na construção da cidadania e das liberdades. E, para atender a esse desideratum, nada melhor do que contar com um direito instrumentalizado, que se caracteriza pela separação kantiana entre moralidade, de um lado, e legalidade e positividade, de outro (...) Mas o inegável é que esse modelo legalista-positivista de atuação judicial está ultrapassado” .
Apenas para recordar: a construção piramidal de Kelsen caracteriza o ordenamento pela unidade, hierarquia, plenitude, coerência e economia. Eu, particularmente, sem possuir nenhuma estatura de constitucionalista – aliás, estou muito, muito..., demasiadamente longe disto! -, não consigo imaginar a Constituição no isolamento típico dos deuses, sentada no sólio dourado do Olimpo, distante e solene, distribuindo o dom da vida para sua criação, talhada no mármore branco de sua suprema potestates.
Penso em uma Constituição mais próxima da humanidade, mundana mesmo – sem perder o status de ‘norma-fundante’ - de tal sorte inserida na vida estatal, social (coletiva e individual de cada Ser), que a vejo não no topo de uma pirâmide, vertical e angularmente excludente, mas no centro de um círculo, aberta nas mãos de um homem que a lê, a compreende e com ela interage.
Enxergo o novo signo constitucional simbolizando a neo harmonia e proporcionalidade do Estado Constitucionalizado e Humanizado, tendo como fonte irradiadora de luz (sabedoria) a Constituição, aberta nas mãos do “SER”, e dela, partindo para todos os graus idênticos e perfeitos da circunferência, os mesmos eflúvios, as mesmas diretrizes, as mesmas oportunidades de redimensionamento da ordem jurídica.
Essa poderosa força motriz localizada no centro umbilical da ordem jurídica deve ser capaz de influenciar não somente a reorganização do Estado, a elaboração das leis, as concepções de gestão pública etc., mas principalmente possibilitar a convivência íntima dos homens com as suas aspirações constitucionais, e por assim dizer, com a regulação de suas próprias vidas em comunidade tendo como ponto central a dignidade da pessoa humana na sua busca natural pela felicidade.
Nesse ponto, o apelo à dimensão ética, moral, política e jurídica da dignidade humana saboreada pelas inteligências, singulares e coletivas, acaba consubstanciando o princípio normativo das Constituições pós-modernas, permitindo assim a superação da crise de identidade constitucional pós 2ª Grande Guerra (sobrepujamento do positivismo jurídico).
 “Os juristas, e em especial os constitucionalistas, têm a grave responsabilidade de dar alma e ser sinal de alarme num momento de viragem como o presente. Podem tranquilamente deixar-se na sua posição confortável de áugures das crises políticas e elaboradores de pareceres a pedido, representantes dignos do direito nos livros. Ou podem ser principais obreiros do direito em acção, explicando, antes de mais, que a Democracia e os Direitos Humanos não são dados adquiridos, mas conquistas quotidianas, que passam pela adesão das gerações mais novas, que já não conheceram o que é viver em ditadura (...) Esperemos que jamais...” .
Logo em breve estarei novamente em Fortaleza. Eu, e esta imagem que me acompanha:



“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” .














DIREITO À FELICIDADE.

5. Mais um pouco de atrevimento (ou confusão?!)...

“Um menino caminha
E caminhando chega no muro
E ali logo em frente
A esperar pela gente
O futuro está” .



