Torcedor é o mesmo em qualquer lugar, quer nos grandes palcos do futebol, quer nos mais modestos campinhos de várzea. Normalmente eles se caracterizam pela maneira própria de torcer ao sabor dos lances que se descortinam de improviso em nuanças que variam entre a emoção de jogadas ousadas e a descontração dos momentos pitorescos de hilaridade que uma peleja de futebol sempre proporciona.
Há os que extravasam sua insatisfação sob a forma de gritos e ofensas, quase sempre ao infeliz órfão que comanda a partida... É, porque como é de sabença geral, juiz de futebol não tem mãe... Outros existem que, eternamente inconformados, não poupam críticas nem mesmo aos mais portentosos craques que desfilam a seus olhos. São os eternos insatisfeitos e geralmente frustrados atletas, que viram esvanecer seus sonhos de tornarem-se os reis dos estádios. Os indiferentes formam, via de regra, a menor porcentagem. Guardam, quase sempre calado no peito, o grito de angústia. Quando o soltam, porém, podem tornar-se até violentos.
Na verdade são todos eles tipos curiosos que não resistem à mais simples análise do leigo observador.
De todos, porém, que eu conheci, um há de ficar guardado em minha memória, como símbolo do total descontrole emocional .
De seu nome verdadeiro não me lembro. Só sei que conheci o Mimo ao tempo em que ele tomava conta de uma famosa pensão - pensão de arroz e feijão mesmo - que existiu ali no bairro Independência e que ficava quase em frente ao Ateneu.
Já naquele tempo era, o Mimo, dono de uma personalidade totalmente introvertida. Sisudo, enigmático, alvo predileto de constantes piadas. O curioso é que jamais consegui conciliar a sua imagem com outra que não fosse atrás daquele balcão de madeira, vendendo cachaça e servindo, humildemente, nas mesas de toalha quadriculada em vermelho e branco...
O tempo passou. Seu Jonas , que era pai do Mimo e dono da pensão, morreu. A pensão, pitoresca como tantas outras, foi cedendo lugar aos restaurantes e bares modernos que, diga-se de passagem, são modernos mas servem geralmente comida antiga...
Me formei, sai do bairro querido, segui a vida como o destino me traçou e nunca mais vi o Mimo... Quer dizer nunca mais até há poucos dias atrás quando, visitando a cidade, junto ao alambrado do Campo do Estrela do Norte FC reconheci o antigo fornecedor de marmitas do bairro Independência. E não foi muito difícil localizá-lo, mesmo porque todas as atenções do estádio estavam voltadas para sua figura. Agarrado ao alambrado, Mimo, com as feições grotescamente desfiguradas esbravejava e xingava a qualquer lance. Se os atacantes estrelenses perdiam um gol, ele xingava os atacantes, se a defesa do time adversário deixava entrar um gol, ele xingava a defesa do adversário. Se o juiz errava contra o Estrela, ele xingava o juiz, se errava a favor, em compensação, também xingava o juiz. Os chutes que dava no arame da cerca eram de fazer inveja aos mais exuberantes craques que porventura pudessem existir dentro do campo. Mimo espumava, socava o alambrado, esmurrava o vento, argumentava com quantos dele se aproximassem e com ele mesmo, parecendo que, enlouquecido, digladiava com seres invisíveis... O estoque de laranjas do Caturrinha - vendedor de laranjas de carteira assinada- não era suficiente para abastecer a turba que, qual a própria encarnação da turba de Jerusalém, de divertia com o espetáculo degradante, humilhante e desumano...
Ontem, revi o Mimo. Confesso que meus olhos marejaram ao relembrar daquela criatura quieta, taciturna, obediente que servia delicadamente nas mesas de toalhas quadriculadas em vermelho e branco. Estendido em pequena e desconfortável cama num pequeno quarto de hospital não mais esbravejava, nem divertia a turba animalesca. Estava quieto. Alheio ao mundo. Sozinho...