"Moça bonita aquela. Cheia de vida, de saúde, gritava qual ave canora, enchia o ar de notas cristalinas e suaves, seus pulmões de enorme força preenchiam nossas almas com suas notas de contrastante riqueza, tal era nosso encanto. Sorriso de fera enjaulada, sorriso de bela enamorada, de vida inteira e plena, sorrindo para nós sua vida toda, inteira, desmedida e desmesurada. Qual caixa de Pandora abria o peito e nós, surpresos, corríamos a pegar milhares de luminosos vaga-lumes, abríamos as mãos e ela dadivosa, nos dava sua parte no paraíso, ela nos dava sua taça de amor fremente, sua essência ardente entre nossas palmas quentes, ela se dava sem medo a toda gente, com olhos de semente raivosa, de forte fruto e linda flor diamantina. Ela se dava, sabíamos do risco, mas cantava e cantava e com cada vez mais ardor, qual cigarra em pelo na floresta ou um incêndio descabido de paixão sófrega, seu suor se misturava na testa e nós todos na festa de todos os sentidos da paixão, ela se dava e sabia dos riscos que corria ao verter seu sangue assim para a multidão desalmada e ávida de dor e prazer, mas lá estava ela com sua eletrizante presença e ilustre voz que nos fazia chorar e rir, lá estava ela, com suavidade desenhando o perfil nas noites esfumaçadas de setembro, nas chuvas de março ou no calor seco de dezembro.
Moça bonita aquela, quem a viu sabe do que eu falo, sabe de sua dominància e força, quem a viu sabe que seu suor era seu sangue, era seu medo transmutado de pavor e dor a prazer sublime, que jorra como cristalina corrente de força através de nossos cérebros iluminados pela vontade nublada de tanta vontade de ouvir tal prodígio. Moça bonita aquela, quem sabe ela não olharia para mim num segundo de distração e saberia o quanto eu a amava, mas não, eu sou apenas um átimo num segundo microcristalino de sua vida linda, rica, etérea e atemporal, sou nada mais que um fã de sua garganta fosforescente e de seus dentes em carreira de diamantes e pérolas, qual o quê, sou uma pessoa a mais enquanto ela, que moça bonita que era.
Quem a viu sob o holofote azul, balançando lentamente suas suaves curvas com os lábios tristes a cantar a última canção não a esquece jamais."
--Pronto?
--Pronto. Está bom?
--Olhe, sinceramente...
--Então, vamos, pode criticar, pode mudar; aqui tudo pode.
--Está bem. Então, aqui, por exemplo:
"Moça bonita aquela, uma megera de danada, moça de raros dentes perfeitos como diamantes brancos cristalinos, dentes de uma clareza de pérolas, quem a viu sente até hoje o hálito e o frescor, a cor de sua dadivosa alma..."
--Bom! Que tal então...
"Moça bonita aquela. Meio chegada a uma poeira de estrelas, meio dispersa, transparente qual véu noturno em asas translúcidas de crisálida plena transformada em luz de sonhos..."
--Moça transparente sem ser magra, doente sem ser luz, poente de estrelas eternas...
--Moça das favelas dormentes, dos segredos de toda gente, ela que sabia mais que devia, sem deixar rastros repousa nua em caldas de véus de preciosas fontes...
--Meio que demente a moça num pó de farta emoção, moça de puro destino, quem a conhece sabe que jamais foi aquela e sim outra. Sim, ela jamais foi ela.
(Quem a viu sob o holofote azul, balançando lentamente suas suaves curvas com os lábios tristes a cantar a última canção não a esquece jamais).