Quem disse que ele não voltava? Estava cansado, seus pés doíam, ele arrastava as pernas, mas voltou e sentou-se, aclamado pela multidão que o viu chegar, pesado, ao balcão do bar de sempre.
--Ei! Quem é vivo sempre aparece!
--Nossa, mas não é que o homem está mais vestido hoje? Da última vez...
...Da última vez ele estivera estirado em uma calçada e foi assim que o acharam, em hipoglicemia total, de tanto que não comia, há tantos dias e horas que ele não se lembrava de quando fora a vez que se apresentara a um prato de comida. Seus olhos inchados só viam a luz baça do céu de São Paulo, este céu de vinagre e sal que bate em nossos olhos e é claro, sempre teimavam em bater nos seus.
--Pois é. Voltei para vocês. Vocês rezaram, vocês pediram, "oi nóis aqui traveiz".
--Sente-se bem?
--Melhor...
--Como foi?
Um turbilhão de sentimentos se apossou dele. Ele mal se lembrava, apenas a sensação da dura calçada, das forças se esvaindo, da terrível impotência e da secura nos lábios, a voz que teimava em não sair e ele conformado, já se esquecendo de que um dia fora uma pessoa e que agora se assemelhava aos minerais,afinal ia ser parte das pedras e do calçamento, teve até uma alucinação em que seus braços abarcavam a calçada e sua mãe, coitada, o chamava de longe...Lágrimas nos olhos, ele fixou os olhos num quadro que nunca notara, um de um barco, um óleo sobre tela que ficava acima do exaustor onde mãos prestimosas preparavam sanduíches há tanto tempo que ele não se recordava mais...O barco parecia oscilar na maré azul da tinta barata, mas transmitia movimento e leveza e ele era assim leve como o barco, ao sabor das ondas e aí veio a sede e ele resistiu...
--Não posso.
--O quê?
--Não posso mais.
Um assombro percorria os olhares de tantos homens, alguns pendurados no balcão, outros nas mesas escuras com veludo verde, vários em jogatina pausavam o carteado, mais alguns olhavam o infinito e entendiam a mensagem que se aplicava a eles, todos eles, naquele bar do fim do mundo, ao fim de um dia obtuso, apenas porto de parada de tantas almas tristes, cansadas com a rotina e que ali pousavam para respirar o hálito do maior de todos os bandidos...
--...Álcool. Não posso. Não mais. Nunca mais, gente!
O garçom, que já preparara a dose habitual da bebida que misturava gin, tónica, gelo, vodca e limão, estendera o copo e o brilho das gotas de umidade chamavam a atenção da platéia que olhava estupefata o copo, o recém-chegado e a fumaça que se desprendia das bocas dos fumantes próximos. Uma névoa encobria a visão, mas a mão de nosso personagem não se estendia, congelada no instante preciso em que deveria ter partido e, muda, não expressava nenhuma vivacidade, apenas os dedos nodosos batiam impacientes na quina do balcão e mais nada. O ruído enchia o ar, a tal ponto que o jogo de bilhar cessou, os tacos foram levantados e mais nenhuma voz se ergueu no momento mágico. O copo, o garçom, os olhos, as mãos do ilustre sobrevivente, o tamborilar da torneira, o tostar do queijo na chapa, em segundos intermináveis. Ninguém acreditava e do jeito que ia, era sério, era mesmo sério.
--Vocês rezaram, vocês pediram, eu vim só dizer que aprendi. Sei o que vocês procuram, mas eu não acho mais nada aqui, nada que possa servir para mim. Eu espero que vocês entendam.
Levantou-se. Ainda trópego, olhou o copo de bebida luminosa, olhou os olhos do pobre garçom, olhou as poucas mulheres que fumavam nervosas com o peso do clima tenso, olhou a porta do banheiro e sua inscrição verde, olhou o barco que hesitava acima das ondas, pegou seu sobretudo (ele tinha um!) e caminhou para a porta resoluto. Saiu em silêncio, seus passos foram seguidos por vários pares de olhos, o menino que pedia esmola sorriu, o moço do jornal espichou o pescoço, ele atravessou a rua e sumiu.
Quem ainda o quer achar tem de procurar muito, mas muito mesmo.