Infame madrugada! A cada meia hora um despertar. A preocupação com o horário do tal ónibus da EMTRAN era tamanha que sono e cansaço acumulados foram incapazes de garantir uma noite de paz. E, claro, após tantos desencontros com o descanso não havia como chegar bem ao alvorecer.
Mesmo assim, à s cinco horas o relógio apitou. Muito. Insistentemente. Imagino-o ficando rouco de tanto. Imagino-o sucumbindo e silenciando. Completamente entregue à exaustão, porém, sequer fui abalado por aquele som irritante. Apenas quando faltavam dez ligeiros minutos para as seis acordei. - Imagino que por pura sorte!
Dez minutos. Esse foi o tempo que tive para pular da cama, pór calça, camisa, meias e tênis, lamber a cara com um palmo de água gelada, pegar as tralhas e abrir a porta do quarto. E o tempo foi justo. Deu na conta para eu assistir atónito, ainda com a mão sobre a maçaneta velha, o ónibus ir embora.
Aquele Jajá é um bom sacana. - Pensei. - Me disse que o ónibus só saía à s seis e era EMTRAN, só que esse ónibus aí é NOVO HORIZONTE e certamente saiu antes das seis!
Mal tinha acabado de me estarrecer e eis que surge como um anjo o dono da pocil... "pousada". Sua aparência maltrapilha, é verdade, pouco condizia com a alcunha celestial que lhe imputara, mas à quela altura eu não estava mais ligando para esses detalhes mundanos e diante da luz que me foi posta por ele no caminho, não me restou outro termo: anjo!
Pois o anjo, percebendo imediatamente o ocorrido, tratou de me levar, em ritmo de marcha olímpica, até a casa de um tal sujeito que poderia, apostando corrida contra o ónibus, alcança-lo. E não é que o cidadão estava - já Ã s seis da manhã - prontinho pra presente? Foi só entrar, ligar o carro e pegar a estrada.
Pés embaixo, foi como viajamos. O sujeito acelerando e eu apertando o assoalho do Chevett como se o quisesse freiar - não por falta de pressa, mas por medo mesmo. Só que, apesar da correria, nem sequer a fumaça do tal ónibus conseguíamos ver. Exceto, claro, quando finalmente chegamos a Boninal. Mas aí já não adiantava nada, posto que era justamente onde o ónibus me deixaria! De qualquer sorte, paguei os trinta reais cobrados - o ladrão me extorquiu - e fui procurar informações acerca do horário para Barra da Estiva. Estava roxo de raiva! Aquele Jajá era mesmo um sacana. Falou várias vezes que o ónibus só saía à s seis horas e, me lembrava bem, era da EMTRAN! Não fosse a intervenção do dono da "pousada" eu ainda estaria de molho em Piatã, podendo até não chegar a tempo para fazer a baldeação. - Esconjuro!
Só que do pior eu ainda não sabia. Perguntei ao frentista do posto de gasolina onde saltara qual o próximo horário para Barra da Estiva e ele me informou sem nenhuma cerimónia:
- Barra da Estiva? Só sexta-feira!
Tenho a impressão de ter me arrepiado naquela hora.
- Mas não é possível... - Não me vinha outra coisa para falar.
- Só se você for pra Seabra! - Interrompe outro frentista.
- Seabra? Mas é a maior contramão!!! - Respondo já meio revoltado!
Sem se abalar pela minha situação, ambos voltam placidamente a fazer nada, afinal, os havia atrapalhado com o meu problema.
Já estava prestes a sapatear de raiva e impotência quando, como se apenas para me sacanear, surgiu da última curva que separa Piatã de Boninal, meio rebolando e sem nenhuma pressa, o tal ónibus da EMTRAN. Aquele das seis horas! Mais uma vez perplexo, assisto-o parar na rodoviária. Em poucos segundos, eu que estava em um posto de gasolina distante de lá não mais que trezentos metros, saio andando para falar com o motorista sobre a história de Seabra e, qualquer coisa, embarcar, uma vez que era aquela cidade o destino do veículo que dirigia. Enquanto caminhava ia pensando - talvez até em voz alta:
- O sacana do Jajá estava certo! Tinha mesmo o ónibus das seis! O cara é gente boa! Mas o dono da pocilga certamente sabia que o EMTRAN ainda não havia saído e mesmo assim me fez gastar dinheiro com aquele achacador do carro! Ele sim é um sacana. Os dois - o da pocilga e o do carro - devem fazer parte de uma gang! Vão é dividir o meu dinheiro. Filhos da...