Passei o dia inteiro procurando um termo que, de alguma forma, conciliasse as forças centrípeta e centrífuga. Não desejo elaborar uma conceituação a partir da resultante dessas forças (uma excluindo ou atenuando a outra), mas apenas considerando – em tese - a possibilidade delas se harmonizarem e exercerem poder atrativo recíproca e concomitantemente.
Conversei com amigos engenheiros, professores de física e com o ambulante que vende fatias de abacaxi na orla de Fortaleza para os corredores de plantão. E foi ele que meu deu a dica mais interessante: Alexandre, procura na física quântica ou então lê “A Lei da Atração”.
Ora, como o subtítulo do livro indicado é “Peça, Acredite e Receba”, pedi licença aos volumes de Direito, Ciência Política, Psicologia e Sociologia e aqui estou com Michael J. Losier e com outros que discursam sobre fótons, radiações eletromagnéticas, análise espectral etc. (Se não achar uma saída para o problema que formulei, pelo menos aumento em muito minhas chances de enlouquecer de vez!).
Mas o que pretendo é, na verdade, bastante simples. No capítulo anterior, quando esbocei as primeiras linhas do meu arriscado desenho da ordem jurídica de um Estado Constitucional e Humanístico, por obrigação me referi às características da construção (e do mito) piramidal de Kelsen - unidade, hierarquia, plenitude, coerência e economia. Agora devo, ao menos, cotejá-las em face da ordem de compartilhamento e reciprocidade que anuncio.
Antes de tudo, é preciso lembrar que as ciências também recorrem aos mitos, às alegorias, às crenças, aos símbolos e aos signos para melhor se explicar e se mostrar ao mundo profano. Não é à toa que o Direito, por exemplo, pôs vendas alemãs em Têmis e exportou a cegueira criminosa da deusa mundo afora, com a finalidade de demonstrar a imparcialidade da Justiça . Também não causa espanto diversas alusões ao mito da sabedoria inigualável de Salomão que, não obstante ter bem solucionado a disputa das duas mulheres pelo recém-nascido, possuía setecentas mulheres e trezentas concubinas , portanto uma quantidade intoleravelmente tóxica de sogras. Da mesma forma, é raro o estudante que não tenha se deparado com a alegoria da caverna de Platão, ainda nas manhãs de verão nos cursos de Direito.
É que os mitos possuem, dentre várias outras funções, o afeto sociológico de estimular o reconhecimento das relações humanas, permitindo, assim, maiores possibilidades de comunhão dos ideais, objetivos e estratégias. E o mais importante de tudo: é a cimentação de um sentimento profundo de pertença e de propósito!
 “Nos tempos atuais, quando prevalece ainda o paradigma cartesiano nas ciências e o fundamentalismo nas tradições religiosas, quando as pessoas se sentem perdidas no meio de uma sociedade globalizada e impessoal, há uma busca crescente por um significado na vida. Os mitos podem nos levar ao encontro de realidades interiores que estavam esquecidas e obscurecidas, propiciando ao mesmo tempo a redescoberta do sagrado”.
 “Estimamos que as mitologias, mais que as ciências e as filosofias, encerram, junto com as religiões, os grandes elucidamentos da essência humana. Aí as culturas projetaram, geração após geração, grandes visões, acumularam reflexões, fizeram aprofundamentos e os passaram aos seus pósteros. Souberam usar de uma linguagem plástica, com imagens tiradas das profundezas do inconsciente coletivo, acessível a todas as idades e a todos os tempos. Além das visões e dos símbolos, suscitaram e continuam suscitando grandes emoções. E são essas que ficam e mobilizam as pessoas e os povos na história (...) Os mitos são linguagens para traduzir fenômenos profundos” .
Porém é preciso cuidado. Nem o Estado e muito menos a Constituição estão sendo propostos como mitos intangíveis ou meros símbolos da organização de um povo. O que digo é que ao lado da dimensão ‘real’ dessas duas entidades, coexiste uma importantíssima virtualidade simbólica que, além de ajudar a tornar mais compreensível a relação dos homens com a lei e com o Poder, pode lhes dar a rara e incomensurável sensação de acolhimento e participação em um cosmos de justa convivialidade política.
