Eu sentia que meu mundo sumira, como que sugado sob meus pés. Faltou-me o chão, no momento que eu mais precisava e não era sem tempo, muitas vezes eu tentara em vão me desvencilhar mas sempre encontrava um subterfúgio, uma saída.
--Na próxima.
Tudo o que fizera até então deixava apenas uma pálida sombra, como se se agigantasse o momento atual para que o meu passado esmaecesse feito uma folha estiolando na escuridão. Num quarto escuro, uma làmpada acesa ao fundo, da janela do vizinho, era o que me iluminava além do cigarro eternamente aceso e a fumaça que enchia meu quarto de miasmas de fumo barato.
--Eu paro.
Minha mulher? Sumiu no mundo. Não quis nem conversar. Meus filhos? Independentes, crescidos e mal-agradecidos. Nem uma palavra, nenhum telefonema. Nem se dignaram a me visitar no auge de meu desespero. Nestas horas que a gente vê o quanto é querido, até os amigos desaparecem. Pelo menos os que se dizem amigos.
--Até mais!
E Deus, onde foi parar nesta hora? É assim que ele me trata? Assim que ele me deixa, sem amparo, sem guarida? Minha vida virou um inferno, tudo de pernas para o ar, de repente eu deixo tudo para trás, tento esquecer e dar a volta por cima. Mas não. Deus é uma figura metafórica, é uma palavra escrita em livros compilados há séculos, Deus está morto e o céu está deserto, afinal, Darwin, Marx, Lênin, Nietzche e Gagárin não provaram? Tento controlar minha mágoa, minha raiva final. Ninguém tem culpa, eu sei. Muito menos eu!
--Na semana!
A luz do quarto em frente se apaga, com ela se vai o fio de esperança que ainda resta, eu olho o horizonte ressequido, cheio de nuvens de gás ácido amarelado, as folhas das árvores secas e doentes. Ninguém tem culpa, eu sei. Nem eu!
--Amanhã!
Olho o pequeno frasco de líquido leitoso, que brilha ao reflexo de um poste com a última làmpada de mercúrio que sobrou por estas bandas. Lá está a alma, minha alma, dentro de um frasco leitoso, de vidro fino e fácil de quebrar, meu néctar de frutas sem casca, meu paraíso de virgens sem cor. O cigarro já me queima a ponta dos dedos sujos de nicotina. Eu preciso dormir, preciso viver, preciso comer...Mas nada disto importa agora quando a dor se insinua em meu ventre, quando a sede mata minha esperança e a fome indescritível macera meus mais ínfimos sonhos em nome de um maior sonho, o meu, o nosso. O sonho em forma de vidro fosco, de garrafa de gênio noturno, este opaco e fosforescente veneno.
--Eu paro!
--Quem falou?
--Sou eu.
...Novamente dialogando com o pálido líquido que se move como uma bolha de óleo na água do fundo. Deus está morto, a evolução nos fez superiores, os cientistas pesquisaram e nasceram os Deuses Iluminados, condensados na garrafinha, oh suave oásis! Como posso resistir aos seus gemidos, como posso deixar de ouvir seus apelos sensuais, se eu próprio já não tenho nenhuma dúvida do que devo fazer?
Tomo o frasco nas mãos. Olho a janela do vizinho( da última vez ele me viu e me convenceu a deixar aquilo para trás, mas algo lhe aconteceu porque hoje não vejo a luz de seu quarto acesa.) A làmpada de mercúrio é agressiva, num brilho quase assassino. Eu comprimo o pescoço do frasco, a tampinha de vidro salta feito papel seco e entra em minha pele salgada de suor e de dias sem luz.
--Mais tarde! Mais tarde!
Brota o sangue de meu indicador, umedecendo meu polegar, calejado de anos e anos de fumaça e impurezas. Será que o vizinho está mal? Será que sua esposa o compreende? Terá ele filhos ingratos como os meus? Saberá ele o paradeiro de seus netos, de sua prole, terá ele espalhado pelo mundo sua fecundidade, sua sementeira? Sua amante será bela como minha garrafinha? Terá ela lindos olhos de vagabunda ou será um olhar esgazeado de louca como os que vejo agora no espelho quebrado de minha sala devastada? Deus, ele está morto. Seus anjos? O abandonaram. O céu? Está deserto, não há virgens me esperando no Éden, não há harpas me aguardando no paraíso, não há flores a mais que as flores secas que pendem de minha janela com face norte para o Abismo.
Tomo de uma só vez o conteúdo da garrafa.
-Alea Jacta Est.