Embora caminhasse absorto em minhas conclusões, parei surpreso. É que meus olhos viram incrédulos o ónibus indo embora! Não era possível! Não permaneceu nem mesmo um misero minuto na rodoviária e seguiu viajem! Aquilo não podia estar acontecendo. Sabia que outro ónibus só levantaria a poeira boninalense à tarde, quando meu roteiro e minha paciência teriam sido fatalmente consumidos pelo sol que tão cedo já inflamava.
De qualquer maneira, como estava a meio caminho, prossegui rumo à rodoviária. Lá, assim que pus os pés, entendi o por quê do motorista ter sido tão breve em sua estada. Não havia ninguém. Nada. Ou melhor, apenas um telefone público! E diante desse quadro dantesco, não tive dúvida: tirei o aparelho do gancho e liguei imediatamente para casa. Não que tivesse algo importante para dizer e, na verdade, o fiz apenas para me queixar um pouco da vida.
Pois quando estou bem na minha, me queixando, vejo aparecer um homem num carro velho, cor de abóbora e já um tanto cheio. Seus olhos curiosos - que através da janela do Corcel II pareciam procurar por algo ou alguém - me encontraram ao telefone. Sua pergunta, contudo, me fez interromper a conversa bruscamente e ir ao seu encontro:
- Tá indo pra Seabra?
Muito esquisito aquele carro. Sacudia como se suas jantes fossem ovais!
§ § §
Não sei exatamente quanto tempo após ter deixado Boninal cheguei em Seabra. E, embora não tivesse lá muitas razões para comemorar, senti algum alívio. A próxima etapa agora era conseguir chegar em Barra da Estiva. De ónibus a melhor opção seria embarcar à s quatro da tarde para Mucugê, dormir lá, e à s três e cinquenta da manhã seguinte continuar a viagem. - Loucura!
Ainda me restava, porém, a esperança de uma carona. Fui tentar alguma coisa com os colegas da filial de Seabra, mas, como bem imaginara, não obtive sucesso. Não havia mesmo outra alternativa. E como o sol já pendia para o oeste, resolvi ir logo para a rodoviária e aguardar resignado.
Naturalmente, naquela rodoviária também havia um telefone público. E foi dele que liguei para a matriz a fim de comunicar quão difícil estava a realização completa do roteiro. Não daria mais para fazer nenhuma das três últimas cidades naquele dia e, portanto, todas elas teriam que ser feitas somente na sexta, o que era plenamente exequível, não fosse o transporte tão precário quanto ali o era. Depois dessa conversa desanimadora, fiquei na lanchonete degustando uma daquelas terríveis e saborosas coxinhas de rodoviária e tentando sossegar um pouco o espírito.
Toca o tal telefone. Uma, duas, três, algumas vezes até que um camarada atente.
- Quem é Jayme? Tem algum Jayme aqui? - Berra o sujeito.
Meio desconfiado, respondo positivamente e vou atender a ligação cheio de dúvidas: para mim? Quem poderia ser? Como descobriu que eu estava ali? E o número, como alguém podia saber o número do orelhão da rodoviária de Seabra?
Para a minha total surpresa, era o gente boa. Aquele que tinha virado sacana e depois voltado a ser gente boa: Jajá!!! É que, conforme combinamos, o sistema fora testado, só que o computador estava travando e ele queria saber se eu poderia voltar lá para resolver!
- É o que Jajá? Voltar pra Piatã? Cê tá maluco rapá!?
Expliquei a situação calamitosa do roteiro e lhe disse que se voltasse talvez não conseguisse fazer nem mesmo uma única cidade na sexta, pois não iria dar tempo, por causa do transporte, bla bla bla... Dei a ele algumas opções - como enviar o computador para a matriz, por exemplo - que ficaram de ser verificadas com o diretor da filial. Encerrada a conversa, retornei à lanchonete e à minha coxinha.