A percepção do Direito a que me refiro, ordem de compartilhamento e reciprocidade, permite ser compreendido como a regulação ótima - imperfeita, posto que fruto da inteligência e do trabalho humano, mas ótima diante da legitimidade que possui. E, mais do que ótima, sujeito e objeto de um manancial fecundo de relações – Eu e Tu, Eu e os Outros, Eu e a Lei, a Lei e os Outros, a Lei e as outras leis etc.
 “A vida humana, e, conseqüentemente, a evolução social e estatal são cheias de tropeços que restauram a humanidade, muitas vezes esquecida pela incessante razão iluminada na busca pela perfeição. Como pontua Jean Frémon a perfeição é uma superfície muda que abandonou a vida, a perfeição é de um outro mundo na porta do qual está escrito: não se entra!” .
Ademais, deve fecundar a sensação de melhor direito. Deve sim, conquistar e permanecer no imaginário da população como lei(s) boa(s), direito bom, decisões judiciais boas, enfim, substituir a desconfiança do senso comum no direito feito e aplicado por “eles”, pelo orgulho e fé no direito que permeia a vida de “nós todos”, sem sombras, sem esquinas, sem ângulos retos e excludentes.
Basta analisar, por exemplo, o fenômeno ocorrido com a legislação da criança e do adolescente no Brasil, considerada pelos técnicos como um das mais avançadas do mundo, mas que se incorporou na percepção popular como lei permissiva, incentivadora do crime e inepta.
Melhor, portanto, construir um repertório prático, simples, multidimensional, direto e plural, tendo como epicentro o movimento constante de afirmação e reafirmação da dignidade da pessoa humana, por meio de uma Tábua ao mesmo tempo real e simbólica; viva e metafísica; normativa e principiológica.
 “Os Direitos do Homem querem ser mesmo direitos, e mais: direitos superiores a esse Direito legislado, costumeiro, ou jurisprudencial que eventualmente (e este eventualmente pode ser mesmo freqüente) os não respeite. Prima facie, quer no plano da razoabilidade científica, quer no do bom senso institucional, este tipo de pretensões pareceria votado ao fracasso. Mas não: os direitos humanos não só estão sendo considerados Direito, como, de algum modo, no imaginário colectivo, acabam por figurar como uma espécie de mais-que-direito, ou, dito de outro modo, o verdadeiro Direito, o direito justo (...) É que os Direitos Humanos não são apenas Direito, como se elevaram a critério de Direito e do Bom Direito, e, na verdade, um signo de nossa contemporaneidade. Não por acaso se fala na idade ou era dos direitos” .
Assim é que, malgrado seja necessário reconhecer, por exemplo, a hierarquia entre as normas do ordenamento, a partir desse a priori da dignidade da pessoa humana permeando todo o texto e o entendimento constitucional, penso não ser necessário estabelecer um vínculo relacional verticalizado e de mão única. A Constituição, movimentando-se no centro do ordenamento, dá vazão ao tônus de vida que há no cosmos que ela própria ajuda a regular, e mantém sua primazia, em contato direto e imediato com qualquer outra norma, sem escalas, sem degraus, sem intermediações. Ao passo que legitima, a Constituição também é relegitimada pelo funcionamento harmônico de todo o ordenamento, posto que até no instante de aplicação da norma de pretensa menor importância, é à própria Carta que se está dando império.
Partindo da mesma hipótese, isto é, do centro do ordenamento, percebo que a Constituição se faz receptiva à intercessão com outras ordens jurídicas personalizadas, turvando a idéia de unicidade. Basta analisar o fenômeno de formação dos blocos continentais, cujo exemplo mais contundente é o da União Européia, em que os países membros transferem parcelas significativas de obediência e regulação constitucional, superando o tradicional princípio da não ingerência (domestic affair) pelo novíssimo modelo do international concern .
 “A Comunidade Européia revolucionou o conceito de soberania, caracterizado pela unidade, indivisibilidade e inalienabilidade, superprotegido sob a égide da segurança nacional, instituindo o direito comunitário. Na U.E. todas as constituições permitem a delegação do exercício de competências para um poder supranacional, permissão mister para a primazia do direito comunitário sobre o nacional” .
