Aprendi a viajar desde muito cedo. Aos nove anos, deixei Juazeiro e fui morar em Serrinha. A partir daí, fazia várias viagens por ano, entre Serrinha, Juazeiro e Salvador, onde vim estudar com onze anos. De trem, em boléia de caminhão, com amigos de meu pai. Sempre gostei de viajar, com muita ou nenhuma comodidade: até em carro de boi andei!
Mas, a primeira grande viagem de minha vida, de avião, aconteceu em 1954, para São Paulo. Inesperadamente!
Foi o seguinte: um belo dia Jessé chegou esbaforido à "república" onde morávamos, com outros três estudantes serrinhenses, na rua Carlos Gomes, e me perguntou se eu queria ir com ele a São Paulo participar do Congresso Nacional dos Asas Brancas, como se chamava o movimento da juventude integralista.
Duas passagens de avião doadas pelo governo da Bahia à representação dos jovens da Boa Terra não foram aceitas qualquer agência local e os companheiros de Jessé que seguiram por conta de outros mecenas deixaram com ele essas requisições.
Com jeito e algumas amizades, Jessé conseguiu que a Real Aerovias Brasil, empresa do governador paulista, Ademar de Barros, as aceitasse e, assim, ele estava procurando um amigo para viajar em sua companhia. Achou, logo depois de falar comigo, pois, embora eu não fosse integralista e até zombasse do movimento, era amigo dele e gostava de aventuras.
Peguei uma licença de alguns dias no emprego e parti para São Paulo.
Como o congresso já tivesse começado, não conseguimos hospedagem no estádio do Pacaembu, onde se alojaram as delegações.
Fomos parar numa modesta pensão na rua Sete de Abril, bem no centro de São Paulo e, ou porque estávamos longe do local do congresso, ou porque as convicções políticas de Jessé não fossem tão fortes, o fato é que lá não aparecemos.
Foi graças a essa circunstància que vivemos os casos que vou narrar.
O primeiro deles foi simplesmente incrível, e muita gente não vai acreditar na história.
Sem ter o que fazer na cidade grande, ficamos zanzando pelas ruas e avenidas do centro. Depois do almoço, cansados de tanto andar, sentamos num banco da praça da República e lá ficamos um tempão, olhando o movimento. Quarenta anos atrás, aquela praça não era o local de malandros, ambulantes e vendedores de artesanato, como hoje, uma barra pesada!
Naquele tempo, a praça da República era uma área nobre da cidade, um lugar especial para seus habitantes.
Dois sujeitos sentados num banco de praça, sem nada para fazer, olhando as pessoas que passavam era uma coisa suspeita. E não deu outra! Logo, logo, apareceu um investigador de polícia, com seu traje característico - chapéu com aba caída sobre os olhos, terno de linho, sapatos brancos - para nos interpelar.
- O que vocês estão fazendo aqui? perguntou ele.
- Não estamos fazendo nada, foi a resposta de Jessé. - Estamos olhando o movimento.
- Mas vocês estão aqui há muito tempo. Tou observando vocês desde cedo. Quem são vocês?
- Somos estudantes da Bahia e viemos para um congresso.
- Mostrem seus documentos, falou ele, com cara de poucos amigos.
- Documentos, que documentos?
- Qualquer um: carteira de identidade, de reservista, o que tiverem.
- Não temos nenhum documento. Na Bahia a gente não precisa. Não usa.
- Só podiam ser baianos! Muito bem, de que lugar da Bahia vocês são?
- De Serrinha.
- De Serrinha? Quem vocês conhecem lá?
- O juiz de direito, dr. Maciel. É meu pai, eu falei.
- Você é filho de dr. Zeca Maciel? Que coincidência! Eu também sou de Serrinha e quando vim para São Paulo trouxe uma carta de seu pai para um juiz daqui, que me arranjou este emprego na Polícia.
Dito o que, acompanhou-nos até a pensão onde estávamos hospedados para nos recomendar à proprietária.
As outras histórias são pífias diante dessa que acabei de contar, mas servem para revelar os tropeços dos marinheiros de primeira viagem e nosso deslumbramento na cidade grande.
