(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 20ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem um sequência...)
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NEGRITUDE
A história da América Latina é a estória do paraíso violado. Colombo descobriu a América para os europeus e jurou ter chegado à s índias. Mas podia estar apenas mentindo para os Reis Católicos, de Espanha, fazendo marketing.
A história dos indígenas é triste; a dos negros, igualmente. Brancos, negros e índios foram condenados ao paraíso e descobriram que estavam no inferno. Mas preferiram, como Colombo, acreditar na hipótese do paraíso. Así es se os parece.
Mas foi no Haiti que os negros primeiro criaram a sua própria república. Sua utopia maior, seu quilombo libertário.
Sem exagero, os maiores avanços de nossa civilização no século XVIII foram a Independência dos Estados Unidos da América (1776), a Queda da Bastilha (1789) e, em seguida, a Proclamação da República do Haiti (1804). A primeira decretou o início do fim do colonialismo e reconheceu a força da iniciativa privada como fator de desenvolvimento coletivo; a segunda derrubou o absolutismo dos monarcas e permitiu o advento à burguesia, nas auras do enciclopedismo. A saga haitiana foi tudo isso e muito mais: colocou o negro na condição de igual, de livre, de capaz de autodeterminar-se. Antes que o reconhecessem a própria democracia ianque e o igualitarismo francês, de cuja cultura o Haiti era apêndice.
Quem quiser os detalhes dessa extraordinária façanha que leia El siglo de las luces, do cubano Alejo Carpentier. Vai poder, então, desfrutar do auge do "real maravilhoso" de nossa literatura e constatar que a realidade supera a imaginação.
O Haiti converteu-se depois em um hospício. Não por culpa de seus idealizadores mas pela perversão ou adversidade de um desvio histórico. Ora, a França de Diderot e D Alembert também caiu no messianismo imperial de Napoleão.
O sonho haitiano continua sendo uma das páginas mais esplêndidas da aventura do homem sobre a terra. Mas a tirania, hoje, devora seres humanos e renega seus valores. Caderno de um
retorno à terra natal é um poema telúrico. Aimé Cesaire abriu as chagas de sua pátria para desvendar, nesses versos vegetais, suas entranhas apodrecidas. Teve que esgarçar o francês para expressar a sua dor, toda a sua negritude. Mas a poesia é sempre libertadora. Enquanto houver poesia, há esperança.
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Próxima crónica da série: ( 21 ) LEMBRANÇAS DO PASQUIM
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.
Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...
Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".
Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.