Toca novamente o telefone. Era da matriz. E toca outra vez: Piatã. E toca diversas vezes, ora dali, ora daculá, e eu já estava com vergonha de tanto atender à quelas ligações em um local tão inusitado; e eu já nem mais sentava na lanchonete mas em um banquinho posto ao lado do orelhão; e eu já me sentia quase num escritório!
Em um desses telefonemas, porém, precisamente no último deles, uma voz diferente - grave e profunda como um trovão - refaz o pedido de Jajá. Era o próprio diretor da filial.
Repeti para ele, claro, a mesma ladainha: não dá, porque roteiro, transporte, tempo, coisa e tal...
Só que o homem estava mesmo disposto a me convencer. Falou inclusive que faria o possível para conseguir uma carona para mim até Barra da Estiva caso eu voltasse para resolver o problema. - Tentação!!!
- Se, ao invés de fazer o possível, o senhor me garantir a carona eu volto agora.
Silêncio do outro lado da linha.
- A que horas precisa estar lá? - Pergunta o homem.
- Impreterivelmente à s oito da manhã. - Aproveitei para escancarar!
Apertando bem a orelha contra o fone consegui escutar grunhidos do breve diálogo que antecedeu o veredicto:
- Eu garanto. Pode vir.
Optei por não pensar. Coincidentemente (isso existe?) um ónibus para Piatã estava bem ali na minha frente e o meu embarque foi rápido e praticamente indolor. A viagem de retorno também não foi demorada, posto que eu estava numa espécie de transe voluntário. Não queria mesmo pensar. Seria insuportável reviver, mesmo que na volta e em pensamento, qualquer dos percalços da ida. O melhor, portanto, era manter a mente desocupada. Porém, sempre que eu me distraía, não lembranças, mas dúvidas me atormentavam: e se faltar energia de novo...?
Pelo menos - se a energia deixasse - teria a oportunidade de consertar as máquinas de Piatã e ainda chegar em Barra da Estiva no início da manhã seguinte sem ter que me embrenhar em uma outra aventura rodoviária. Isso não deixava de ser um pensamento bom, pois fazer três filiais em um único dia, embora - como já dito - não fosse impossível ou inédito, requeria sempre um começo precoce. Aliás, visitar tantas cidades sempre fora um procedimento comum em boa parte dos roteiros, só que, praticado nos primeiros dias, possuía um caráter preventivo ao invés de reparador como viera a ser neste caso.
O fato é que agora estava ali, novamente sentado em frente ao computador da filial de Piatã. E, valendo-me da oportunidade, fiz, desta vez, um trabalho limpo. Backup, formatação, instalações (naquela época, viajava com um mundo de disquetes contendo DOS, Windows, Office...), configurações, orientações aos usuários, tudo. O 486 ficou um brinco. A conexão foi perfeita e o meu sorriso de satisfação incontido.
Agora só faltava a parte do diretor e eu sabia que seria cumprida. O ex-sacana do Jajá ficou incumbido de me levar até Barra da Estiva.
- Então está tudo certo. Saímos amanhã umas cinco horas, ok? - Perguntei a Jajá, que, apesar de um pouco surpreso com o horário, concordou prontamente. - O cara é gente boa mesmo!
Não nos restou pois outra alternativa após um dia tão cheio: fomos tomar uma! Jajá até me "presenteou" com uma fita dos Titãs que deveria ser entregue a uma colega de trabalho - Vevé - mas que acabou se incorporando à s minhas coisas, eu diria que por afinidade.
Não podíamos demorar muito e tão logo secou a quinta ou sexta garrafa saímos do boteco. Jajá então me deixou em uma outra pousada - não mais naquela onde me deixara na noite anterior - e voltou para casa. Antes, porém, um comentário:
- A de ontem é mais familiar! - Escutei calado, permitindo escapar pela face apenas uma ligeira manifestação de incredulidade.
Já no quarto - sem banheiro mas limpinho -, pedi uma toalha e fui pegar o kit banho. - Um banho, como precisava!!!
Não demorou mais que uma hora e meia e o camarada da pousada me trouxe o pano de chão com o qual imaginava que eu me enxugaria. Agradeci, guardei o kit banho e fui dormir sujo mesmo.