Nas frestas da janela eu vejo pedaços do mundo, como se fossem retalhos de luz, pontos que se unem e formam uma maior imagem. Minha solidão se acentua sem fineza, crua e estéril como a estepe dos lobos num mês seco e ardente que faz minhas narinas sangrarem. Não que só sangrem minhas narinas, são todos que sangram, Ã sua maneira, ao seu jeito. Todos aqui de certa forma deitam sangue, só que alguns de forma mais declarada. Isto me lembra certas tardes de abril quando eu estudava deleitado as fontes da vida no universo, os segredos dentro do núcleo das células e olhava o horizonte e via como agora, pontos de luz que juntos formavam uma maior imagem, a imagem de todo o conhecimento, só que como criança que eu era, podia sorver todo este torvelinho, todo este alvoroço de idéias porque a morte era uma vizinha muitíssimo longínqua.
Bem diferente de agora, quando eu penso nas frações de luz e agradeço ao acordar todo o dia por mais um dia em que eu estive aqui. Olho as frestas e vejo miríades de camadas de pó, luminoso pó que se concentra em cantos das venezianas, com o sol a iluminar a refringência de uma gota de orvalho, milagrosa, que se condensou na velha planta que medra, tímida, no peitoril da janela que nunca foi sequer regada. Sobrevive como eu, das migalhas cósmicas, de um céu que se cobre de nuvens secas, sobrevive como eu num céu de abril medonho, retumbante de sons que se misturam e pouco a pouco vão num crescendo alarido, assomando à superfície das águas das poças que se acumularam da última chuva que caiu, se não me engano, bem á noitinha. A feliz plantinha sorve seu quinhão e absorve o que pode de luz, numa efêmera existência. Qual fosse a minha, que de efêmera não tem nada. Um contínuo de espaço-tempo que se molda em dias, semanas, meses...Anos.
O alarido se aproxima, posso ver com meus olhos, as sombras se movem distantes e se aproximam. Lá está a planta, heróica, o casulo já abandonado pela borboleta que testemunhei a mais bela, lá está o sol que queima com afinco o cimento que cresta nas paredes, soltando estalidos e pequenos gemidos que eu decorei, são as minhas Eras, eu as conto no tamanho dos estalidos e na duração e musicalidade dos mesmos. Eu sei que vai chover porque os estalidos adquirem uma sonoridade opaca, abafada, úmida até; eu sei que o dia será quente e seco( como o são a maioria hoje) pelos pequenos gritos que a madeira da janela dá, ao ressecar longamente, exposta aos assassinos raios do sol ardente. Sei que fará frio pelo gemido da calha que range ao contrair-se no inverno: Posso até achar a temperatura que vai fazer e geralmente acerto. Que o digam meus companheiros, que vivem comigo agora, nesta comunhão forçada, nesta coleção de fantasmas vivos dos quais eu ainda sou o menos quixotesco deles. Somos como um grupo, todos juntos, esperando inermes a ação que vem das sombras. Esperamos imóveis, olhamos as janelas e seus reflexos, os brilhos e suas rosas, as plantas e seus estranhos espinhos, como num fabuloso conto de fadas. Porque eis, eis que chegam, são as fadas e seus perfumes. Aliás, nem só de perfumes vivemos em grupo.
--Caramba. Alguém aqui fez coisa errada!
--Mamma mia, ainda bem que não comeu feijão.
--Deus me livre!
--Às vezes, sinceramente, acho que Deus não tem nada a ver com isso.
--Francamente, acho que você precisaria ler algumas coisas das que eu leio.
--O quê, por exemplo?
--O por quê de estarmos aqui. Você acha que eles aqui, todos, não gostariam de estar em suas casas? Não, estão aqui. Imóveis, insossos, fedidos, fudidos. E nós? O que nos separa deles?
São nossas fadas, com mãos de pelica, com frases espirituosas, algumas mais fortes, outras mais velhas. É dessas últimas que tenho mais medo, são as que perderam de tudo um pouco e nos manipulam qual bonecos de mola, não se importam, nem nos vêem, apenas executam um plano e fim.
Mas é quando ela chega que o ambiente se ilumina. Ela traz luz ao ar e um indefectível perfume de alfazema que brota de seus cabelos. Só tenho olhos para ela, enquanto ela permanece em meu campo de visão. O mais é turvo, sem sentido, nem à janela pende a planta, seca que está diante da mais linda das visões que eu tenho e olhem, ela só vem mexer comigo cada oito dias.
--Vamos trabalhar mais um pouco? Isso solte a perna, levante...Assim! Viva. Assim mesmo!
Ela que me faz mover, apenas a sinto fazer e viajo nas nuvens do sonho, viajo nas corcovas de meu destino enquanto que ela me estimula e faz saltar as colinas do Abismo que ainda não me tragou, mas que sei, cada dia, cada dia que passa, está mais perto. Eu sei que vai acontecer algo aonde me encontro porque me acostumei a sentir a fria vibração de uma presença que me faz arrepiar a pele e passa por mim, como se me fitando e nada tem a ver com minha musa, a rainha de meus dias e colhe um aqui, outro lá. Sei pelo silêncio com que chega, sinto sua opressa presença como um bafo de cavernas recém-descobertas; Mas enquanto ela está comigo, me sinto protegido, fluido minha energia pelas mãos daquela que me salva todos os dias que me move.
--Nossa, como hoje ele está forte! Isso. Assim mesmo!
