Num dia de domingo de sol percebi que eu diminuíra minha cota de participação no mundo. Alegara cansaço e deixara de aceitar um encontro com minha namorada. Se é que aquilo podia ser considerado namoro, uma vez que nossos encontros haviam rareado, escasseado desde que viajáramos para o Oriente e lá adquirido uma estranha doença que nos deixava cansados, lassos. Ela dizia ser malária, qual o quê, eu retorquia, malária sem febre? Ah, então deve ser doença do Sono, mas como, viajáramos para o Oriente, sim, mas passáramos pela África, mas que droga.Percebêramos que havia uma diferença, melhor deixar quieto, afinal melhor uma diferença mal discutida do que todas as certezas fora dos trilhos. Afinal, eu sempre pensei assim, talvez por isso meus relacionamentos fossem tão fugazes, eu tentava ser gentil e uma hora ou outra eu era grosso, estúpido e mulher alguma aceita ser menos estúpida que seu companheiro, hoje em dia. Daí, ela me ligou no mesmo dia e deixara um recado no celular, olhe, acho que devemos esperar um pouco, vamos conversar na segunda, qual o quê, nem dava mais retorno e elas graças a Deus deixavam as coisas evoluírem. Duro mesmo era cruzar com elas em carros nas ruas da vida com outras companhias, sorridentes como em nossos começos, pobres coitados, vai dar no que deu comigo, eu percebo as mensagens ocultas em nossos relacionamentos e no de todos, é uma receita infalível de fracasso, somos um pouco as sombras de nossos fracassos, seguindo a cada um deles com a maestria de seguros de si, indo a bares cheios e infestados de pestes como eu, enfim, na fumaça azul da solidão.
Um céu azul assim me faz pensar que nosso dia a dia devia ser repensado, afinal. Trabalhamos pensando muito mais no imediato e na boca que nos rói a alma, cheios de vicissitudes medonhas e vontades infantis de consumo e ostentação. Veja aquela criança ali, empinando uma pipa linda, colorida. Ela não pensa num carro de cor prata com Air Bag, ela sente o vento domar a pipa e vai ao encontro de seu sonho, eu é que não. Porra, hoje estou amargo. Deu para perceber? A pipa, eu falava dela. Eu percebo o que a pipa diz, evolua com o vento, voe com seus sonhos, mas não. Esquecemos o melhor de nossa infància em algum lugar do precipício que é tomar as escolhas da vida, daí escolhemos ser mesquinhos e some o empinador que ousou existir em nós. Num dia de domingo, depois da mensagem na caixa postal, um céu azul de cristal e pipas no ar etéreo e veloz, eu percebo que não passo de caga de pato. Desses que andam, quac quac quac de um lado a outro do parque, e investem contra os que se aproximam, não passo de um pedacinho de carne mal-lavada e pouco pensante. O rosto do menino traz a imagem do sonho, meu rosto são dois olhos cravados em sua pipa, de inveja e falta de sonho.
Ela nem me ligou! Deixou uma mensagem no celular. "Olha, precisamos ver, acho que o desgaste..." blá blá blá. Minhas pernas moles de tanto andar (andei horas a fio neste domingo, estou de pé faz tempo, faz horas, faz dias que estou sem sono, faz anos que não me enxergo, talvez então devesse sumir, ser uma pipa, me afastar ao sabor dos ventos de Setembro, deveria ousar me deixar partir e sumir nas linhas do horizonte que se delineia em poucas ondas ozonizadas e cheias das vibrações da civilização ocidental).
Num dia de domingo, azul de cristal, azul de sol de cemitério, cristal de sol baço de setembro, eu percebi que não fazia falta e aquele menino nem se importaria se eu sumisse, nem ele nem ninguém. Num dia assim eu me digo, será? Caramba, hoje eu estou amargo, eu estou meio desanimado, eu normalmente não tenho tantas idéias assim. E se eu fosse doente? E se eu fosse esquiar nos Alpes e ao olhar para trás, bruuummmm, uma avalanche? E se eu tomasse um lanche no Himalaia e vuuuummm, me cortasse a bruma? E se eu pilotando um trem me espatifasse? Não; preciso pensar, deve haver saída, deve haver menos espera, ela me disse que eu fora severo, mas ela meio fera me deixara as marcas na alma. Porra: doeu e como. Nem ao menos me ligara!(nem eu). Pudera. Quem aguenta?
Num dia de domingo, eu aqui, num parque cheio de árvores centenárias, eu aqui num parque de sonhos, eu palhaço, tristonho, vejo o rosto do menino que sorri com a pipa colorida, com a simplicidade da infància que eu perdi, com a mão lisa que já não tenho, com a vivacidade que é peculiar da primavera, eu percebo que lá se foram minhas corolas. Sinto que espinhos sobraram, e eu nem faria falta ao menino, Ã pipa, ao parque e ao sonho da menina esperta que se fora. Talvez fizesse, talvez houvesse uma saída, uma dessas que a gente não esquece, uma dessas que se entra de cabeça;Uma dessas. Talvez houvesse. Modernidade, esse mal que nos cabe, modernidade desconfortável, os diálogos se resumem a poucas palavras, todos somos exíguos, como nossos espaços. Nossos poucos espaços refletem nossos tempos escassos. Escasseiam segundos, sobram constatações estranhas. O relógio vai mais devagar no avião?Quero descer, quero a velocidade da pipa do menino, quero seu nariz empinado.
Mas não, num domingo de sol, num segundo, eu penso e olho e sorrio: Nada mais me resta afinal, que abrir as asas e partir dali, ouvindo o farfalhar das folhas, meus pés pisando as secas e a grama recém-cortada na véspera, as narinas sorvendo o cheiro de bosta de cavalo e de mato úmido. O riso do menino ecoa na distància, é minha infància pedindo passagem, volto-me e ele já não brinca, me olha de longe e se apruma, cores confusas se misturam na manhã de um domingo qualquer, de uma cidade qualquer de meu passado, e eu penso e constato, lá se vão as horas, lá se vão os sonhos, lá se vai a alegria de uma lembrança, ela era linda, tinha umas coxas, um belo par de olhos lindos e uma voz rouca que me eriçava a nuca, o bonde da história se fora mais uma vez.