Nada se movia, só o silêncio das folhas caindo, só o rumor das passadas longínquas, só os tinidos do martelo d´água e do moinho a moer milho lentamente na casa de pedra. Eu me recordo vivamente dos olhos da morena que cuidava para que nunca faltasse água na mistura que entrava na moenda, de onde saía a pasta amarela e viscosa que ia dar forma à s pamonhas, curaus e outras delícias que vinham do milho cheio de dentes brilhantes e amarelos, grãos quase arrebentando de seiva doce e sumo que escorria nos lábios, resfriado pelo gelo que se punha em meio à s espigas recém-colhidas para que ao serem moídas, sobrasse a fria sensação do tato e a dor da raiz exposta na hora do almoço. A morena já me olhava de olhos compridos, devia ter uns dezesseis anos mas tinha corpo de moça, era cobiçada pelos seus pares mas só tinha olhos para mim, eu, que mal passava dos doze, magro de dar dó, o que será que a bela morena via em mim? Volta e meia ela vinha me oferecer suco de milho e eu, para não fazer desfeita nem feio, aceitava de bom grado, mas sobravam dores e cólicas ao final do exagero e ela dava risada com dentes alvos e brilhantes que me lembravam os grãos de milho, brilhantes, encorpados e encimados por gengivas perfeitas e escuras, carnudos lábios que se afeiçoavam cada vez mais aos meus, eu não sei quando começou, mas me lembro que foi em uma tarde de chuva, o ruído da moenda se confundindo com as águas revoltas do riacho, a moenda batendo e socando os grãos e ela alimentando a moenda em infinito trabalho artesanal, ela espremia o sumo e eu em ardente ofensiva espremia suas pernas lindas, ela mal se continha e os ruídos se juntaram aos ruídos frouxos do milho esquecido na moenda, os grãos secos de tantas marteladas e eu entre suas coxas loucas, já nem me lembrava mais do que era eu, do que era moenda, milho, grãos ou os olhos dela que se avizinhavam dos meus, em seus sonhos ou em minha vertigem eu enevoado a via em vós em nuvens de amarelo-dourado, o sabor do suco e escorrer em vãs pernas bambas, eu em sumos e ela num movimento de bater como o martelo d´água enquanto nada se movia no alarido do tórrido meio-dia, ninguém por testemunha e eu em meus treze, ela dezessete, continuando a lida em sua casa, crescendo em desejos, já me olhava de outro jeito, tinha outros interesses, um dia a surpreendi com olhos perdidos e eu a acariciei enquanto ela descascava uma espiga peluda, ela nada, apaixonada? Sim mas... Não... E foi então que percebi que fora menos que a espiga que ela moia junto com a água na moenda, foi quando percebi que seu olho boiava pelo outro que chegara, eu dezoito, ela vinte e três, agora mulher em riste, cheia de vontades, à s vezes me brindando com olhares frouxos, à s vezes me sugando com olhos de lontra, outras com desprezo visceral, eu a usava e ela me descascava qual espiga mal-dormida, eu vestia minha melhor roupa e foi quando ouvi seu não, minha cabeça desceu das nuvens, que de douradas se coloriam de cinza, já não era ela que moia o milho na moenda, era outra, estranha, que habitava seu corpo sem sal nem açúcar agora, apenas uma miserável moça de lábios murchos, olhos tristes, era ela que me desprezara tanto, não tive remédio senão mandar fechar o moinho, ela trinta e sete, eu trinta e dois, ela nada de mais, a dor estampada nos vincos das mãos sangradas de anos de labuta, então eu e ela nos amamos, então pude ver que ela era mais do que pudera ser estes anos todos, agora sua filha brotara do chão do milharal, Celeste era seu nome, sua filha que me chamava e ela finalmente, secamente, sutilmente, nos abandonara e deixara apenas a percepção do surdo martelar da vida oca que levara uma vida inteira para levar.