Naquele dia em que esbarramos com o investigador de polícia serrinhense havíamos saído cedo da pensão de dona Margarida. Andamos sem rumo durante toda a manhã percorrendo o já então interminável centro comercial de São Paulo, subindo e descendo a avenida São João, a Libero Badaró, caminhando entre o vale do Anhangabaú e o viaduto do Chá, enfim, fazendo o que depois viria a descobrir ser a fórmula essencial dos viajantes que desejam conhecer as cidades que visitam e suas gentes - andar no meio do povo, usar seu transporte coletivo, frequentar os pontos populares, misturar-se à população que transita para ganhar o pão de cada dia!
A pujança de São Paulo, o formigueiro humano que enchia suas ruas e praças mas, principalmente, sua arquitetura moderna, os edifícios que avançavam sobre as nuvens, tudo isso me impressionou.
Ao lado de Jessé, muito contido, eu não parava de extasiar-me num deslumbramento crescente.
Quando chegamos em frente ao edifício Martinelli, Ã quela época o mais alto do país, não resisti: parado diante de sua fachada, interrompendo o fluxo de pessoas que iam e vinham, gritei para Jessé meu imoderado entusiasmo:
- Jessé, que beleza, olhe para cima, veja a altura deste prédio! Que maravilha!
Jessé, constrangido, envergonhado sob os olhares das pessoas que passavam, estava longe, pois sequer reduzira o passo para apreciar aquela imponente estrutura.
Foi quando me dei conta do ridículo de minha posição ali, sozinho, no meio da calçada em frente ao Martinelli, falando e gesticulando para ninguém!
Mas, nessa viagem, não foi somente eu que passei o vexame de submeter-me à censura pública. Jessé fez coisas piores!
Ainda em São Paulo, nessa mesma manhã, cruzamos com dois jovens japoneses na altura do Mappin, por volta do meio dia.
Jessé não se conteve. Eram os primeiros japoneses que ele via pessoalmente em sua vida.
Parou bem diante dos nisseis, apontou-lhes o dedo e, verdadeiramente espantado, gritou para mim, que a essa altura estava me distanciando da cena:
Paulo, veja, dois japoneses!!!
Foi um vexame, pois os jovens paulistas descendentes de japoneses não gostaram da brincadeira e foram tirar satisfações com ele, que teve alguma dificuldade em se explicar.
Dias depois, no Rio de Janeiro, para onde havíamos ido a fim de assistir à partida de futebol entre o Brasil e o Peru, pelas eliminatórias da Copa do Mundo, no Maracanã, Jessé fez coisa pior.
Quando voltávamos para casa, procurando um lotação, fomos andando até o "Alto da Boa Vista", um belíssimo jardim onde dezenas de casais namoravam.
Naquele tempo, o namoro aqui na Bahia, em lugares públicos, submetia-se a severas convenções.
No Rio de Janeiro a coisa era diferente, com grande permissividade. Na cidade grande, ninguém se importava com o que os outros faziam e nem se davam ao trabalho de olhar.
Mas, Jessé era um provinciano, como eu, ambos educados sob as regras da hipocrisia que predominava nas pequenas cidades do interior da Bahia.
Por causa disso, ficou verdadeiramente escandalizado com o que viu no parque.
Diante de um casal de jovens que passava dos limites, deitados na grama sugestiva, Jessé não se conteve e, apontando para a primeira transa ao ar livre que presenciava, dizia horrorizado:
- Paulo, olhe, estão f........!
É claro que eu já estava longe, muito mais envergonhado do papel dele do que do daqueles namorados de quem, na verdade, sentia inveja.
Aquela viagem foi realmente inesquecível, tanto para Jessé quanto para mim, que deixei minha terra pela primeira vez.
Para ele, contudo, foi ainda mais inesquecível, pois significou o fim de sua ligação com os integralistas.
Ao retornarmos à Bahia, depois de uma semana de boa vida em São Paulo e no Rio de Janeiro, ele foi expulso pela direção do Partido, execrado como um traidor do movimento que usou seus recursos para tirar proveito pessoal.
23.05.97