Ademais, como podemos negar que, na verdade, há uma multiplicidade de ordens legais não constitucionais interferindo na vida de cada um de nós. É que, ao lado do pluralismo sociológico, também há o pluralismo jurídico. Basta imaginar, por exemplo, a quantidade de ‘exigências legais’ que instituições privadas fazem para que os Estados sediem seus eventos (FIFA, Comitê Olímpico Internacional, FIA etc.). Além disso, na própria ordem doméstica existem subsistemas que normatizam, criam regras de condutas, estipulam sanções, e por aí vai.
 “A ordem jurídica estatal não é a única, como se crê e com muita freqüência é ensinado: ela encima ordens jurídicas infra-estatais (as dos grupos secundários) ou se avizinha delas e se inclina diante de ordens jurídicas supra-estatais (por exemplo, as ordens jurídicas européia ou internacional, ou ainda os ‘códigos de condutas’ das multinacionais. Graças à transnacionalidade delas, estas usufruem uma soberania normativa que lhes permite negociar com os Estados de soberano com soberano, e não de súdito com soberano). Portanto, o pluralismo jurídico permite superar a problemática do Estado de Direito ao afirmar que o Estado não tem o monopólio do direito oficial” .
Outro reflexo dessa comunicação entre a Constituição de um Estado com outros diplomas semelhantes (constituições de outros estados singulares ou de um bloco de estados, por exemplo, bem como por tratados e cartas políticas de direito universal, v.g.: direito humanitário), também modifica o antigo entendimento de plenitude que era dado ao ordenamento jurídico, pois o que é pleno, basta em si mesmo, prescindindo de qualquer complemento ou adição.
 “A idéia desse universalismo (que, como se pode perceber, é nítido produto da pós-modernidade jurídica e das mudanças pelas quais vem passando o direito internacional atual) está pautada na superposição que existe das normas de valor universal em relação àquelas de valor eminentemente doméstico, ainda que estas últimas sejam normas constitucionais” .
Ao contrário da autopoiética ermitã, precisa-se de um direito dialógico, não aut0-regulável ou fecundo apenas em si mesmo, não, não é esse o direito! A referência narcísica do direito pleno dificulta – ou até impossibilita – a comunhão de forças da legalidade com a multidimensionalidade da historicidade (lei versus fato), enquanto o que se quer é lei & fato. Os acontecimentos complexos da vida contemporânea exigem direito ágil, de certa forma plástico, não apenas em beleza, mas principalmente em sabedoria e, tecnicismos à parte, nada mais sábio do que compreender... conversando.
 “O jurista deve aprender a pensar o direito de outra maneira se quer ter uma chance de responder às legítimas questões que a sociedade lhe apresenta. Um direito ainda mais vinculado à moral, menos imperativo, mais maleável e menos espesso: essas são algumas direções que cumpriria abrir. Aliás, elas parecem iniciar-se” .
Econômico e coerente?! O ordenamento continua assim! Mas sem a hipócrita presunção de que é perfeito. É, apenas, obra cultural que foi concebida na perspectiva de oferecer soluções justas de equalização social, preferencialmente de forma não contraditória ou dicotômica E conta, hoje, com um ponto de apoio, uma pedra de arrimo de fortíssimo apelo argumentativo, que é a vocação de todo o ordenamento, a partir da Constituição, para tutelar a dignidade da pessoa humana, célula de união e identificação do conjunto de atores, naturais ou artificiais, da vida social pós-moderna.
Portanto, o ordenamento de compartilhamento e reciprocidade, ainda pretende ser econômico, coerente, mas não fechado em si mesmo, posto que permanentemente em construção, sendo que a Constituição inaugura um novo tipo de relacionamento hierárquico: do centro do sistema jurídico a Carta interpretada pelo Homem é o pólo irradiador da cultura jurídica, perfazendo todos os caminhos possíveis de orientação e regulação do ambiente social sem olvido de que, mesmo na aplicação do dispositivo mais singelo e específico, é ela própria – a Constituição, que está sendo resignificada. Aliás, a resignificação é uma constante, embora se reconheça o ímpeto primordial de proteção à dignidade dos homens e mulheres que peregrinam, mundo ao largo, em sua busca natural pela felicidade.
Estou saindo. Irei andar de moto, pensar um pouco. A circularidade que proponho tende a se chocar com o isolamento que combato. Preciso, portanto, de velocidade e liberdade. O mar à esquerda e o asfalto sem fim... uma felicidade passageira, como eu também sou.

“Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? Agente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê” .






























DIREITO À FELICIDADE.

6. Time after time.



“Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida” .



Hoje é sábado. Estive fora. Na mesa da sala, ao lado, vários processos esperam por mim. De certa forma, também espero por eles. Gosto de estudá-los, revelá-los aos poucos, confrontá-los, enfim, gosto do caminho.
Já há alguns dias me vem a recordação do uso de compasso na escola. Talvez eu tenha sido negligente, mas não lembro de ter visto os meus filhos usando compasso, pelo menos com a freqüência que eu o usava; não só o compasso, mas vários tipos de réguas, esquadros etc.
Pego o antigo compasso e marco diversos círculos no paciente papel reciclado. Sei que o círculo representa a formação perfeita, a ordenação eterna e protegida pelos deuses. Por isso, sempre guardou importância nas escolas filosóficas, teosóficas, zodiacais, religiosas até! Também na cabala e na magia, na tradição islâmica e no Budismo, na mandala e no misticismo.
Ocorre que, ouvindo Sinatra, tracei um círculo diferente - sempre motivado pela idéia inicial de discutir a inclusão da busca pela felicidade na Constituição Federal. Embora sem rupturas em seus 360°, o círculo que pretendo é comunicativo, aberto a interseções. Tem em seu centro um homem com a constituição aberta, inteligível, dialógica, fecunda e capilar. Afinal, creio que a humanização do direito é a única maneira eficaz de ajudar o direito a ajudar o homem.
Inaugura-se, assim, espaço para a construção da convivialidade na ordem jurídica. Mas como fazer isto se ainda estamos aprisionados por paradigmas cartesianos e posturas senis do bacharelismo escravagista? Se as faculdades de direito continuam ensinando a subsunção dos fatos às normas, como se fosse a galinha dos ovos de ouro? Se os obreiros da justiça perderam o hábito de andar a pé ouvindo os sussurros dos becos, vilas, ruas e bairros das cidades? Se os paletós linha 120 e os carros pretos assustam as pessoas que deveriam se sentir à vontade com os juízes, os promotores e os advogados? Se não há mais lugar para a poesia no direito?
Muito provavelmente em virtude das chagas que eu mesmo carrego por também ter sido vítima dos grilhões e da mediocridade acadêmica – suprema violência esta, pois a academia deve ser o espaço máximo do questionamento, da criatividade, dos ensaios e ousadias intelectuais -, resisto inconscientemente a propor a desconstituição de um mito. Aliás, de vários e simultâneos mitos.
Se é verdade que desejo conversar sobre um direito que facilite a busca do homem por sua felicidade e que tenha como bússola a proteção da humanidade e que, também, pretendo mais inquietar do que propriamente explicar, creio ser de bom tom abordar, ao menos, a questão dos conflitos que a circularidade, em tese, provoca.
Quando o arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio propôs o modelo ideal do homem, a partir do estudo e da demonstração matemática das proporções do corpo, é óbvio que ele partiu de um paradigma cultural e pontual de beleza. Isto comprova que sempre há uma predeterminação um a priori, que inspira as inteligências e motiva o trânsito teórico.
Particularmente, estou contaminado pela idéia de humanização dialógica do Direito e, por conseqüência, da aproximação de todos seus obreiros com a cidadania. Perceber que os ofícios jurídicos possuem a bem-aventurança de se depararem cotidianamente com incontáveis e ricas possibilidades de efetivar a melhoria de vida, material, psicológica, sentimental e política de muitas e diferentes pessoas, em grande parte das vezes esquecidas ou invisíveis , é dom raro!
É por isso que insisto em rabiscar a ordenação jurídica em contornos circulares, de permeios contínuos e constantes, como se todo esse ecossistema de leis, normas, etc., estivesse imerso em um único oceano: a tutela da dignidade da pessoa humana.
Todavia, a circularidade oportuniza a crítica contundente à autopoiese e esta, por sua vez, destaca a auto-referência do direito assim pensado.
“A auto-referência tem como principal função fazer com que o sistema jurídico desenvolva-se, modifique-se e se reproduza a partir de seus próprios elementos, buscando suas respostas em si mesmo” .
Porém, fruto deste bastar-se em si, o Direito em sistema circular (autopoiético) tende a ser impenetrável, indeterminado e imprevisível.
A impenetrabilidade do sistema ocorre exatamente em virtude dele alimentar-se de si mesmo, isto é, seus elementos (normas) são produzidos de forma autônoma e hipercíclica (autogênese).
Ora, se os conteúdos do sistema são gerados por ele próprio, o meio externo acaba se tornando impotente para estabelecer, orientar ou mesmo conhecer analiticamente qualquer situação dentro desse particular sistema. Eis, despontando ao Norte, a característica da indeterminação.
Por fim, apenas o próprio sistema será capaz de perceber e prever sua aplicação e incidência, posto que desconhecido de tudo e de todos que estão à sua margem. Portanto, nenhuma outra ciência ou sistema está apto a elaborar repostas aos fenômenos que se apresentarem. Vem daí a imprevisibilidade.
Além disso, a disposição dos elementos na sistêmica circular poderia inviabilizar a teorização da hierarquia das normas.
Porém, creio que persiste um (pré)conceito, difícil de ser suspenso, a dificultar uma nova visão do ordenamento. Pretender uma convivialidade circular não importa, necessariamente, em isolamento do sistema, pois há diversas possibilidades de intercessão e, quando efetiva-se uma intercessão, as áreas e os conteúdos passam a ser totalmente compartilhados. Uma vez compartilhados, estabelece-se comunicação e interação, permitindo determinação e previsibilidade.
Se isto implica reconhecer que o sistema jurídico passa a ser considerado um subsistema de segundo grau, em face do sistema social de primeiro grau, tenho cá minhas dúvidas. Aliás, há pouco eu estava na praia lendo o clássico “Nos confins do direito”, saboreando uma das muitas questões de Rouland:
