Sempre sonhei em ter um cavalo do sertão, desses que aguentam firme umas quinze léguas por dia. Um cavalo de sete palmos do casco à cernelha, de andar macio, mas que seja capaz de passar de marcha ao esquipado, levantando a poeira da estrada com seus cascos sem ferradura. Bom estradeiro! Quero-o "encapotado", desses que batem o queixo no peito, fazendo bela figura. Meu cavalo há de ser "gadelhudo", de pelos compridos e macios. Na cor, deveria ser branco, mas não gosto do nome "russo pombo", mesmo que seja branco-sujo, eu prefiro, porque será um legítimo "cardão". Cardão! Sonoro, folclórico! Eu o chamaria "Brioso". Que lindo nome para um cavalo cardão!
Ah, se eu pudesse contar, numa bravata:
- "Montei meu cavalo cardão, o Brioso, e, à passo esquipado, passamos pela porteira do Mundo! Vencemos escarpas, castanholamos nos lajedos, atravessamos carrascais de jurema, unha-de-gato, sabiá, rompe-gibão e coróa-de-frade. Enfrentamos os ventos quentes das caatingas, abrimos fendas no massapé ressequido das várzeas. Atravessamos leitos de rios secos, descansamos sob verde juazeiro, onde pendurei minha tipóia e fiquei observando os gaviões. os carcarás e cauãs, a voltearem no céu prateado. De lá, vi, onde a serra do Baturité encontra o céu, o corisco anunciando chuva! Meu Brioso ficou arisco, escavando o saibro grosso do chão. Ecoou o trovão! Outros mais, e ainda outros, acompanhando o estralejar do céu que se enegrecia! De onde estávamos, avistávamos o leito curvo de uma rio seco; pois lá ficamos os dois, assuntando, esperando ver o rio descer. Não há nada mais bonito, mais impressionante, do que o estrugir da cabeça d´água que, impetuosamente, desce, retomando o seu leito! E poder dizer: eu vi! eu vi!
Ah, se eu tivesse um cardão legítimo, marchador e resistente, iria buscar as avoantes! Iria vê-las aos bandos, aos milhares, escurecendo o céu e pousando, cobrindo as varjotas, os matos e as árvores. Que espetáculo! E quando alçam vóo, deixam o chão forrado de ovos, que se chocarão ao sol. Que terra esta!
Eu queria aprender a aboiar e tocar uma boiada. Não precisava ser um marchante, não, que é negocio muito precioso, de muita renda, muito menos um magarefe, que me horroriza a sangueira; queria ser um simples tangerino ou campeiro; um boiadeiro dos bons! Eu seria o "guia" e iria à frente, abrindo os peitos, minha voz chegaria até os cerros e ecoaria de quebrada em quebrada: "êêêêêê boi! ê bo-o-i!" e os "cabeceiras", logo atrás de mim, os "esteiras" no meio, os "costaneiras" cercando o gado e atrás, fechando a manada, os "do-coice", todos respondendo meus aboios, tremulando a voz e inundando o sertão de gritos sonoros, pungentes. Deve ser bom demais ter um sertão todo para se gritar!"
De fato não tenho um cavalo cardão, mas tenho um Gustavo Barroso a me conduzir, a me mostrar os encantos e as raridades do nosso sertão nordestino; tenho um Raimundo Girão, um Graciliano Ramos, um José Lins do Rego, um Rodolfo Teófilo, um Guimarães Rosa, um Luiz da Càmara Cascudo, um incrível Euclides da Cunha, e tantos outros escritores que me fazem a magia de possuir um cardão Brioso, que me aguçam a imaginação, e me soltam, livre, por este Brasil a fora, cantando:
" Mestre carreiro,
como chama o vosso boi?
Chama saudade
do amor que já se foi!
Mestre carreiro.
como chama o boi da guia?
Estrela d´alva,
quando vem rompendo o dia!
Mestre carreiro.
como chama o boi do meio?
chama esperança
do amor que ainda não veio!"