LÂMINA PARA CORTAR VENTO
Roberto Carvalho, jornalista e escritor
"Quem tem Globo tem tudo", anuncia a voz indutiva nas telas globais da vida. Tem fome, tem o que não tem... Tem a sina de nada ter, de ficar anestesiado, assistindo passar o barco de uma história de escravização, miséria. Encostado na fraqueza, no cansaço da lida diária, Tristão da Silva não tem televisor no barraco, onde mora com a mulher e os filhos. Poderia deliciar-se com o sugestivo anúncio, comentar com os amigos sua felicidade, por menor que fosse, sobre o "tem tudo" anunciado pela telinha.
Certamente lhe confortaria o sofrimento ver banquetes luxuosos, carrões e iates nas novelas. Conforto que faz seus beneficiários acreditarem que tudo é maravilha, que a pobreza é um dom do acaso, reservado castigo aos que, sem oportunidades, gravitam no pedestal da abastança. Há quem ache que a fome é exercício de resignação, simples purificação da alma. É desta noção que se nutre à indiferença, criando suas armas de dominação das leis, artifícios normativos - código de ética que matem a maioria dos cidadãos distanciados em estado de miséria, submissão.
Uma minoria pode usufruir plenamente das riquezas que se multiplicam em benefício próprio, dominado sempre a maioria pobre. Quem tem "nojo" tem o quê? Não terá, senão, consciência de que "Quem não tem Globo" tem as mesmas necessidades dos que estão do outro lado da tela, dos que desfilam em carrões importados, fazem feira semanal em Los Angeles, Estados Unidos.
Num plano inferior, Tristão da Silva olha seus três cabecinhas: Buíco, Rosinha e Naldinho - couro e osso - as lágrimas descem-lhe no rosto, lentamente, em soluços. Levanta-se na coragem, no impulso instintivo toma nas mãos Naldinho e o acaricia, soltando-o em seguida, levemente. "Naldo, tem jeito não... chame o Buíco, peçam esmolas nas ruas do centro. Há que ter algum filho de Deus que estire a mão" ordena Tristão da Silva. Seu olhar tenso perde-se, confuso como um rio que corresse contra seu próprio curso, precipitando-se no desconhecido. "As crianças não têm culpa se não consigo emprego", sente uma sensação estranha, jamais sentida em sua vida.
"Há dois anos batalhando por uma vaga de qualquer coisa... O tempo passando, falta tudo. Falta paciência, vontade de viver! Sabe Deus", desconcerta-se em murmúrios incontroláveis, dentro de si. É vontade de ver os filhos com cpara voltarem a noite... Sabe lá de que jeito. Pensativo, Tristão, desencosta-se da mureta do Drummond - "e agora José? José, para onde?".
Para quem tem "tudo" no lado oposto da moeda, avaliar o drama de um pai de família desempregado, a dor da fome é prazer e divertimento que rende todo tipo de justificativas. Desde as mais criativas à s já manjadas, pelo que justifica o grau de cinismo e deboche - objeto de dominação do semelhante. Qual o sentido dos milhões de famintos que ninguém que ver, nem admite existirem? Quem tem um olho tem tudo! Tem que despertar... Que um olho só enxerga mais. Doquinha, mulher do Tristão, dia e noite lavando roupa, à exaustão. Nas ruas, as crianças prostituindo-se para sobreviver, sendo aliciadas para o crime organizado de perigosos bandidos, traficantes. "Que cara é essa, homem?", inquire Doquinha, apreensiva. "Nada não, mulher...", faz um gesto vago e sai desapontado, Tristão. (rcarvalho@tba.com.br) - Escritor e Jornalista - Brasília-DF