Quando noto a mais leve fadiga nos tons de voz, sei que brigou com o namorado. Inútil, quero consolá-la. Não posso, eu sei, impossível, mas mais de uma vez ví uma lágrima brotar de sues lindos olhos. Quanta raiva não passei, a me torturar pela impassibilidade com que eu aceito o meu destino perante o meu anjo! Não poderia ser assim, poderia por acaso ser diferente? Eu consolando minha musa, ela se aninhando em meus ombros...Quieta, quente, cálida... Mas ela finaliza seu trabalho comigo e salta mais além, além de meu campo de visão que volta a ser a janela que estala solta, vem aí uma tempestade; posso notar os torvelinhos do vento que ajunta suas forças para açoitar a madeira mais uma vez naquela noite como em outras, porém a promessa que eu tenho dos ruídos é algo bem maior, uma grande tempestade, pois ouço ao longe as portas rangendo e os assovios no escuro. Mas em meio a estes ruídos, um hiato de silêncio se faz ouvir e eu suspendo minha respiração: A opressa presença está ali, ao meu lado. Sinto como se fosse um punhal gelado em minha barriga, um punhal gelado de peso e consistência definida, uma cimitarra de fio talhado nas peles de tantos homens, eu estou quieto, na esperança que pare de olhar para mim a opressa figura. O Hálito Medonho. A Presença Disforme. Eu assim a chamo, defendendo-me com as palavras que acho, como se isso me deixasse a salvo. Imagino magicamente que ela se cansará de mim, ela se fartará de ouvir o que penso e saltará sobre outras veias, outros tantos que ali jazem. Serviu até agora, pois noto, com alívio, que o peso se desfaz e se condensa em sombra, uma gorda sombra que se adensa numa canção de meu lado esquerdo.
--Imagina, imagina, a gente se perder...
É a moça da limpeza, gorda, suarenta e ave canora. Ela cantarola perto de meus ouvidos, pois sabe de meus olhos que a tudo vêem. Ela acompanha meus olhos à janela. No fundo, mesmo, com sua musicalidade, é a única que me ouve.
--Ah, pobre plantinha! Está muito seca e magra. Vou colocar água nela! Não é, Moço Bonito?
Só lhe posso agradecer, só lhe tenho ouvidos e ela canta...
--Canta, canta uma esperança, canta, canta mais um dia, canta mais...
--Ela canta bem não canta?
Arrepia-se minha nuca. A voz é cava, rouca, impessoal. Lembra as muitas vozes do Nada. Não respondo, encolho-me à insignificància enquanto a voz da cantora se afasta. Sou eu mesmo agora, lembro-me de minha vida de outrora, meus dias de liberdade, de solidão, uma fogueira perdida num dia de inverno em Campos de Jordão, o frio congelando as gotas d´água que escorriam dos parapeitos das casas de pedra no alto da Serra, o Dedo de Deus apontando à s estrelas, minha mãe chorando ao me ver deitado ali, alguém que se fora num suspiro triste ao meu lado, o cheiro de alfazema...Não, não pode ser meu anjo que vejo ali deitada. Não pode ser, eu me troco por ela! Eu troco minha miserável existência, todos os meus glóbulos por uma mínima fração de existência ao seu lado, ela nunca estará ali, imagina! Sonolento, adormeci de novo sem pensar, sem querer ou sem poder...Mas lá está o relógio luminoso a bater as inefáveis horas que me carregam em seu bojo...E o silêncio toma conta das horas tal qual uma praga se espalha silenciosamente sobre um jardim cheio de flores, esganando suas raízes lentamente, esvaindo suas seivas sub-repticiamente...O silêncio toma conta dos corpos na madrugada de meus sonhos, eu não sonho, minha vida é um sonho, eu flutuo num limbo e meus ouvidos custam a acreditar que o último som que vou ouvir, provavelmente, será este da tempestade que enfim desaba solta, num tilintar de vidros envelhecidos em janelas de batentes tortos, sempre a rumorejar como as grossas gotas que caem das pesadas nuvens que habitam os céus da cidade de meus dias tristonhos...
--Imagina, imagina, a gente se perder...
É definitivamente minha bela musa, que me convida à dança, seus olhos brilhantes e seus cabelos vermelhos e soltos no ar e seus braços longos e torneados me puxam, numa dança ao vento da tempestade...
--Assim, assim! ...A gente se perder...
E voamos nos telhados de minha sina, e somos dois um só e dois em um, numa uníssona companhia, a cavalgar as nuvens plenas de cristais de gelo e raios congelados de luar, imagina, eu e ela, minha musa, numa louca tempestade, a girar num círculo de luz e fogo e som segredo...
--...Muito forte!Isso! Assim! Assim mesmo!
--Você gosta dela, não?
--Inegávelmente.
--Se eu lhe disser que um dia a encontrará, acredita em mim?
--Sim.
--Sem medo?
--Sem medo algum.
O relógio como que parou no tempo, pois o raio iluminou o teto. Naquele quarto, a Presença Indizível já fizera sua colheita.
--Bom dia.
--Bom dia.
--Chegou cedo hoje?
--Sempre chego a essa hora.
--Soube...?
--Sim. Foi nessa noite?
--Foi.
--É. Que coisa. Tão bonito, tão inteligente...Notava seus olhos?
--Claro!
A moça da limpeza, contristada, levou a planta murcha para o lixo.