 “Mas a questão crucial é: de onde vem esse direito que limita o Estado? Do próprio Estado, ou de uma outra instância? Certos autores são pela autolimitação. O direito não preexiste ao Estado, que produz a ordem jurídica. Se o Estado se submete ao direito,é por seu próprio movimento (...) Donde uma segunda abordagem, que inverte o movimento: esse direito ao qual o Estado de direito aceita submeter-se não vem dele, mas de um princípio que lhe é anterior e superior (...) Essas duas abordagens resultam, portanto, num impasse: ou o Estado de direito só é limitado por si mesmo, o que não constitui um sistema de freamento muito confiável, ou se fracassa em encontrar no direito positivo os vestígios de uma hipotética limitação extrínseca da potência do Estado” .
Ora, o direito positivo jamais poderá encontrar os fundamentos do Estado e da ordem jurídica fora dela própria. É talvez esta a possibilidade da grande reconstrução do pensamento jurídico contemporâneo. A travessia do oceano desconhecido bem que pode conduzir à aceitação de que valores supralegais, supraestatais ou universais, como queiram, não só influenciam a aplicação das leis já vigentes, como guiam sutilmente a edificação de novas ordens jurídicas, até mesmo porque as idéias precedem a ação. A lei ou a Constituição que um dia ganhará forma escrita, obviamente que antes foi pensada, com todas as implicações dos a priori que nisto há.
Tomando por exemplo a inclusão da busca pela felicidade como objetivo da República e Direito Social e considerando esta providência marco histórico do presente, é lícito crer que doravante a idéia de que o Estado é responsável pela facilitação jurídica e política da satisfação desse direito, o fenômeno incorporar-se-á no inconsciente coletivo cívico e certamente influenciará toda a produção legislativa futura, até que mudem os paradigmas.
Mas essa idéia não veio dos constituintes de 1988, nem de nossa tradição constitucional. Por que surge agora?
Porque há movimento. E esse movimento carrega consigo veículos os mais diversos de comunicação intersistêmica. Não estou certo, portanto, que deve cristalizar-se, ou não se pode combater, o dogma de impenetrabilidade dos sistemas circulares. Nem tampouco que a idéia contrarie qualquer noção de hierarquia. Afinal, sobrevivemos em um sistema planetário que rende suas homenagens ao astro central, a mais importante personagem de nossa via, o Sol.
O Doutor em Economia Ladislau Dowbor, por exemplo, critica os arrimos da ciência econômica e desafia alguns de seus postulados clássicos, em nome de uma vida mais feliz da humanidade. Em síntese, ele afirma que a linearidade do sistema econômico, além de contrariar a lógica circular da própria dinâmica vencedora da natureza, é cruel e destrutiva, agressiva contra o homem e devastadora para os recursos naturais.
 “Quando olhamos para esse nosso pequeno planeta, percebemos que a natureza funciona em sistema circular. Os pássaros comem as frutas e espalham as sementes; as folhas que caem são incorporadas ao solo que, por sua vez, se torna fértil e permite o surgimento de outras plantas, ou seja, todo o sistema da natureza é circular, de reutilização dos diversos recursos existentes. A vida está baseada nisso. O sistema econômico que nós montamos não é circular, de reciclagem, e sim um sistema linear. Pegamos recursos naturais, transformando-os em uma indústria, consumimos, e jogamos no lixo sob a forma de plástico. Com isso, estamos acabando com o petróleo no planeta. E não estamos recolocando de volta as bases energéticas utilizadas. O petróleo se acumulou durante centenas de milhões de anos, e nós teremos acabado com ele em 200 anos. A conta que fazemos deste processo é o PIB, o Produto Interno Bruto. Ele é bruto porque não calculamos a reposição desses processos. O PIB não mede os resultados em termos de qualidade de vida da população. Ele mede o fluxo desse processo linear da rapidez com a qual estamos utilizando os recursos. Quando, por exemplo, jogamos dejetos em rios e depois somos obrigados a contratar equipes para fazer a limpeza desses rios, estamos aumentando o PIB, porque aumentamos o fluxo do uso de recursos. Mas quando pegamos a Pastoral da Criança, que por medidas preventivas, sem gastar medicamentos ou com hospitalização, reduz a mortalidade das crianças, percebemos que ela não está apenas não aumentando o PIB, mas está reduzindo-o, porque reduziu o gasto com medicamentos, hospitalizações, o uso de ambulâncias e o petróleo e a gasolina que o veículo usaria. Fica parecendo que quando o PIB aumenta é bom, que usar mais recursos também é, quando, na verdade, estamos gastando os recursos do planeta” .
Portanto, não defendo a misantropia do Direito nem de qualquer outra ciência social. Postulo, ao contrário, pela episteme que possibilite a maior e mais fecunda comunicação entre as múltiplas matizes de conhecimento. E parto da premissa de que a Constituição enxerga melhor o mundo ao movimentar-se no centro dos acontecimentos, dando fundamento à ordem circundante e interagindo, diuturnamente, com tudo e com todos, que igualmente se movimentam ao seu redor.
A dignidade da pessoa humana, o acesso universal à saúde, à educação, a boa moradia, o lazer restaurador, a busca pela felicidade, enfim, o acesso aos direitos sociais como um conjunto necessário, útil não só ao indivíduo isolado, mas a toda família social, servem como ponto de exclamação da organização política, jurídica e social do Estado.
Creio que este universo de sentimentos, possíveis de serem deduzidos em preceitos e materializados em ações efetivas (políticas públicas, direção das decisões judiciais, programas das parcerias público-privada etc.), podem sim dar suporte prévio ao renascimento da ordem do direito, à reformulação jurídica do próprio Estado. Nada mais nada menos foi essa a diretriz que fundou a estratégia de governo do rei Jigme Singye Wangchuck, pois no Butão “a felicidade do povo é o objetivo do Governo”.
Depois de ter ido tão longe, passeando pelo Himalaia, parei um pouco. Vi o compasso ainda aberto sobre o papel reciclado. É hora de tomar uma cerveja enquanto “A Voz” encantada canta, time after time...
“Sem dúvida, a maior invenção da história da humanidade é a cerveja. Eu admito que a roda também é uma grande invenção, mas a roda não desce tão bem com uma pizza.” .







