O anúncio foi muito claro: dentro de três dias o anjo da morte virá visita-lo, esteja preparado.
Sentiu um calafrio. Fez um balanço da sua vida. Muitas contas a acertar, inclusive com certos inimigos. No balanço sentimental, ficou pensando na esposa, companheira de tantos anos, nos altos e baixos do seu itinerário, conquistas e fracassos. No entanto, sopesando bem as coisas, sentiu-se de certo modo confortável dentro daquela conjuntura: as conquistas foram em número bem maior que as derrotas.
Pensou nos amigos, nos comentários que iriam fazer diante da sua urna funerária: um bom amigo! Um excelente companheiro! Um homem tolerante!
Será que algum deles derramaria uma lágrima?
E o cachorro, justificaria tantas estórias de cães que entristecem com a falta do dono?
Pelo lado familiar, tudo bem. A filha mais nova já estava casada, o marido bem situado na vida, ela própria dona de uma pequena empresa com lucros crescentes a cada ano.
Mas, a morte em si mesma era a grande incógnita.
Como seria o outro lado, como estariam as suas contas espirituais com o Senhor: em vermelho?
Foi ao confessionário. Do outro lado, com a voz grave, o padre deu a absolvição e a penitência, mas não póde sentir-se tão leve quanto gostaria.
As dúvidas do perdão pleno, como làminas afiadas, perturbavam a sua consciência.
Resolveu não dizer nada a ninguém. Guardou o grande segredo para si mesmo, ainda que, ao lado da mulher, segurando firmemente sua mão, sentia uma enorme vontade de desabafar, contar tudo, despedir-se definitivamente.
Na noite do derradeiro dia, por in crível que pareça, não portava aquela intranquilidade de quem, no corredor da morte, apenas aguarda a hora do desenlace.
Deitou-se, rezou como de ordinário fazia e ferrou num sono profundo e reparador.
Abriu os olhos e, pasmem, estava no paraíso. Anjos desfilavam ao seu redor, silenciosos e solenes, rezando.
Santos conhecidos, em bandos, cantavam hinos de louvor a Deus.
O ambiente era claro, bonito, repleto de uma paz desconhecida na terra.
Sentiu-se bem, feliz, mas solitário. Não conseguia distinguir nenum rosto amigo, conhecido.
Mas, sem saber quanto tempo havia se passado, percebeu que um anjo veio ao seu encontro, pegou suavemente na sua mão e disse: ande, filho, vamos encontrar a Divina Presença. Uma emoção maravilhosa tomou conta de todo o seu ser.
Ouviu um ruído estranho. A làmpada do quarto, que deixara acesa durante toda a noite, explodiu. Acordou estremunhado e, até hoje, permanece neste inquietante mundo dos vivos.