Hoje eu estava tirando pó dos móveis e dei com uma pequenina escultura: um pavãozinho de barro cozido, suas penas abertas em leque, cada uma com uma cor diferente, todas em harmonia e coerência. Quem o fez foi um anónimo artesão do Vale do Paraíba. Comprei-o há mais de 30 anos, quando eu era uma adolescente, cursando algo parecido como Aprendizado e Prática do Guia de Turistas. Era um curso oferecido pelo SENAC, gloriosa instituição de ensino que tanta profissão criou na minha geração. - Praticando a teoria, visitamos, como turistas, o Vale do Paraíba, onde comprei a escultura.
Com o pavãozinho na mão, limpando-o com todo o cuidado (até há pouco estava sob um tampo de vidro, numa mesinha baixa - mas o vidro se quebrou, é uma história muito longa, vou saltar este espisódio). E aí me lembrei do que aconteceu:
Ao entrar na "lojinha", um canto escuro da casinha do artesão, fiquei ali fascinada com as coisas que ele e demais faziam com as mãos, com uns poucos pincéis e umas rodelinhas de massa que se desfaziam em tintas de várias cores. Tão fascinada fiquei que perdi a hora de voltar para o grupo, que deu continuidade ao passeio, montaram numa perua (acho que era uma DKW... alguém aí sabe que tipo de carro era este? antidiluviano...) - e se foram. Fiquei na casa do artesão. Já se fazia tarde, ninguém parecia ter se lembrado de mim (mais tarde me recolheram, fui escolhida como a turista problema e servi de bom aprendizado para todo o grupo...). Aí comecei a ficar com fome... Era hora da janta. A mulher do artesão - não tenho outro nome pra ele, era um artista e tanto - se levantou da banqueta baixinha onde estava sentada, foi até um pedaço da sala onde estávamos ela, eu e o marido dela, se abaixou, revirou uns panos, voltou com um ovo na mãe e me disse:
--- Moça, tenho este ovo aqui. Vou cozinhar pra você porque deve estar com fome.
Constrangida, eu lhe disse que não tinha fome e que decerto o pessoal logo passaria para me pegar. Ela respondeu:
---Não se avexe não. Nós estamos acostumados a não comer, mas você não está. Gente da cidade come na hora certa.
E saiu dali sem mais. Realmente, ela colocou o ovo numa panela naquele imenso fogão de pedra onde ardia um fogo pequeno. O ovo ficou pronto, ela o tirou da água com seus dedos... soprou, soprou, para esfriar a casca. E me perguntou:
-- Quer descascar ele ou eu descasco?
--A senhora descasca. Tem faca? Vamos repartir.
Contra os resmungos da mulher e as negativas do homem, consegui pegar uma pontinha do ovo pra mim e dei pra eles a parte que poderia ser dividida entre os dois. E este foi o jantar deles. - Se eu não tivesse aceito comer aquele pedacinho que fosse, eu estaria ofendendo a hospitalidade deles.
Logo depois acertamos as contas, e o pavãozinho veio junto no pacote que comprei. Esta é a história desta escultura que está comigo há tanto tempo.
Coisa boa na vida é que temos memória. Dá pra esquentar uma tarde fria, sem vozes, sem amigos, sem parentes, sem nada. Como aquele ovo quente.
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Érica Eye