O Natal, no momento em que escrevo, está a minutos de esfumar-se e ainda bem. Se todos os dias fossem de Natal, factualmente, o caos permanente sobre a humanidade não tardaria a desabar. A inteligência maestra do espírito sobre a irracionalidade, que sem equívoco se tornou racional, esgotou-se em definitivo. O que resta é na prática, tão-só, uma engrenagem predadora que causa náusea analisar em seu efeito sub reptício, algo assaz incompatível com o pensamento hodierno à flor do exercício existencial.
Há quanto tempo vê você, estimado Leitor, milhares de portugueses marginalizados arrastando-se pela valeta social do nosso colectivo quotidiano? Desde que nasceu? Há quanto tempo ouve você o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Cardeal Patriarca, pelas benquistas épocas de Natal e de Ano Novo, debitarem a mesmíssima lengalenga natalícia? Desde que nasceu?
Ao memorizar a sucessão das ilustres mentes que se me depararam ao longo de 67 anos sob a mesma exacta letra, raciocino sobre o ponto em que deveras estamos e concluo que dentro de um ano ou dois verei e ouvirei, se não morrer antes, uma televisiva senhoreca anunciar num dos próximos Natais: " - Alugue um pobrezinho para fazer parte da sua consoada e assim demonstrar que a caradidade ainda não acabou. Ligue 699669969 - 60 cts + IVA - e será imediatamente atendido".
Conforme sem dificuldade alguma se visiona, até os sinceros e palpáveis ímpetos de benfazer vão na levada que o babélico sorvedouro arrasta: cada vez há mais arautos (mais do que as mães!) a pretenderem salvar ficticiamente outrem para se locupletarem e, sim e de facto, a si próprios garantirem reservada salvação, presumindo que ninguém lhes vê nem deslinda a fita. Oh, como impante vai a procissão dos anjos que matêm incólume o suplício de tàntulo. Por exemplo, a Igreja, para exclusivamente se manter, quer mantê-lo inexpugnável.
É evidente que este desabafo não carece de desmentido porque é indesmentível. Este desabafo precisa apenas de ser sistematicamente ignorado, como tantos outros do mesmo teor, até que um dia rebente e enfim se revele tal e qual é: inabalável. Entretanto, suavemente vandalizando os mais lídimos valores humanos, em nome deles, o programa continua graciosamente imparável para gáudio dos símios intocáveis.