DIREITO À FELICIDADE.

7. Lendo a Piauí.



“De um certo ponto adiante não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado” .


Um bom amigo de Brasília me ligou com insistência. Pedia para que eu não deixasse de ler as duas últimas edições da Revista Piauí que, particularmente, considero uma das publicações mais interessantes do mercado editorial brasileiro.
Marcelo, esse bom amigo de Brasília, estava impressionado com duas matérias sobre o funcionamento do Judiciário, em destaque, os bastidores do Supremo Tribunal Federal.
Agradeci.
Li!
Depois, pensei em comprar uma passagem para o Butão, conhecer sua Constituição e florestas, aprender sobre Gross National Hapiness (Índice de Felicidade Nacional Bruta) e Dragões Brancos, passear pelas nove dimensões de mensuração da felicidade do povo e escutar o lugar comum de todo butânes: “Se isto te torna feliz, sim, faça!”.
A idéia é verificar como a realidade pode ser pensada e reconstruída a partir de novos e eficientes modelos. Antônio Ozório Leme de Barros nos dá a boa nova de que no Butão a busca pela felicidade está muito longe da retórica sedutora. Efetivamente e a partir da Constituição Butanesa, várias ações são desencadeadas a fim de dar colorido a este específico objetivo do Estado.
“Assim é que a Constituição do Reino do Butão, no seu art. 9° (que cuida dos Princípios de Política do Estado), dispõe, no item 2, que o ‘Estado se empenhará para promover as condições que permitirão a busca da Felicidade Nacional Bruta’; além disso, o art. 20 (que disciplina as ações do Poder Executivo) estatui, no seu item 1, que o ‘Governo deverá proteger e fortalecer a soberania do Reino, provê-lo de bom governo e assegurar a paz, a segurança, o bem-estar e a felicidade do povo” .
Para concretizar e capilarizar o mandamento constitucional, no ano de 2008 foi criada a Comissão para a Felicidade Nacional Bruta, destinada a promover políticas públicas e outras medidas e ações voltadas à construção de uma ambiente social democrático, harmônico, tributário às tradições da Nação e ao zelo com a natureza.
Não é por acaso que no Reino não se tem notícia de fome, analfabetismo, mendicância e corrupção.
 “O país tem fome zero, analfabetismo zero, índices de violência insignificantes e nenhum mendigo nas ruas. Não há registro de corrupção administrativa e o povo adora o rei, Jigme Khesar Namgyal Wangchuck (...). Felicidade é levada a sério no país - único do mundo a ter Gross National Happiness (Felicidade Interna Bruta, na tradução para o português) como política pública. Ao Estado cabe prover as condições necessárias para que a população possa se concentrar na busca da felicidade” .
De mais a mais, a Felicidade Interna Bruta é amiúde aferida mediante o cruzamento de dados que, por censo, avaliam: (1) o bem estar psicológico da população; (2) o uso do tempo; (3) a vitalidade da comunidade; (4) cultura; (5) saúde; (6) educação; (7) padrão de vida; (8) ecologia; e (9) qualidade do governo.
Isso é importante porque demonstra que a busca pela felicidade, orientada por uma ordenação jurídica dialógica, deixa de ser vista como utopia metafísica e materializa-se no cotidiano das pessoas - e do meio ambiente como todo - perfumando toda uma práxis social e política realmente enamorada com a nova vocação do Estado. Construir casas aos desabrigados ou proclamar sentenças justas aos infortunados, deixa de ser apenas o cumprimento de um múnus ou o exercício da postestates para transfigurar-se na quintessência pós-moderna da Constituição.
 “O pós-positivismo é uma superação do legalismo, não com recurso a idéias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade. Estes valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico (...) Em um ordenamento jurídico pluralista e dialético, princípios podem entrar em rota de colisão. Em tais situações, o intérprete, à luz dos elementos do caso concreto, da proporcionalidade e da preservação do núcleo fundamental de cada princípio e dos direitos fundamentais, procede a uma ponderação de interesses. Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral” .

Mas é preciso que a cidadania se acostume com o compartilhamento das ideias, objetivos, esperanças e demandas comuns, bem como da utilidade desta percepção. Uma nova aliança de pertença se anuncia e, mal chega, já exige atitude e convicção! Homens e mulheres de papel carbono, pálidos e conformados com o destino não ajudam à nova ordem. Ao contrário, há vagas para os ativistas, questionadores, curiosos e empreendedores cívicos.
Em trabalho extremamente interessante sobre o sentimento de pertença, Mauro Guilherme Pinheiro Koury cita o caso de um casal que mesmo sabendo que o espaço público que há muitos anos freqüentam está abandonado, sujo, perigoso, mantém a rotina de caminhada diária, primeiro por sentirem-se parte do lugar e, em segundo plano, para protestarem contra o descaso dos administradores públicos.
 “É uma forma de resistência nós permanecermos a fazer nossa caminhada aqui no passeio. Lugar mais bonito impossível, já foi comparado as cinco maravilhas do mundo moderno e hoje é isso aí, sujeira, fedor, assaltos e atentados ao pudor. (...) Mas eu e minha mulher não largamos de vir aqui de manhãzinha e de tardinha, todo santo dia. É uma forma de dizer que o Parque é nosso, é uma forma de chamar a atenção para que cuidem dele, de sua beleza e ainda o coração verde da cidade” .
Outro homem, no mesmo estudo do Professor Koury, afirma: “a lagoa é um lugar que cabe dentro de mim”.
Então fico aqui pensando, porque a Constituição, esta fenomenal obra da cultura humana, também não pode caber dentro de cada um de nós?! Afinal, se é ela a grande e superior organizadora do Estado e supervisora das relações de poder e de convivialidade, merece ser tida e percebida como nota comum de harmonia social, ou seja, é a (nossa) boa lei de todos.
Imagine, assim, com a licença ficcional de Saramago, que o afeto, o apego e a pertença à Constituição se espalhem como vírus. Que cada homem, mulher, idoso e criança capte a sensação de que a vida cotidiana é cuidadosamente acompanhada por preceitos – princípios e normas – de uma Lei Reitora, cuidadosamente elaborada para sintetizar o conjunto de expectativas, esperanças, desejos e necessidades de uma Nação.
Talvez assim, por seqüenciamento lógico, pudéssemos passar para a aguardada redefinição da jurisdição constitucional, que parece ser o caminho mais correto na jornada de renovação do Estado e da Democracia.
 “... uma jurisdição constitucional democrática existe para além da imagem construída pela pirâmide normativa kelseniana. É preciso que se busque novas opções teóricas e perspectivas substanciais que levem em consideração a realidade sociopolítica, sobretudo no que diz respeito à compreensão da Constituição como uma referência normativa criada pelo povo e para o povo. Quando o Poder Judiciário, como sistema de justiça, aprecia o caso concreto e age de acordo com a acepção material da Constituição, revela-se a expressão da vontade popular. Na verdade, a jurisdição constitucional apresenta-se como uma possibilidade de se vencer as indeterminações dos textos legais, ou como uma potencial alternativa, para solução dos problemas sociais” .
Não é que ao Judiciário caiba, simplesmente, a parcela de maior importância na afirmação do neoconstitucionalismo. Ocorre que ele possui o dom sutil de compreender o direito como um vir-a-ser heideggeriano, e isto torna plausível a pulverização do Poder.
 “A compreensão, para Heidegger, opera no interior de um conjunto de relações já interpretadas, num todo relacional, vale dizer, que atua dentro de um "círculo hermenêutico", inseparável da existência do intérprete. Não se pode conceber a compreensão fora de um contexto histórico e social” .

