Em uma manhã chuvosa assim, que nos lembra os ventosos inícios de nossa história é que penso, puxa, como vim parar aqui? De onde venho afinal? Será esse clima frio, de planalto, que muda de humor como uma mulher em tempos difíceis que nos faz ficar assim, introspectivos? Eu me pergunto se quando eu nasci São Paulo já era assim, tão desmesuradamente cinzenta, em seus cantos mais longínquos e em seus edifícios mais pobres, essa enorme massa de concreto sem história ou com a história que se faz no dia a dia de milhões de pessoas se deslocando de uma extremidade a outra deste planeta de asfalto e feiúra.
Alguém discorda de que São Paulo é feia?
Meus sentimentos são ambíguos, como os de toda gente que aqui vive, prospera, ama, morre ou se dilacera. Como explicar os êxodos maciços nos feriados, milhares de carros amontoados nas vias e estradas a caminho de lugar algum, mas longe de São Paulo, esta cidade enorme, pardacenta e cheia de pichações nos muros das casas ou construções abandonadas ou à venda?
É nas manhãs úmidas e silenciosas que temos a real noção de quão vasta é nossa solidão, amesquinhada pelas janelas que tiram nossa visão que poderia ser dos campos, nossa vista que poderia ser mais rica e verdejante, mas não. Temos sempre o limite à frente, temos o freio de nossa pequenez de alma, temos o grilhão que nos prende ao possível, custa-nos muito sonhar!
É nestas manhãs que me lembro de meus primeiros dias num bairro triste, numa rua perdida do Tatuapé, perto de uma igreja que me traz lampejos de sua cúpula. Vem à minha mente o lento caminhar dos pobres famintos da Avenida Celso Garcia que faz esquina com a rua de nossa primeira casa. A fila dos famintos dobrava à s vezes essa esquina, pois a sopa que ali se fazia era saborosa, quente e bem feita. Os gemidos dos desvalidos ressoavam nas paredes da igreja que ainda está lá, suas antigas paredes com os indefectíveis hieróglifos. Perto havia um parque onde nas manhãs luminosas do verão minha mãe me levava a caminhar, o Parque do Piqueri.
Nessas úmidas manhãs de quase inverno é que nos lembramos de nossas vicissitudes, de nossos desejos esquecidos, de nossa origem quase sempre humilde, de nossa verdadeira humanidade. São Paulo é desumana em seu não-sentir, em seu potencial de fazer-nos esquecer nossa própria história pessoal em nome do "progresso" e do "não poder parar", de "nunca dormir". É uma imensa cidade-dormitório, é um calabouço de luzes de mercúrio, um rio de prata nas tardes congestionadas, o pesadelo das chuvas ácidas e das nuvens carregadas de ameaças de Outubro. Alguém discorda de que São Paulo carrega em si mesma a sina de sua própria origem ou o segredo de sua própria desconstrução?
As lembranças de outros tempos só confirmam que não é meu humor introspectivo, não é o nimbo eterno que desbota nossas almas, não é a individualidade desrespeitada que faz desta cidade uma eterna fuga do plausível: Ela sempre foi assim, ela cresce como um polvo desordenado, uma multiplicação de tons de cinza e chumbo que torna nossos rostos lívidos, mais ainda no Inverno, quando o negro substitui as cores nos vestidos das lindas moças e todos correm transidos de friagem para dentro do que chamam: Casa.
Lá, no interior de nossos casulos, podemos voltar em parte à s nossas origens e cultivar nossa crença, nossos mitos e nossas mais íntimas fantasias. É nas casas dos paulistanos que está a alma que se perdeu nas ruas sujas do centro da cidade, povoadas de garotos tontos de esmalte ou de apressados cavalheiros a caminho de trabalhos quase sempre obscuros. É nas casas que se salva nossa essência, onde podemos nos defender da escuridão que toma de assalto a vias públicas com seu vento que corta nossos pescoços, onde o filho reencontra o pai e o possível se torna menos abstrato.
Criemos então uma imagem de São Paulo, esta vilã imensa e desalmada, refazendo a cidade à s avessas, deitados e olhando para os tetos de nossos quartos, repovoando as imensas áreas de concreto com a vida que pulula dentro de nossas vidas.
Não deixemos que a aridez tome conta de nossos campos de sonhos.