Vinde a eles as criancinhas? 
Por Frei Betto*
As sucessivas denúncias  de pedofilia e abuso sexual cometidos por sacerdotes e acobertados por bispos  e cardeais envergonham a Igreja Católica e abalam a fé de inúmeros fiéis.  
 No caso da Irlanda, onde  mais de 2 mil crianças entregues aos cuidados de internatos religiosos foram  vítimas da prática criminosa de assédio sexual, o papa Bento XVI divulgou  documento em que pede perdão em nome da Igreja, repudia como abominável o que  ocorreu e exige indenização às vítimas.
Faltou ao pontífice  determinar punições da Igreja aos culpados, ainda que tenha consentido em  submetê-los às leis civis. O clamor das vítimas e de suas famílias exige que a  Santa Sé aja com rigor: suspensão imediata do ministério sacerdotal,  afastamento das atividades pastorais e sujeição às leis civis que punem tais  práticas hediondas.
A crescente laicização  da sociedade europeia reduz drasticamente o número de fiéis católicos e a  frequência à igreja. O catolicismo europeu, atrelado a uma espiritualidade  moralista e a uma teologia acadêmica, afastado do mundo dos pobres e imbuído  de um saudosismo ultramontano que o faz ignorar o Concilio Vaticano II, perde  sempre mais o entusiasmo evangélico e a ousadia  profética.
Dominado por movimentos  fundamentalistas que cultivam a fé em Jesus, mas não a fé de  Jesus, o catolicismo europeu cheira a heresia ao incensar a papolatria e  encarar o mundo, não mais como “vale de lágrimas”, e sim como refém de um  relativismo que corrói as noções de autoridade, pecado e culpa.  
Ao olvidar a dimensão  social do pecado, como a injustiça, a opressão, o latifúndio improdutivo ou a  apologia da desigualdade, o catolicismo liberal centrou sua pregação na  obsessão sexual. Como se Deus tivesse incorrido em erro ao tornar a  sexualidade prazerosa.
Como o Espírito Santo se  vale de vias transversas para renovar a Igreja, tomara que as denúncias de  pedofilia eclesiástica sirvam para pôr fim ao celibato obrigatório do clero  diocesano, permitir a ordenação sacerdotal de homens e mulheres casados e  ultrapassar o princípio doutrinário, ainda vigente, de que, no matrimônio, as  relações sexuais são admissíveis apenas quando visam à procriação.  
Ora, tivesse Deus de  acordo com tal princípio, não teria feito do gênero humano uma exceção na  espécie animal e, portanto, destituiria o homem e a mulher da capacidade de  amar e expressar o amor através de carícias, e incutiria neles o cio próprio  dos períodos procriatórios dos bichos, o que os faz se  acasalar.
Jesus foi celibatário,  mas é uma falácia deduzir que pretendeu impor sua opção aos apóstolos. Tanto  que, segundo o evangelho de Marcos, curou a sogra de Pedro (1, 29-31). Ora, se  tinha sogra, Pedro tinha mulher. E ainda foi escolhido como primeiro cabeça da  Igreja.
Os evangelhos citam as  mulheres que integravam o grupo de discípulos de Jesus: Suzana, Joana etc.  (Lucas 8, 1-3). E deixam claro que a primeira pessoa a anunciar Jesus como  Deus entre nós foi uma apóstola, a samaritana (João 4, 39).  
Nos seminários e casas  de formação do clero e de religiosos é preciso avaliar se o que se pretende é  formar padres ou cristãos, uma casta sacerdotal ou evangelizadores, pessoas  submissas ao figurino romano ou homens e mulheres dotados de profunda  espiritualidade evangélica, afeitos à vida de oração e comprometidos com os  direitos dos pobres.
No tempo de Jesus, as  crianças eram desprezadas por sua ignorância e repudiadas pelos mestres  espirituais. Jesus agiu na contramão dos preceitos vigentes ao permitir que as  crianças dele se aproximassem e ao citá-las como exemplo de fidelidade a Deus.  Porém, deixou claro que seria preferível amarrar uma pedra no pescoço e se  atirar na água do que escandalizar uma delas (Marcos 9, 42).  
As sequelas psíquicas e  espirituais daqueles que confiaram em sacerdotes tarados são indeléveis e de  alto custo no tratamento terapêutico prolongado. As vítimas fazem muito bem ao  exigir indenização. Resta à Igreja punir os culpados e cuidar para que tais  aberrações não se repitam.
Frei Betto é  escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
*Leia esta e outras crônicas do religioso, acessando o Site Amai-vos, clicando em:
COLUNA: FREI BETO