Assim, o Judiciário tem a capacidade de tornar-se um órgão produtor de micropoderes , descentralizando a histórica e ineficiente hipertrofia que, por vocação da vaidade humana, sempre ombreou a tripartição iluminista do Senhor de La Brède.
Porém, essa redistribuição dos atores no cenário do poder (macro e micro), facilitada pela jurisdição constitucional, tem uma aptidão aparentemente invisível, malgrado importante demais! É que a atual mobilização mundial em torno da globalização pode produzir o cruel efeito da dispersão quase que total dos valores, tradições e mitos locais, e isto torna o Estado extremamente vulnerável, inclusive diante dos interesses, nem sempre claros ou humanistas, das megacorporações industriais, comerciais, financeiras etc.
 “... a globalização econômica representa o risco da decomposição do sistema jurídico pelo mercado, na medida em que o direito passa a se tornar um instrumento estratégico e concorrencial para atrair o capital internacional e investimentos econômicos sem nenhum compromisso com os projetos locais” .
Aliás, a própria globalização somente foi possível em face de uma releitura dos sistemas jurídicos mundo afora . Por isso, nada impede que novas ondas de tendências mundiais atinjam nosso litoral, destruindo toda fauna e flora cultural de nosso habitat, particularmente nosso e agora exposto a todos, inclusive no Google!
Daí a necessidade de, ao lado da dispersão global, insistirmos na consolidação local . E dentro deste movimento de preservação das singularidades sem o olvido do todo, ou seja, mantendo a lúcida inteligência de que o “Mundo é Plano”, já não se pode mais pensar ingenuamente que as constituições bastam para sozinhas dirigirem os destinos dos Estados.
 “Uma das conseqüências involuntárias do mundo plano é que ele coloca diferentes culturas e sociedades em contato direto muito mais amplo umas com as outras. Liga as pessoas entre si muito mais rapidamente do que estas e suas culturas possam estar preparadas para isto” .
Superar o dirigismo constitucional e avançar rumo ao constitucionalismo moralmente reflexivo é a meta; pelo menos para J.J. Canotilho – pai e algoz da constituição dirigente.
 “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias” .
De pronto surge uma pergunta: mas a Constituição Brasileira tem essa normatividade constitucional revolucionária que se outrora lhe brindou com a luz da vida, hoje lhe cobre com o véu da morte?
Para muitos, não! Isso porque entendem que a Constituição Brasileira jamais propôs operar transformações emancipatórias, como a Carta Portuguesa de 1976 - temperada com as aspirações revolucionárias socialistas de 1974 - que inspirou a tese de doutoramento do mestre de Coimbra .
Outros pensam que Canotilho nunca abandonou sua tese dirigente e que países tardiamente inclusos na pós-modernidade ainda necessitam de uma Constituição compromissária.
 “... a noção de Constituição dirigente e compromissária não pode ser relegada a um plano secundário, mormente em um país como o Brasil, onde, repito: as promessas de modernidade, explicitadas generosamente no texto constitucional de 1988, longe estão de ser efetivadas. Para tanto, há que se enfrentar/superar alguns dos problemas e/ou obstáculos que fizeram com que a expressiva parcela dos dispositivos da CF/88 não obtivessem, até hoje, efetivação” .
Antagonismos à parte, o que parece indiscutível é que novas formas de acoplamento das estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas reforçam a atualidade do debate sobre, inclusive, o neoconstitucionalismo; portanto, é óbvio que os operários do direito ocupem papel importante neste fórum mundial de reinvenção da vida coletiva.
O estudo constante do Direito deve nos aproximar dos diversos e multifacetados conteúdos desta época de transformações que coabitamos. De nada nos adianta conhecer bem os códigos, as leis e os mármores que a decifram, sem a fome pelo que ocorre no mundo. Numa época em que até a instalação de redes multinacionais de restaurantes serve de parâmetro sério para a teorização das relações geopolíticas , encerrar-se nos compêndios caros e nos também caros (queridos) salões de audiências, é opção perdulária.
Volto à Piauí. Boa revista, esta!

“A característica de um período de transição como o atual é precisamente o fato de todos fazerem as perguntas erradas.” .




















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